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REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
NULIDADES DO INQUÉRITO
INADMISSIBILIDADE LEGAL DA INSTRUÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INTERVENÇÃO HIERÁRQUICA
Sumário
I. Tendo o Juiz de Instrução Criminal decidido rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal da instrução, não havendo, portanto, lugar à mesma, nem, consequentemente, à prolação de um despacho de pronúncia ou de não pronúncia, não lhe cumpria apreciar, previamente, as nulidades do inquérito suscitadas nesse requerimento, uma vez que as mesmas apenas deviam ser conhecidas em momento posterior à admissão da abertura da instrução, ou seja, na decisão instrutória, ante o exposto no artigo 308.º do Código de Processo Penal. Inexiste, portanto, qualquer nulidade do despacho por omissão de pronúncia. II. O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, na sequência de um despacho de arquivamento do Ministério Público, deve corporizar no seu texto uma verdadeira acusação, identificar cada um dos arguidos com autonomia factual concreta e precisa, apenas com os factos necessários suscetíveis de integrar os elementos objetivos e subjetivos dos tipos penais pretendidos imputar, sem adjetivações e/ou considerandos probatórios ou qualificações jurídicas de permeio. III. Além disso, deve conter uma indicação precisa do crime imputado, não sendo consentida pela nossa lei processual penal uma imputação subsidiária e/ou alternativa. IV. Um requerimento de abertura de instrução que não satisfaz as exigências processuais mencionadas no artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que não contem todos os elementos a que alude o artigo 283.º, n.º 3, al.s b) e d), do Código de Processo Penal, conduz a uma fase de instrução inexequível, por impossibilidade de obtenção do seu objetivo legal, e, por isso, inútil e legalmente inadmissível, não podendo as respetivas falhas ser colmatadas pelo convite ao aperfeiçoamento, nem pelo recurso ao mecanismo previsto no artigo 303.º do Código de Processo Penal. V. Um requerimento de abertura de instrução rejeitado não pode ser convolado num requerimento de intervenção hierárquica, pois quer a abertura de instrução, quer a intervenção hierárquica, constituem os meios legais de reação ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, mas são meios alternativos, que se excluem um ao outro. Permitir tal convolação seria o mesmo que contornar a intenção do legislador plasmada no artigo 278.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Texto Integral
Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I- RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo n.º 217/21.... que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Vila Real – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, na sequência de despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, a 31-10-2023, veio a assistente EMP01..., Produtos Alimentares, Lda. requerer a abertura de instrução, nos termos do requerimento junto aos autos a 04-12-2023, sobre o qual incidiu o despacho proferido, a 29 de fevereiro de 2024, pela Mm.ª Juíza de Instrução Criminal, que considerando legalmente inadmissível, ao abrigo do disposto no artigo 287º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal, rejeitou o referido requerimento de abertura de instrução.
I.2 Recurso da decisão
Inconformada com tal decisão, dela vem recorrer a assistente para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]: “1º O recurso é interposto do despacho proferido na ata com a Ref.ª ...66 e que decidiu, para além da condenação em custas, rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente, por inadmissibilidade legal da instrução, ordenando o arquivamento dos autos. 2.º O recurso versa a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de direito, o que é admissível pois os poderes de cognição deste Tribunal são de facto e de direito – artigo 428º do C.P.P. 3.º Na instrução, antes de se pronunciar sobre a suficiência dos indícios, ou falta deles, e antes de se pronunciar sobre os pressupostos de que depende a punibilidade, o juiz de instrução deve conhecer da regularidade do processo, da existência dos necessários pressupostos processuais e demais condições de validade para que o tribunal possa conhecer em julgamento, se for o caso, do mérito da pronúncia. 4.º Acresce que para o próprio juízo de indiciação é necessário que o juiz conheça da validade e admissibilidade das provas recolhidas no inquérito e na instrução, o que passará também pela prévia apreciação da legalidade dos actos de inquérito e de instrução, da sua existência e suficiência. 5.º A esta necessária apreciação preliminar à decisão instrutória se refere o nº 3, do artigo 308º, do Código de Processo Penal, ao dispor que o juiz começa por decidir das nulidades e de todas as questões prévias, isto é, todas as questões de natureza processual - pressupostos da existência ou requisitos de validade ou regularidade do procedimento e dos actos processuais -e bem assim de todas as questões incidentais de que possa conhecer. 6.º Era essencial que o tribunal a quo procedesse, antes de mais, à apreciação das nulidades e questões prévias melhor alegadas no RAI, até porque foram expressamente invocadas, o que significa que apenas se pedia ao tribunal que atuasse dentro dos limites da vinculação de direito e de factos fixados pelo requerimento de abertura de instrução, precisamente “tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura de instrução”, como refere o nº 4, do artigo 288º, do Código de Processo Penal. 7.º As nulidades do arquivamento, bem como de qualquer nulidade do inquérito pode ser arguida no requerimento instrutório do assistente, se não se deverem considerar sanadas. E só o juiz pode declarar a nulidade de um ato processual praticado durante o inquérito. 8.º A própria letra da lei refere-se ao Juiz, conforme previsto no art. 122.º, n.º 3, do C.P.P., sendo que é ao juiz de instrução criminal que, durante a fase de inquérito, compete praticar ou sindicar todos os atos que contendam com direitos, liberdades e garantias individuais e, portanto, também conhecer de eventuais nulidades. Em suma: trata-se de uma função materialmente judicial, reservada ao juiz (cfr. art. 202.º, n.ºs 1 e 2, da C.R.P.. 9.º Assim, o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente poderia fundar-se apenas e tão só na invocação de nulidades de inquérito, bastando atentar no elenco das nulidades insanáveis (cfr. artigo 119º, do Código de Processo Penal), nas nulidades da prova, nas nulidades dependentes de arguição (cfr. artigo 120.º, n.º 2, do CPP), e cujo conhecimento e verificação podem ter como consequência a invalidade do inquérito ou insubsistência do arquivamento, fazendo regressar o processo à fase de inquérito e para que o MP promova pelas diligências de prova e de investigação necessárias a apurar a verdade dos factos. 10.º Nestes termos, sendo interposto aquele requerimento no qual se invocam expressamente nulidades do inquérito, e inexistindo qualquer apreciação jurisdicional sobre elas, incorre o despacho recorrido em nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615º, n.º 1, al. d), do CPC, a qual se invoca para as devidas e legais consequências. 11.º Neste enquadramento, a decisão recorrida deve ser substituída por outra que venha a conhecer das alegadas invalidades/nulidades, sem deixar de acompanhar a incongruência da própria decisão recorrida, pois que, não cabendo à Assistente o poder de investigar, que nem meios tem para isso, nem cabendo à Assistente o poder de realizar os meios de prova necessários (que aliás até foram pedidos), certo é que só poderá ser um Juiz de Instrução a ordenar ao MP que cumpra com a lei, que produza os meios de prova requeridos, nos termos da lei, que pratique os atos necessários de inquérito, que interrogue os suspeitos como arguidos e que inquira as testemunhas arroladas na denúncia. 12.º O tribunal recorrido violou, por erro e interpretação, o previsto nos artigos 154º, números 1, 2, 4 e 5, 155º, n.º 1 e 2, 156º, n.º 2, e 157º, n.º 1, todos do CPP, al. b), do n.º 2, do artigo 120º do CPP, al. d), do n.º 2, do art.º 120º, do CPP, n.º 3, do artigo 33º da Lei 31/2014, de 30 de Maio, art. 122.º, n.º 3, do C.P.P, art. 202.º, n.ºs 1 e 2, da C.R.P., e artigos 286º, n.ºs 1 e 2, 287º, n.ºs 2 e 3, 288º, n.sº 1 e 4, 289.º, n.º 1, 308º, n.º 1, e 308.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal,
Sem prescindir, 13.º No Requerimento de Abertura de Instrução, não só procedeu a Recorrente a uma concreta e correta identificação dos Denunciados, como a identificação daqueles coincide com os vários documentos juntos com a denúncia. 14.º Aliás, não entende a Recorrente como pode o Tribunal a quo afirmar que os Denunciantes não foram identificados quando, ao longo de todo o processo, foram os mesmos devidamente citados, representados e notificados, desde logo: i. Na denúncia datada de em 14 de Janeiro de 2021, a recorrente identificou os representantes ou agentes do Município como AA, Presidente da Câmara Municipal ..., e BB, Vereador do Ordenamento do Território e Urbanismo. ii. No Auto de Busca e Apreensão junto a fls. 84 dos autos é identificado como buscado o AA, Presidente do Município; iii. A fls. 354 dos autos, para justificar uma perícia, a PJ declara que se investigam factos imputados ao Presidente e ao Vereador com o Pelouro do Urbanismo do Município ..., AA e BB; iv. No Relatório Pericial junto a fls. 378 e sgs. dos autos também surgem identificados esses denunciados; v. No Despacho de Arquivamento, o Ministério Público também reconhece os autores dos alegados crimes, integrando os factos denunciados, ainda que abstratamente, nos crimes de responsabilidade de titular de cargo político, nomeadamente de prevaricação e de violação de regras urbanísticas, identificando o AA, enquanto Presidente da CM..., e o BB, enquanto Vereador/Pelouro do Ordenamento do Território e Urbanismo do respetivo Município. vi. O mesmo sucede, como já vimos, no requerimento de abertura de instrução, já que a assistente nunca omitiu a identificação dos Denunciados no respetivo procedimento criminal e no respetivo requerimento, pois que logo na denúncia a Assistente identificou devidamente os denunciados, e os cargos que exercem, e o mesmo fez no Requerimento de Abertura de instrução, identificando o Presidente da Câmara Municipal ..., AA, logo nos artigos 53º, 54º, 64º, 67º, 81º, 82º, 84º, 89º, 91º, 92º, 96º, 100º, 106º, 107º, 114º, 116º, 117º, 118º, entre outros do RAI, e o Exmo. Vereador do Urbanismo, BB, nos artigos 92º, 93º, 96º, 97º, 98º, 99º, 100º, 102º, 106º, 107º, 113º, 114º, 116º, 117º, 118º, entre outros. 15.º Face ao exposto, atentos os factos apurados nos presentes autos, resulta provada e fundamentada a concreta identificação dos Denunciados, de forma correta em todo o processo, e designadamente no requerimento de abertura de instrução. 16.º E mesmo que não fosse minuciosa, a verdade é que o rigor extremo é também ele rejeitado pela jurisprudência dos tribunais superiores, citando, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do processo 1383/16...., datado em 24-10-2017, e no qual se defende, em suma, que: “(…) II - Muito embora a falta das “indicações tendentes à identificação do arguido” seja cominada como nulidade da acusação e extensível ao RAI do assistente, tal requisito não deve ser entendido com rigor extremo, meramente formal (…)”, e que “…tendo sido descritos no RAI o núcleo dos factos imprescindíveis ao preenchimento da previsão típica do crime de abuso de confiança que vem imputado à denunciada, a falha de factos relevantes, mas não essenciais, não deve conduzir à rejeição da abertura da instrução, posto que a sua indagação e acrescento é possível (seja por via do convite ao aperfeiçoamento – que não é afastado nos casos como o presente pela jurisprudência fixada pelo AUJ nº 1/2015 -, seja oficiosamente, ao abrigo do disposto no art. 303º do C.P.P. e com observância do dever de comunicação estabelecido no seu nº 1), em virtude de não se traduzirem numa alteração substancial dos factos descritos no RAI (essa não permitida porque redundaria na transformação de factos inócuos em factos juridicamente relevantes, o que não sucede no caso, na medida em que aqueles que foram descritos, de per si, já se integram nesta última categoria)”. 17.º Neste conspecto, o tribunal a quo violou, por erro e interpretação, entre outros, o artigo 287º do CPP, o que tudo se invoca com as devidas e legais consequências. Sem prescindir, 18.º A Recorrente apresentou uma denúncia contra os Denunciados integrando factos suscetíveis de preencher a prática dos crimes de prevaricação, previsto no artigo 11º, da Lei 34/87, de 16 de Julho, ou, caso assim não se entenda, do crime de violação de regras urbanísticas, previsto no artigo 18-A, da Lei 34/87, de 16 de Julho e no artigo 382-A, do Código Penal, e/ou ainda na prática do crime de Abuso de Poder, p. e p. nos termos dos artigos 26º da Lei 34/87, de 16 de Julho, e 382º do Código Penal. 19.º O crime de prevaricação, previsto e punido pelos artigos 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, é aqui salientado por referência aos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 1, alínea i), e 3.º-A, do mesmo diploma legal. 20.º No caso concreto, no que concerne aos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito, e conforme melhor alegado no requerimento de abertura de instrução, verifica-se que a Assistente, em vários artigos do RAI alega que os visados AA e BB atuaram com a consciência da ilicitude da sua conduta, decidindo contra direito e prejudicando a assistente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível pela lei penal. 21.º Mais do que isso, a assistente explica, ou tenta explicar, o que os denunciados fizeram, e não fizeram e deveriam ter feito, em que pontos decidiram contra o direito, e em que pontos prejudicaram a assistente. 22.º A Assistente alegou que os denunciados bem sabiam da sua qualidade de membros de órgão representativo de autarquia local, e que bem sabiam que a ação ou omissão em causa foi cometida no exercício das funções inerentes àquela qualidade, e que bem sabiam que as diferentes ações e omissões que tiveram durante o procedimento eram contrárias ao direito, agindo com o propósito de prejudicar a assistente. 23.º Parece claro que estão preenchidos os elementos subjetivos do tipo de ilícito. 24.º Entende também a assistente que estão preenchidos os elementos objetivos do tipo de ilícito, já que os denunciados, enquanto membros da Câmara Municipal ..., decidiram contra direito, e prejudicaram a Assistente, quando (e sem querer ser muito extensivo, já que a alegação é explícita no RAI), sabiam que só poderiam impor restrições ao direito de propriedade privada e aos demais direitos relativos ao solo, mediante pagamento de justa indemnização, o que não fizeram; quando sabiam que a Requerente tinha direito de intervir e participar no procedimento administrativo em curso, e que tinham de responder, com verdade, às propostas, sugestões e reclamações da Requerente, o que também não fizeram; quando sabiam que no âmbito do procedimento de elaboração, alteração ou revisão dos planos territoriais, tinham de considerar, conforme previsto no artigo 11.º/3, da Lei 31/2014, de 14 de Maio, as propostas desafetações ou alterações dos condicionamentos do aproveitamento específico do solo resultantes das restrições de utilidade pública, em função da respetiva avaliação e ponderação, nos termos e condições previstos na lei, o que também não consideraram no caso da Assistente; quando sabiam que ao darem informações erradas, desde o início do procedimento declarando que o terreno em causa estava em RAN, quando não estava, pretendiam com isso ludibriar a Requerente, para assim não lhe concederem qualquer indemnização pelo sacrifício que lhe estavam a impor com um efeito equivalente a uma expropriação, violando assim o artigo 17º, n.º 3, da Lei 31/2014, de 14 de Maio, e como efetivamente não lhe concederam; quando sabiam dos direitos de participação da Requerente, os quais teriam de ser comunicados e respondidos nos termos da lei, bem sabendo que as restrições que estavam a impor à requerente, sem qualquer justa indemnização, eram desajustadas, ilegais, demasiado amplas e onerosas; e quando sabiam que tinham de comunicar à EMP02... as sugestões e propostas da Requerente, conforme impõe o artigo 6º, números 1, 2 e 4, do DL 80/2015, o que também não fizeram. 25º Não se trata de uma mera falta de resposta a missivas, nem de respostas que “alegadamente não corresponderam à verdade”, nem de uma mera ignorância às missivas… 26º Os denunciados bem sabiam que estavam a prejudicar a assistente, que ficava desse modo, como ficou, limitada no seu direito de propriedade, no seu direito de construir, desde logo privada de o fazer e ainda por cima sem receber o correspetivo preço ou justa indemnização. 27º Estão, portanto, preenchidos no caso os elementos constitutivos do tipo de ilícito e de culpa do crime de prevaricação. 28º Neste enquadramento, a recorrente identificou o denunciado, juntou documentação aos autos, arguiu nulidades como questões prévias (que nem sequer foram alvo da pronúncia do MP e nem conhecidas pelo tribunal), alegou uma amálgama de factos e de direito tendentes a serem provados em audiência, e nitidamente suscetíveis de integrar os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime em causa, mas nada disto foi conhecido pelo tribunal a quo, o qual de tudo fez tábua-rasa. 29º A recorrente dá por integralmente reproduzidos, também nas presentes conclusões, quer o corpo das alegações do presente recurso, quer os artigos 1º a 198º do seu requerimento de abertura de instrução, respetivos fundamentos de facto e de direito, reproduzindo ainda os documentos juntos com tal peça processual, o que faz para os devidos e legais efeitos e por razões de economia e celeridade processual. 30º Pelo exposto, atentos os factos apurados nos autos, resulta provada e fundamentada, pelo menos, a verificação da tipicidade do crime de prevaricação p. e p. nos termos do artigo 11º da Lei 34/87, de 16 de Julho. 31º Subsidiariamente, caso assim não se entenda, o que não se concebe nem concede, então a única forma de reconhecer sentido útil ao requerimento apresentado pela Assistente, desde logo no que concerne ao segmento relativo à pretensão deduzida a título principal, ou seja a declaração de nulidades que impõem inelutavelmente o prosseguimento do inquérito, com realização de diligências de investigação, é considerá-lo como um requerimento de reclamação hierárquica, apresentado ao abrigo do art. 278º do CPP, assim ordenando-se a remessa dos autos ao Exmo. Procurador da República, para o apreciar como tal. 32º De facto, se dúvidas existirem, então sempre se deverá ordenar a convolação da ação para a forma processual que se ache aplicável, pois não está o tribunal limitado ao direito invocado pelas partes, vigorando, além do mais, entre nós, na legislação, um princípio anti-formalista que consagra a concretização de uma tutela efetiva e eficaz constitucionalmente consagrada (cfr. artigos 20º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, e art.º 547º do CPC), mais propriamente deverá ser ordenado o prosseguimento dos autos com a convolação do requerimento de abertura de instrução em pedido de intervenção hierárquica, por aquele requerimento preencher todos os requisitos previstos no artigo 278º do C.P.P. 33º Finalmente, não pode a Recorrente deixar de alegar que expôs os problemas em várias (3) Assembleias Municipais e pediu ao AA para responder e este endossou para o BB que não respondeu às perguntas efetivamente feitas, ou seja, a Assistente – e como se costuma dizer - questionou alhos e o denunciado respondeu bugalhos, inclusive com inverdades/mentiras, conforme comprovado nas Atas das ditas Assembleias e que se encontram no processo. Aliás, a Assistente foi deliberadamente a essas Assembleias Municipais para obter respostas e para garantir que as atas provariam inequivocamente que o AA e o BB tinham conhecimento do problema e estavam a improceder conscientemente, e da mesma forma que a Assistente procedeu à denúncia, obviamente porque se sentiu deliberadamente prejudicada por eles, e porque inclusive o AA sugeriu-lhe que caso se sentisse prejudicado deveria recorrer ao MP e aos tribunais, o que se fez, apenas para assistir ao “tirar o tapete” perpetuado, primeiro pelo MP, que – diga-se – nada fez para esclarecer o assunto, e seguidamente pelo tribunal com a recusa da instrução, apesar das nulidades e da nulidade de averiguação do MP. Obviamente, o que poderá pensar a Assistente da forma como o processo foi tratado pelo MP desde início, é que aqueles denunciados já estavam fadados à impunidade, podendo aqueles fazer o que quiserem, sem correrem o risco de neste descrito contexto jurídico serem punidos ou acusados de prevaricação, de corrupção, ou de um outro qualquer crime, porque é isso que está em causa, resultando tudo isto numa verdadeira negação de justiça à Assistente.
Pelo exposto, deve a decisão proferida na parte aqui impugnada ser revogada, substituindo-a por outra que determine a procedência do presente recurso, conforme alegado e concluído, seguindo-se os demais termos legais, assim se fazendo a costumada e boa…. JUSTIÇA”
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I.3 Resposta ao recurso
Efetuada a legal notificação, quer os arguidos, quer a Ex.mª Procuradora da República junto da 1.ª instância, responderam ao recurso interposto pela assistente, pugnando pela sua improcedência, apresentando os arguidos as seguintes conclusões [transcrição]: “(…) 1. Tendo a Meritíssima Juíza Instrução Criminal rejeitado o RAI por inadmissibilidade legal da instrução, não tinha que conhecer das nulidades do inquérito invocadas pelo Assistente, porquanto o conhecimento das mesmas pressupõe o recebimento da instrução e a abertura desta fase processual, o que não se verificou. 2. De todo o modo, não se verificam qualquer uma das nulidades invocadas pelo Assistente, porquanto não se encontram preenchidas qualquer uma das alíneas do número 1 do artigo 58.º do CPP. 3. Tendo o Assistente optado por, no prazo indicado no artigo 287º, nº 1, al. b), do CPP, requerer a abertura de instrução, ao invés de requerer a intervenção do superior hierárquico, ao abrigo do disposto no 278º do CPP, significa que renunciou a uma apreciação pelo superior hierárquico do titular do despacho de arquivamento. 4. Não é possível nesta data optar, ao ver o RAI rejeitado, por requerer a intervenção hierárquica. 5. O RAI, como alega o Assistente no seu recurso, contém antes “uma amálgama de factos e de direito”, conclusivos e de juízo de valor, os quais não preenchem os requisitos legais impostos pela alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP ex vi do artigo 287.º, n.º 2 do CPP. 6. Quando ao crime de prevaricação, não consta do RAI uma descrição factual com vista a satisfazer os requisitos constante do artigo 11.º da lei 34/87 de 16.07, sendo o mesmo omisso no que respeita ao integral preenchimento dos tipos objectivos e subjectivos deste crime. 7. Quanto ao crime de violação de regras urbanísticas, e do teor do RAI, constata-se igualmente que é omisso quanto à descrição factual com vista a satisfazer os requisitos legais deste crime. 8. No que respeita ao crime de abuso de poder, constata-se igualmente que o RAI é omisso quanto à descrição factual com vista a satisfazer os requisitos legais impostos para o preenchimento deste crime, para além da não identificação cabal quanto ao cargo político ocupado por cada um dos visados. 9. Posto isto, a decisão a que chegou o Tribunal a quo encontra-se bem fundamentada e não merece qualquer reparo, devendo ser mantida na íntegra. 10. Pelo que, não pode o Arguido deixar de concordar com o entendimento a que chegou o Tribunal a quo, na decisão ora recorrida de rejeição do RAI apresentado pelo Assistente por inadmissibilidade legal da instrução. 11. A decisão a que chegou o Tribunal a quo encontra-se bem fundamentada e não merece qualquer reparo, devendo ser mantida na íntegra. Pelo exposto e com o douto suprimento do Venerando Tribunal da Relação, que desde já se invoca, deve o recurso interposto pelo Assistente ser julgado totalmente improcedente, e confirmada in totum a douta decisão recorrida. (…)”.
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, apresentando a seguinte conclusão [transcrição]: “O recurso da assistente não merecerá provimento, devendo manter-se integralmente o despacho posto sob sindicância, por um lado porque não contém a nulidade por omissão de pronúncia que aquela lhe atribui pois que a apreciação de eventuais nulidades do inquérito se situa a jusante da prévia admissão do apresentado requerimento de abertura de instrução (RAI), devendo aquela ser apreciada, nos termos do art.º 308, n.º3 do CPPenal, aquando da prolação do despacho de pronúncia ou de não pronúncia, por outro lado, porque a assistente no seu RAI não procedeu, e sem possibilidade de realização de convite reparador, à identificação dos “agentes”, dos “denunciados”, não os nomeando, havendo, por isso, incerteza quanto aqueles, porquanto naquele RAI não individualizou, não autonomizou os concretos factos que imputa a cada um daqueles “agentes” e “denunciados” não fazendo a sua subsunção a cada um dos crimes que entende terem sido cometidos, optando por realizar imputações criminosas alternativas àqueles, o que o ordenamento adjectivo penal vigente não consente, tornando aquele RAI, então, uma acusação alternativa nula.”.
I.5. Resposta
Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela assistente foi apresentada resposta ao sobredito parecer, reiterando a sua posição vertida no recurso.
I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].
Assim, face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e a decidir reconduzem-se em saber se:
® A decisão recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal não apreciou as nulidades de inquérito arguidas pela assistente;
® O requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 287.º do Código de Processo Penal e, nessa eventualidade, se deve ser admitido o RAI e ordenada a prossecução dos autos para a fase de instrução; e
Subsidiariamente, se:
® O requerimento de abertura de instrução pode/deve ser considerado/convolado num pedido de intervenção hierárquica, apresentado ao abrigo do artigo 278.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, assim, desde já, trazer à colação a decisão recorrida que aqui se transcreve: “Nos presentes autos, veio a Assistente EMP01... – PRODUTOS ALIMENTARES, LDA. requerer a abertura de instrução nos termos e com os fundamentos do requerimento constante dos autos (ref.ª ...59 de 04.12.2023). Cumpre apreciar a respectiva admissibilidade legal. Conforme dispõe o artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.”. Trata-se de uma fase facultativa do processo (cf. n.º 2 do mesmo preceito legal). No que concerne ao requerimento de abertura de instrução, dispõe o artigo 287.º, n.º 2, que o mesmo “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º” (sublinhado nosso). Ou seja, e no que respeita ao requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, exige a lei que o mesmo contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e, bem assim, a indicação das disposições legais aplicáveis [cf. alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal]. Por outras palavras, no caso se abertura de instrução por banda do assistente, o respectivo requerimento tem de consubstanciar uma verdadeira acusação, sob pena de o próprio procedimento não poder prosseguir por falta de objecto, nem o arguido poder exercer plenamente o contraditório e, assim, defender-se, sendo, inclusive, uma decorrência da estrutura acusatória do processo, prevista no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa. Deste modo, impõe-se ao assistente que alegue, no seu requerimento de abertura de instrução, os factos que pretende imputar ao arguido, sendo que tais factos terão que integrar quer o elemento objectivo, quer o elemento subjectivo do tipo legal que imputa, no caso, ao arguido, sob pena de a fase de instrução que se pretende abrir estar ferida de falta de objecto e, em concreto, se vir a revelar completamente inútil atenta a falta de base factual que permitisse uma eventual pronúncia do arguido (cf. artigo 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Por sua vez, e como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2017 (proferido no processo n.º 649/16.0T9BRG.G1, disponível em www.dgsi.pt), “É maioritário o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o requerimento de abertura de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, em termos de estes poderem integrar os elementos objetivos e subjetivos de um tipo de crime, deve ser objeto de rejeição por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos conjugados dos artigos 287º, nºs 2 e nº 3, e 283, nº 3, al. b), do CPP” (sublinhado nosso). Voltemos a nossa atenção para o caso em apreço. Compulsado o teor do requerimento de abertura de instrução (doravante RAI) apresentado pela assistente, e para além de todas as considerações nele constantes relativas à sua discordância quanto ao arquivamento levado a cabo pelo Ministério Público, constata-se, desde logo, que não é claro contra quem a mesma pretende imputar a prática de um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º, da Lei n.º 34/87, de 16.07, ou caso assim não se entenda, o crime de violação de regras urbanísticas, p. e. p. pelo artigo 382.º-A.º do Código Penal e pelo artigo 18.º-A da Lei n.º 34/87, de 16.07, ou caso assim não se entenda, o crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do Código Penal e pelo artigo 26.º da Lei n.º 34/87, de 16.07, desde logo porquanto, a final, nem sequer identifica o(s) agente(s) que devem ser pronunciados pela prática de tais crimes. Mas mesmo que se pudesse inferir que a assistente se estivesse a referir a AA e a BB atento o teor da queixa apresentada nos autos [o que por mera hipótese académica se admite uma vez que o RAI deve conter, desde logo, a concreta identificação do(s) arguido(s) relativamente ao(s) qual(is) se pretende, no caso, que seja(m) pronunciado(s)], o certo é que, mesmo quanto a estes, não se vislumbra a imputação objectiva e subjectiva de quaisquer condutas passíveis de preencher qualquer um dos referidos crimes como infra se concretizará. Na verdade, exige-se que do RAI apresentado pela assistente conste uma alegação de todos os elementos constitutivos do tipo objectivo de cada um dos crimes que imputa aos suspeitos e, ainda, do dolo, designadamente o elemento intelectual (representação dos factos), o elemento volitivo (vontade de praticar os factos) e o elemento emocional (consciência de estar a agir contra o direito). Vejamos com algum detalhe os crimes ora em causa. Dispõe o artigo 11.º, da Lei n.º 34/87, de 16.07, sob a epígrafe “Prevaricação” que “O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos.”. Temos, assim, os seguintes elementos do tipo objectivo: - O agente ser titular de cargo político; - O agente ter tido intervenção em processo no exercício das suas funções, e - O agente conduzir ou decidir esse processo contra direito. Para os efeitos de tal diploma legal, entende-se como cargos políticos, “o de membro de órgão representativo de autarquia local” – cf. artigo 3.º, n.º 1, al. i). Tal crime pode ser praticado por acção ou omissão, em violação dos deveres funcionais inerentes ao cargo que o agente desempenha (cf. artigo 2.º da Lei n.º 34/87, de 16.07). No que se refere ao tipo subjectivo, temos os seguintes elementos: - Que o agente tenha actuado, com a consciência que conduziu ou decidiu esse processo, contra direito; - Que assim tenha agido com a intenção de beneficiar ou prejudicar alguém. Ademais, tal crime não admite a sua punição a título de negligência. Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16.12.2021 (proferido no processo n.º 3627/17.8T9PTM.E1, disponível em www.dgsi.pt), “Acresce que o dolo exigido para o preenchimento do tipo descrito no artigo 11.º da Lei 34/87, de 16/7, não pode ser o dolo eventual, pois a utilização da palavra «conscientemente» no tipo só é compatível com as duas outras modalidades de dolo (directo ou necessário) previstas no artigo 14.º, do Código Penal. E quanto à particular intenção esta tem que presidir à omissão consciente. A intenção de por essa forma prejudicar ou de beneficiar alguém terá que constituir o elemento «catalisador» da/para a devida acção/omissão da condução ou decisão contra direito de um processo. (…) a lei exige que o titular de cargo político, ao actuar contra direito, saiba que assim está a agir, ou seja e dito de outro modo, o dolo, na sua vertente intelectual, tem naturalmente de abarcar o conhecimento dos elementos normativos da acção, das normas e princípios jurídicos em toda a sua extensão, que constituem o objecto da acção típica cuja representação tem de estar presente no espírito do agente para se poder concluir que o mesmo sabia que a sua actuação era contra direito. (…) Por outro lado, importa definir o que é decidir contra direito. Decidir contra direito é decidir, em primeiro lugar, contra as normas vigentes numa norma jurídica, materiais ou processuais, independentemente da sua origem. Em segundo lugar, decidir contra direito é decidir também contra determinados princípios jurídicos, os quais, apesar de poderem não estar plasmados normativamente, fazem parte da estrutura de um determinado sistema de forma a se poder concluir que têm aplicação prática, na medida em que todo o sistema de normas está submetido a esse conjunto de princípios que as enformam. Assim, pode-se dizer que decidir contra direito é todo o tipo de comportamento que viole essas normas ou princípios jurídicos. Certo é que a se discute na doutrina se «a essência da prevaricação reside numa violação da verdade objectiva ou do direito objectivo; ou, antes, numa conduta tomada contra a convicção pessoal do agente sobre qual seja a verdade ou direito objectivo ; ou, por último, na lesão dos deveres funcionais do agente impostos no interesse da descoberta da verdade e do direito?» (ob. citada, págs. 612/613). Na esteira do ali defendido, pensa-se também que «agir contra direito significa, essencialmente, a contradição da decisão … com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes.» (ob citada, pág. 615). Agir contra direito é assim e na sua essência, no quadro específico dos crimes praticados por titulares de cargos políticos, violar as normas legais positivas, materiais ou processuais, que vinculam quem tem de decidir. Na verdade, trata-se de uma lesão do bem jurídico praticada por alguém de dentro do aparelho do poder, alguém que pela sua actuação, torna o direito injusto. A condução ou decisão do processo tem de ser feita ignorando ou contrariando o prescrito na lei, ou desviando-se dos deveres decorrentes do exercício da função quando se trata de decisões proferidas no âmbito de poderes discricionários. Ora, se assim é, ter-se-á que concluir que só pode existir prevaricação, designadamente, para efeitos do Artº 11 da Lei 34/87, quando a condução ou decisão do processo se mostre, de forma, clara, objectiva, indiscutível, contrária àquelas normas princípios jurídicos. Ou seja, só nas situações em que a norma jurídica é unívoca no âmbito da sua aplicação, é insusceptível de dúvidas na sua interpretação, é que se pode dizer que determinada decisão seja contra o direito ao não a aplicar. Compreende-se, aliás, que assim seja. Nos casos em que sejam admissíveis várias soluções jurídicas para uma determinada questão, não existe prevaricação desde que a decisão tomada se possa incluir no âmbito do juridicamente defensável (Cfr., neste sentido, ob citada, pág. 614). Com efeito, nessas situações, não é possível dizer que o titular de cargo político, ao actuar como actuou, conduziu, ou decidiu processo contra direito, na medida em que a solução por si preconizada, ainda que politicamente discutível e juridicamente rebatível, é susceptível de ser defendida, também ela, em bases normativas.”. Ora, no que respeita ao crime de prevaricação, compulsado o teor do RAI em apreço, constata-se que a assistente não fez uma descrição factual com vista a satisfazer os requisitos acima enunciados e apontados para a acusação no que respeita ao tipo de crime em apreço, na medida em que, para além de não fazer qualquer identificação cabal do cargo político que cada um dos visados AA e a BB ocupava à data dos factos em causa (nos pontos 92 e 93 ainda se refere que o visado BB exerce o cargo de Vereador, mas não é identificado o respectivo pelouro o que, aparentemente, resulta do ponto 99 onde se reproduz o teor de um documento), ao longo do RAI a assistente apenas se refere a “agentes” e “denunciados” e não os causídicos (cf. pontos 122.º a 126.º, 128.º, 131.º, 133.º a 140.º, 142.º a 144.º, 161.º, 163.º, 164.º, 167.º, 180.º, 183.º, 197.º e 198.º do RAI). Ou seja, entende-se que os diversos factos referidos não integram, desde logo e na sua totalidade, o tipo de ilícito por cuja pronúncia se pugna (sem prejuízo dos juízos conclusivos e/ou motivação da discordância do despacho de arquivamento que, por si só, não são aptos a ser relevados como factos subsumíveis ao tipo legal em apreço nas suas duas vertentes – objectiva e subjectiva). Por outras palavras, e em relação ao crime de prevaricação cuja pronúncia a assistente pugna no RAI que apresenta sem precisar relativamente a quem, constata-se que o mesmo é também omisso no que respeita ao integral preenchimento dos tipos objectivo e subjectivo, na medida em que, por um lado, não resulta alegada qualquer conduta dos visados AA e BB que seja passível de ser considerada uma condução ou tomada de decisão contra direito em um processo pois, ao longo do RAI apenas se imputa aos causídicos que não responderam a missivas que lhe foram dirigidas (cf. pontos 83.º e 85.º e com inferência pois em tais artigos refere-se que foi o “Município” que não respondeu), deram respostas evasivas (cf. ponto 92.º onde se infere que o visado AA seria o Presidente da Câmara Municipal – note-se que tal até se pode considerar um facto notório mas, para efeitos do RAI, reitera-se, cabia à assistente identificar cabalmente o cargo político que desempenhava à data dos factos), ou deram alegadas respostas que alegadamente não corresponderam à verdade e/ou que são incorrectas (cf. pontos 93.º e 97.º), que não comunicaram à EMP02... as comunicações enviadas directamente para o Sr. Presidente da Câmara Municipal (cf. ponto 106.º - sendo que, nesta parte, até se entende que tal vem alegado de forma conclusiva uma vez que em tal artigo se refere “como infere”), e que ignoraram as missivas (cf. pontos 128.º e 137.º, pese embora antes a assistente descreva algumas respostas que foi tendo, quer por escrito, quer oralmente), sendo que de tais condutas não se vislumbra sequer qualquer concreta condução e/ou decisão dos visados em determinado processo que, por sua vez, também não se apresenta cabalmente identificado (não se mostra claro se em causa está a concreta condução/decisão do processo de obras n.º ...5 de 2008, ou a revisão do PDM). Por outro lado, não resulta alegado que os visados AA e BB tivessem actuado com a consciência que conduziram ou decidiram qualquer processo, contra direito, e que, assim, tenham agido com a intenção de beneficiar alguém ou, então, ou prejudicar a assistente. A final, e nesta parte, fazemos nossas as seguintes palavras vertidas no supra referido acórdão do Tribunal da Relação de Évora: «“Será que a actividade de um qualquer autarca que se traduza em ser relapsa no despacho, procrastinadora nas decisões, ou tolerante, ou no limite, quiçá incompetente, deverá, sem mais, integrar a «via única» para a «cidadela penal»? Relembra-se que os tipos de crime imputados (temos em mente o «concurso aparente» que se afirma na acusação) nem sequer são punidos a título de negligência, cf. artigo 13.º do Código Penal, e artigos 11.º e 26.º, n.º 1, estes dois da Lei 34/87, de 16/07. Enfatiza-se que existem outras entidades e ramos do direito distintos do penal votados a fiscalizar e a censurar uma actividade que se caracterize daquela forma (princípio da intervenção mínima ou de ultima ratio do direito penal).” Na verdade, o crime de prevaricação foi idealizado para situações evidentes de comportamentos em que a decisão contra direito com a intenção de beneficiar terceiro se desenha com a gravidade necessária que justifique a dedução de acusação com todas as consequências dela decorrentes. Nele não devem caber situações dúbias, matérias passíveis de diferentes entendimentos, que nos atira para bem longe da indiscutibilidade jurídica que se exige para poder concluir pela responsabilidade criminal. A discordância dos procedimentos, o desacordo quanto às normas aplicáveis, a divergência em relação ao caminho assumido para a resolução dos problemas, sendo sadio, pode relevar, eventualmente, em sede de apreciação administrativa, mas não parece suficiente para demandar a tutela penal, que, como último ratio, somente deve ser convocada nas decisões que se tracem, indiscutível e manifestamente, contra direito.» (sublinhado nosso). Por sua vez, e quanto ao crime de violação de regras urbanísticas, p. e. p. pelo artigo 382.º-A do Código Penal e pelo artigo 18.º-A da Lei n.º 34/87, de 16.07, temos que tais preceitos legais estabelecem o seguinte: “Artigo 18.º-A Violação de regras urbanísticas 1 - O titular de cargo político que informe ou decida favoravelmente processo de licenciamento ou de autorização ou preste neste informação falsa sobre as leis ou regulamentos aplicáveis, consciente da desconformidade da sua conduta com as normas urbanísticas, é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa. 2 - Se o objecto da licença ou autorização incidir sobre via pública, terreno da Reserva Ecológica Nacional, Reserva Agrícola Nacional, bem do domínio público ou terreno especialmente protegido por disposição legal, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou multa.”; “Artigo 382.º-A Violação de regras urbanísticas por funcionário 1 - O funcionário que informe ou decida favoravelmente processo de licenciamento ou de autorização ou preste neste informação falsa sobre as leis ou regulamentos aplicáveis, consciente da desconformidade da sua conduta com as normas urbanísticas, é punido com pena de prisão até três anos ou multa. 2 - Se o objecto da licença ou autorização incidir sobre via pública, terreno da Reserva Ecológica Nacional, Reserva Agrícola Nacional, bem do domínio público ou terreno especialmente protegido por disposição legal, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos ou multa.”. Tais tipos legais têm em vista a protecção de dois bens jurídicos: por um lado, visam acautelar a imparcialidade da Administração e dos seus agentes, salvaguardando a sua autonomia intencional e funcional e a transparência exigida à sua atividade e, por outro, a legalidade (urbanística) com que a mesma se tem que conformar. Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13.09.2023 (proferido no processo n.º 2658/19.8T9VFR.P1, disponível em www.dgsi.pt): «O crime em apreço é doloso (na modalidade de dolo direto e excluindo a possibilidade de ser cometido com dolo eventual), por ser necessária a atuação consciente do funcionário quanto à desconformidade da conduta com as normas urbanísticas, que conhecia e que, de forma deliberada, contrariou. A consumação ocorre (na modalidade de informar no processo) com a prestação de informação no processo de licenciamento que exija a apreciação da sua conformidade com as regras aplicáveis, o que quer dizer que há uma antecipação da intervenção penal para um momento em que a conduta supõe, apenas, uma mera colocação em perigo do bem jurídico especificamente protegido. Como se alcança do texto do tipo legal, existe uma remissão expressa para normas, neste caso concreto, estabelecidas no direito administrativo, não expressamente indicadas no tipo, isto é, socorreu-se o legislador de normas de direito administrativo, configurando-se uma situação de “acessoriedade administrativa” ou “acessoriedade normativa dinâmica”.». Ora, no que respeita ao crime de violação de regras urbanísticas, compulsado o teor do RAI em apreço, constata-se também que a assistente não fez uma descrição factual com vista a satisfazer os requisitos acima enunciados e apontados para a acusação, na medida em que, desde logo, para além de não fazer qualquer identificação cabal do cargo político que cada um dos visados AA e a BB ocupava à data dos factos em causa (nos pontos 92 e 93 ainda se refere que o visado BB exerce o cargo de Vereador, mas não é identificado o respectivo pelouro o que, aparentemente, resulta do ponto 99 onde se reproduz o teor de um documento), ao longo do RAI a assistente apenas se refere a “agentes” e “denunciados” e não os causídicos (cf. pontos 122.º a 126.º, 128.º, 131.º, 133.º a 140.º, 142.º a 144.º, 161.º, 163.º, 164.º, 167.º, 180.º, 183.º, 197.º e 198.º do RAI) e, bem assim, nem sequer identifica cabalmente a existência de qualquer processo de licenciamento ou de autorização que se encontrasse em curso e, bem assim, que os visados tivessem tido qualquer intervenção directa no mesmo. Ou seja, entende-se que os diversos factos referidos não integram, desde logo e na sua totalidade, o tipo de ilícito por cuja pronúncia se pugna (sem prejuízo dos juízos conclusivos e/ou motivação da discordância do despacho de arquivamento que, por si só, não são aptos a ser relevados como factos subsumíveis ao tipo legal em apreço nas suas duas vertentes – objectiva e subjectiva). Por outras palavras, e em relação ao crime de violação de regras urbanísticas cuja pronúncia a assistente pugna no RAI que apresenta, sem identificar contra quem, reitera-se, constata-se que o mesmo também é também omisso no que respeita a tais elementos do tipo objectivo em causa. Já no que respeita ao crime de abuso de poder, p. e. p. pelo artigo 382.º do Código Penal e pelo artigo 18.º-A da Lei n.º 34/87, de 16.07, temos que tais preceitos dispõem o seguinte: “Artigo 26.º Abuso de poderes 1 - O titular de cargo político que abusar dos poderes ou violar os deveres inerentes às suas funções, com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrem, será punido com prisão de seis meses a três anos ou multa de 50 a 100 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - Incorre nas penas previstas no número anterior o titular de cargo político que efectuar fraudulentamente concessões ou celebrar contratos em benefício de terceiro ou em prejuízo do Estado.”; “Artigo 382.º Abuso de poder O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”. O bem jurídico protegido com tal incriminação é a “autoridade e credibilidade da administração do Estado” (neste sentido, Paulo Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 774) e, acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outra pessoa (in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 1215). Trata-se de um crime de específico próprio na medida em que apenas é cometido por quem seja funcionário. O tipo objectivo é composto pelos seguintes elementos: 1) O sujeito activo terá de ser funcionário para efeitos do disposto no artigo 386.º do Código Penal; 2) O abuso de poderes (ou seja, instrumentalizar os poderes que finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo, podendo consubstanciar-se em várias actuações) ou a violação de deveres inerentes às suas funções (entendendo-se por deveres os deveres funcionais, ou seja, os que estão relacionados com o exercício das funções, sejam eles específicos – impostos por normas jurídicas ou instruções de serviços – ou genéricos – relativos a toda a actividade da administração do Estado – cf. Paulo Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 776); 3) A intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo (entende-se por benefício toda a vantagem que o agente possa retirar da sua conduta, que tanto pode assumir carácter patrimonial ou não patrimonial, sendo que a sua ilegitimidade se evidencia exteriormente pela lesão do bom andamento e imparcialidade da administração) ou causar prejuízo a outra pessoa (o prejuízo pode ter carácter patrimonial ou não patrimonial); No que respeita a o que se entende por funcionário, o artigo 386.º do Código Penal define o que se entende por funcionário, para efeito da lei penal. Para o caso em apreço, importa atender ao disposto na alínea d) do n.º 1 de tal preceito, onde se dispõe que a expressão funcionário abrange “Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.”. Já no que respeita ao vertido no ponto 2), e no que interessa para o caso em apreço, entende-se que instrumentaliza os poderes que lhe são confiados, o funcionário que «faz uso dos seus poderes para fim diverso daquele para o qual eles lhe foram conferidos (desvio de poder, que apenas pode ter lugar estando em causa o exercício de poderes discricionários. Trata-se do “exercício de faculdades discricionárias fora do seu fim”). Interessa-nos apenas a modalidade extrema do desvio de poder, ou seja, a hipótese em que o interesse público é preterido em nome de fins ou interesses de natureza meramente particular” (Paulo Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 775). Já a propósito do ponto 2) acima, refere-se no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-01-2008 (proferido no processo n.º 07P4279, em que foi relator Henriques Gaspar, disponível em www.dgsi.pt): “I - No crime de abuso de poder, que constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; o crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais. II - Mas o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, tem antes de ser determinado por uma intenção específica que, enquanto fim ou motivo, faz parte do próprio tipo legal. Esta intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona ou dele se autonomiza. III - A intenção específica é um elemento subjectivo que não pertence ao dolo do tipo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, e que se não refere a elementos do tipo objectivo, quebrando a correspondência ou congruência entre o tipo objectivo e subjectivo. IV - Doutrinalmente chamados crimes de intenção ou de resultado cortado, esta espécie de crimes supõe, para além do dolo de tipo, a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo legal (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, págs. 329-330). V - O crime de abuso de poder constitui um dos exemplos desta categoria dogmática. A violação pelo funcionário dos deveres inerentes às funções em que está investido (tenha aqui o significado que tiver) constitui o campo de delimitação da tipicidade. A estrutura do crime no primeiro momento de configuração da acção típica fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função. Mas, para além do tipo objectivo, exige-se uma intenção específica, uma intenção que é tipicamente requerida, e que tem por objecto uma factualidade que ainda não pertence ao dolo e já não pertence ao tipo objectivo – a intenção de obter benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa. VI - A relação entre o agente, o resultado e a identificação de benefícios próprios, ou a consideração intersubjectiva sobre os antecedentes e a natureza das relações entre o agente e um terceiro, constituem índices pelos quais se poderá apreender a manifestação da atitude interna.” (sublinhado nosso). No corpo de tal aresto, mais se refere o seguinte: “A integração do crime de abuso de poder, p. no artigo 382º do Código Penal, supõe, pois, por um lado, o preenchimento dos elementos do tipo objectivo (o mau uso ou uso desviante dos poderes da função), e, em conjugação, a verificação de uma intenção específica que está para além do tipo objectivo. O preenchimento do tipo objectivo não se confunde, porém, com o erro de função ou com a prática e actos susceptíveis de revogação por uma instância de reapreciação, não sendo integrado, na inteira dimensão típica, sem a concorrência da atitude interna do agente que deve estar pressuposta como finalidade da acção. Por isso, a verificação dos elementos do crime de abuso de poder não se situa num plano de instância alternativa de recurso ou reapreciação, mas tem de estar primeiramente dirigida à apreensão, por via de elementos externos, da atitude interna do agente que constitui a intenção específica. Esta atitude interna, por seu lado, não pode ser lida sem o suporte de elementos externos e objectivos que a revelem e nos quais externamente se manifeste. O contexto, como modo de interpretação da conjunção de elementos de ambiência, deve, aqui, revelar-se de particular importância. A relação entre o agente, o resultado, e identificação de benefícios próprios ou a consideração intersubjectiva sobre os antecedentes e a natureza das relações entre o agente e um terceiro constituem índices pelos quais se poderá apreender a manifestação da atitude interna.”. Cumpre ainda explicitar, nas palavras de Paulo Ribeira de Faria, «O legislador parece não se querer referir à verificação de um prejuízo para a administração pública (se bem que na medida em que é afectado o seu prestígio e bom funcionamento se possa falar de “prejuízo” em termos latos), mas apenas para os particulares destinados do acto praticado ou para os que de alguma forma são atingidos pelos seus efeitos. O que se pretendeu salientar foi a efectiva instrumentalização de poderes por parte do funcionário em nome de interesses de natureza particular. Não se exige, aliás de forma paralela ao que ocorre em relação à intenção de retirar vantagens do comportamento havido, qualquer indagação sobre os motivos do agente (ódio, rancor, racismo, inimizades políticas, prepotência, entre outros)» (Paulo Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 779) – sublinhado nosso. Ademais, não é necessário que o benefício ou prejuízo sejam concretamente alcançados, sendo suficiente que o funcionário em causa tenha pretendido alcançar esses objectivos (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, Novembro de 2015, p. 1215). Este crime pode ser praticado por acção, quer por omissão, entende-se, neste caso, que o crime ocorre porquanto está em causa a violação dos deveres impostos ao funcionário de se recusar indevidamente à “prática de um acto que por razões de justiça, saúde pública, ordem, ou segurança públicas, deve ser praticado pontualmente (tendo lugar a recusa ou o atraso em nome de finalidades ilegítimas)” – cf. (neste sentido, Paulo Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 777). Por sua vez, o crime consuma-se com a comissão do acto ou da omissão do mesmo, sendo irrelevante a verificação do dano ou vantagem para o agente ou para terceiro. O tipo subjetivo do crime em apreço exige o dolo directo ou necessário, sendo que a doutrina vem entendendo que se exige, ainda, o dolo específico do agente quanto à intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ou causar prejuízo a outra pessoa. Ou seja, o agente deve actuar com a consciência e vontade de que a sua conduta consubstancia um abuso dos poderes ou violação deveres inerentes à sua função, bem como deve actuar com o conhecimento do carácter ilegítimo da vantagem ou do prejuízo pretendidos. Voltemos a nossa atenção para o caso em apreço. Ora, mais uma vez, e no que respeita ao crime de abuso de poder e compulsado o teor do RAI em apreço, constata-se que a assistente também não fez uma descrição factual com vista a satisfazer os requisitos acima enunciados e apontados para a acusação, na medida em que os diversos factos referidos não integram, desde logo e na sua totalidade, o tipo subjectivo do ilícito por cuja pronúncia se pugna sem identificar contra quem, reitera-se (sem prejuízo dos juízos conclusivos e/ou motivação da discordância do despacho de arquivamento que, por si só, não são aptos a ser relevados como factos subsumíveis ao tipo legal em apreço nas suas duas vertentes – objectiva e subjectiva). Por outras palavras, e em relação ao crime em apreço cuja pronúncia a assistente pugna no RAI que apresenta, constata-se que o mesmo é omisso no que respeita aos elementos do tipo objectivo e do tipo subjectivo, na medida em que nada se alega de os visados AA e BB abusaram dos poderes e/ou violaram os deveres inerentes às suas funções e, bem assim, que quiseram a sua conduta, sabendo que a mesma era proibida e punida por lei. Ademais, e reitera-se, a assistente não fez qualquer identificação cabal do cargo político que cada um dos visados AA e a BB ocupava à data dos factos em causa (nos pontos 92 e 93 ainda se refere que o visado BB exerce o cargo de Vereador, mas não é identificado o respectivo pelouro o que, aparentemente, resulta do ponto 99 onde se reproduz o teor de um documento), e ao longo do RAI a assistente apenas se refere a “agentes” e “denunciados” e não os causídicos (cf. pontos 122.º a 126.º, 128.º, 131.º, 133.º a 140.º, 142.º a 144.º, 161.º, 163.º, 164.º, 167.º, 180.º, 183.º, 197.º e 198.º do RAI). Deste modo e em suma, e constatando-se que o requerimento de abertura de instrução é totalmente omisso no que concerne à narração de factos indispensáveis à responsabilização criminal dos suspeitos no que respeita aos crimes ora em causa, entende-se, assim, ser manifesta a improcedência do mesmo, que não poderá conduzir a um despacho de pronúncia válido. Note-se que não se mostra admissível a prolação de despacho de aperfeiçoamento nestas situações (cf. Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 7/2005), pelo que se impõe a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por legalmente inadmissível (cf. artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal). Por conseguinte, e não se declarando aberta a instrução, fica prejudicado o conhecimento das nulidades ora invocadas em sede de RAI e reportadas à fase de inquérito. Nestes termos, com os fundamentos acima aduzidos e ao abrigo do disposto no artigo 287.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente EMP01... – PRODUTOS ALIMENTARES, LDA., por inadmissibilidade legal da instrução. Custas a cargo da assistente, que se fixam em 1 (uma) unidade de conta (cf. a artigo 8.º, n.º 2, do RCP). Notifique. Após transito, arquive.”
Apreciação do recurso:
Inconformada com o despacho de arquivamento dos autos proferido pelo Ministério Público, veio a assistente requerer a abertura da fase de instrução, em cujo requerimento invocou a existência de nulidades do inquérito e requereu que, a final, fosse proferido despacho de pronúncia dos “agentes” pela prática do crime de prevaricação, previsto e punido pelo artigo 11.º da Lei 34/87 de 16 de julho, ou caso assim não se entenda, pela prática do crime de violação de regras urbanísticas previsto e punido pelo artigo 18.º-A da Lei n.º 34/87 de 16 de julho e artigo 382.º-A do Código Penal e/ou ainda pela prática do crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 26.º da Lei n.º 34/87 de 16 de julho e artigo 382.º, do Código Penal.
Sobre o referido requerimento de abertura de instrução incidiu a decisão recorrida, que rejeitou o mesmo, por o considerar legalmente inadmissível, ante o disposto no artigo 287º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal e, por conseguinte, considerou ter ficado prejudicado o conhecimento das nulidades invocadas em sede de requerimento de abertura de instrução, reportadas à fase de inquérito.
Vejamos:
Da invocada nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia:
Invoca a assistente/recorrente que a decisão recorrida encontra-se ferida de nulidade, por omissão de pronúncia, uma vez que a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal nada decidiu quanto às nulidades de inquérito por si arguidas no requerimento de abertura de instrução que apresentou.
E, para tanto, em abono da sua pretensão, convoca o disposto nos artigos 615.º, n.º 1, al. d) do CPC e o disposto no artigo 308.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, argumentando, em síntese, que antes de se pronunciar sobre a suficiência dos indícios ou falta deles, e antes de se pronunciar sobre os pressupostos de que depende a punibilidade, o juiz de instrução deve conhecer da regularidade do processo, tanto mais que para o próprio juízo de indiciação é necessário que o juiz conheça da validade e admissibilidade das provas recolhidas no inquérito e na instrução, o que passará pela prévia apreciação da legalidade dos atos de inquérito e de instrução, da sua existência e suficiência.
Vejamos:
De facto, no requerimento de abertura de instrução por si apresentado a assistente/recorrente arguiu a existência de nulidades ocorridas na fase de inquérito e, também é um facto, que a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal não conheceu dessas nulidades.
E, também constitui ponto assente que existe omissão de pronúncia quando estamos perante uma ausência de decisão do tribunal sobre matérias/questões em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa, e essas matérias/questões que o juiz deveria apreciar são aquelas que os sujeitos processuais submetem à apreciação do tribunal e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
Porém, a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal não apreciou as invocadas nulidades porque entendeu que o seu conhecimento estaria prejudicado perante a não abertura da instrução, ou seja, perante a rejeição do requerimento de abertura de instrução, face à sua inadmissibilidade legal, que acabava de reconhecer.
E, diga-se, decidiu bem, mesmo que se atente nas invocadas disposições legais trazidas à liça pela assistente/recorrente em abono da sua pretensão.
Com efeito, no que ora releva, o artigo 308.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “despacho de pronúncia ou de não pronúncia”,rege nos seguintes termos: 1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. (…) 3 - No despachoreferido no n.º 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.” [sublinhado e negrito nossos].
Decorre, portanto, quer da epígrafe do preceito legal em causa, quer da remissão operada pela norma do seu n.º 3 para a norma do seu n.º 1, que o que o legislador determina é que o juiz comece por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer, no despacho final da instrução, ou seja, no despacho de pronúncia ou de não pronúncia,despacho esse que não chegou a ser proferido nos presentes autos, pois que a fase da instrução nem sequer foi aberta, perante a rejeição do requerimento de abertura de instrução.
E compreende-se que assim o seja.
Com efeito, como é sabido, o inquérito é uma fase processual da exclusiva titularidade do Ministério Público, na qual apenas se admite a intervenção pontual do juiz de instrução nos casos tipificados na lei e essa competência do juiz de instrução durante a fase de inquérito circunscreve-se aos atos previstos nos artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal, onde não se inclui o conhecimento de eventuais nulidades do inquérito, que é da competência do Ministério Público, enquanto titular do mesmo.
Na verdade, só com o encerramento do inquérito e com a abertura da instrução é que se se inicia uma fase autónoma do processo, cuja direção pertence ao juiz de instrução, cabendo-lhe ordenar todas as diligências que considera necessárias em ordem a proferir a decisão instrutória, pressupondo-se, portanto, para que o juiz de instrução possa conhecer de eventuais nulidades relativas ao inquérito que haja lugar a instruçãoeque esta tenha sido admitida.
Assim, não se verificando essa condição, fica prejudicado o conhecimento de tais nulidades, na medida em que a competência do juiz de instrução para tal pressupõe a abertura da instrução.
O mesmo será dizer que: “I) Tendo o juiz rejeitado o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução (art. 287º, n.º 3, do CPP), não lhe cumpria apreciar, previamente, as nulidades do inquérito suscitadas nesse requerimento. II) Com efeito, embora esteja ao seu alcance sindicar, nos termos do art. 308º, n.º 3, do CPP, as nulidades cometidas, a montante, no inquérito, o seu conhecimento tem que ser útil, o que não sucede no caso de a instrução não ser admitida e, por conseguinte, o arquivamento do inquérito adquirir foros de definitividade.”.[3]
Como o referiu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 18-06-2008[4]: «Em instrução, o juiz pode conhecer de vícios ocorridos a montante desta fase (nomeadamente decretando a nulidade por falta ou insuficiência de inquérito) – cf. arts. 286.º e ss. do CPP, maxime 288.º, 289.º e 290.º. Porém, em sede de inquérito, o juiz de instrução tem a sua competência reservada aos atos constantes dos arts. 268.º e ss. do CPP, ou seja, intervém como salvaguarda de direitos fundamentais. Daqui resulta claramente que as intervenções do MP e do juiz de instrução são independentes nas respetivas fases que cada um deles dirige. Assim, ao MP, em inquérito, compete efetuar todas as diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262.º do CPP). E ao juiz de instrução, em instrução, cabe-lhe a prática dos atos que entenda levar a cabo com vista à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (arts. 286.º e 289.º do CPP). Assim, só em instrução – fase cuja direção lhe compete – é que o juiz de instrução pode (deve) sindicar o inquérito com vista a decidir da correção da acusação ou do arquivamento. (…), a intervenção do juiz de instrução (em instrução) terá que revestir uma dimensão útil. Ora, estando o inquérito arquivado, qualquer decisão corretiva sobre invalidades absolutas ou relativas ali alegadamente ocorridas terá de ter como objetivo ou finalidade a modificação da decisão tomada no mesmo inquérito. Sendo assim, não se vislumbra como, tendo sido rejeitada a instrução, poderia o juiz invadir a autonomia própria do titular do inquérito. A entender-se de outra forma, estaria a criar-se uma terceira forma de reagir a um arquivamento de inquérito, que o legislador não consagrou, e de constitucionalidade altamente duvidosa: ao assistente que não tinha reclamado ou requerido a instrução – únicos meios legalmente previstos e ao seu dispor para reagir àquele arquivamento – ou, tendo lançado mão deles, não tinha obtido êxito nessas pretensões, bastava arguir a nulidade do inquérito (ou nulidade nele praticado) para obter uma intervenção judicial não prevista legalmente e desta forma conseguir obter uma decisão que, tão-pouco, era suscetível de modificar o arquivamento, assim se subvertendo por completo a atual estrutura do processo. Se a instrução não é admitida, o arquivamento mantém-se na sua plenitude (ainda que provisória, face à possibilidade de reabertura com novos elementos de prova), não havendo qualquer suporte legal que faça regredir para o juiz de instrução as competências que este só teria na mesma instrução.» [sublinhado e negrito nossos].
Veja-se, ainda, entre outros[5], os acórdão de 09-05-2019 e 11-07-2019[[6]], nos quais o Supremo Tribunal de Justiça entendeu, no primeiro deles, que não cumprindo o RAI a formalidade relativa à descrição dos factos, de modo a assumir formalmente a natureza de uma acusação alternativa que fixa o objeto do processo, a instrução é legalmente inadmissível e não haverá lugar à apreciação de qualquer das questões suscitadas no RAI, não haverá atos de instrução nem debate instrutório nem, naturalmente, decisão instrutória, e no segundo, que para haver apreciação das questões que o assistente entenda deverem ser apreciadas em sede de instrução, necessário se torna que esta seja admissível, de modo que se ele claudicou na formulação do RAI, com a consequente inadmissibilidade da instrução, nenhuma pronúncia é exigível sobre putativas omissões, irregularidades ou nulidades que no âmbito do inquérito houvessem sido cometidas. [sublinhado e negrito nossos].
Assim, tendo, no caso vertente, a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal decidido rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal da instrução, não havendo, portanto, lugar à mesma, nem ao mencionado despacho de pronúncia ou de não pronúncia, não lhe cumpria apreciar, previamente, as nulidades do inquérito suscitadas nesse requerimento, uma vez que as mesmas apenas deviam ser conhecidas em momento posterior à admissão da abertura da instrução, ou seja, na decisão instrutória. Inexiste, portanto, a apontada omissão de pronúncia.
De qualquer modo, diga-se, ainda que assim não se entendesse, a existir a invocada omissão, esta não integraria qualquer nulidade.
Aliás, a assistente/recorrente invoca a nulidade do despacho recorrido, por omissão de pronúncia, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, mas este preceito legal não tem aqui aplicação, não só porque se reporta às causas de nulidade da sentença - e, in casu, a decisão recorrida não é uma sentença, mas sim um despacho -, mas também porque o Código de Processo Penal tem normas próprias para reger tal matéria, inexistindo, assim, qualquer fundamento legal para convocar a apontada norma, ante o exposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal que apenas permite o recurso ao CPC para integração de lacunas.
Na verdade, no processo penal e em matéria de nulidades, vigora o princípio da legalidade, segundo o qual, "a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei" [artigo 118.°, n.°1, do Código de Processo Penal].
E, como é consabido, as nulidades dividem-se em dois grandes grupos:
® as nulidades insanáveis [previstas no artigo 119.°, do Código de Processo Penal e ainda as que como tal forem cominadas noutras disposições legais]; e
® as nulidades sanáveis, ou dependentes de arguição [previstas no artigo 120.°, do Código de Processo Penal].
No caso, a recorrente invoca a nulidade do mencionado despacho, por omissão de pronúncia, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, que, como vimos não tem aqui aplicação porque o Código de Processo Penal dispõe de regime próprio nesta matéria, e não sendo a decisão recorrida uma sentença, mas sim um despacho judicial, também não lhe são aplicáveis as normas do artigo 379º, nº 1, do Código de Processo Penal, concretamente a vertida na sua alínea c) respeitante à omissão de pronúncia, que só abrange sentenças e acórdãos.[7]
Aliás, não integrando a invocada omissão de pronúncia, quer as nulidades enunciadas no artigo 119.º, quer as dependentes de arguição – do artigo 120.º - e não existindo norma que a configure como tal, quando muito, só se poderia considerar a alegada omissão como uma irregularidade, com o regime de arguição previsto no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estando vedado a este Tribunal da Relação o recurso ao consagrado no seu n.º 2, pois, como refere Germano Marques da Silva[8], “ainda antes da arguição e mesmo que a irregularidade não seja arguida, pode oficiosamente ser reparada ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente para aquele acto (sublinhado nosso) enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo”, aliás, “mal se perceberia que, sendo a irregularidade o menos relevante dos vícios processuais, tivesse um regime mais devastador do que as nulidades relativas(estas, se não forem arguidas no prazo de 10 dias, ficam sempre definitivamente sanadas – arts. 120.º e 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal)”[9]
É o que precisamente se diz no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/10/2020, Processo n.º 5460/18.0T9PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, relativamente a situação coincidente, quando afirma: “nos casos em que a lei não cominar expressamente a nulidade o acto ilegal é irregular, tal como sucede com a eventual omissão de pronúncia do despacho que indeferiu liminarmente o requerimento para abertura de instrução, o que implica a sua sanaçãocaso uma tal irregularidade não seja tempestivamente arguida”. [sublinhado e negrito nossos].
Consequentemente, não tendo a ora recorrente, atempadamente e perante a Mm.ª Juíza a quo [autoridade judiciária que praticou o acto em causa e a competente para reparar o vício] invocado a alegada omissão de pronúncia, sempre estaria tal irregularidade, a existir, sanada.
Inexiste, portanto, qualquer omissão de pronúncia, qualquer nulidade do despacho recorrido, qualquer violação dos preceitos legais invocados na peça recursiva, ou de quaisquer outros, pelo que quanto a esta particular questão o presente recurso terá de improceder.
Da inadmissibilidade legal da instrução [apreciação do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente]:
Conforme decorre do artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a instrução, que é uma das fases preliminares do processo, com carácter facultativo, visa a comprovação judicial do despacho de encerramento do inquérito, ou seja, da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
De acordo com o disposto no artigo 287.º do Código de Processo Penal, a abertura de instrução pode ser requerida no prazo de vinte dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento [n.º 1], não estando o requerimento sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal [n.º 2].
Por sua vez, do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal decorre que a acusação contém, sob pena de nulidade: “ (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…) d) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)”.
Ou seja, do artigo 283º, nº3 alíneas b) e d) do Código de Processo Penal, em conjugação com o artigo 287º, nº2, in fine do Código de Processo Penal e o princípio do acusatório, decorre que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deverá conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, e a indicação das disposições legais aplicáveis, isto é, todos os factos necessários a servir de suporte a uma eventual decisão de pronúncia, estando, aliás, vedado ao juiz de instrução pronunciar um arguido por factos não constantes daquele requerimento, sob pena de nulidade da decisão instrutória em causa [artigo 309º do Código de Processo Penal].
Conforme vem sendo entendido pela jurisprudência, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, que o requerimento de abertura de instrução deverá conter – n.º2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal - constituem algo semelhante a uma acusação, que é pressuposto da instrução, fixando os poderes de cognição do juiz e sem o qual este não poderá abrir esta fase processual.[10] [sublinhado e negrito nossos]. “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do nº1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e à elaboração da decisão instrutória”[11]. [sublinhado e negrito nossos].
Nesta matéria, refere ainda Souto Moura[12], que “Se o assistente requerer a abertura da instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível”.
“(…) face aos princípios do acusatório e do contraditório que regem o processo penal, o requerimento de abertura da instrução, quando requerida pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo os factos que consubstanciam o ilícito, cuja prática imputa ao arguido, constituindo o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente substancialmente uma acusação alternativa que, atenta a posição divergente assumida pelo Ministério Público, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial. (…) Assim, no caso de o assistente não articular os factos (…) integradores do elemento subjectivo do crime[13], que têm de constar no libelo acusatório porque é este que, de harmonia com a estrutura acusatória do processo penal, delimita o thema probandum e fixa o objecto do processo em ordem a permitir a organização da defesa, não dá cumprimento ao disposto no arte 283º, n°3, al. b), do Código de Processo Penal, o que importa a rejeição liminar do requerimento de abertura da instrução, ao abrigo do artigo 287.º, n°3, do CPP.[14][sublinhado e negrito nossos] "Como decorre da lei e da lógica, para que um RAI possa ser admitido, não basta que o requerente discuta e debata os meios probatórios já existentes nos autos ou critique a forma como foram entendidos ou negligenciados (ou mesmo omitidos). É ainda absolutamente essencial que exista, corporizada no texto, uma verdadeira acusação - isto é, que aí conste a descrição narrativa e sequencial dos factos, dos acontecimentos, designadamente quem fez o que; como, quando, porque forma e com que objetivo e que se mostre igualmente delimitadoqual o ilícito cuja prática se pretende imputar ao denunciado. É igualmente necessário que, apreciando a factualidade enunciada, se conclua que, a provar-se, determinaria a aplicação ao denunciado de uma pena, por se mostrarem preenchidos os elementos típicos de um ilícito"[15].[sublinhado e negrito nossos].
Como se encontra sumariado no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 24-10-2017, Processo n.º 321/15.8PAPTM.E1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt., trazido à liça no douto parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto: “1 - No caso de requerimento de abertura da instrução pelo assistente com pretensão de sujeição de arguido a julgamento tal peça tem mesmo que ser uma “acusação”. Tem que ser apresentada com autonomia factual. Tem que “contar uma história” apenas com factos essenciais a integrar os tipos penais pretendidos integrar – e todos eles, objectivos e subjectivos – sem adjectivações e/ou considerados probatórios ou de qualificações jurídicas de permeio. 2 - E tais factos têm que estar concentrados seguindo uma lógica de subsunção aos diversos tipos penais pretendidos. Esta asserção liga-se, naturalmente, à ideia sabida de que é boa metodologia na dedução de uma acusação dispor do tipo penal presente na dedução desta. E a qualificação jurídica só pode surgir a final, assim como as indicações probatórias que se impõem. 3 - Não compete ao juiz de instrução andar a escolher factos dispersos e a reduzir a factos – deduzindo as intenções dos requerentes - amálgamas de factos e considerandos probatórios e de direito. 4 - É jurisprudência assente que a omissão da narração dos factos no requerimento de abertura da instrução, ainda que a exigência se baste com uma narração sintética, não dá lugar a um direito ao aperfeiçoamento - v. acórdão de uniformização de jurisprudência nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005. 5 - Apesar de o direito ao juiz da assistente ter consagração constitucional, tal direito tem sido valorado pelo Tribunal Constitucional de forma diversa – e menos relevante – do que o direito à defesa do arguido.”. [sublinhado e negrito nossos].
Como se refere, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 19-11-2014, relatado pela Ex.ma Desembargadora Maria Deolinda Dionísio, in www.dgsi.pt: “I - No RAI o assistente ao narrar os factos que fundamentam a aplicação de uma pena e ao indicar as disposições legais aplicáveis, deve reproduzir a acusação que em seu entender o MºPº devia ter elaborado. II - Tal RAI tem uma dupla função: - delimita os poderes de cognição do juiz de instrução (artº 288º4 CPP); - consubstancia o direito de defesa do arguido. III - Deve por isso o RAI conter a descrição factual do ilícito que se pretende ver averiguado e imputado de forma perceptível ao tribunal (JIC) e ao visado (arguido). IV - Se o núcleo essencial do facto imputado se revela duvidoso, vago ou confuso, é legalmente inadmissível a abertura da instrução.” [sublinhado e negrito nossos].
Em suma, sendo o assistente o requerente, o requerimento para abertura de instrução consubstancia uma acusação alternativa que irá ser sujeita a comprovação judicial, impondo-se que no mesmo se defina o seu objeto de uma forma clara e suficientemente rigorosa que permita a organização da defesa.
Trata-se de uma exigência imposta pela estrutura acusatória do processo penal, segundo a qual a atividade do tribunal se encontra delimitada pelo objeto fixado na acusação [princípio da vinculação temática], com vista a salvaguardar as garantias de defesa do arguido [designadamente o princípio do contraditório] que, por essa forma, fica resguardado contra qualquer arbitrário alargamento do objeto do processo e pode preparar a sua defesa em conformidade com o mesmo.
Encontrando-se o juiz de instrução limitado, na pronúncia, aos factos que tenham sido descritos na acusação deduzida ou no requerimento do assistente para abertura de instrução, pois que o artigo 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal comina com a sanção de nulidade a decisão instrutória na parte em que pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial daqueles, necessário se torna que o assistente alegue, no requerimento de abertura de instrução, todos os factos concretos suscetíveis de integrar os elementos, objetivos e subjetivos, do tipo de crime que entende ter o arguido preenchido com o seu comportamento, pois dele não constando, a sua posterior adição sempre constituirá uma alteração substancial dos factos [art. 1.º, al. f), do Código de Processo Penal], que a lei não permite.
Assim sendo, quando da análise do requerimento para abertura da instrução se verifica que o assistente não cumpriu o ónus que sobre ele recai, de descrever, com clareza, a factualidade da qual resulta que o arguido cometeu determinado ilícito criminal, assim delimitando o objeto do processo, permitindo o exercício do direito de defesa por parte daquele e fornecendo ao tribunal os elementos sobre os quais terá de proferir um juízo de suficiência ou insuficiência de indícios de verificação dos pressupostos da punição, estaremos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução, que dará lugar à sua rejeição, nos termos do n.º 3, do artigo 287.º do Código de Processo Penal.
Aqui chegados, analisemos, então, à luz das considerações acabadas de expender, o requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente/recorrente.
Nos termos do despacho recorrido, as deficiências apontadas ao requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente/recorrente reportam-se, em suma, ao facto de não ser claro contra quem a assistente/recorrente pretende imputar a prática dos crimes ali mencionados [de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º, da Lei n.º 34/87, de 16.07; ou caso assim não se entenda de violação de regras urbanísticas, p. e. p. pelo artigo 382.º-A.º do Código Penal e pelo artigo 18.º-A da Lei n.º 34/87, de 16.07 e/ou de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do Código Penal e pelo artigo 26.º da Lei n.º 34/87, de 16.07], pois nem sequer identifica o(s) agente(s) que devem ser pronunciados pela prática de tais crimes e, mesmo que se pudesse inferir que a assistente se estivesse a referir a AA e a BB atento o teor da queixa apresentada nos autos, mesmo quanto a estes, do requerimento de abertura de instrução não se vislumbrar qualquer imputação objectiva e subjectiva de quaisquer condutas passíveis de preencher qualquer um dos referidos crimes. Contrapõe a assistente/recorrente, na sua motivação de recurso, defendendo que no requerimento de abertura de instrução por si apresentado não só procedeu a uma concreta e correta identificação dos denunciados, como a identificação daqueles coincide com os vários documentos juntos com a denúncia e que sempre o rigor extremo se encontraria afastado pela jurisprudência, seja pelo convite ao aperfeiçoamento, seja oficiosamente ao abrigo do artigo 303.º do Código de Processo Penal e com observância do dever de comunicação estabelecido no seu n.º1.
Mais alega a assistente/recorrente que alegou uma amálgama de factos e de direito tendentes a serem provados em audiência, e nitidamente suscetíveis de integrar os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime em causa,resultando provada e fundamentada, pelo menos, a verificação da tipicidade do crime de prevaricação p. e p. nos termos do artigo 11º da Lei 34/87, de 16 de julho.
No fundo, defende a assistente/recorrente que o requerimento de abertura de instrução por si apresentado preenche todos os requisitos legais e que, ao ter sido rejeitado, o tribunal a quo violou, por erro de interpretação, entre outros, o artigo 287.º do Código de Processo Penal.
Porém, desde já se adianta não lhe assistir qualquer razão.
Com efeito, examinando com rigor o requerimento de abertura de instrução por si apresentado, não podemos deixar de concluir que o mesmo não satisfaz as exigências processuais mencionadas no artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pois não contem todos os elementos a que alude o artigo 283.º, n.º 3, al.s b) e d), do Código de Processo Penal.
Na verdade, como bem o refere a assistente/recorrente, no requerimento de abertura de instrução por si apresentado “alegou uma amálgama de factos e de direito”, mas fê-lo de forma incapaz de sustentar um despacho de pronúncia, com vista à subsequente pretendida condenação penal, pois, como vimos supra e assim também já o decidiu o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 358/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt“a estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura dainstrução. Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa. Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis. Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução”. [sublinhado e negrito nossos].
Face ao que, conclui o mesmo tribunal, “o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada”, mais acrescentando que “a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo. De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura da Instrução é a mesma que é feita ao Ministério Públicono momento em que acusa. Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminaldeva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narraçãonão constituiencargo exagerado ou excessivo. Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito”.
Ou, como se salienta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/05/2008, Proc. nº 07P4551, consultável em www.dgsi.pt, “sendo o requerimento para abertura da instrução a causa de pedir da actividade instrutória, o mesmo só fará sentido se contiver a descrição de substrato fáctico e a indicação dos elementos probatórios, com base nos quais será proferido o despacho de pronúncia ou de não pronúncia”, podendo ainda no mesmo se ler que “substanciando o requerimento de abertura de instrução uma manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento e sendo o essencial da fase de instrução o controlo da acusação, quer tenha sido deduzida pelo Mº Pº ou pelo assistente, a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factoscuja prática é imputada ao arguido, pois que a comprovação, a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação) terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real”. [sublinhado e negrito nossos].
Temos assim que, a importância dadelimitação de um modosuficientemente rigoroso do objeto da instrução prende-se diretamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, ainda que mitigada pelo princípio da investigação judicial [cfr. artigo 289.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na fase da instrução] e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa [cfr. artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa].
E, in casu, tal rigor encontra-se ausente no requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente/recorrente, quer no que se refere às indicações tendentes à identificação do arguido, quer no que se refere à imputação da responsabilidade criminal aos respetivos agentes, encontrando-se o referido requerimento de abertura de instrução longe de ser uma “acusação alternativa”.
Na verdade, no que se refere às indicações tendentes à identificação do arguido, ao contrário do defendido pela assistente/recorrente, em momento algum, no referido requerimento de abertura de instrução, esta procede à concreta e correta identificação dos denunciados e muito menos se diga que tal identificação é a que decorre dos documentos juntos com a denúncia, ou sequer que seja a decorrente dessa mesma denúncia.
Com efeito, é verdade que em alguns dos artigos do requerimento de abertura de instrução se faz menção ao “Ex.mo Presidente da Câmara Municipal ...” [de que são exemplos os artigos 53.º, 64.º, 82.º, 84.º, 89.º, 92.º, do RAI]e ao “Sr. Vereador BB” [de que são exemplos os artigos 93.º, 97.º, 100.º do RAI], mas não é menos verdade que ali não se imputam quaisquer concretos factos aos mesmos, limitando-se a assistente/recorrente a dar conta de requerimentos que dirigiu àquele e das respostas que obteve de ambos, que diz não corresponderem à verdade.
Aliás, também ali se faz referência à “Assembleia Municipal ...”; a comunicações que foram efetuadas pelo “Município ...”; a uma reunião de debate sobre o Plano de Urbanização ..., ocorrida a 24 de julho de 2020, no Grande Auditório, na qual intervieram, além do Vereador do Urbanismo, Eng. BB, Diretor de Planeamento da Câmara Municipal ..., o Dr. CC e o Eng. DD, responsável da EMP02... e, além disso, como bem o realça o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, “a assistente vai afirmando”: “107º O Município, seus responsáveis, funcionários e agentes aturam com clara ilegalidade, violando o DL 80/2015, de 14 de Maio, ao intencionalmente não comunicarem nem terem dado conhecimento da situação da queixosa, e da Quinta ..., â EMP02.... [imputação igualmente sustentada nos artigos 114.º e 118.º do RAI]; 122º Em todo o procedimento é patente que os agentes aturam com intenção de prejudicar a requerente. 123º Os agentes sabiam que o terreno da Requerente não estava integrado em RAN”, “126º Aliás, um pouco antes da queixosa remeter ao Município a sua primeira carta conexa com o assunto em referência, logo em Dezembro de 2018 foi nomeada pelos agentes a equipa que coadjuvou o Executiva …”, “131º Os agentes atuaram ainda no sentido de prejudicar a queixosa, quando tinham, como têm, conhecimento que os terrenos em causa, e pelo menos o terreno confinantes em 240 metros com …”, “133º Os agentes sabiam que os solos da Quinta ... …”, “134º Os agentes não adotaram comportamentos que lhe eram impostos na devida tutela da legalidade urbanística”, “135º Os agentes atuaram sem respeito pelo património da queixosa, criando-lhe restrições administrativas …”, “136º Os agentes exerceram os cargos que exercem beneficiando, de forma ilegítima, determinados intervenientes e munícipes, em detrimento de outros, … e bem assim exerceram os cargos que exercem, de forma ilegítima, para prejudicar a assistente”, “137º Os agentes, no exercício das suas funções, não deram qualquer relevo, nem seguimento, às participações da queixosa …”, “138º Os agentes agiram de forma livre, consciente e sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”, “139º Os agentes conduziram, ou decidiram, contra direito, processos em que intervieram no exercício das suas funções, com intenção de por essa forma prejudicar a Assistente, e/ou beneficiar alguém”,
“140º Os agentes agiram com abuso de poder, violando deveres inerentes ás suas funções …”, “141º … agiram os arguidos com o intuito de prestar informações falsas sobre as leis ou regulamentos aplicáveis…”, “146º Ante o exposto, os agentes responsáveis pelos atos aqui expostos, incorreram …”, “180º No caso concreto, os agentes sabiam da sua qualidade de membro ….”,.
E, acrescentamos nós, também vai a assistente/recorrente afirmando, entre outros artigos, que:
“161.º (…), os denunciados sabiam que só podem impor restrições ao direito de propriedade privada e aos direitos relativos ao solo (…) “167.º (…), os denunciados também sabiam que tinham de comunicar à EMP02... as sugestões e propostas da Requerente, conforme impõe o artigo (…)”.
E no artigo 128.º do RAI refere que: “Todos os formulários de discussão pública, reclamações, missivas, comunicações, intimações e participações em Assembleia, foram reiteradamente e dolosamente ignoradaspelosresponsáveis do Município, pela EMP02..., e pelos demais agentes.”.
Ou seja, a assistente/recorrente faz menção a agentes, a denunciados, a arguidos e a responsáveis do Município, mas, na realidade, em momento algum os identifica.
E não se diga que tal concreta identificação decorre da denúncia e dos documentos com esta juntos, pois o que da mesma decorre é que, para além de ter apresentado queixa contra “AA, Presidente da Câmara Municipal ... (…) e BB, Vereador do Ordenamento do Território e Urbanismo (…).” a assistente/recorrente também o faz “contra os representantes, funcionários, demais agentes, do Município ... (…), responsáveis pela ordem e execução dos factos passíveis de integrar a prática de ilícitos criminais, e cuja identificação, morada e demais dados pessoais se desconhecem em concreto (…)”.
Não se defenda, também, que ao exigir-se tal identificação se está a exigir um rigor extremo que não é consentido pela jurisprudência, que sempre se encontraria afastado pelo convite ao aperfeiçoamento ou pelo recurso ao artigo 303.º do Código de Processo Penal, pese embora com observância do dever de comunicação estabelecido no seu n.º 1.
Na verdade, pese embora a remissão do artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal seja efetuada para as alíneas b) e d) do artigo 283º, n.º 3, do mesmo Código, sem aí incluir a al. a), precisamente aquela que impõe ao MP as “indicações tendentes à identificação do arguido”, o facto é que a alínea b), do n.º3, do artigo 283.º, do Código de Processo Penal refere textualmente que a acusação deve conter “os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança”, sendo certo quepara que seja possível indicar os factos que fundamentam a aplicação de uma pena a um arguido, deve dizer-se (como é evidente) quem é esse arguido, sobretudo quando existe mais do que um arguido no processo e, diga-se, mais do que um denunciado.
O mesmo será dizer que não é efetivamente pensável declarar-se aberta uma instrução requerida por um assistente, sem se saber contra quem a mesma é dirigida, dado que, como decorre do disposto no artigo 57.º, 1 do Código de Processo Penal, “assume a qualidade de arguidotodo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal”. Não pode assim ser requerida uma instrução sem se indicar a pessoa que assumirá [se ainda não tiver essa qualidade, como acontecia neste caso aquando do requerimento de abertura de instrução] o estatuto processual de arguido.
Da articulação dos artigos 57.º, 1, 287º, 2 e 283.º, n.º 3, al. b), todos do Código de Processo Penal, resulta, pois, que a assistente/recorrente devia ter indicado no seu requerimento de abertura de instrução, com toda a clareza, a pessoa ou pessoas que iriam assumir a qualidade de arguido (contra quem era dirigida a instrução), identificando-as corretamente, sob pena de nulidade.
Torna-se, assim, claro que o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente, ao não indicar, em concreto, o(s) arguido(s) contra quem requeria a instrução, não cumpriu os requisitos do artigo 283.º, 3, b) ex vi artigo 287.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, padecendo desse modo de nulidade e implicando, de acordo com a jurisprudência dominante, que sufragamos, a sua rejeição por inadmissibilidade legal.
Além disso, como vimos, o requerimento de abertura de instrução não pode cingir-se a uma mera exposição das razões de discordância relativamente à abstenção de acusar, nem a uma mera descrição dos elementos de prova indiciária recolhidos em sede de inquérito e à análise da forma como foram, ou que no entendimento do assistente deveriam ter sido apreciados, pois, conforme se expendeu supra, o requerimento de abertura de instrução tem de conter, por imposição legal, a narrativa dos factos que, no entender do requerente, integram, pelo menos indiciariamente, a prática de um crime, a descrição da conduta denunciada, situada no tempo e no espaço, o modo da sua execução, a enunciação de factos concretos suscetíveis de integrar os elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime que se pretende ver imputado ao arguido.
O requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente/recorrente deveria conter uma narração dos concretos factos materiais imputados a cada um dos arguidos que, a provarem-se, fossem suscetíveis de integrar os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime que lhes imputa, ou seja, algo a que se possa chamar, como já o dissemos, de “acusação alternativa”, sendo certo que os factos expostos no requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente/recorrente, tal como foram narrados, são insuscetíveis de suportar ulterior despacho de pronúncia e, posteriormente, uma condenação penal.
Com efeito, a assistente/recorrente não deu cumprimento ao disposto nas invocadas disposições legais, designadamente, não procedeu à narração, ainda que sintética, dos factos concretos e precisos [elementos objetivos e subjetivos] capazes de fundamentar a aplicação a cada um dos arguidos de uma pena, sendo que, não cabe ao Juiz de Instrução Criminal – por tal ser violador da lei – escolher/acrescentar os factos que hão de servirem de base à decisão da pretendida pronúncia, fazer a enumeração e descrição dos factos concretos, não narrados no requerimento de abertura de instrução, que se poderão indiciar como cometidos pelos arguidos e/ou individualizar as respetivas condutas, sob pena de se estar a transferir para o juiz de instrução o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais vigentes.
Aliás, no requerimento de abertura de instrução a assistente/recorrente peticiona a prolação do despacho de pronúncia dos arguidos/denunciados/agentes pela prática do crime de prevaricação, previsto e punido pelo artigo 11.º da Lei 34/87 de 16 de julho, ou caso assim não se entenda, pela prática do crime de violação de regras urbanísticas previsto e punido pelo artigo 18.º-A da Lei n.º 34/87 de 16 de julho e artigo 382.º-A do Código Penal e/ou ainda pela prática do crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 26.º da Lei n.º 34/87 de 16 de julho e artigo 382.º, do Código Penal.
Porém, tal forma de imputação/acusação não é consentida pela nossa lei processual penal e, como é consabido, as respetivas tipologias criminais são distintas, tal como o são as respetivas molduras penais, circunstancialismo que só por si já seria suficiente para a rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente/recorrente, pela indefinição com que se apresenta, insuscetível de salvaguardar as garantias de defesa dos arguidos constitucionalmente consagradas [artigo 32.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa].
Como de forma clara o refere o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer “(…) este agir processual não possui cabimento legal. O direito processual penal português não prevê, nem admite, que seja deduzida acusação com imputações em alternativa. A exigência de imputações certas e precisas decorre dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório porquanto é decisivo que um qualquer arguido saiba que exactas condutas e crimes lhe estão a ser imputados para que eficazmente se possa defender. E os regimes da alteração dos factos previstos nos artigos 358 e 359 do CPPenal postulam a rejeição de acusações alternativas.”.
Note-se, aliás, que assim o parece reconhecer a assistente/recorrente, quando no requerimento recursivo apenas se debruça sobre os elementos objetivos e subjetivos da tipicidade do crime de prevaricação que entende encontrarem-se verificados, sendo certo que o recurso não é o momento próprio para delimitar o objeto da instrução.
E não se diga que alegou factualidade atinente a tal tipologia criminal e que o tribunal a quo é que fez tábua-rasa da mesma, pois tanto não fez que sobre a mesma concretamente se pronunciou. Apreciou, aliás, o requerimento de abertura de instrução à luz de cada um dos tipos de crime que a assistente/recorrente pretendida ver imputados aos arguidos/denunciados/agentes.
O mesmo será dizer que no requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente/recorrente, enquanto “acusação alternativa”, não se mostra indicada a concreta e individualizada imputação delituosa, quer factual, quer por tipologia criminal, e, por isso, mesmo que, em sede de instrução, viessem a ser considerados suficientemente indiciados os factos alegados naquele requerimento, não seria possível proferir qualquer despacho de pronúncia contra os arguidos.
E não o seria mesmo que se pretendesse recorrer ao mecanismo previsto no artigo 303.º do Código de Processo Penal, pois, como é consabido, a alteração dos factos constantes do requerimento para abertura da instrução que não constituíam crime, por falta de indicação de todos os seus elementos constitutivos, acrescentando-lhes outros que ali não se encontravam a fim de preencher os elementos em falta – assim transformando em típica uma conduta atípica –, teria forçosamente de ser considerada substancial, e, por isso, vedada, nos termos do disposto no n.º 3 daquele preceito, sob pena de nulidade [artigo 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal].
Aliás, é essa a solução que encontra respaldo no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005[16] do Supremo Tribunal de Justiça,ao sustentar que “Integrando o requerimento de instrução razões de perseguibilidade penal, aquele requerimento contém uma verdadeira acusação; não há lugar a uma nova acusação; o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, «formal e materialmente a acusatoriedade do processo», delimitando e condicionando a atividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia - cf. Professor Germano Marques da Silva, op. cit., p. 125. A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respetiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP. A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a perentoriedade da consequência legal desencadeada: o ser manifestamente infundada igual proibição de convite à correção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado”. Ou seja, perante a situação de omissão da narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução”.
Na verdade, a faculdade de o assistente apresentar novo requerimento (não sendo diferente que o fizesse por convite ou de forma espontânea) colide com a perentoriedade do prazo previsto no artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e consequentemente atentaria contra os direitos de defesa do arguido.
E é essa a solução que também vai ao encontro do entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, vertido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015[17]ao estipular que «a falta de descrição, na acusação, doselementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.»
E, como é sabido, o Tribunal Constitucional já foi chamado a apreciar a constitucionalidade do artigo 287.º do CPP, tendo, no seu Acórdão n.º 636/2011, de 20/12/2011 (publicado no Diário da República, II Série, de 26/11/2012), decidido «não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.ºs 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas)».
A título de conclusão, pela sua pertinência, citando o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 07-11-2023, Processo n.º 741/22.1GBABF.E1, relatado pela Ex.ma Desembargadora Maria Clara Figueiredo, publicado em www.dgsi.pt: “I - É amplamente aceite que na inadmissibilidade legal da instrução se insere o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente que não contenha a dedução de uma “acusação alternativa”, na qual se inclua uma concretização precisa e concisa dos factos objetivos e subjetivos conformadores dos ilícitos penais em causa, cumprindo a função de delimitar o objeto do processo, por força da estrutura acusatória deste e assegurando o respeito das garantias de defesa do arguido. II - Não cabe ao juiz percorrer o RAI e, cirurgicamente, escolher, de entre a amálgama de alegações que o integram – e que de forma indistinta, misturam conceitos jurídicos, explicações sobre os tipos, considerações e conclusões subjetivas sobre as condutas que se pretende imputar ao arguido – aquelas que contêm os factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um específico crime, compondo uma acusação que não lhe compete formular. III - A tarefa de acusar cabe ao acusador – in casu à assistente – e não há outra forma de a cumprir sem ser condensando os factos no libelo acusatório, narrando-os, (…)ordenando-os lógica e cronologicamente, sem outras considerações de permeio que aí não podem ter assento, de forma a que quem lê tal relato compreenda o que se imputa a quem, sem necessidade de realizar qualquer triagem fáctica. Não o fazendo, a suposta peça acusatória está votada ao insucesso e ao juiz não lhe resta senão rejeitá-la.”.
Impunha-se, portanto, à assistente/recorrente que identificasse os arguidos, que descrevesse de forma precisa, clara e escorreita a concreta materialidade das condutas integradoras dos ilícitos que pretendia imputar a cada um deles, nas suas dimensões objetiva e subjetiva, e que indicasse as disposições legais aplicáveis, com acerto, e não em alternativa, sob pena de se deixar na mão do Juiz de Instrução Criminal a escolha da factualidade e da tipologia criminal que se lhe afigurasse a mais correta, em completa oposição ao que decorre da estrutura acusatória do processo, prevista no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Não o tendo feito e estando vedado ao JIC endereçar-lhe convite ao aperfeiçoamento, a fase de instrução mostra-se inexequível, por impossibilidade de obtenção do seu objetivo legal, e, por isso, inútil e legalmente inadmissível.
Nenhuma censura merece, pois, o despacho recorrido, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente/recorrente para abertura da instrução, por inadmissibilidade legal desta, nos termos do artigo 287.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, o qual, ao contrário do defendido pela assistente/recorrente, não se encontra ferido de qualquer ilegalidade, sendo, portanto, de manter, o que dita a improcedência do recurso também quanto a esta particular questão.
Da requerida consideração/convolação do requerimento de abertura de instrução num requerimento de intervenção hierárquica, apresentado ao abrigo do artigo 278.º do Código de Processo Penal.
A título subsidiário, finaliza a assistente/recorrente o seu recurso a peticionar que o requerimento de abertura de instrução seja considerado/convolado num requerimento de reclamação hierárquica, apresentado ao abrigo do artigo 278.º do Código de Processo Penal, e, consequentemente, que se ordene a remessa dos autos ao Ex.mo Procurador da República para o apreciar como tal, por se tratar da única forma de reconhecer sentido útil ao seu requerimento e porque o tribunal não está limitado ao direito invocado pelas partes, ante o princípio anti-formalista que consagra a concretização de uma tutela efetiva e eficaz constitucionalmente consagrada, decorrente dos artigos 20.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e 547.º do CPC.
Vejamos:
Do invocado artigo 278.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, intervenção hierárquica, o quedecorre é o seguinte: “1 - No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento. 2 - O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento.” [sublinhado e negrito nossos].
E no artigo 287.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, requerimento para abertura de instrução, o que se refere é o seguinte: “1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: (…) b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.”. [sublinhado e negrito nossos].
Ou seja, o assistente pode requerer a abertura de instrução, ao abrigo do artigo 287º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, no prazo de 20 dias a contar da notificação do despacho de arquivamento e no mesmo prazo, em vez de requerer a abertura de instrução, pode optar por suscitar a intervenção hierárquica, nos termos do nº 2 do artigo 278º do Código de Processo Penal.
O mesmo será dizer que a assistente/recorrente podia reagir contra o despacho de arquivamento, solicitando a intervenção hierárquica, nos termos do artigo 278, n°2, do Código de Processo Penal, ou requerendo a abertura da fase de instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, al. b) do mesmo código e, in casu, a assistente/recorrente fez a sua opção, requerendo a abertura da instrução, em detrimento da intervenção hierárquica.
Como se refere na fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de fixação de jurisprudência, n.º 3/2015, de 20 de março[18], que analisou tal preceito legal, embora no âmbito de questão diversa da ora suscitada, “(…) Se, como estabelece o artigo 278º, só pode haver intervenção hierárquica a partir da data em que a abertura de instrução já não pode ser requerida e se a suscitação da intervenção hierárquica pelo assistente no decurso do prazo previsto para requerer a abertura de instrução traduz a opção de não requerer a instrução, só pode concluir-se que, por um lado, o requerimento de abertura de instrução, ao abrigo do artigo 287º, nº 1, alínea b), e o pedido de intervenção hierárquicasão meios de que o assistente pode lançar mão, em alternativa, para reagir contra o despacho de não acusação do Ministério Público no final do inquérito e, por outro, só se inicia o tempo da intervenção hierárquica quando o tempo de requerer a abertura de instrução já passou. (…) A solução legal adoptada, disponibilizando ao assistente os dois referidos meios de controlo da decisão de arquivamento, em alternativa, com a exigência de que opte por um deles, assenta em razões lógicas, (…)”. [sublinhado e negrito nossos].
Aliás, o tribunal constitucional, no acórdão n.º 713/2014, datado de 28 de outubro de 2014, relatado pelo Ex.mo Conselheiro João Cura Mariano[19], já se debruçou sobre a mencionada existência de meios legais ao dispor do assistente para reagir, em alternativa, contra o despacho de arquivamento do inquérito, embora no âmbito de uma situação não coincidente com a dos presentes autos, mas que, mesmo assim, aqui tem pertinência, tendo decidido: a) Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, optando por suscitar a intervenção hierárquica, o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, vê, sempre e irremediavelmente, precludido o direito de requerer a abertura de instrução ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito; [sublinhado e negrito nossos].
Ou seja, quer a abertura de instrução, quer a intervenção hierárquica, constituem os meios legais de reação ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, mas alternativos, que se excluem um ao outro, pelo que dar prosseguimento ao ora pretendido pela assistente/recorrente, seria o mesmo que contornar a intenção do legislador plasmada no mencionado preceito legal.
De qualquer forma, diga-se, a pretendida convolação do requerimento de abertura de instrução num requerimento de intervenção hierárquica carece de qualquer suporte legal, sendo indubitável que a adequação formal do invocado artigo 547.º do CPC reporta-se às “formas de processo” civil e não do processo penal, tendo este as suas especificidades próprias devidamente reguladas e, como tal, aquele preceito legal é aqui insuscetível de ser aplicado, por inexistência de qualquer lacuna que importe colmatar, nos termos do artigo 4.º do Código de Processo Penal.
E não se chame à colação o disposto no artigo 20.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa com vista a sustentar a pretendida convolação de um requerimento de abertura de instrução num requerimento de intervenção hierárquica, pois o que decorre do mencionado preceito constitucional é que “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”, e o legislador concedeu à assistente/recorrente a possibilidade de opção entre dois meios para reagir contra o despacho de arquivamento, opção que esta fez da forma como entendeu por bem, sendo certo que o facto de não ter alcançado o seu desiderato por meio de um deles, não significa que possa, agora, optar pelo outro. Soçobra, portanto, o recurso também quanto a esta particular questão.
Aqui chegados, tendo em conta os considerandos supra expendidos, porque a decisão recorrida não merece qualquer censura, nem foi violado qualquer um dos preceitos legais/constitucionais invocados pela assistente/recorrente, nem, diga-se, qualquer outro, outra solução não resta a não ser a de considerar o recurso totalmente improcedente.
Uma última nota só para dizer, quanto à alegada negação de justiça à assistente, vertida na parte final da conclusão n.º 33, pela forma como o processo foi tratado pelo MP desde início [“Obviamente, o que poderá pensar a Assistente da forma como o processo foi tratado pelo MP desde início, é que aqueles denunciados já estavam fadados à impunidade, podendo aqueles fazer o que quiserem, sem correrem o risco de neste descrito contexto jurídico serem punidos ou acusados de prevaricação, de corrupção, ou de um outro qualquer crime, porque é isso que está em causa, resultando tudo isto numa verdadeira negação de justiça à Assistente.”] que se trata de matéria que extravasa o âmbito da decisão a proferir no presente recurso e, como tal, da mesma não se pode aqui conhecer.
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela assistente/recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS [artigo 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III anexa ao mesmo].
Notifique.
Guimarães, 19 de novembro de 2024
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
Os Juízes Desembargadores
Isilda Maria Correia de Pinho [Relatora]
José Júlio Pinto [1.º Adjunto]
Florbela Sebastião e Silva [2.º Adjunta]
[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt. [2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95. [3] Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 27-04-2020, Processo n.º 2920/17.4T9VCT-A.G1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Jorge Bispo, in www.dgsi.pt. [4] Proferido no processo n.º 1514/08 - 3ª Secção, sumariado em Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, Sumários de Acórdãos, Criminal, Ano de 2008, in https://www.stj.pt. [5] Designadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 20-02-2024, Processo n.º 449/22.8GESTB.E1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Artur Vargues, in www.dgsi.pt. [6] Proferidos nos processos, respetivamente, n.º 232/17.2TRPRT - 5.ª Secção, e n.º 232/17.2TRPRT - 5.ª Secção, sumariados em Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, Sumários de Acórdãos, Criminal, Ano de 2019, in https://www.stj.pt. [7] No sentido da não aplicação do artigo 379º, nº 1, do Código de Processo Penal, a despachos, entre outros, veja-se os Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/02/2013, Proc. nº 117/04.2PATNV.C1.S1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/07/2011, Proc. nº 356/08.7PIPRT-A.P1; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18/02/2020, Proc. nº 1710/18.1T9FAR.E1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27/04/2020, Proc. nº 2920/17.4T9VCT-A.G1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/03/2021, Proc. nº 336/15.6T9AGH-C.L1-5, disponíveis em www.dgsi.pt. [8]In Curso de Processo Penal, vol. II, 3ª edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 89. [9] Cfr. Acórdão do TRG, de 21-11-2005, Processo n.º 1877/05-1, in http://www.dgsi.pt. [10] Cfr. se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 13-01-98, in B.M.J., 473, pág. 586;
Neste sentido pode ainda ver-se, Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal anotado, 7ª edição, pág. 455 a 457. [11] Como refere o Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal III, pág. 136 e 137. [12] In Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 120 e 121. [13] E, acrescentamos nós, do elemento objetivo. [14] Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04-06-2013 e de 16-03-2022, disponíveis em www.dgsi.pt. [15] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23-03-2022, disponível em www.dgsi.pt. [16] Publicado no DR I.ª Série de 04/11/2005. [17] In Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015. [18]https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/diario-republica/56-2015-66810467 [19]https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/home.html