Embora o cargo de cabeça-de-casal revista carácter pessoal, pelo que não é transmissível (art. 2095.º do Código Civil), a obrigação de prestação de contas tem carácter patrimonial, pelo que a mesma se transmite aos herdeiros do cabeça-de-casal, nos termos dos arts. 2024.º e 2025.º n.º1 (a contrario), também do Código Civil.
1. A presente acção foi intentada pela A./requerente com vista à apresentação das contas referentes à administração que AA (AA) efectuou do acervo hereditário de BB (BB), no período compreendido entre 23/06/1986 e 15/02/1999.
2. A Requerente alegou, em síntese, que:
- É herdeira de BB, falecida em ..., em .../06/1986, no estado de viúva.
- AA, falecido em ..., em .../02/1999, no estado de casado com a R. CC, também foi herdeiro.
- AA assumiu as funções de cabeça de-casal desde a data do óbito daquela, ocorrido em 23/06/1986 até à data do seu próprio óbito em .../02/1999, após o que a requerente desempenhou funções de cabeça de casal até à partilha.
- O cabeça de casal AA nunca prestou contas relativamente ao período em que administrou a herança da falecida BB.
3. Concluiu a Requerente que a obrigação do cabeça de casal AA de prestar contas da administração dos bens da herança transmitiu-se para os respetivos herdeiros: os Requeridos.
4. Foram deduzidas nos autos duas oposições, respetivamente, por DD e EE, e por CC e FF.
5. Nas referidas oposições, os requeridos arguiram:
- A exceção de ilegitimidade processual passiva, por preterição de litisconsórcio necessário;
- A prescrição parcial da obrigação de prestação de contas;
- A prescrição parcial dos direitos de créditos decorrentes da Prestação de Contas;
- O cumprimento da obrigação pelo obrigado AA;
- O abuso de direito da Requerente, por haver criado a convicção de que não iria solicitar a prestação de contas.
6. Foi elaborado saneador e realizado julgamento, após o que foi proferida sentença julgando improcedente a acção e absolvendo os requeridos, dizendo:
“Pelos fundamentos expostos, julgo a presente acção totalmente improcedente e, em consequência:
a) não reconheço a existência do invocado direito a prestação de contas e determino a extinção dos presentes autos, ainda em sede declarativa;
b) absolvo a requerente do incidente de litigância de má fé que contra si foi dirigido.”
7. A requerente, inconformada com a decisão do tribunal de primeira instância, recorreu para o Tribunal da Relação, que veio a julgar o recurso improcedente e a confirmar a sentença, mas em cuja decisão vem aposto um voto de vencido.
8. Novamente inconformada a requerente interpôs recurso de revista para o STJ, no qual formula as seguintes conclusões (transcrição):
1ª O Acórdão recorrido não decidiu a parte do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto já que o Tribunal entendeu não dever conhecer da mesma por considerar que as questões suscitadas revelam, somente, caráter instrumental relativamente ao mérito do litígio, uma vez que não assumem relevância jurídica ou influência na decisão da causa.
2ª No entanto, nos presentes autos discute-se se a obrigação de prestar as contas em falta se transmitiu para os herdeiros do cabeça-de-casal faltoso, ou antes se tal obrigação se extinguiu com o falecimento deste, tendo sido esta última a tese acolhida pelo douto Tribunal.
3ª Nos termos do disposto no artigo 2024º do CC, diz-se “sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoal falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam.”
4ª Por seu turno, não constituem objeto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respetivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei (cfr. nº 1 do artigo 2025º do CC).
5ª O cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente, conforme decorre do estabelecido no nº 1 do artigo 2093º do CC.
6ª Ora, o objeto da ação com processo especial de prestação de contas encontra-se definido no art. 941º do CPC: “A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.
7ª Resulta daqui que o direito de exigir a prestação de contas está diretamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem, não relevando a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas.
8ª O douto Tribunal da Relação de Lisboa, assim como o Tribunal de 1ª instância, entendeu que o cargo de cabeça-de-casal tem natureza pessoal, tendo sido conferido um cunho pessoal à obrigação de prestar contas, a qual, assim, é insuscetível de ser cumprida por terceiros, extinguindo-se por morte do obrigado.
9ª Ora, este entendimento do Tribunal desvirtua completamente a natureza da obrigação de prestar contas, que é essencialmente patrimonial, já que tem por objeto o apuramento das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e o pagamento do saldo que venha a apurar-se.
10ª Não cabendo distinguir se o cabeça-de-casal chegou ou não a cumpriu o dever de informação que sobre ele impendia.
11ª Ou seja, a solução terá de ser sempre a mesma, tanto no caso de os herdeiros do falecido cabeça-de-casal serem habilitados em ação de prestação de contas pendente, como quando sejam demandados ab initio em ação de prestação de contas, enquanto herdeiros do falecido cabeça-de-casal, caso sucedeu na ação principal.
12ª Isto porque a natureza da obrigação de prestação de contas, que entendemos ser patrimonial, é sempre a mesma, não se alterando em função dessas circunstâncias processuais (demanda inicial dos herdeiros do falecido cabeça-de-casal ou habilitação destes em ação pendente).
13ª Devendo concluir-se, assim, que dada a natureza patrimonial da obrigação de prestar contas, quer no caso de não ter sido sequer cumprido o dever de informação, quer na eventualidade de apenas estar em causa o reconhecimento do subsequente crédito sobre a herança, revelado pelo cumprimento prévio do dever de informação inerente à prestação de contas, tal obrigação transmite-se aos herdeiros do cabeça-de-casal falecido.
14ª A obrigação do cabeça-de-casal de prestar contas do exercício do cargo transmite-se, por morte, aos seus sucessores (cfr. Acórdãos do TRC de 02/02/2016 e de 28/06/2016 e do STJ de 16/06/2011 e de 22/03/2018, respetivamente, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
15ª Consequentemente, conclui-se que os Recorridos, enquanto herdeiros do cabeça-de casal AA, encontram-se obrigados a prestar contas referentes à administração da herança de BB no período compreendido entre 23/06/1986 e .../02/1999.
16ª Acresce que os herdeiros do falecido AA, através da cabeça-de-casal da herança aberta por óbito deste, não se encontram impossibilitados de prestar as contas requeridas, pois acautelaram, ou deveriam tê-lo feito, toda a informação e documentação respeitante a receitas e despesas na posse do falecido, referente ao período em que este administrou a herança de BB, dando cumprimento à obrigação que não foi cumprida em vida do referido AA.
17ª O cumprimento do dever de informar/prestar contas pelos herdeiros do falecido cabeça-de-casal não prejudica os interesses do credor e os referidos herdeiros estão em condições de se substituir ao falecido no cumprimento do referido dever.
18ª A solução acolhida no Acórdão recorrido conduz a uma total desproteção dos demais interessados na herança cuja administração foi levada a cabo pelo falecido cabeça-de-casal, que ficam sem meios para se fazerem ressarcir das eventuais quantias resultantes da administração efetuada durante o cabecelato do falecido, solução não acolhida no ordenamento jurídico.
19ª Tais interessados, como sucede no caso sub judice, nem sequer disporão de legitimidade para intervir no processo de inventário do falecido cabeça-de-casal por não serem seus herdeiros, nem serão em regra relacionados como credores nesse inventário e não disporão em regra das informações suficientes, que o falecido cabeça-de-casal nunca prestou, que lhe permitam fazer valer a sua pretensão através de qualquer outro meio processual.
20ª Não foi intenção do legislador, nem resulta do espírito da lei, que os interessados na herança cuja administração foi levada a cabo pelo falecido cabeça-de-casal, que não prestou contas, fiquem desprovidos de verem ressarcidos os seus eventuais créditos resultantes da administração efetuada no cabecelato do falecido.
21ª Pelo exposto, o douto Acórdão fez uma incorreta interpretação e aplicação das normas constantes dos artigos 791º, 2024º, 2025, nº 1 (a contrario), 2091º, nº 1 e 2095º, todos do Código Civil.
22ª Devendo ser revogado e substituído por outra decisão que, diversamente, conclua pela transmissão de tal obrigação, por via sucessória, aos ora Recorridos enquanto herdeiros do falecido cabeça-de-casal e que, consequentemente, ordene a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa para apreciação do recurso na parte referente à impugnação da matéria de facto para posterior decisão, com base nessa matéria de facto, das demais questões cuja apreciação ficou precludida.”
9. foram apresentadas contra-alegações, onde se conclui (transcrição):
“1ª Carece de qualquer fundamento o recurso deduzido.
2ª A obrigação de prestação de contas não pode ser exigível aos herdeiros do cabeça de casal que havia sido dispensado pela recorrente de as prestar.
3ª Não está em causa nesta acção a obrigação de prestação de contas pelo cabeça de casal.
4ª Está em causa se os herdeiros do cabeça de casal dispensado de as prestar por quem as exige agora, estão ou não obrigados a prestá-las em acção contra eles interposta.
5ª Quase toda a jurisprudência se foca na obrigação de prestação de contas pelos herdeiros do cabeça de casal falecido na pendencia da acção.
6ª Nestes casos faz sentido, pelo princípio da estabilidade da instância, os herdeiros sucederem na posição processual do cabeça de casal falecido na pendencia da acção através do incidente de habilitação.
7ª Já no caso do decesso do cabeça de casal sem que tenha prestado contas a obrigação da sua prestação não se transmite para os herdeiros.
8ª Ensina o Prof. Teixeira de Sousa que Salvo o devido respeito, a posição desses herdeiros não deve ser vista como a de herdeiros da obrigação que constitui objecto do processo, nomeadamente, da obrigação de prestar contas. Seria estranho que, com base numa posição que não se transmite -- que é a de cabeça-de-casal --, alguém pudesse adquirir, por sucessão, uma obrigação que é própria de uma posição intransmissível. Como é que se pode justificar que quem não é cabeça-de-casal suceda numa obrigação que é inerente a essa qualidade? No entanto, apesar da não transmissibilidade da obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal, é claro que uma acção de prestação pode ser continuada pelos herdeiros daquela parte. Mas isso sucede, não porque os habilitados sejam herdeiros da obrigação dessa prestação, mas antes porque são herdeiros de quem tinha essa obrigação. Isto é: o título de herdeiro atribui a alguém legitimidade para se substituir à parte falecida (título legitimante), sem que esteja em causa a sucessão na obrigação que é apreciada na acção (título sucessório).
9ª Não foi violada qualquer disposição legal.”
10. O recurso foi admitido com a prolação do seguinte despacho no Tribunal recorrido:
“Requerimento ref. citius 709712:
Por estar em tempo e ter legitimidade, admito o recurso interposto do acórdão proferido em 25/6/2024, que é de revista, sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. artigos. 629.º, n.º 2, al. d), 671.º, n.º 1, 675.º e 676.º, n.º 1 todos do Código de Processo Civil).
Subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.”
II. Fundamentação
De Facto
11. Vieram JULGADOS PROVADOS os seguintes factos:
1) Nos autos que, sob o n.° 896/05.0..., correram seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de ... - Juiz ..., procedeu-se a partilha, em inventários cumulados, por óbito de: BB, falecida em ..., em .../06/1986, no estado de viúva;
a) GG;
b) AA, falecido em ..., em .../02/1999, no estado de casado com a ora R. CC (doc. n.° 1, junto com o Requerimento Inicial);
2) As funções de cabeça-de-casal da herança de BB, falecida em .../06/1986, foram exercidas por AA até à data do falecimento daquele, ocorrido em .../02/1999;
3) Após o falecimento de AA as funções de cabeça-de-casal foram desempenhadas pela Requerente HH;
(na sequência de julgamento)
4) Após a morte do cabeça-de-casal AA, em Fevereiro de 1999, a Requerida CC, cônjuge de AA, entregou à aqui Requerente HH, toda a documentação da herança em poder do seu falecido marido, para que aquela pudesse exercer devidamente o cabecelato;
5) Os Requeridos nunca tiveram qualquer intervenção na administração da herança, durante o cabecelato de AA ou posteriormente;
6) A Requerente assumiu o cabecelato desde Fevereiro de 1999, recebendo a documentação que lhe foi entregue pela Requerida CC sem que nunca tivesse reclamado contas, e tendo inclusivamente apresentado contas posteriores, os Requeridos confiaram em que o não o iria fazer após a partilha;
7) A Requerente HH sempre considerou prestadas as contas entre irmãos e que não haveria outras contas a prestar, com o esclarecimento de que tal posição assentou no facto de ter sido celebrado acordo em 19-11-1998, relativo a partilha dos bens deixados por BB em partes iguais, com AA e no qual o mesmo renunciava à deixa testamentária feita por aquela a seu favor;
8) Anteriormente à 1.a sessão da conferência de interessados, nos autos acima identificados em 1., veio a Interessada HH juntar documento denominado “acordo de partilhas” referente a um acordo celebrado entre si e o seu falecido irmão AA, em 19 de Novembro de 1998, através do qual o mesmo se teria comprometido a partilhar os bens deixados por BB em partes iguais e no qual o mesmo renunciava à deixa testamentária feita por esta em seu favor, requerendo que tal seja tomado em consideração em sede de conferência de interessados (cf. exame da cópia do douto despacho de 11-03-2014);
9) Mediante despacho de 11-03-2014, proferido nos auto referidos em 1, foi indeferido o requerido relativamente à relevância do referido documento para efeitos do inventário;
10) Lê-se na fundamentação do referido despacho que:
Tendo em vista decidir da validade e dos efeitos no presente inventário do documento ora apresentado, importa antes de mais analisar o seu conteúdo, por referência à herança a que o mesmo se refere.
Ora, do respetivo teor resulta que através de documento particular datado de 19 de Novembro de 1998, assinado, sem reconhecimento notarial, os Interessados AA, posteriormente falecido, e HH, declararam serem herdeiros legítimos de BB, falecida em ... de Junho de 1986, a qual havia deixado testamento através do qual deixou a quota disponível dos seus bens ao referido Interessado, devendo a mesma começar a preencher-se pelo prédio urbano sito na Rua ... e disposto ainda de um legado em favor da Interessada.
Mais resulta terem os mesmos afirmado serem os únicos herdeiros legitimários da mesma, e obrigarem-se a partilhar entre si a totalidade dos bens testados pela falecida na proporção de 50% para cada um, bem como a Interessada a não promover contra o Interessado qualquer ação de prestação de contas e a renunciar à denúncia de qualquer ato que tenham em vista a sonegação ou o incumprimento de obrigações fiscais, ficando o Interessado de praticar os atos necessários à venda da propriedade no prazo de 180 dias.
Ora, da análise do referido documento em confronto com os elementos constantes dos autos, verifica-se, desde logo, referir-se o acordo a uma herança deixada pela avó dos declarantes (e não da sua mãe, como referiu a requerente), da qual não eram apenas herdeiros os mesmos, mas igualmente II .(…)” – exame do Inventário.
12. FACTOS NÃO PROVADOS
a) AA, que desempenhou funções de cabeça-de-casal, relativamente à herança aberta por óbito de BB, e prestou contas relativas ao período de 23/06/1986 a .../02/1999;
b) E reunia anualmente com a Requerente HH, sua irmã, para lhe prestar contas da referida herança, entregando-lhe a documentação com ela relacionada;
c) E fez igualmente a repartição do saldo final credor da herança a favor da Requerente, HH, sempre que lhe era devido;
d) A Requerente HH aceitou as contas prestadas pelo cabeça de casal, relativas ao período de 23/06/1986 a .../02/1999;
e) Não foi entregue à Requerente qualquer quantia transitada do cabecelato anterior, como saldo da herança, nem lhe foi distribuído, enquanto herdeira, qualquer montante referente a esse período;
f) A Requerente HH apenas obteve a documentação relativa à herança junto dos arrendatários dos imóveis que integravam o acervo hereditário;
g) A Requerida CC, cônjuge de AA continuou a participar na administração dos bens da herança, juntamente com a Requerente;
h) A Requerente lançou mão da ação especial, por forma a dificultar o acesso aos Requeridos aos rendimentos provenientes dos imóveis que integravam o acervo hereditário e que, entretanto, foram objeto de partilha.
De Direito
13. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
Assim, considerando as conclusões da recorrente, as questões são:
- Saber se os herdeiros do cabeça de casal adquirem, por sucessão, a obrigação de prestar contas;
- Saber se a decisão recorrida devia ter conhecido da impugnação da matéria de facto, questionada na apelação.
14. Relativamente à primeira questão.
Na sentença disse-se:
Temos, pois que a obrigação de prestação de contas se decompõe em dois momentos:
- num primeiro momento, numa obrigação de informação;
- num segundo momento, numa (apenas eventual) obrigação de entrada do saldo da administração.
A primeira obrigação reconduz informação (cfr. artigo 2093.º do Código Civil).
Acaso exista um saldo positivo, vence-se, então, a obrigação de entrega, com a liquidação da actividade de administração, a qual implica a obrigação de prestação de contas anual (cfr. artigo 2093.º do Código Civil).
Ora, funcionalmente, o processo de prestação de contas pressupõe que, num primeiro momento, se afira da existência, ou não, da tal obrigação de prestar contas e, num segundo momento numa operação de liquidação das contas.
Posto isto, reconhecida a existência da obrigação de prestação de contas, o devedor terá que as prestar, nos próprios autos, sob pena de, não o fazendo, não poder Código de Processo Civil).
Tal dever de informação, imposto ao cabeça-de-casal, decorrente da especial relação que tem com o património hereditário, uma vez que sobre si impende a sua administração.
Posto isto, haverá que distinguir duas situações:
- não é contestada da obrigação de prestar contas, existindo já a liquidação do saldo final;
- não foram prestadas contas, não existindo, nessa medida, qualquer saldo final.
No primeiro caso, o dever de informação/de oferecer as contas, não se transmite para os sucessores, extinguindo-se, por se tratar de uma obrigação de prestação de facto positivo, infungível e, nessa medida, a obrigação é insusceptível de ser cumprida por terceiros (cfr. artigo 791.º do Código Civil, que dispõe que a impossibilidade relativa à pessoa do devedor importa igualmente a extinção da obrigação, se o devedor, no cumprimento desta, não puder fazer-se substituir por terceiro).
No segundo caso, o dever de pagamento do saldo existe na esfera jurídica do cabeça-de-casal, como obrigação pecuniária/ crédito de terceiros perante a herança, pelo que, tendo natureza patrimonial, se transmite aos herdeiros, nos termos gerais do artigo 2024.º do Código Civil, acima já citado.
Posto ser este o enquadramento que, julgamos, melhor se quadra com a compreensão do instituto da prestação de contas, parece relevante dizer, ainda, o seguinte:
No caso do acórdão do STJ de 16/06/2011, acima citado, a obrigada a prestar contas já o havia feito, tendo apresentado contas nos autos, pelo que os autos prosseguiram para o julgamento das contas previamente apresentadas.
Assim, não existe contradição entre o citado acórdão e o também conhecido ac. do STJ de 29-11-2005, que se refere a uma situação diversa, em que existindo apenas dois herdeiros, um dos irmãos pretende que a acção de prestação de contas que instaurou contra a mãe prossiga contra o seu irmão, que inicialmente chamara ao processo como seu associado (http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/0/21984fa16dd76562802570ec0045896e?OpenDocument).
Tudo vale por dizer que das duas uma:
- ou já foi cumprido o dever de prestar contas, caso em que existe, já, o cumprimento do
dever acessório de as prestar, pelo obrigado, caso em que, estando em causa o reconhecimento de um direito de crédito sobre a herança a instância prossegue;
- ou não foi, ainda, determinado qualquer saldo, caso em que se discute, ainda, a existência de qualquer crédito sobre a herança. Neste último caso, os herdeiros não se podem substituir ao obrigado a prestar contas (por não deterem o conhecimento que advém da administração) pelo que, a pretender a existência de um crédito sobre a herança do administrador, caberá ao interessado demonstrar esse mesmo crédito, nos termos gerais.
A diferença entre as duas situações compreende-se perfeitamente, na medida em que o dever de informação que impendia sobre o cabeça-de-casal, no primeiro caso, já estava cumprido e no segundo, como não se transmite, não se encontra, ainda, reconhecido qualquer direito de crédito, à data do decesso do administrador/cabeça-de-casal.
Posto isto, haverá que concluir, como se conclui, que a pretender ser detentora de qualquer crédito sobre os herdeiros de AA, decorrente da administração que aquele levou a cabo da herança de BB, impenderá sobre a Requerente o ónus de alegar e demonstrar, perante os herdeiros, a existência de tal crédito.
A existir tal crédito, o mesmo terá que ser reconhecido com essa mesma natureza, por força do disposto no artigo 2071.º do Código Civil.
É que a acção de prestação de contas, a título provocado, encontra-se funcionalmente prevista para os casos em que, impendendo sobre o requerido o dever de prestar contas, o faça ou, não o fazendo, fique sujeito às contas apresentadas pelo requerente (na medida em que o primeiro incumpriu o dever de informação).
Ora, tendo a requerente sucedido a AA no exercício de cabeça-de-casal das heranças da avó e da tia e tendo desempenhado essas mesmas funções em relação à herança daquele, mal se compreende que, findo o inventário e não tendo suscitado qualquer questão quanto à existência de créditos decorrentes da administração venha, agora pretender fazer, numa acção autónoma, o que não fez no inventário. Para mais, a requerente era detentora de toda a informação existente e que lhe foi transmitida, conforme resultou provado.
Em suma, não tendo a requerente suscitado a questão da existência de qualquer crédito, a título de crédito de liquidação de contas da administração de AA, no competente inventário (que correu termos por óbito da avó, da mãe e do irmão daquela) e aí tendo desempenado funções de cabeça-de-casal, não pode, agora, querer fazer-se valer de um processo especial que visa dar resposta ao cumprimento de deveres acessórios de informação que, pressupondo uma actividade de facto positivo e intuitu personae (uma vez que apenas o administrador pode ter o cabal conhecimento sobre as contas que realizou) se adequa estruturalmente ao cumprimento de um dever de informação.
E, nesse ponto, não se pode deixar de referir que a entender que existiu alguma espécie de enriquecimento do antecessor do AA, a requerente pode, se assim entender, lançar mão do processo comum contra os herdeiros, o que não pode é exigir-lhes que cumpram um dever acessório de facto positivo infungível, que se não transmite por via sucessória, em razão da sua natureza cfr. artigos 2024.º e 791.º do Código de Processo Civil.
Pelos fundamentos expostos, haverá que concluir, como se conclui, que a requerente não tem direito a exigir a prestação de contas aos sucessores do seu irmão, por se lhes não ter transmitido tal obrigação, por via sucessória, que se extinguiu, por impossibilidade subjetiva do devedor. Fica, pois, prejudicada a possibilidade de conhecimento das demais questões suscitadas, nomeadamente de natureza exceptiva.
E na Decisão do TRL:
“Obrigação de prestação de contas
19 A prestação de contas não é admissível, neste caso, como veremos.
20 O artigo 941.º, do Código de Processo Civil, que permite a dedução de ação de
prestação de contas contra quem tenha o dever de as prestar, pressupõe a existência de normas de natureza substantiva que imponham a obrigação de prestar contas.
21 Diz Alberto dos Reis, Processos especiais, Vol. I, pág. 303 que “ quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração, ao titular desses bens ou interesses
22 A administração da herança é da responsabilidade do cabeça de casal nomeado nos termos do artigo 2080.º, do Código Civil cf. artigo 2079.º, do Código Civil.
23 O cabeça de casal, enquanto administrador da herança, deve prestar contas anualmente cf. artigo 2093.º, do Código Civil.
24 O cargo de cabeça de casal não é transmissível em vida, nem por morte cf. artigo 2095.º, do Código Civil.
No Ac. TRL de 2/2/2016, Pr 91/14.7... enunciou-se como princípio, com o qual concordamos, que quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses; o que a contrario significa é uma redundância que não se é obrigado aprestar contas de administrações feitas por outrem.
26 O que se discute e pretende saber é quais os efeitos decorrentes do falecimento do cabeça de casal. Designadamente, se a obrigação se prestar contas se transmite aos seus herdeiros.
27 Na jurisprudência não há unanimidade. No Ac. do STJ, de 29/11/2005, entendeu-se que não sendo o cargo de cabeça de casal transmissível por morte (artigo 2095.º, do Código Civil), perante o decesso do cabeça de casal haverá que recorrer-se à regra do artigo 2080.º, para se designar novo cabeça de casal; já no Ac. do TRL, de 14/11/2000, que seguiu a posição expressa por João António Lopes Cardoso, em Partilhas Judiciais, 4ª ed., Vol. III, p. 62 defendeu-se que “a obrigação de prestar contas é transmissível por via hereditária (art.º 2025.º, n.º1 do CC) incumbindo, pois aos herdeiros do cabeça de casal que dela não se desobrigou”.
28 Adotamos a primeira posição, por se afigurar ser a mais coerente com as normas legais do Código Civil e com o espírito do legislador.
29 O que a recorrente pretende é que os recorridos, em 2019 (data de interposição da ação), prestem contas de um cabecelato que nunca exerceram e referente a um período que se iniciou 33 anos antes da data em que a ação foi interposta.
30 A solução que defende uma obrigação de prestar contas por quem não tem a a administração dos bens “conduz a um resultado desadequado e disfuncional, qual seja a cisão entre o titular do dever de prestar contas (herdeiros do cabeça de casal) e o titular do cargo de cabeça de casal”, como defende, a propósito Luis Filipe de Sousa em Processos Especiais de Divisão de Execução Comum e Prestação de Contas, 3ª ed. p. 156, posição com a qual concordamos.
31 E, como defende o mesmo autor, o legislador pretendeu reunir na mesma pessoa a obrigação de prestar contas e o cabecelato.
32 O regime legal aponta inequivocamente para esta mesma conclusão: as contas devem ser prestadas por quem tem essa obrigação (artigo 941.º, do Código Civil), o cabeça de casal administra a herança e deve prestar contas (artigos 2079.º e 2093.º, do Código Civil), não podendo o cargo transmitir-se em vida nem por morte (artigo 2095.º, do Código Civil).
33 Existe, pois, aqui um cunho pessoal conferido pelo legislador à obrigação, que é cometida às pessoas concretamente determinadas por lei, em razão de critérios de relação de parentesco e proximidade com o falecido e por não ser transmissível por morte, sem prejuízo do conteúdo patrimonial que igualmente a caracteriza.
34 E não serve de argumento, invocar que o artigo 943.º permite tal dissociação ao determinar que se o réu não prestar as contas, o autor pode fazê-lo. Esta solução não resulta do regime substantivo, mas foi a opção processual que o legislador encontrou para cominar a falta de prestação de contas por parte do requerido a tal substantivamente obrigado. Uma norma cominatória processual não pode substituir o regime substantivo, nem justificar exceções a este.
35 Uma solução como a que pretende a recorrente, de obrigar os recorridos a prestar contas relativamente a um cabecelato que não exerceram (e que se iniciou há mais de 20 anos), contraria a construção legislativa substantiva enunciada, de unidade subjacente ao regime do cabecelato.
36 Criando uma cisão entre a obrigação de prestação de contas e o cargo de cabeça de casal, ao arrepio das normas citadas.
37 Também Miguel Teixeira de Sousa no blog IPPC defende, numa situação em que há que decidir se devem ser habilitados herdeiros num processo de prestação de contas, o seguinte (ênfase aditada): “a posição desses herdeiros não deve ser vista como a de herdeiros da obrigação que constitui objeto do processo, nomeadamente, da obrigação de prestar contas. Seria estranho que, com base numa posição que não se transmite - que é a de cabeça-de-casal -, alguém pudesse adquirir, por sucessão, uma obrigação que é própria de uma posição intransmissível. Como é que se pode justificar que quem não é cabeça-de-casal suceda numa obrigação que é inerente a essa qualidade? No entanto, apesar da não transmissibilidade da obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal, é claro que uma ação de prestação pode ser continuada pelos herdeiros daquela parte. Mas isso sucede, não porque os habilitados sejam herdeiros da obrigação dessa prestação, mas antes porque são herdeiros de quem tinha essa obrigação. Isto é: o título de herdeiro atribui a alguém legitimidade para se substituir à parte falecida (título legitimante), sem que esteja em causa a sucessão na obrigação que é apreciada na ação (título sucessório). A habilitação destina-se a permitir a substituição de uma parte falecida pelos seus herdeiros, não a transferir, a título sucessório, o objeto do processo para os herdeiros.
Há apenas a substituição de uma parte falecida por uma outra parte. Em tudo o mais (nomeadamente, quanto ao objeto), a instância permanece a mesma.
Em conclusão: a razão não está nem com quem entende que, porque a obrigação de prestação de contas é intransmissível, a ação de prestação tem de se extinguir com a morte do cabeça-de-casal, nem com quem defende que, para que a ação de prestação possa continuar contra os herdeiros do cabeça-de-casal, é necessário pressupor que estes são herdeiros da obrigação de prestação”.
Cf. a seguinte ligação: https://blogippc.blogspot.com/2022/02/jurisprudencia-2021-139.html.
38 Na análise de um caso de habilitação de herdeiros em processo de prestação de contas pendente, a citação acabada de referir distingue o que é a obrigação própria do cabeça de casal que não se transmite aos herdeiros, de prestação de contas, da posição processual que o cabeça de casal tinha na ação, que se transmite enquanto tal aos herdeiros (sem que a par se transmita para os herdeiros o objeto do processo).
Isto é, os herdeiros substituem, num processo concreto, quanto a uma obrigação concretamente determinada, relativamente a um cabeça de casal que faleceu na pendência da ação, a parte falecida, sem que com isso se transfira para a sua esfera uma qualquer obrigação que era do cabeça de casal.
39 Em conclusão, e por maioria de razão, haverá que entender que para propor uma ação nova de prestação de contas, a obrigação de prestar contas não se transmitiu para os recorridos, por força do falecimento de AA.
40 Em conformidade, deve improceder o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.!
Este acórdão teve um voto de vencido.
Nele consta:
“Embora o cargo de cabeça-de-casal revista carácter pessoal, pelo que não é transmissível (art. 2095.º do Código Civil), a obrigação de prestação de contas tem carácter patrimonial, pelo que entendo que a mesma se transmite aos herdeiros do cabeça-de-casal, nos termos dos arts. 2024.º e 2025.º n.º1 (a contrario), também do Código Civil. Efectivamente, daquele art. 2095.º resulta que a morte extingue o cargo de cabeça-de-casal, mas não que extinga a obrigação (patrimonial, como se disse) de prestação de contas. Outra solução deixaria, aliás, os restantes herdeiros desprotegidos e sem meios (ou, pelo menos, com meios mais limitados) para se fazerem ressarcir das quantias resultantes da administração do cabeça-de-casal falecido.
Assim, no caso dos autos, consideraria que a obrigação de prestação de contas se transmitiu aos herdeiros do primitivo cabeça-de-casal [para mais desenvolvimentos, podem ver-se os Ac. STJ de 16/6/2011, proc. 3717/05, RC de 2/2/2016, proc. 91/14, RG de 26/1/2017, proc. 861/08, STJ de 22/3/2018, proc. 861/08, RL de 21/6/2021, proc. 709/19, RE de 26/10/2023, proc. 3311/18, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt].
Situação diversa é a de saber se aquela obrigação se encontra extinta ou deve ser paralisada, face à invocada prescrição e ao invocado abuso de direito na modalidade da suppressio, para o que se impunha apreciar a impugnação da decisão acerca da matéria de facto. Tais questões ficam, no entanto, por apreciar, atenta a posição que obteve vencimento, pelo que sobre elas não nos cabe pronunciarmo-nos.”
Que dizer?
O STJ já teve oportunidade de tomar posição sobre a questão, não se identificando motivos que determinem um afastamento da orientação adoptada.
Essa orientação colhe-se, nomeadamente, nos seguintes arestos:
Proc. 3717/05.0TVLSB.L1 – Ac. do STJ de 16/06/2011, em cujo sumário consta (disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2b6c253ea5c91bc8802578c300530acb?OpenDocument):
I. A natureza patrimonial da obrigação de prestar contas revela-se nomeadamente no próprio objecto da acção, a que alude o art. 1014.º do CPC que visa o “apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”, operações estas que assumem um carácter predominantemente patrimonial.
II. Também o que importa no âmbito dessa acção, em termos de obrigação de prestar contas, é quem de facto administra bens alheios, independentemente da fonte que gera essa obrigação.
III. Uma coisa é a intransmissibilidade do cargo de cabeça de casal, a que alude o art. 2095.º do CC e outra bem diferente é a própria natureza da obrigação de prestar contas, por quem administra património alheio, como afinal acontece no caso em apreço.
IV. E uma coisa é a pessoalidade do cargo de cabeça de casal e outra é a natureza da obrigação de prestar contas a que está obrigado, o que significa que o facto do cargo de cabeça de casal ser de natureza pessoal, não faz com essa pessoalidade se transmita também à obrigação de prestar contas.
V. E sendo a obrigação de prestar contas de natureza patrimonial, ela é susceptível de transmissão para os respectivos herdeiros de quem fez administração de bens alheios, não se verificando, por isso, em sede de acção de prestação de contas, a impossibilidade originária da lide pelo facto de ter ocorrido a morte de quem exerceu essa administração.
Ac. do STJ de 22/3/2018, proc. 861/08.5TBBCL-E.G1.S1 – disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/81defafceb1179eb80258259004256e7?OpenDocument
Aqui se disse:
“Tem-se entendido, na doutrina e na jurisprudência, o que, aliás, não vem posto em causa no presente recurso, que a obrigação de prestar contas por parte do cabeça de casal, por ter natureza eminentemente patrimonial, é transmissível via hereditária, incumbindo, pois, aos herdeiros do cabeça de casal que dela se não desobrigou.”
Idêntica posição tem sido adoptada pelas Relações, conforme se confirma pelos seguintes exemplos:
Proc. nº 91/14.7T8SEI.C1, do TRC, de 02-02-2016, com o seguinte
sumário disponível em (https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/b775966922ae256780257f6400364db7?OpenDocument):
1. O cargo de cabeça-de-casal não é transmissível em vida nem por morte, porém, uma coisa é o cargo de cabeça-de-casal – que não se transmite e que se extingue com a sua morte – e outra, diversa, a obrigação de prestar contas que, tendo natureza eminentemente patrimonial, constitui objecto de sucessão e se transmite aos herdeiros (do cabeça-de-casal).
2. Porém, se tais herdeiros (do cabeça-de-casal que não prestou contas) são também herdeiros da primeira herança (em que as contas não foram prestadas) – como é o caso dos irmãos nas heranças dos seus pais – não podem exigir uns dos outros a prestação de contas em falta (por serem devedores e credores da mesma obrigação).
Proc. n.º3311/18.5T8FAR-E1, do TRE, de 26/10/2023, com o seguinte
sumário (disponível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/e43b99076439a76680258a6e0033fde5?OpenDocument):
I - A obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal “deriva da administração da herança, como garantia de que essa administração será exercida com diligência, competência e honestidade e de que o administrador não se afastará das regras que a prudência indica e a probidade impõe. “O cabeça-de-casal tem, pois, de ser prudente, cauteloso e honesto e é necessário tomar-lhe contas para exame da administração a seu cargo, dado que gere património que não é exclusivamente seu, incumbindo-lhe satisfazer o que se lhe mostrar devido ou exigir o saldo que, porventura, haja a favor da herança
II - A cabeça de casal tem o dever de informar as demais herdeiras das receitas e despesas relativas à administração da herança, das quais as mesmas não prescindiram, após a data do óbito do titular da herança.
III - A contitularidade, pelas herdeiras, de conta bancária e acesso aos respectivos extractos bancários não é sinónimo do cumprimento desse dever, tanto mais que apenas a cabeça de casal podia movimentar a conta referida isoladamente, sem autorização das demais herdeiras, suas filhas e do de cujus, sendo que estas apenas podiam movimentar a conta conjuntamente e consultar os respectivos extractos.
IV- Passando a cabeça de casal e mãe das demais herdeiras a necessitar de medida de acompanhamento de representação geral, deixando de administrar, de facto, a herança aberta por óbito do seu cônjuge, foi-lhe nomeada curadora, e acompanhante, a quem caberá, nessa qualidade, apresentar, em 20 dias, as contas da administração dos bens do acervo hereditário por óbito do autor da herança, referente ao período em que tal prestação incumbiria à cabeça de casal inicial, em forma de conta corrente, sob pena de, não o fazendo, não poder contestar as que a Autora apresente.
V- A actual acompanhante não pode eximir-se à prestação de contas em representação da acompanhada, alegando desconhecimento e incapacidade de tal realização, por a obrigação não ter natureza pessoal, mas sim patrimonial.
VI - Tal obrigação não é pessoal e pode ser cumprida por outrem que não o próprio administrador em caso de impossibilidade deste, como é o caso dos autos, com recurso, se necessário, ao auxílio do tribunal.
Proc. n.º861/861/08.5TBBCL-E.G1, do TRG, de 26 Janeiro 2017, com o seguinte sumário (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/92e022872d3a933c802580d8004ec3ac?OpenDocument):
I - A obrigação de prestação de contas é transmissível, por via hereditária, dada a sua natureza patrimonial, razão pela qual não se extingue por morte do cabeça-de-casal, incumbindo, por isso, aos seus herdeiros o cumprimento da mesma.
II - Sendo a autora herdeira do cabeça-de-casal, com quem este foi casado em segundas núpcias, assiste-lhe o direito de apurar a composição exacta do acervo hereditário deixado por morte de seu cônjuge.
III - Não obstante ser sucessora do referido cabeça-de-casal e consequentemente, obrigada, tal como os demais sucessores, a prestar essas contas a terceiros, tal situação não poderá ser impeditiva de as poder exigir aos sucessores daquele, únicos interessados no inventário aberto por morte de sua mãe, M, sob pena de ficar impossibilitada de determinar, na totalidade, o património do falecido cônjuge.
IV - Esta justificação apresentada pela Autora para exigir a prestação de contas, revela um interesse próprio e diferenciado dos demais herdeiros do cabeça-de-casal, revestindo a posição de terceira interessada no apuramento e aprovação das contas da herança, cujo resultado irá influir na determinação global da herança deixada por morte de seu cônjuge, e consequentemente, dos quinhões hereditários.
V - Compete aos réus, cumprir essa obrigação, na qualidade de sucessores do cabeça-de-casal, únicos e universais herdeiros da herança deixada por morte de sua mãe, uma vez que a administração dos bens da herança, exercida pelo cabeça-de-casal, gerou receitas e despesas.
Ac. de 21 Junho 2021, Proc. n.º 709/19.5T8LSB-A.L1-6, do Tribunal da Relação de Lisboa, com o seguinte sumário (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/04258964a66e1f5880258702004b9d9e?OpenDocument):
I – A obrigação de prestar contas tem carácter patrimonial e por isso é susceptível de transmissão para os herdeiros do cabeça-de-casal.
II – Sendo herdeiros da falecida cabeça-de-casal ré na acção de prestação de contas a própria autora e os dois requeridos no incidente de habilitação de sucessores da ré, não poderia a autora ser habilitada como sucessora por se verificar a figura jurídica da “confusão” e nem podem os requeridos ser habilitados desacompanhados da autora, pois são os três, em conjunto, os sucessores dessa obrigação de prestar contas.
Em síntese, não há que confundir a intransmissibilidade da posição de cabeça de casal, com a transmissibilidade da obrigação de prestação de contas relativas ao exercício do cabeçalato, que é de natureza patrimonial, e pode – abstratamente considerando – ser realizada pelos herdeiros, sob pena de se ficar numa situação inadmissível de falta de informação.
Em face disso, procede a revista da recorrente sobre esta questão.
15. Vejamos agora a questão que não foi conhecida pelo Tribunal da Relação, relativa à impugnação da matéria de facto.
Para não conhecer da questão colocada na apelação disse o tribunal:
17 No presente caso, conforme se verá, as questões de facto suscitadas pela apelante em sede de impugnação da matéria de facto são irrelevantes para a decisão da causa e d orecurso, isto é, não assumem relevância jurídica ou influência na decisão do caso, qualquer que seja a solução de direito que se equacione, ainda que fossem decididas a contento e de acordo com o pretendido pela apelante.
18 Em conclusão, e pelos fundamentos expostos, decide este tribunal ad quem não
conhecer da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.”
Esta decisão partir do pressuposto de que em nenhuma circunstância os herdeiros do cabeça de casal teriam obrigação de prestar contas do cabeçalato, porque a obrigação não seria transmissível mortis causa.
Tendo este tribunal entendido que a solução conforme à lei é diferente, não pode deixar de se revogar a decisão do Tribunal recorrido, determinando que aquele analise se a impugnação da matéria de facto deve ser procedente, e bem assim, se o entender, das demais questões que ficaram prejudicadas na decisão de primeira instância.
III. Decisão
Pelos fundamentos indicados, é concedida a revista.
Os autos devem baixar à Relação para conhecer da questão/questões tidas por prejudicadas.
Custas da revista pelos recorridos.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2024
Relatora: Fátima Gomes
1º adjunto: Rui Manuel Machado e Moura
2º adjunto: Nuno Pinto Oliveira