ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
RELATÓRIO PERICIAL
DEPOIMENTO DE MENOR
Sumário


I. A inclusão no relatório pericial do depoimento da criança não transfigura esse relato em juízo pericial. Por sua vez, o relato pelo perito do que a criança lhe disse também não é meio legalmente adequado para trazer ao processo penal prova testemunhal, que tem regras muito definidas e rigorosas para esse efeito.
II. A credibilidade do depoimento da criança, validamente prestado perante a autoridade judiciária competente é tarefa do julgador, que dela deverá aferir segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, mas não se podendo socorrer de meios que impliquem a violação de normas adjetivas.
III. A utilização pelo julgador da referência feita pelos peritos do relato dos factos que a criança lhes terá feito, para avaliar da credibilidade do depoimento que ela posteriormente prestou em Tribunal, encontra-se vedada pelo artigo 156º n.º 5 do Código de Processo Penal.
IV. Não é legalmente admissível a descredibilização feita pelo Tribunal do depoimento prestado em audiência pela criança, com base em incongruências com aquilo que os peritos referem, nos respetivos relatórios periciais, que a criança lhes disse sobre as condutas do arguido, e do que tiveram conhecimento exclusivamente através de entrevista efetuada no âmbito dos meios que utilizaram para emitir o juízo pericial que lhes foi solicitado.
V. A análise da prova em desrespeito pela norma adjetiva do artigo 156º n.º 5 do Código de Processo Penal configura o vício «lógico» do erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo comum coletivo n.º 492/22...., do Juízo Central Cível e Criminal de Bragança - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, foi submetido a julgamento o arguido AA, com os demais sinais dos autos.
O acórdão, proferido a 24 de janeiro de 2024 e depositado no dia 26 do mesmo mês e ano, tem o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, acordam os juízes que constituem o tribunal colectivo do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança em julgar a douta acusação pública improcedente e, em consequência, decidem:
Absolver o arguido da imputada autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de sete crimes de coacção sexual, agravado, previstos e punidos pelos artigos 163.º, n.º 2, e 177.º, n.º 7, do Código Penal (referentes à menor BB), setenta e cinco crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal (referentes ao menor CC), e dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal (referentes à menor DD).
Declarar extintas, com ressalva das obrigações constantes do termo de identidade e residência, as medidas de coacção aplicadas
Notifique e deposite.»

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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«I. OBJETO E DELIMITAÇÃO DO RECURSO
1.º O presente recurso tem como objeto o Acórdão lido a 24.01.2024 com a referência ...10, de fls. 624 a 635, assinado e junto ao Citius a 25.01.2024 e depositado a 26.01.2024 por via do qual foi o arguido AA absolvido de todos os crimes pelos quais foi acusado.
2.º Versa o presente recurso sobre i) impugnação da matéria de facto, por um lado e, por outro, sobre ii) matéria de Direito, concretamente, quanto à subsequente verificação dos elementos típicos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito pelo qual foi a arguida acusada, em caso de procedência da impugnação da matéria de facto e, em decorrência, da respetiva pena e da reparação a ser arbitrada às vítimas.
Assim:

II. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

i) Dos factos julgados não provados que deveriam ter sido julgados PROVADOS:
3.º Entende o MINISTÉRIO PÚBLICO que o Tribunal a quo deveria ter julgado PROVADOS os factos indicados sob os pontos n.ºs 11, 15, 16, 17, 18 e 19, da douta Acusação Pública proferida, elencados nos factos julgados não provados, sendo que o facto 11, com menor número de vezes em que tal sucedeu e, no que concerne aos factos 15 a 19 apenas quanto ao menino CC.
4.º Concretamente, deveria julgar-se provado que:
11- Em datas não concretamente apuradas, mas já o CC frequentava a segunda classe, mais propriamente entre o período do
Natal de 2021 e finais de junho de 2022, pelo menos dez vezes, quando CC se deslocou à habitação do arguido, no interior da sala, da cozinha e do quarto, o arguido baixou a roupa interior que trajava e colocou o seu pénis nas mãos e boca deste, fazendo movimentos de vai e vem até ejacular para o solo.
15- O arguido sabia a idade do CC, tanto real como aparente.
16- O arguido agiu da forma supra descrita com o propósito, concretizado, de manter contactos de natureza sexual com CC sendo por este acariciado nas zonas genitais.
17- O arguido sabia que CC, em razão da sua idade, por si conhecida, não tinha a capacidade, maturidade e o discernimento necessários para tomar qualquer decisão, livre e pessoal, quanto à prática de qualquer ato de natureza sexual e ainda de que com a sua conduta prejudicava o livre e são desenvolvimento da sua personalidade e liberdade de determinação pessoal e sexual.
18- E que tais condutas eram suscetíveis de prejudicar, como prejudicaram, o desenvolvimento harmonioso do CC na sua esfera sexual, em função da sua pouca idade, do que resultou sofrimento físico, mas também psicológico que se perpetuou até à atualidade.
19- Em todos os momentos supra descritos, o arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, e com pleno conhecimento de que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei criminal, e, mesmo assim, não se absteve de os praticar.
5.º Ou, se assim se não entender quanto ao facto 11, numa mera hipótese académica, impõe-se seja julgado provado que o ali descrito sucedeu, naquele período de tempo, pelo menos uma vez.
6.º Ao assim não ter julgado o Tribunal a quo concluiu em manifesto e evidente erro de julgamento.
7.º Tal erro de julgamento resulta à saciedade da análise conjugada com as mais basilares regras da experiência comum e normalidade dos acontecimentos, com os elementos de prova juntos aos autos e produzidos e analisados em audiência de discussão e julgamento, sendo de destacar o depoimento do menino CC junto no Citius sob a designação “20230911114423_2020830_2870627”, na íntegra, em face da essencialidade e pertinência do mesmo – e, muito em especial aos segmentos temporais [12:53 a 12:57], [15:20 a 41:43], o qual descreveu com pormenor a forma como os factos sucederam, assim como a localização espacial dos compartimentos da casa do arguido e, ainda, o número de vezes, sendo a este respeito, no segmento [23:02 a 24:09] e, ainda, [40:59 a 41:09] e [01:02:22 a 01:22:45] a respeito de ejacular para o solo e se limpar à toalha que estava pendurada na entrada do seu quarto  – em confronto com as declarações do arguido juntas no Citius sob a designação “20230911105552_2020830_2870627” – em especial no segmento [11:32 a 30:10] – o qual negou os factos e referiu que o menino só esteve na sua casa uma única vez na companhia do pai.
8.º Sucede que se entende que o depoimento do menino CC se mostra, ainda, reforçado na sua credibilidade quando conjugado, ainda, com a prova documental junta aos autos, maxime os relatórios periciais juntos aos autos a fls. 227 e ss., de fls.  291 e ss. e de fls. 415 e ss. e, ainda, com os autos de busca e apreensão de fls. 101 e ss. e 325 e ss. e reportagem fotográfica junta ao relatório de inspeção judiciária efetuado e constante de fls. 349 e ss. e, por fim, ainda com os relatórios periciais de fls. 341 a 348, de fls. 380 a 383 e, ainda, de fls. 387 a 388, dos quais emerge que na sequência das buscas domiciliárias à residência do arguido foram encontrados vestígios compatíveis com sémen do arguido no solo do seu quarto (identificado por quarto 1, como decorre de fls. 361 a 366) e, bem assim uma toalha pendurada junto à porta do quarto do arguido, identificada pelo marcador 1 (cfr. fls. 361), toalha essa que sujeita a perícia aos vestígios ali encontrados resultou também a presença de sémen (cfr. fls. 361, 367 e fls. 381 a 383).
9.º Pelo que, salvo melhor opinião, tal prova demanda sejam aqueles pontos factos indicados julgados provados.
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III. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO

10.º Em face do que, da conjugação dos factos tidos como provados – a merecer provimento o recurso nesta parte – entende-se que se verificam preenchidos todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do ilícito de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, nos precisos termos que constam melhor descritos nas alegações supra, para os quais, por brevidade, se remete.
11.º Neste concreto e, em apertadíssima síntese, há que concluir que para qualquer homem médio os factos provados sob os pontos 1 e 2 conjugados com os factos cuja decisão de “provados” supra se pugnou, a saber sob os pontos 11, 15, 16, 17, 18 e 19 são perfeitamente apreensíveis como suscetíveis de consubstanciar a prática de atos de natureza sexual com gravidade objetiva, perpetrados pelo arguido sobre o menino CC, menor de 14(catorze) anos de idade, concretamente, com idade real e aparente [à data dos factos] de 9(nove) anos.
12.º Com efeito, assim agiu o arguido AA de forma deliberada, livre, consciente e voluntária, com o propósito, conseguido, de satisfazer os seus ímpetos sexuais e libidinosos e a sua lascívia e, assim, obter prazer, ao introduzir o seu pénis na boca do menino CC, criança de 9 (nove) anos de idade real e aparente à data dos factos [e, como tal, menor de 14 (catorze) anos], bem como ao fazer com que este último com movimentos manuais ascendente e descendente no pénis do arguido (leia-se, masturbando-o).
13.º Em face do que, verificando-se todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito, cometido que foi, com dolo, na sua modalidade mais grave, de dolo direto [artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal], impõe-se a condenação do arguido pela prática de, pelo menos, 10(dez) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, em concurso real e efetivo [artigo 30.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal], nas respetivas penas principais parcelares e, em cúmulo jurídico, na correspondente pena única principal, todas a ser concretamente apuradas pelo Tribunal ad quem sopesando os critérios ínsitos aos artigos 40.º e 71.º do Código Penal.
14.º Crimes esses que, como dito, se mostram todos em concurso real e efetivo, não sendo de aplicar a figura do trato sucessivo. Por todos, vide, o douto Acórdão do S.T.J. de 14.01.2016, processo n.º 414/12.3TAMCN.S1.
15.º Ou, se assim se não entender, pelo menos e no limite, em remota possibilidade, a condenação do sobredito arguido pela prática de, pelo menos, 1(um) crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, aplicando-se-lhe a correspondente pena principal nos precisos termos supra descritos.
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16.º E, em todo o caso e cumulativamente, mais se condenando o arguido na respetiva pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, a ser fixada pelo Tribunal ad quem nos termos impostos pelos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, impondo-se, porém, e previamente, a comunicação ao arguido de alteração da qualificação jurídica, nos termos do disposto no artigo 359.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, posto que tal pena acessória não se mostrava na imputação jurídica formulada na douta Acusação pública.
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17.º E, por fim, deve também o arguido ser condenado na necessária e correspondente reparação oficiosa a ser arbitrada ao abrigo do artigo 82.º-A do Código Penal em quantia a ser prudente e condignamente fixada pelo Tribunal ad quem a favor do menino CC, na qualidade de vítima especialmente vulnerável (artigos 67.º-A, n.º 1, al. b) e n.º 3, do Código de Processo Penal e 16.º, n.º 2, do Estatuto da Vítima aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro).
18.º Destarte, julgando V. Exas. procedente o presente recurso e, assim, alterando a matéria de facto nos termos indicados, com a subsequente alteração da decisão final após subsunção dos factos ao Direito, condenando o arguido AA precisos termos sobreditos farão, como sempre, a tão acostumada JUSTIÇA.»
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Não houve resposta do arguido.
Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta emitiu parecer, no sentido do recurso do Ministério Público obter provimento.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer[1].

1. Questões a decidir.

A. Impugnação da matéria de facto por errada apreciação e valoração da prova.
B. Subsequente verificação dos elementos típicos objetivos e subjetivos da prática de, pelo menos, dez crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, em concurso real e efetivo (referentes ao menor CC); e, em decorrência, aplicação das respetivas penas principais parcelares e da pena única, bem como de pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal; e da reparação a ser arbitrada à vítima.
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2. Factos Provados

Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes do acórdão recorrido.
«Da discussão da causa, resultaram os seguintes factos provados:  
1.º - O arguido AA, nasceu em ../../1968 e reside na Rua ..., ..., ..., ..., ....
2.º - O arguido é amigo dos pais de BB, nascida em ../../2009, e de CC, nascido em ../../2013, residentes na Rua ..., ..., ..., em ..., cuja habitação dista cerca de 100 metros da habitação do arguido.
3.º - DD nasceu em ../../2009.
4.º - O arguido não tem antecedentes criminais.
 5.º - O arguido AA cresceu integrado no agregado familiar de origem, constituído pelos progenitores e cinco descendentes, cuja dinâmica familiar foi caracterizada pela coesão e afetividade entre pais e filhos.
O pai do arguido ao nível laboral exerceu atividade em pedreiras e na agricultura, atividade esta última em que era coadjuvado pela esposa que também tinha a seu cargo cuidar dos descendentes e da casa.
Os pais sempre tiveram a preocupação em transmitir a si e seus irmãos normas e valores pró-sociais.
O arguido AA iniciou o percurso escolar em idade regulamentada, apresentado reduzida motivação para os estudos, com algumas reprovações, tendo concluído apenas o 6.º ano de escolaridade. Face a este quadro, o arguido iniciou-se profissionalmente com 14 anos de idade, junto do progenitor nas pedreiras, executando serviços diversos de acordo com a sua idade. Com 18 anos passou a prestar serviços de calceteiro de ruas, profissão que desenvolveu maioritariamente ao longo do seu percurso vivencial.
O arguido AA, regista ainda algumas experiências de emigração, em ... e ..., onde desenvolvia atividade agrícola, em campanhas sazonais, mais centrada na área vinícola e apanha de fruta. Porém, o arguido, não deixou de desenvolver a profissão de calceteiro, sempre que surgia oportunidade, com o objetivo de prosperar a sua situação económica e fazer face às despesas do dia-a-a-dia.
O arguido deixou o agregado de origem com cerca de 28 anos de idade em virtude de ter encetado relação matrimonial com EE, mais nova 10 anos, tendo esta união afetiva culminado passados 2 anos, por falta de entendimento entre o casal. Volvido pouco tempo, AA conhece FF da mesma idade que a sua, com quem passou a viver em união de facto, não tendo o casal descendentes.
Após 9 anos de vivencia em comum, ocorre o termo desta relação, em que o arguido decide residir em ..., localidade onde considerou que teria maior facilidade de inserção laboral no setor agrícola, residindo em casa de um amigo, onde esteve nos períodos compreendidos entre o ano de 2009 a 2012.
Entretanto, com o falecimento da progenitora, o arguido ficou emocionalmente fragilizado, o que o levou a deslocar-se para junto das irmãs que residiam na cidade ..., onde permaneceu durante cerca 3 anos. Durante esse tempo, AA foi-se mantendo de forma alternada no ... e na aldeia de ..., ..., em ..., desenvolvendo trabalhos pontuais no setor agrícola.
Com vista a estabelecer de novo a sua autonomia optou por regressar definitivamente à aldeia de ..., passando a residir na casa dos progenitores, com a autorização dos restantes irmãos.
 No âmbito laboral, o arguido dedicava-se ao trabalho agrícola, prestando serviço ao dia como jornaleiro, que complementava, sempre que surgia oportunidade, com alguns serviços de calceteiro.
   Por problemas de visão, que já apresentava desde há vários anos, o arguido passou a beneficiar de uma pensão de invalidez de € 320 aproximadamente. Informa que é cego do olho esquerdo e dispõe apenas de 38% de visão no olho direito, razão pela qual deixou de trabalhar como calceteiro, visto não ter a precisão indicada para a execução dessa atividade. Beneficiava ainda de apoio ao nível alimentar, por parte do Lar ..., com um custo mensal de € 30.
No período correspondente aos factos que estão na origem dos presentes autos (de 2016 a 2022), e à data da reclusão, o arguido AA residia sozinho em habitação de tipologia 3, propriedade dos progenitores (já falecidos), de construção antiga, com as condições essenciais de habitabilidade, localizada em meio de características tipicamente rurais.
A relação que mantinha com os irmãos era caraterizada como coesa e afetuosa.
O arguido AA beneficiava e beneficia da pensão de invalidez por problemas oftalmológicos, pelo que dedicava parte do seu tempo ao trabalho agrícola, como jornaleiro, com vista a equilibrar a sua situação económica, que menciona ser modesta. Como despesas fixas mais relevantes, foram elencadas as relativas ao fornecimento de bens domésticos (água, energia elétrica e gás), cujos valores ascendem a cerca de € 100 mensais.
No meio socio-residencial, o arguido AA é considerado pessoa bem relacionada na interação que estabelece com a rede vicinal e que valorizava o desempenho laboral e o respeito pelo próximo. Mostrava sempre vontade em se manter ocupado, mesmo com as limitações que evidenciava ao nível da visão, procurava manter-se ativo, sempre que surgia oportunidade de trabalho.
Nos tempos livres era habitual conviver com pessoas da localidade, nomeadamente na Associação Cultural e Recreativa " ...” na aldeia de ....
Em contexto prisional o arguido executou alguns trabalhos artesanais através da reciclagem de papel, não lhe tendo sido atribuído ocupação regular, já que a suas limitações oftalmológicas não lhe permite realizar grande parte dos trabalhos.
Ao nível social, o atual confronto judicial de AA parece não terem tido repercussão negativa na sua imagem, apesar das pessoas contactadas terem conhecimento do processo e considerarem o arguido um homem sozinho com sérios problemas de visão, o que afeta a autonomia no seu quotidiano.
                                                          .
Não se provaram outros factos, nem se deram por provados os factos conclusivos, os que constituem mera impugnação dos factos constantes da douta acusação pública e os demais que não têm interesse para a boa decisão da causa.
 Em conformidade, não se provou ou deu como provado que “3- Aproveitando-se da relação de amizade e confiança com os pais de BB e de CC, o arguido, no dia 20.05.2022, entre as 09.00h e as 09.30h, deslocou-se à habitação de BB, sita na Rua ..., ..., ... - ... e colocou as suas mãos na cintura desta, agarrou no seu corpo e sentou-a em cima da mesa da cozinha. 4- Em seguida, o arguido agarrou com uma mão ambos os braços da vítima, pelos pulsos, e com a outra mão acariciou e apalpou as pernas e a vagina de BB. 5- Continuando a manietar a vítima, o arguido despiu a roupa interior que BB trazia vestida na zona genital e posteriormente acariciou a vagina da vítima. 6- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar o arguido beijou o pescoço da vítima. 7- Não obstante a vítima dizer para parar com tal comportamento o arguido continuou a acariciar a vagina da vítima. 8- A partir do dia 15.06.2022, após o término no período letivo de BB, até final do mês de Junho de 2022, aproveitando que BB se encontrava sozinha em casa, o arguido deslocou-se três vezes por semana a casa desta. 9- Nessas ocasiões, o arguido repetiu sempre o comportamento do dia 20.05.2022, colocando a vítima em cima da mesa da cozinha, manietando os seus braços, retirando a sua roupa interior, acariciando a sua vagina e beijando-a na zona do pescoço. 10- Numa dessas ocasiões, o arguido agarrou na mão da vítima BB e direcionou-a à sua zona genital, fazendo com que a mão da vítima contactasse com a zona genital do arguido, por cima das calças que este trajava. 11- Em datas não concretamente apuradas, mas já o CC no frequentava a segunda classe, mais propriamente no período do Natal de 2021, pelo menos uma vez por semana e até finais de Junho de 2022 (cerca de um ano e meio_75 semanas), quando CC se deslocava à habitação do arguido, no interior da sala, da cozinha e do quarto, o arguido baixava a roupa interior que trajava e colocava o seu pénis nas mãos e boca deste, fazendo movimentos de vai e vem até ejacular para o solo. 12- No período compreendido entre os anos de 2016 e 2018, em datas não concretamente apuradas, pelo menos em duas ocasiões, na via pública, nas imediações da Rua ..., ..., ..., ..., o arguido colocou o seu pénis nas mãos de DD. 13- Numa dessas ocasiões, o arguido aproximou-se da DD, por de trás, e enquanto de friccionava nela, agarrou-lhe as mãos. 14- De seguida, com uma das mãos puxou as calças e com a outra pegou na mão da DD e colocou-a no pénis dele para que ela o apertasse. 15- O arguido sabia a idade da DD, da BB e do CC, tanto real como aparente. 16- O arguido agiu da forma supra descrita com o propósito, concretizado, de manter contactos de natureza sexual com DD, BB e CC de acariciar e ser acariciado nas zonas genitais, também, com o propósito concretizado de agarrar os pulsos da vítima BB, contra a vontade desta, tendo, para tal efeito, usado da sua superior força física para a agarrar e imobilizar, meio que impossibilitou a vítima de reagir aos seus intentos. 17- O arguido sabia que DD, BB e CC, em razão da sua idade, por si conhecida, não tinham a capacidade, maturidade e o discernimento necessários para tomar qualquer decisão, livre e pessoal, quanto à prática de qualquer ato de natureza sexual e ainda de que com a sua conduta prejudicava o livre e são desenvolvimento das suas personalidades e liberdades de determinação pessoal e sexual. 18- E que tais condutas eram suscetíveis de prejudicar, como prejudicaram, o desenvolvimento harmonioso das vitimas na sua esfera sexual, em função da sua pouca idade, do que resultou sofrimento físico, mas também psicológico que se perpetuou até à atualidade. 19- Em todos os momentos supra descritos, o arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, e com pleno conhecimento de que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei criminal, e, mesmo assim, não se absteve de os praticar.
Os factos alegados na contestação do arguido (4º o Arguido é tido como pessoa de bem, de bons princípios e íntegra; 5º O Arguido é uma pessoa respeitadora e respeitada na localidade onde reside e junto das pessoas que o conhecem e com quem convive, 6º além disso, é uma pessoa calma, pacífica, bem educada e integrada socialmente), foram considerados no contexto dos factos considerados no relatório social apresentado pela DGRSP e na medida em que os mesmos foram abonados pelos depoimentos das testemunhas GG, HH, II e JJ.
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No que respeita aos factos provados, o tribunal fundou a sua convicção na análise e valoração que, segundo as regras da lógica e as máximas da experiência da vida, fez sobre toda a prova carreada para os autos.
Em conformidade, o tribunal, considerando relevante o teor do termo de identidade e residência prestado nos autos e a identificação prestada pelo arguido em sede de audiência, sob o artigo 1.º dos factos provados, considerou provada a matéria alegada no artigo 1 da douta acusação pública;
Atento o teor dos assentos de nascimento juntos aos autos em 26-08-2022 (cf. referências ...50 e ...51) e os depoimentos das testemunhas BB e CC, sob o artigo 2.º dos factos provados, o tribunal considerou provada a matéria descrita no artigo 2 da acusação pública. E, atento o teor do assento de nascimento junto aos autos em 26-08-2022 (cf. referência ...52), sob o artigo 3.º dos factos provados, considerou provada parte da matéria constante do artigo 12 da acusação pública, ou seja, que DD nasceu em ../../2009;
O facto, relativo aos antecedentes criminais do arguido, resultou do teor do certificado do registo criminal junto aos autos; os factos relativos à personalidade do arguido e à sua condição socioeconómica, resultaram do teor do relatório social apresentado pela DGRSP e, bem assim, como referido, na medida em que o mesmo foi corroborado, pelos depoimentos das testemunhas GG, HH, II e JJ.
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A convicção do tribunal, relativamente à falta de prova dos factos descritos nos artigos da douta acusação pública, resultou da subjacente falta de prova dos mesmos factos, em razão de se revelarem inseguros, contraditórios, inconsistentes, inverosímeis, inconfiáveis, os elementos probatórios, designadamente, os depoimentos dos menores, testemunhas, e a incongruência dos depoimentos das testemunhas KK e LL.
Especificando, no que respeita à objectividade dos factos descritos na acusação pública, relativos à menor DD (“12- No período compreendido entre os anos de 2016 e 2018, em datas não concretamente apuradas, pelo menos em duas ocasiões, na via pública, nas imediações da Rua ..., ..., ..., ..., o arguido colocou o seu pénis nas mãos de DD, nascida em ../../2009. 13- Numa dessas ocasiões, o arguido aproximou-se da DD, por de trás, e enquanto de friccionava nela, agarrou-lhe as mãos. 14- De seguida, com uma das mãos puxou as calças e com a outra pegou na mão da DD e colocou-a no pénis dele para que ela o apertasse”), a menor, nas declarações para memória futura, prestadas em 6 de Outubro de 2022, em suma, declarou o seguinte (seguem-se as perguntas (P/) e as respostas/ declarações da menor (R/):
“... R/... pegou na minha mão e meteu-me nos pénis (sic). P/Quando é que isso aconteceu? R/Uma vez, que foi quando eu fui fechar a porta, porque o meu pai pediu-me para eu ir fechar a porta… (...) ele agarrou-me e começou…obrigou-me a meter a mão nos pénis, quando eu ia fechar a porta. (...) P/E então obrigou-te a pôr a mão por cima das calças, é isso? R/ Não, dentro (...) agarrava nas calças, abria-as e metia-me, só que nunca vi. P/ ...aconteceu mais alguma vez isso? R/ Sim (...) … Eu, a BB e o CC costumávamos brincar lá no largo, às vezes vinham mais alguns meninos. Estávamos lá todos e brincávamos às escondidas, ficava um a contar e tem um montão de ruas, e eu escondi-me na rua… Por acaso escondi-me na rua dele, eu e uma colega, só que ela fugiu para outro sítio… (...) e ele foi, passou por lá e também me fez a mesma coisa, no meu esconderijo, onde eu estava para me esconder. P/ …E mais uma vez puxou as calças para a frente… (?) R/ Sim, fazendo a mesma coisa. P/ …E obrigou-te a pôr lá a mão? R/ Sim. P/ Pronto. Isso já eras mais velha? Foi mais ou menos na mesma altura em que aconteceu em casa dos teus pais? R/ Acho que era um bocadinho mais… (...)  Acho que era mais velha, acho que 7, quase a fazer 8, não sei. P/ E ele na altura quando te fez isso disse-te alguma coisa? R/ Não. P/ Pediu-te para fazer alguma coisa? Ele falou contigo? Não? R/ Não. P/ Só fez isso? R/ Só. P/ Isso voltou a acontecer? R/ Que eu me lembre, acho que não, não sei. P/ Só aconteceu essas duas situações…? (...) Uma então na casa dos teus pais e outra na rua… R/ Que eu me lembre, mais nenhuma. P/ Tu alguma vez falaste disto a alguém? R/ A não ser com a BB. (...) P/ …. Falaste com ela muito ou pouco tempo depois de isso ter acontecido? R/ Foi muito tempo depois. (...) Enquanto eu andava no meu 3.º ano. Ela fez lá o 3.º ano em ..., mas ela veio para cá no 4.º ano, e nós falámos aí no 4.º ano, que ela calhou na minha turma. (...) P/ O que é que a BB na altura te disse? Lembras-te? R/ Não, porque ela não me deu pormenores nem nada, ela só disse que ele também já tinha tentado com ela. Ela só me disse isso, mas ela não me contou mais nada. P/ Não te contou mais nada…? R/ Não, eu também não lhe contei. Só lhe contei que ele também já me tinha feito… (...) Não nos contámos, uma à outra, pormenores. P/ … Ele nunca tentou esfregar, agarrar-se a ti ou…? R/ Agarrava-se e esfregava-se em mim. P/ Então conta-me lá, isso era em que ocasião…? R/ Isso era nas situações em que ele apanhava-me…ele coisava-me, metia a mão nas minhas pernas e depois ficava-se a esfregar em mim. (...) P/ Eu ia te pedir para tentares descrever um bocadinho melhor, está bem? Pronto, quando aconteceu isso em casa dos teus pais ele tentou esfregar-se a ti…? R/ Aí não. (...) Só foi na outra vez que nós fomos na brincadeira, eu e as crianças. P/ Quando andavas a jogar às escondidas…? R/ Sim, nós os meninos, sim. P/… Nesse episódio na rua? R/ Sim. (...) P/ Se em algum momento, portanto, quer da primeira vez, quer da segunda vez, o AA lhe disse para não contar nada disso a ninguém…? R/ Não, eu é que tinha mesmo medo de contar. (...) P/ Quando é que contaste essas coisas à BB? Foi depois? R/ Depois, depois de tudo, muito depois. (...) P/… Quer da primeira vez, quer da segunda, se se recorda se isto aconteceu durante o dia ou à noite…? R/ A primeira vez foi na brincadeira, era de dia, a nós não nos deixavam sair para a rua de noite para brincarmos, só se fossem connosco, e a segunda vez, que foi em casa, era de noite… P/ ... mas eu tinha percebido ao contrário, pensei que a primeira vez tinha sido em casa, à porta de casa dos teus pais… (?) R/ Não. P/ Pronto, então a primeira vez andavas a brincar na rua durante o dia…? R/Sim, foi quando nós brincámos. (...) No Verão (...) Foi nas férias da escola. P/ (...) E esta segunda situação em casa dos teus pais, à porta? R/ É, também foi no Verão (...) No mesmo Verão.”
Portanto, os episódios e a sua inverosimilhança, foram dois, uma vez na rua, quando jogava às escondidas com outras crianças, e uma outra vez, quando o arguido abandonava a casa do pai e, a pedido deste, foi fechar a porta, o arguido se esfregou nela, agarrou-lhe a mão e obrigou-a a tocar-lhe no pénis, por dentro das calças.
Porém, logo constatamos que, no relatório da perícia médico-legal (relatório psicológico), cujo exame foi realizado naquele mesmo da 06/10/2022, assinado em 17 de novembro de 2022, a senhora perita referiu que a menor disse “brincava no largo... às escondidas... e eu as vezes esconda-me sozinha... o senhor passava, tocava-me no corpo, nas partes intimas... e obrigava-me eu a tocar nele, esfregava-se a mim...e obrigava-me a meter a minha mão no pénis dele... outra vez foi quando ele foi lá a casa, para estar com o meu pai... depois o meu pai pediu para fechar a porta ao senhor (quando saiu), para trancar, né, antes de ir para a cama... depois ia lá, agarrava-me, fazia-me as mesmas coisas de sempre, como já disse”, “eu só dizia para parar...ele não parava...só depois chegou a uma certa altura, ele começou a entender que eu já percebia as coisas e parou”; mais referiu que a menor “Não sabe precisar quantas vezes terá sido tocada por MM, “mas também não foram poucas...foi até começar a haver um “chega”.
Por sua vez, no relatório da perícia médico-legal (pedopsiquiatria), cujo exame foi realizado três meses depois, em 06/01/2023, assinado em 22 de janeiro de 2023, a versão dos factos é, uma outra vez, diversa, porquanto “o indivíduo agarrava-a e pedia-lhe para por a mão no pénis dele, agarrava na sua mão e tentava colocar no pénis dele por cima da roupa (...) Uma vez aconteceu na rua e outra na casa dele (...) foram dois episódios. Negou outro tipo de práticas ou de toques”.
No que respeita à objectividade dos factos descritos na acusação pública, relativos à menor BB (“3 - ... o arguido, no dia 20.05.2022, entre as 09.00h e as 09.30h, deslocou-se à habitação de BB, sita na Rua ..., ..., ... - ... e colocou as suas mãos na cintura desta, agarrou no seu corpo e sentou-a em cima da mesa da cozinha. 4- Em seguida, o arguido agarrou com uma mão ambos os braços da vítima, pelos pulsos, e com a outra mão acariciou e apalpou as pernas e a vagina de BB. 5- Continuando a manietar a vítima, o arguido despiu a roupa interior que BB trazia vestida na zona genital e posteriormente acariciou a vagina da vítima. 6- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar o arguido beijou o pescoço da vítima. 7- Não obstante a vítima dizer para parar com tal comportamento o arguido continuou a acariciar a vagina da vítima. 8- A partir do dia 15.06.2022, após o término no período letivo de BB, até final do mês de Junho de 2022, aproveitando que BB se encontrava sozinha em casa, o arguido deslocou-se três vezes por semana a casa desta. 9- Nessas ocasiões, o arguido repetiu sempre o comportamento do dia 20.05.2022, colocando a vítima em cima da mesa da cozinha, manietando os seus braços, retirando a sua roupa interior, acariciando a sua vagina e beijando-a na zona do pescoço. 10- Numa dessas ocasiões, o arguido agarrou na mão da vítima BB e direcionou-a à sua zona genital, fazendo com que a mão da vítima contactasse com a zona genital do arguido, por cima das calças que este trajava”), nas declarações prestadas em sede de audiência, no dia 11 de Setembro de 2023, a menor depôs dizendo que os pais iam para horta... eu ficava em casa enquanto eles não vinham... ele (o arguido) ia lá a casa tomar café... tinha 12/13 anos... quando os meus pais chegavam dizia ao meu pai que AA tinha estado lá (em casa)”, mas não contava ao pai (tinha receio que o pai ralhasse com ela) que ele passava-lhe a mão no peito... passava a mão pra baixo... ficava com medo... um dia deu-lhe dinheiro para não contar aos pais... não era agradável a maneira com que passava a mão... beijou-a na bochecha... pôs-lhe a mão na cinta e nas pernas ... na vagina só uma vez... estava na cama a encartar a roupa... pôs a mão dele por dentro da roupa interior, dos calções... estava sentada na cama... agarrou-a pelas mãos... agarrou-a pelos pulsos para prender as mãos... uma mão agarrava os pulsos... e a outra mão... punha-a no seu corpo... não digas nada aos teus pais... estava com medo com pânico e não fez nada... (deu-lhe beijo na cara e depois foi com mão à vagina... meteu mão mesmo por dentro das cuecas) passou a mão e acariciou.... deu-lhe três euros... disse não contes ao teu pai toma lá o dinheiro... lembra-se que foi num dia da semana... 16 de junho... desapertou o botão dos calções... pôs a mão no corpo e na vagina nesse dia... antes do dia 16 ainda não tinha acontecido... apenas tinha medo... além do dia 16, outra vez, estava na cozinha, de manhã...na semana a seguir (ao dia 16) passou-lhe a mão pelo peito... só no peito... só se consegue lembrar destas dois (episódios)”.
No entanto, no relatório da perícia médico-legal (relatório psicológico), cujo exame foi realizado em 06/10/2022, assinado em 17 de novembro de 2022, a senhora perita referiu que a menor disse que foi na partes de cima, dos peitos, e em baixo... e fez outras coisas que eu não gosto muito de falar, mas tenho de falar...(...) uma vez ele entrou lá em casa, eu estava distraída, ele agarrou em mim e pôs-me em cima da mesas, começou-me a apalpar e tudo mais... depois no final ele deixou três euros em cima da mesa e foi-se embora...; instada a contextualizar no tempo diz que foi no dia 20 de maio “começou a apalpar, prontos, na parte de cima e na parte de baixo”, “se eu não me engano estava de pijama”; questionada sobre eventuais interações verbais disse que o alegado agressor apenas disse. “fica aqui este dinheiro para ficares calada”, referindo-se aos três euros; diz que os alegados abusos ocorreram mais vezes, e que o comportamento era o mesmo. Conta um segundo episódio em que “uma vez eu fugi para debaixo da cama, ele agarrou nos braços e tirou-me cá para fora, ele levantou-me, deitou-me no chão e eu fiquei assim com os braços atrás das costas”, “e apalpou-me e assim... depois começou a oscilar para cima e para baixo, com o corpo e com a cabeça”, “eu estava de pijama, porque sempre que eu estava em casa fico com pijama... não me apetece muito andar de roupa”, “o episódio descrito ocorreu tinha terminado o 6º ano de escolaridade, e já estava de férias escolares...”; conta um outro episódio, verbalizando que “...eu estava em casa, os meus irmão tinham aulas até ao dia 30 do mês de junho e eu acabei mais cedo do que eles... ele entrou e depois agarrou em mim e agarrou-me, frente a frente, até que ele tentou dar-me um beijo e eu desviei e deu-me um beijo aqui, no pescoço, e também... ao depois..., quando olhei de frente a frente para ele (...) vi o pénis dele... depois ele agarrou a minha mão, com bué de força, e obrigou-me a agarrar, mas eu fiz força e larguei, e depois lavei a mão...; questionada diz não se lembrar do dia exato em que tal aconteceu; “houve um dia... eu vinha no carro... a minha mãe manda-me ir para trás dele, prontos, eu fui, e sem querer cheguei o meu pé um bocadinho mais à frente... ele viu que era eu, né, e começou a por a mão dele a subir a minha perna...; Conta o último episódio (...) Passaram duas senhoras e (...) comentou com o AA: “olha aqui está uma rapariga boa para ti! – assim na brincadeira com o senhor; ele disse: não, eu quero-te é a ti! eu disse: ohhh, está maluco da cabeça, eu sou uma criança!”
Como vemos, os episódios acabaram por inflacionar-se em número, extensão e intensidade, que, como veremos, sucederia também no relatório da perícia médico-legal (psiquiatria), cujo exame foi realizado três semanas depois, em 28/10/2022, assinado em 20 de dezembro de 2022, onde em suma, a senhora perita refere que a menor BB relata que “foi no dia 20 de maio deste ano (...) ...eu estava a por loiça na máquina (...), então ele entrou, agarrou-me e pôs-me (...) em cima da mesa... e começou-me a apalpar”. A senhora perita refere depois: Quando questiono se o AA terá tentado tirar a sua roupa, a BB hesita bastante e responde “só as calças...eu estava de pijama, quando a perita questiona se conseguiu tirar, reponde apenas “sim” (...) “só me apalpou, na parte de cima e na parte de baixo” (...) depois no final pousou-me 3 euros em cima da mesa” (...) “disse para ficar calada”. “(...) houve mais outra vez... foi em junho” (...) “aconteceu a mesma coisa, mas sem a parte do dinheiro”, “só que depois, alguns dias depois, foi um bocadinho pior...”, “...escondi-me debaixo da cama (...) ele foi ver onde eu estava”, “puxou-me para fora...”, “e começou-me...prontos, a mesma coisa” (...) a apalpara (...) “só que depois eu levantei-me, ele empurrou-me para o chão e pôs-se em cima de mim”. Quando a perita questiona se o AA terá tentado fazer mais alguma coisa, refere “só tentou dar-me um beijo, mas eu fiz assim” (faz gesto de virar a cabeça para o lado), “...e depois pus a mão” (exemplifica com a mão à frente da boca), “depois só me deu um beijo no pescoço”. ... “uns dias mais tarde” (...) “ele entrou outra vez e eu estava na cozinha”, “começou a mexer no meu corpo e a tirar-me as calças” (...) “houve um dia  em que prontos ele agarrou na minha mão e fez-me tocar na pila dele”, “mas eu tirei logo” (...) uma das vezes na cozinha, eu virei-me e ele estava  com a pila de fora, depois agarrou na minha mão com força e meteu lá”, “eu tirei logo e depois lavei a mão e desinfetei”.
No que respeita à objectividade dos factos constantes da acusação pública, relativos ao menor CC (11- Em datas não concretamente apuradas, mas já o CC no frequentava a segunda classe, mais propriamente no período do Natal de 2021, pelo menos uma vez por semana e até finais de Junho de 2022 (cerca de um ano e meio_75 semanas), quando CC se deslocava à habitação do arguido, no interior da sala, da cozinha e do quarto, o arguido baixava a roupa interior que trajava e colocava o seu pénis nas mãos e boca deste, fazendo movimentos de vai e vem até ejacular para o solo”), este, em sede de audiência, declarou que “ :.. (o arguido) abriu a porta... disse para entrar... entrei e ele dizia para fazer as coisas... e disse pra não dizer nada a ninguém... mostrou o pénis dele... e disse para fazer para cima e para baixo... eu tinha ... 8 anos... 8 e 9 anos...foi no ano passado...acabou no verão... sempre que ia chamar o AA acontecia...só uma vez não aconteceu...todos os dias...quase todos...menos quando estava na escola... pénis dele era como um lápis mais grosso... fazia isso...porque ainda não tinha noção... (fazia mais?) ... não me lembro... já me lembro... também o metia na parte de trás, na minha...estava de pé, ele... (entrava no teu cuzinho?) não sei... (acho que só encostava e magoava-te?)... não...deitava liquido... ele dizia que era leite... (meteu-te alguma coisa na boca?) sim ...ele dizia para abrir a boca... (quanto tempo esteve o pénis na tua boca?) segundos... (não deitou leitinho para a tua boca?) não... às vezes era na boca, outras na outra... (não contaste ao teu pai e à tua mãe?) não... (Porque não?) não sei... ele dizia para baixar as calças... o leitinho deitava-o para o chão... acho quando botava o leite estava no quarto (o dele) e deitava para a sala... (ele CC) não se lavava... só se lavava em casa ... (a boca o cuzinho as mãos em casa?) sim... O meu pai às vezes dizia-me para me lembrar... (como era?) sim... (hoje disse-te?) não... eu ia pensando... dizia para eu pensar... ia dizendo para se lembrar... /// (Quando aconteceu em que ano andavas?) não sei... (ao longo do 4º ano alguma vez?) não me lembro... (a primeira vez, quando foi?) ...?... acontecia todas as semanas, menos uma vez... chamava-o...a porta dele tem um portão... uma janela...chamava-o dali... AA abre a porta, o meu pai chamou-te...às vezes ele não abria...eu batia ao portão, ele abria a porta... (descreve a casa dele) um portão aqui...mais pra cá uma parede...a parede... a viga furava o tecto...naquele meio tinha a janela...entravamos o portão, tinha o quintal de frente...lá dentro tinha a sala..-, na rua a casa de banho..., entravamos na casa dele..., nesse coiso tem a sala, logo tem um quarto...tem um quarto dele, o do meio, um bocadinho para frente..., continuamos tem a cozinha...antes da cozinha tem um quarto..., às vezes era na sala, mais vezes era na sala...,outras no quarto..., no quarto ficava de pé..., entre a cama e o móvel..., a cama era de ferro..., ás vezes dizia “tira a roupa”..., às vezes estava de boxers..., muitas vezes..., (quantas vezes aconteceram? dez vezes?) mais..., Pai dizia para me lembrar..., para eu pensar..., chamava-o para ir lá a casa..., para ... tomar café...,às vezes era para sairmos... (coisa mais feia?)... a da boca... (porquê?)... senti um bocadinho de nojo... (e dor física? dores no rabinho?)...não... (a primeira vez que falaste a alguém?) ...ao meu pai... a mãe da DD telefonou para a minha mãe... a contar e para saber se com a BB também tinha acontecido... a DD tinha contado à prima... a mãe da DD ouviu... o pai estava a falar com o vizinho... e contou ao pai... (a cama, é alguma destas?) ... hum... esta... (fls. 357 cama de cima) /// ... (quando o teu pai te mandava... não disseste que não querias ir?) disse..., voltava porque pensava que ele tinha parado... pai contava ao vizinho o que acontecera à irmã... teve coragem.... ouviu que ele apalpava irmã... e disse ao pai... “Ó pai a mim também me aconteceu isso como à BB”... o pai perguntou “o quê” e contei-lhe..., o pai estava na rua... a irmã ouviu contar..., ele tirava a roupa que vestia, o AA tirava a dele..., ia lá, quando vinha para casa tomava banho..., o pai dizia “ó CC vai chamar o AA”..., porque o AA não atendia o telefone a chamada do pai, a casa do AA fica não muito longe da casa dos pais... 50 metros... mais... ia de bicicleta chamá-lo..., chamava-o na janela..., se ele não abrisse, entrava no portão e batia à porta e ele abria... ele de boxers...às vezes de calças..., eu queria ir embora e ele dizia espera aí... ele dizia para fazer aquilo... (tinhas medo...? porque continuaste a ir?)...pensava que ele ia parar... (porque fazias?)... (ele era) mais velho..., o pai dizia para obedecer aos mais velhos... não tinha noção... (porque obedecias?) ... não sei.../// (mal se entra casa do AA é logo a sala?...quando entras na casa...?) ... tem sofá, televisão e fogareiro o coiso de se aquecer no inverno... (chegaste a entrar na cozinha?) não..., primeiro é a sala, depois a cozinha (não será o contrário?) ...?... ia para o segundo quarto... (era o quarto onde ele dormia?) ... acha que sim... estava no quarto no final do quarto ao pé da porta...entre o quarto e a sala...ele limpava-se a uma toalha...tinha-a na porta...estavam sempre ambos em pé... nunca esteve em cima da cama do AA nem o AA... só contou ao pai, mãe não estava presente..., estava o vizinho... (qual vizinho?)... não é o da frente, nem o do lado... /// (ia chamar mais vezes de manhã ou mais vezes de tarde?) não sabe... da casa dele à do AA a pé demora ... um minuto, ... um ou dois... ia de bicicleta... dizia para não dizer nada... /// (porque é que não vinhas embora...) ... pensava que ele não fazia nada... estava sempre a pensar que ele ia parar...”.
No relatório da perícia médico-legal (relatório psicológico), cujo exame foi realizado em 06/10/2022, assinado em 17 de outubro de 2022, a senhora perita referiu que o menor disse que “ele fez-me por a boca na parte de baixo dele e fez-me fazer com a mão para cima e para baixo na parte de baixo dele”. Pedido para expor quantas vezes havia feito isso responde “ui, agora isso não sei, mais de 20”. Conta que quer no quarto, quer na sala, ficavam ambos de pé.  (...) “às vezes também fazia meter o pénis dele no meu cú” (...) diz que o AA o mandava deitar na cama enquanto o alegado agressor ficava de pé. Questionado diz que nunca doeu, mesmo quando o pénis era introduzido.
No relatório da perícia médico-legal (psiquiatria), cujo exame foi realizado três semanas depois, em 28/10/2022, assinado em 16 de dezembro de 2022, onde em suma, a senhora perita refere que “foram para aí mais de 20...” (..) era sempre na casa dele” (...) ao entrar acho que te a sal, o quarto, a cozinha e uma casa de banho, e mais um sítio que nuca entrei... acho que é pequena” (...) relata que o AA trava as calças (...) “tirava só as calças” (...) “e os boxers” ( que lhe mostrava “a pila”, “e fazia-me mexer para baixo e para cima” (...) “e às vezes ele metia o coiso dele no meu cú” negando nestes episódios sensação de dor ou desconforto (..). Refere que algumas vezes o AA o mandava deitar na cama, enquanto outras vezes permaneciam de pé. Nega que o AA se deitasse “acho que estava sempre de pé” (...) não contou mais cedo aos pais (...) “porque tinha medo” (...) medo de que eles me ralhassem...”.
Ora, face ao descrito depoimento em sede de audiência e elementos constantes dos exames de perícia médico-legal acabados de referir, parece-nos evidenciarem-se repetidas incongruências e circunstâncias que induzem uma dúvida razoável quanto à prática pelo arguido dos factos que se lhe imputam relativamente à pessoa do menor CC, designadamente, a circunstância de este desconhecer a localização dos compartimentos da casa do arguido – o que, aliás, este verberou, negando a prática dos factos e referindo que os menores nunca tinham entrado na sua habitação –, a circunstância de o menor, repetidamente (mais de vinte vezes), e, se bem nos parece, não poder deixar de intuir o que poderia ou iria acontecer, acabar por entrar na casa do arguido, a de não sedimentar a certeza de o arguido lhe ter introduzido ou não “a pila no cuzinho”.
Da descrita falta de prova dos factos objectivos o tribunal induziu a falta de prova dos correspondentes factos subjectivos constitutivos dos imputados crimes.»
***
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O recorrente Ministério Público impugna a matéria de facto considerada não provada e que corresponde aos n.ºs 11, 15, 16, 17, 18 e 19 da acusação pública, como tal elencada no acórdão recorrido, sendo que o facto 11 com menor número de vezes em que tal sucedeu e, no que concerne aos factos nºs 15 a 19 apenas quanto ao menino CC.
Para o que argumenta com a errada apreciação e valoração da prova, identificando os concretos excertos do depoimento da criança CC e os pontos da prova documental e pericial em que fundamenta, numa clara e exclusiva impugnação ampla da matéria de facto.
*
Questão prévia: vícios decisórios do acórdão recorrido.
Embora os poderes de cognição do Tribunal da Relação, que são de facto e de direito, se encontrem delimitados pelas conclusões da motivação do recurso[2], ressalva-se a apreciação oficiosa dos vícios enunciados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que resultem do texto da decisão recorrida[3] .
São «vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confeção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão»[4].
Entre tais vícios estão a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova, previstos, respetivamente, nas als. b) e c) do citado n.º 2 do artigo 410.º.
A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão traduz-se numa «incompatibilidade não ultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão»[5].
O erro notório, por sua vez, é aquele que consiste numa «falha grosseira e ostensiva na análise da prova» que leva a que «um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou que se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis»[6].
Nesta perspetiva, analisemos o texto do acórdão recorrido.
Da parte da motivação factual resulta que o Tribunal a quo não considerou provados os factos impugnados pelo recorrente, referentes à criança CC, por «falta de prova dos mesmos factos, em razão de se revelarem inseguros, contraditórios, inconsistentes, inverosímeis, inconfiáveis, os elementos probatórios, designadamente, os depoimentos dos menores, testemunhas, e a incongruência dos depoimentos das testemunhas KK e LL.»
Após o que, e no que respeita ao depoimento da criança CC, que foi prestado em sede de audiência (por as suas declarações para memória futura, gravadas no Citius, se mostrarem inaudíveis), a motivação conclui que nele se evidenciam «repetidas incongruências e circunstâncias que induzem uma dúvida razoável quanto à prática pelo arguido dos factos que se lhe imputam relativamente à pessoa do menor». O que é explicado pela comparação feita entre o teor do depoimento da criança prestado perante o Tribunal e aquilo que os senhores peritos que procederam ao seu exame médico legal (de psicologia e de psiquiatria) referem, nos respetivos relatórios periciais, que a criança lhes disse sobre as condutas do arguido. Como bem ilustra o seguinte segmento retirado da motivação:
«No que respeita à objectividade dos factos constantes da acusação pública, relativos ao menor CC (11- Em datas não concretamente apuradas, mas já o CC no frequentava a segunda classe, mais propriamente no período do Natal de 2021, pelo menos uma vez por semana e até finais de Junho de 2022 (cerca de um ano e meio_75 semanas), quando CC se deslocava à habitação do arguido, no interior da sala, da cozinha e do quarto, o arguido baixava a roupa interior que trajava e colocava o seu pénis nas mãos e boca deste, fazendo movimentos de vai e vem até ejacular para o solo”), este, em sede de audiência, declarou que “ :.. (o arguido) abriu a porta... disse para entrar... entrei e ele dizia para fazer as coisas... e disse pra não dizer nada a ninguém... mostrou o pénis dele... e disse para fazer para cima e para baixo... eu tinha ... 8 anos... 8 e 9 anos...foi no ano passado...acabou no verão... sempre que ia chamar o AA acontecia...só uma vez não aconteceu...todos os dias...quase todos...menos quando estava na escola... pénis dele era como um lápis mais grosso... fazia isso...porque ainda não tinha noção... (fazia mais?) ... não me lembro... já me lembro... também o metia na parte de trás, na minha...estava de pé, ele... (entrava no teu cuzinho?) não sei... (acho que só encostava e magoava-te?)... não...deitava liquido... ele dizia que era leite... (meteu-te alguma coisa na boca?) sim ...ele dizia para abrir a boca... (quanto tempo esteve o pénis na tua boca?) segundos... (não deitou leitinho para a tua boca?) não... às vezes era na boca, outras na outra... (não contaste ao teu pai e à tua mãe?) não... (Porque não?) não sei... ele dizia para baixar as calças... o leitinho deitava-o para o chão... acho quando botava o leite estava no quarto (o dele) e deitava para a sala... (ele CC) não se lavava... só se lavava em casa ... (a boca o cuzinho as mãos em casa?) sim... O meu pai às vezes dizia-me para me lembrar... (como era?) sim... (hoje disse-te?) não... eu ia pensando... dizia para eu pensar... ia dizendo para se lembrar... /// (Quando aconteceu em que ano andavas?) não sei... (ao longo do 4º ano alguma vez?) não me lembro... (a primeira vez, quando foi?) ...?... acontecia todas as semanas, menos uma vez... chamava-o...a porta dele tem um portão... uma janela...chamava-o dali... AA abre a porta, o meu pai chamou-te...às vezes ele não abria...eu batia ao portão, ele abria a porta... (descreve a casa dele) um portão aqui...mais pra cá uma parede...a parede... a viga furava o tecto...naquele meio tinha a janela...entravamos o portão, tinha o quintal de frente...lá dentro tinha a sala..-, na rua a casa de banho..., entravamos na casa dele..., nesse coiso tem a sala, logo tem um quarto...tem um quarto dele, o do meio, um bocadinho para frente..., continuamos tem a cozinha...antes da cozinha tem um quarto..., às vezes era na sala, mais vezes era na sala...,outras no quarto..., no quarto ficava de pé..., entre a cama e o móvel..., a cama era de ferro..., ás vezes dizia “tira a roupa”..., às vezes estava de boxers..., muitas vezes..., (quantas vezes aconteceram? dez vezes?) mais..., Pai dizia para me lembrar..., para eu pensar..., chamava-o para ir lá a casa..., para ... tomar café...,às vezes era para sairmos... (coisa mais feia?)... a da boca... (porquê?)... senti um bocadinho de nojo... (e dor física? dores no rabinho?)...não... (a primeira vez que falaste a alguém?) ...ao meu pai... a mãe da DD telefonou para a minha mãe... a contar e para saber se com a BB também tinha acontecido... a DD tinha contado à prima... a mãe da DD ouviu... o pai estava a falar com o vizinho... e contou ao pai... (a cama, é alguma destas?) ... hum... esta... (fls. 357 cama de cima) /// ... (quando o teu pai te mandava... não disseste que não querias ir?) disse..., voltava porque pensava que ele tinha parado... pai contava ao vizinho o que acontecera à irmã... teve coragem.... ouviu que ele apalpava irmã... e disse ao pai... “Ó pai a mim também me aconteceu isso como à BB”... o pai perguntou “o quê” e contei-lhe..., o pai estava na rua... a irmã ouviu contar..., ele tirava a roupa que vestia, o AA tirava a dele..., ia lá, quando vinha para casa tomava banho..., o pai dizia “ó CC vai chamar o AA”..., porque o AA não atendia o telefone a chamada do pai, a casa do AA fica não muito longe da casa dos pais... 50 metros... mais... ia de bicicleta chamá-lo..., chamava-o na janela..., se ele não abrisse, entrava no portão e batia à porta e ele abria... ele de boxers...às vezes de calças..., eu queria ir embora e ele dizia espera aí... ele dizia para fazer aquilo... (tinhas medo...? porque continuaste a ir?)...pensava que ele ia parar... (porque fazias?)... (ele era) mais velho..., o pai dizia para obedecer aos mais velhos... não tinha noção... (porque obedecias?) ... não sei.../// (mal se entra casa do AA é logo a sala?...quando entras na casa...?) ... tem sofá, televisão e fogareiro o coiso de se aquecer no inverno... (chegaste a entrar na cozinha?) não..., primeiro é a sala, depois a cozinha (não será o contrário?) ...?... ia para o segundo quarto... (era o quarto onde ele dormia?) ... acha que sim... estava no quarto no final do quarto ao pé da porta...entre o quarto e a sala...ele limpava-se a uma toalha...tinha-a na porta...estavam sempre ambos em pé... nunca esteve em cima da cama do AA nem o AA... só contou ao pai, mãe não estava presente..., estava o vizinho... (qual vizinho?)... não é o da frente, nem o do lado... /// (ia chamar mais vezes de manhã ou mais vezes de tarde?) não sabe... da casa dele à do AA a pé demora ... um minuto, ... um ou dois... ia de bicicleta... dizia para não dizer nada... /// (porque é que não vinhas embora...) ... pensava que ele não fazia nada... estava sempre a pensar que ele ia parar...”.
No relatório da perícia médico-legal (relatório psicológico), cujo exame foi realizado em 06/10/2022, assinado em 17 de outubro de 2022, a senhora perita referiu que o menor disse que “ele fez-me por a boca na parte de baixo dele e fez-me fazer com a mão para cima e para baixo na parte de baixo dele”. Pedido para expor quantas vezes havia feito isso responde “ui, agora isso não sei, mais de 20”. Conta que quer no quarto, quer na sala, ficavam ambos de pé.  (...) “às vezes também fazia meter o pénis dele no meu cú” (...) diz que o AA o mandava deitar na cama enquanto o alegado agressor ficava de pé. Questionado diz que nunca doeu, mesmo quando o pénis era introduzido.
No relatório da perícia médico-legal (psiquiatria), cujo exame foi realizado três semanas depois, em 28/10/2022, assinado em 16 de dezembro de 2022, onde em suma, a senhora perita refere que “foram para aí mais de 20...” (..) era sempre na casa dele” (...) ao entrar acho que te a sal, o quarto, a cozinha e uma casa de banho, e mais um sítio que nuca entrei... acho que é pequena” (...) relata que o AA trava as calças (...) “tirava só as calças” (...) “e os boxers” ( que lhe mostrava “a pila”, “e fazia-me mexer para baixo e para cima” (...) “e às vezes ele metia o coiso dele no meu cú” negando nestes episódios sensação de dor ou desconforto (..). Refere que algumas vezes o AA o mandava deitar na cama, enquanto outras vezes permaneciam de pé. Nega que o AA se deitasse “acho que estava sempre de pé” (...) não contou mais cedo aos pais (...) “porque tinha medo” (...) medo de que eles me ralhassem...”.
Ora, face ao descrito depoimento em sede de audiência e elementos constantes dos exames de perícia médico-legal acabados de referir, parece-nos evidenciarem-se repetidas incongruências e circunstâncias que induzem uma dúvida razoável quanto à prática pelo arguido dos factos que se lhe imputam relativamente à pessoa do menor CC …» (Negritos nossos).

Encontram-se efetivamente nos autos os dois relatórios de perícia médico legal psicológica e psiquiátrica a que alude a motivação, ambos requisitados às competentes entidades oficiais pelo Ministério Público, no decurso do Inquérito.
Constituem tais relatórios prova pericial, prevista e regulada nos artigos 151.º a 163.º do Código de Processo Penal, destinada a apreciar factos que exigem especiais conhecimentos científicos, no caso, no âmbito da psicologia e psiquiatria, sendo esse juízo subtraído à livre apreciação do julgador.
Cada um desses relatórios, para além dos juízos periciais, relata também partes do depoimento da criança CC sobre os factos, prestado no âmbito da sua observação, em entrevista ao perito, que conjuntamente com testes e outros instrumentos próprios dessa área do conhecimento, permitiram chegar ao juízo pericial.
Porém, a inclusão no relatório pericial do depoimento da criança, naturalmente que não transfigura esse relato em juízo pericial.
Assim como, e por outro lado, o relato pelo perito do que a criança lhe disse também não é meio legalmente adequado para trazer ao processo penal prova testemunhal, que tem regras muito definidas e rigorosas para esse efeito.
Os relatórios periciais concluíram (e é essa parte que constitui o juízo pericial) que a criança CC tem capacidade para testemunhar, que não é sugestionável, que descreve as situações de forma lógica, consistente e coerente e que consegue distinguir realidade de fantasia.
Questão diversa é a credibilidade do depoimento da criança, validamente prestado perante a autoridade judiciária competente, que é tarefa do Tribunal, que dela deverá aferir segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (cf. artigo 127.º do Código Penal).
Nessa tarefa não pode, porém, o Tribunal socorrer-se de meios que impliquem a violação de normas adjetivas.
Que é o que acontece com a utilização da referência feita pelos peritos do relato dos factos que a criança lhes terá feito para avaliar da credibilidade do depoimento que ela posteriormente prestou em Tribunal, por tal se encontrar vedado pelo artigo 156º n.º 5 do Código de Processo Penal – «Os elementos de que o perito tome conhecimento no exercício as suas funções só podem ser utilizados dentro do objeto e finalidades da perícia.»
Pelo que não é legalmente admissível a descredibilização feita pelo Tribunal a quo do depoimento prestado em audiência pela criança CC, com base em incongruências com aquilo que os peritos referem, nos respetivos relatórios periciais, que a criança lhes disse sobre as condutas do arguido, e do que tiveram conhecimento exclusivamente através de entrevista efetuada no âmbito dos meios que utilizaram para emitir o juízo pericial que lhes foi solicitado.
A análise da prova em desrespeito pela norma adjetiva do artigo 156º n.º 5 do Código de Processo Penal, constante do texto da motivação, configura o vício «lógico» do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410.º n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal.
*
Mas os vícios decisórios da motivação não se ficam por aí.
É que, enunciando mais um argumento para a descredibilização do depoimento do menor CC, consigna a motivação (na parte final) a circunstância de ele «desconhecer a localização dos compartimentos da casa do arguido».
Conclusão que surge sem qualquer explicação adicional, e, como tal, contraditória com a reprodução feita, também na própria motivação, de partes do depoimento da criança que contêm excertos da descrição que ela faz da casa do arguido, nos seguintes termos: «(descreve a casa dele) um portão aqui...mais pra cá uma parede...a parede... a viga furava o tecto...naquele meio tinha a janela...entravamos o portão, tinha o quintal de frente...lá dentro tinha a sala..-, na rua a casa de banho..., entravamos na casa dele..., nesse coiso tem a sala, logo tem um quarto...tem um quarto dele, o do meio, um bocadinho para frente..., continuamos tem a cozinha...antes da cozinha tem um quarto..., às vezes era na sala, mais vezes era na sala...,outras no quarto..., no quarto ficava de pé..., entre a cama e o móvel..., a cama era de ferro... (…) .../// (mal se entra casa do AA é logo a sala?...quando entras na casa...?) ... tem sofá, televisão e fogareiro o coiso de se aquecer no inverno... (chegaste a entrar na cozinha?) não..., primeiro é a sala, depois a cozinha (não será o contrário?) ...?... ia para o segundo quarto... (era o quarto onde ele dormia?) ... acha que sim... estava no quarto no final do quarto ao pé da porta...entre o quarto e a sala...ele limpava-se a uma toalha...tinha-a na porta.» (Transcrição da motivação)
Da leitura da motivação torna-se absolutamente insondável porque é que esta parte do depoimento do menor não foi considerada como descrição da casa do arguido, tanto mais que em momento algum se diz que ela não corresponde minimamente à descrição de tal casa e porquê.[7]  Tanto mais que estamos perante um menino nascido em ../../2013, ou seja, com 11 anos na data da audiência, a descrever uma casa onde alegadamente terá entrado quando tinha 8/9 anos de idade.
Configura este ponto da motivação o vício da contradição insanável da fundamentação previsto no artigo 410.º n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal.
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Esta contradição e o erro notório, emergem por si só, de forma evidente, do texto do acórdão recorrido, afetam-no na sua própria estrutura e propagam-se à decisão de mérito.
Não podendo este Tribunal de recurso proceder à respetiva correção, pois as incoerências detetadas não permitem que se possa saber qual o verdadeiro sentido da decisão recorrida, tendo a solução aqui de passar pelo reenvio para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Reenvio esse que terá de abranger a matéria considerada não apurada relativamente ao menino CC que foi impugnada no recurso, ou seja, a descrita nos n.ºs 11, 15, 16, 17, 18 e 19 da acusação pública, e como tal elencada no acórdão recorrido, sendo que o facto 11 encontra-se já restrito a um número de vezes de pelo menos dez (por força da proibição da reformatio in pejus) e, no que concerne aos factos nºs 15 a 19 apenas quanto ao menino CC.
*
Ficando assim prejudicado o conhecimento das questões suscitadas no recurso.
***
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães, em:

- Determinar o reenvio do processo para novo julgamento, restrito à matéria considerada não apurada relativamente ao menino CC [concretamente,  a descrita nos n.ºs 11, 15, 16, 17, 18 e 19 da acusação pública, e como tal elencada no acórdão recorrido, sendo que o facto 11 encontra-se já restrito a um número de vezes de pelo menos dez (por força da proibição da reformatio in pejus) e, no que concerne aos factos nºs 15 a 19 apenas quanto ao menino CC), com aproveitamento do depoimento prestado pela criança na anterior audiência;
- Considerar prejudicado o conhecimento das questões suscitadas no recurso do Ministério Público.
*
Sem tributação.
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Guimarães, 19 de novembro de 2024
(Elaborado e revisto pela relatora)

Fátima Furtado (Relatora)
Júlio Pinto (1º Adjunto)
Armando Azevedo (2º Adjunto)


[1] Cf. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Cf. artigos 402.º, 403.º, 412.º e 428.º, todos do Código de Processo Penal.
[3] Cf. acórdão do STJ nº 7/95, in DR Iª série, de 28.12.1995, que fixou jurisprudência obrigatória nesse sentido e ainda hoje mantém toda a atualidade.
[4]  In acórdão do STJ de 07.12.2005, CJ-STJ, tomo III, 2005, p. 224.
[5]  Cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Editora Rei dos Livros, 8ª ed. Lisboa, 2012, p. 77.
[6] Cf. Simas Santos e Leal Henriques, op. citada, p. 80.
[7] Note-se, inclusive, que se encontram juntas aos autos fotografias dessa casa, mas a motivação a elas não alude, e, como observa nesta instância o Ministério Público, o certo é que até «confirmam a existência de uma toalha pendurada junto à porta do quarto do arguido (cf. fls. 361), toalha essa que sujeita a perícia evidenciou a presença de sémen (cfr. fls. 361, 367 e fls. 381 a 383)»