INSOLVÊNCIA CULPOSA
REQUISITOS
INSOLVÊNCIA FORTUITA
Sumário


I- A nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, só se verifica quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto e/ou de direito da decisão, não abrangendo as eventuais deficiências dessa fundamentação. Assim se a decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância contiver os elementos de facto e de direito suficientes para a declaração dos fundamentos da decisão final, não há falta de motivação.
II- O incidente de qualificação constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência, e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor.
III- Constituem requisitos da insolvência culposa: (i) o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; (ii) a ilicitude desse comportamento; (iii) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); (iv) o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
IV- Estando demonstrada a verificação de qualquer uma das situações previstas no nº 2 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a insolvência é sempre considerada como culposa, sem necessidade da demonstração do nexo de causalidade a que se reporta o n.º 1 do mencionado preceito, por aquela norma não presumir apenas a existência de culpa, mas também a existência de causalidade entre a atuação do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência.
V- A prova dos elementos de facto tendentes ao preenchimento da previsão normativa das alíneas a) e d) do nº 2 do citado artigo 186º, mormente do facto base da presunção nelas contempladas, impende sobre os credores, o Ministério Público e/ou o Administrador da Insolvência.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

AA, credor nos autos de insolvência de BB, veio, ao abrigo do disposto no artigo 188º do CIRE, deduzir incidente de qualificação da insolvência, peticionando que a insolvência seja qualificada como culposa, afetando-se pela qualificação o próprio insolvente e, consequentemente, ser ordenada a comunicação ao Ministério Público nos termos do artigo 297º do CIRE.
Aberto o incidente, foi junto parecer do Sr. AI, no sentido da qualificação culposa da insolvência, com base na alínea a) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
Cumprido o disposto no nº 3 do art. 188º do CIRE, o Ministério Público concluiu pela insolvência culposa, nos termos do art. 186º, nº 2, als. a) e d) do CIRE.
Foi dado cumprimento ao disposto no art. 188º, nº 5 do CIRE, tendo sido apresentada oposição.
Foi elaborado despacho saneador, com definição do objeto do litígio e dos temas da prova.
Realizou-se a audiência final, vindo a ser proferida sentença que julgou procedente o presente incidente, considerando-se culposa a insolvência do devedor BB.
Inconformado com o decidido, interpôs recurso o insolvente, finalizando as suas alegações com as seguintes

CONCLUSÕES:

I. Vem o presente recurso interposto da sentença que antecede, que julgou procedente o incidente de qualificação de insolvência e considerou o Insolvente/Recorrente afetado pela qualificação culposa da insolvência.
II. São as seguintes as questões objeto do presente recurso:
- Nulidade da sentença nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 615º do CPC;
- Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- Do não preenchimento das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE.
III. A sentença padece de défice de fundamentação de direito, pois não concretiza quais os factos provados que preenchem cada um dos normativos aplicados.
IV. A sentença conclui que os factos provados são suscetíveis de preencher as alíneas a) e d) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, mas nada refere quanto à concreta factualidade provada e que é suscetível de preencher cada uma das indicadas alíneas, o que compromete o direito ao recurso e à tutela efetiva.
V. Por referência à alínea a), pela análise da fundamentação o insolvente fica sem saber se o Tribunal a quo entendeu que a sua conduta foi suscetível de destruir, danificar, inutilizar, ocultar, ou feito desaparecer o seu património,
VI. E por reporte à alínea d), fica o insolvente sem saber qual o raciocínio que presidiu à conclusão de que dispôs dos seus bens em proveito pessoal ou de terceiros.
I. A sentença viola o art. 607º, n.º 4, art. 154º, n.º 1, ambos do CPC, art. 205º e art. 20º, ambos da CRP, devendo ser declarada nula nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 615º do CPC, com as legais consequências.
II. Quanto à impugnação da decisão proferida relativamente à matéria de facto, o Recorrente, com o devido respeito, discorda da factualidade dada como provada constante dos pontos 10, 22, 28, 29 e 30 da sentença, a qual deverá dada como provada em diferentes moldes ou não provada, consoante cada um dos factos em apreço e que adiante melhor se concretizará.
III. No que concerne ao ponto 10 dos factos provados, a sua redação não é rigorosa, impondo-se a sua alteração, pois o bem em causa, contrariamente ao que a redação do facto provado indicia, não pertencia ao insolvente em situação de compropriedade (1/8), mas sim à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai CC.
IV. A prova que impõe decisão diversa reporta-se à escritura de venda do imóvel em causa, em conjugação com os factos dados como provados nos pontos 21 a 32 da sentença relativos à oposição deduzida pelo Insolvente/Recorrente, dos quais se inferem quer os termos da alienação desses bens, quer ainda a intervenção secundária do insolvente nesse negócio.
V. Impõe-se, assim, a alteração da resposta dada ao indicado ponto de facto, dando-se como provado que: “12. Em 15/02/2021, os herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai CC (o insolvente detinha um quinhão de 1/8), alienaram os prédios descritos sob os n.º ...67 e ...15 da freguesia ... (...) a favor da sociedade denominada “EMP01..., Lda.”
VI. Relativamente ao facto provado sob o item 22., e tal como referido quanto ao facto anterior, a resposta dada não é rigorosa, pois além de estar incorreta a data da alienação, indicia igualmente que foi o insolvente, per si, a alienar o referido prédio, quando na verdade o prédio em causa integrava a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC e foi alienado pelos respetivos herdeiros.
VII. A prova que impõe decisão diversa reporta-se à escritura de venda, outorgada em 11.11.2020 – e não em 18.11.2020.
VIII. Conforme resulta da escritura de venda, outorgada em 11.11.2020, através dela os herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai CC (o insolvente detinha um quinhão de 1/8), alienaram o prédio descrito sob o n.º ...19/... a favor de DD, pelo valor de € 5.000,00 pago através de transferência bancária.
IX. É o que resulta dos factos dados como provados nos pontos 33 a 35 da sentença por reporte à oposição do insolvente.
X. Por outro lado, sobre esta matéria também incidiram as declarações/depoimento de parte do insolvente e o depoimento da testemunha EE, que esclareceram os contornos do negócio e que o prédio em causa pertencia à herança de seus pais e não ao insolvente em exclusivo ou a título pessoal.
XI. Impõe-se, assim, a alteração da resposta dada ao indicado ponto de facto, dando-se como provado que: “22. Em 11/11/2020, os herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai CC (o insolvente detinha um quinhão hereditário correspondente a 1/8), alienaram o prédio descrito sob o n.º ...19/... a favor de DD, pelo valor de € 5.000,00 pago através de transferência bancária - doc. 9.”
XII. Quanto aos pontos 28, 29 e 30 dos factos provados, os aludidos pontos da matéria de facto dada como provada não são factos, mas conclusões extraídas de um documento elaborado num outro processo, nessa sede impugnado, e cuja matéria nem aí foi dada como assente ou provada.
XIII. As conclusões vertidas nos pontos 28, 29 e 30 dos factos provados resultam de um documento elaborado num outro processo, onde foi impugnado, e sobre o qual versou o julgamento realizado no processo n.º 1515/21...., e sem que haja decisão transitada em julgado.
XIV. Encontrando-se pendente o processo de qualificação da insolvência da empresa EMP02... (proc. 1515/21....), entende o Recorrente que os factos que foram discutidos no âmbito desse processo não poderão ser discutidos novamente nos presentes autos, nem aqui ser dados como provados.
XV. Para além de não constituírem factos, mas conclusões, não são passíveis de serem extrapolados para os presentes autos sob o manto de “factos provados”, o que constituiria uma duplicação de julgamentos sobre a mesma matéria e possibilidade de dupla condenação com base nos mesmos factos, pelo que não pode o Recorrente ser julgado, no âmbito da sua insolvência pessoal, por factos já antes julgados e relativos à insolvência da sociedade sua representada.
XVI. Em face do exposto, impõe-se a eliminação, do elenco dos factos provados, dos pontos 28, 29 e 30 dos factos provados.
Sem prejuízo de tudo quanto supra vai expendido:
VII. Independentemente da procedência da impugnação deduzida quanto à matéria de facto, que os factos provados impunham, por si só, a prolação de decisão de improcedência do incidente de qualificação de insolvência, pois os mesmos não preenchem qualquer das alíneas a) e d) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, identificadas na fundamentação de direito da sentença.
VIII. Prevê a alínea a) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, aplicável às pessoas singulares por remissão do n.º 4 do mesmo artigo, que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor.
IX. Vem aí consagrada uma presunção para a qual é necessário que estejam preenchidos certos requisitos, os quais deverão ser sustentados através de concreta matéria dada como provada.
X. A sentença nada refere quanto aos concretos factos que considerou provados e que no seu entender preenchem a referida alínea, daí a supra invocada nulidade da sentença por falta de fundamentação e da violação do direito de defesa e ao recurso.
XI. Todavia, sem prejuízo da invocada nulidade, no caso concreto, tendo por base os atos de alienação vertidos nos factos provados, só poderá ter-se em conta, com base nos atos elencados na alínea a), os termos “ocultar” e fazer “desaparecer o seu património”.
XII. Dos factos provados resulta, por inteiro, que o produto da venda dos vários bens foi utilizado para pagar aos seus credores, pelo que estamos perante a venda de bens cujos valores recebidos foram, integralmente, refletidos na contabilidade da insolvente e afetos ao pagamento aos seus credores.
XIII. Em concreto, quanto ao prédio indicado no item 2. dos factos provados, tratava-se da casa de morada de família do insolvente, que foi construída por si e pela sua esposa, com recurso a crédito bancário, sendo o referido imóvel um bem comum do extinto casal (uma vez que nessa data já se encontravam divorciados), e foi vendido por ambos; – cfr. itens 2. e 3. Os factos provados da oposição.
XIV. Mais resulta dos factos provados - itens 4. a 17 referentes à oposição – que cabia metade do produto da venda a cada um dos cônjuges, tendo o insolvente destinado o seu quinhão à liquidação, em exclusivo, de créditos hipotecários e garantidos por penhora, nomeadamente a dívida proveniente do crédito habitação, que na data da venda ascendia ao valor de € 94.597,09, bem como ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P, no valor de € 51.252,38 e à sociedade “EMP03..., SA” no valor de € 35.838,65.
XV. Quanto ao produto da venda dos prédios descritos sob os n.º ...67 e ...15 da freguesia ... (...) (do qual o insolvente detinha 1/8) a favor da sociedade denominada “EMP01..., Lda.” – indicado no item 10. dos factos provados -, aquando da venda encontravam-se hipotecados a favor do credor FF, tendo a globalidade do valor da venda sido entregue diretamente ao credor hipotecário, contra a entrega do distrate e do cancelamento das penhoras; - cfr. itens 18 a 32 dos factos provados referentes à oposição.
XVI. Por seu turno, quanto ao prédio descrito sob o n.º ...19/..., do qual o insolvente detinha um quinhão de 1/8, foi vendido a DD pelo valor de € 5.000,00, tendo o produto da venda revertido na sua totalidade para a mãe do insolvente para fazer face às suas despesas correntes e de saúde – cfr. itens 33 a 35 dos factos provados referentes à oposição.
XVII. Ou seja, no caso em apreço não estamos perante uma situação onde não se conheça o paradeiro dos bens vendidos, e pelo que não se poderá falar na “ocultação” dos mesmos, nem em que, por virtude dessas vendas, os credores tenham ficado privados dos proventos assim obtidos.
XVIII. Aliás, com o produto destas vendas, o recorrente não se apropriou de tais valores nem utilizou estes valores para um outro fim, estando provado que o valor foi utilizado unicamente para o pagamento das dívidas do insolvente.
XIX. Deve ser assim entendido, face as particularidades em apreço, que não se mostram preenchidos os requisitos previstos no artigo 186.º, n.º 2, al. a), do CIRE, para que a insolvência em análise possa ser qualificada como culposa, pois o insolvente não destruiu, danificou, inutilizou, ocultou, ou fez desaparecer, no todo ou em parte considerável, o seu património.
XX. Acrescenta o Tribunal, que o insolvente, com o produto da venda e o pagamento de certas dívidas, acaba por beneficiar certos credores em prejuízo de outros, pondo assim em causa o princípio da igualdade dos credores que se deve impor ao plano de insolvência, tal como se encontra previsto do artigo 194º do CIRE.
XXI. Salvo o devido respeito por opinião contrária, vem sendo entendimento jurisprudencial que quando o produto da venda não é utilizado para liquidar todas as dívidas, é necessário provar quais os créditos que foram satisfeitos, se eram comuns ou privilegiados e qual a ordem pela qual tenham sido graduados.
XXII. Sucede que, nesta parte, nada resulta da factualidade dada como provada, pelo que inexistindo sentença de verificação ou graduação de créditos, não poderá a sentença concluir que o Recorrente beneficiou certos credores em prejuízo de outros. Pelo contrário, fazendo esse raciocínio lógico, chegar-se-ia à conclusão, ainda que insegura e aqui inadmissível, que atentas as garantias de que beneficiavam os credores que receberam o produto das vendas, que os mesmos seriam pagos com preferência sobre os demais, caso os bens fossem apreendidos e vendidos na insolvência.
XXIII. De todo o modo, o certo é que da factualidade dada como provada não se pode concluir que o recorrente tenha beneficiado qualquer credor ou classe de credores, em prejuízo de outros, apenas se apurando que usou o produto das vendas para pagamento aos credores, o que, sublinhe-se, é insuficiente para se concluir se existe ou não, violação das regras que determinariam a graduação de créditos.
XXIV. A própria sentença afasta qualquer má-fé do Recorrente, acabando por concluir que o insolvente agiu com “…a melhor das intenções…”.
XXV. Termos em que deverá considerar-se que os factos provados não preenchem a presunção consagrada na alínea a) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, com as legais consequências.
XXVI. Por seu turno, prevê a alínea d) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, aplicável às pessoas singulares por remissão do n.º 4 do mesmo artigo, que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
XXVII. Tal como referido para a alínea anterior, também neste caso vem consagrada uma presunção para qual é necessário que estejam preenchidos certos requisitos, os quais deverão ser sustentados através de concreta matéria dada como provada.
XXVIII. No caso concreto, também a sentença nada refere quanto aos concretos factos que considerou provados e que no seu entender preenchem a referida alínea d) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, trazendo-se novamente à colação a invocada nulidade da sentença por falta de fundamentação e violação do direito de defesa e ao recurso.
XXIX. De qualquer modo, e sem prejuízo da invocada nulidade, neste caso, o legislador exige que o ato de disposição do bem seja feito em proveito pessoal do devedor ou de terceiros, sendo necessário apurar factos que o demonstrem, não bastando provar que houve a prática de um ato de venda realizada pelo devedor sobre aquele concreto bem.
XXX. Tendo em conta os atos de disposição mencionados no elenco dos factos provados, com as alterações decorrentes da procedência da impugnação deduzida quanto à matéria de facto, nenhum facto provado conduz à conclusão que dos atos de alienação tenha resultado um proveito pessoal do devedor ou de terceiros.
XXXI. Conforme resulta da sentença, dos atos de alienação resultou sempre a intenção de pagar dívidas, nada mais, não resultando da factualidade provada que o devedor tivesse intenção de obter proveitos próprios injustificados, ou conceder proveitos a terceiros.
XXXII. Apesar de terem sido dados como provados determinados atos de alienação, aliás prontamente confessados na petição inicial de apresentação à insolvência, de nenhum dos atos de alienação resulta demonstrado um proveito pessoal do devedor ou de terceiros, não existindo factos provados dos quais pudesse resultar que dos atos de disposição o devedor tenha beneficiado alguns credores em detrimento de outros.
XXXIII. Não havendo sentença de graduação e verificação de créditos, não é possível extrapolar dos factos provados a conclusão, vertida na parte final da sentença, de que o devedor “…beneficiou alguns credores, em detrimento de outros, o que, de forma necessária e adequada, frusta a satisfação destes restantes credores da insolvência.”, pois nada foi provado quanto aos concretos credores afetados por esse suposto benefício/prejuízo.
XXXIV. Por outro lado, e quanto ao “proveito”, a jurisprudência considera, por exemplo, necessário apurar se esses bens foram realizados pelo um preço inferior ao mercado, beneficiando assim os terceiros por uma compra patrimonial significativa, pelo um preço vantajoso para estes. (Veja-se os Acórdãos do T.R.G, Proc. 1046/16.2T8GMR-B.G1, 01/06/2017 e Proc.2622/19.7T8VNF-B.G1, 09.07.2020, ambos in DGSI.)
XXXV. No caso concreto verifica-se que os bens em causa foram vendidos pelo preço de mercado ou por valor superior a este, não havendo qualquer proveito de terceiros, e bem assim que os produtos das vendas se destinaram ao pagamento aos credores, não subsistindo qualquer proveito ou benefício para o devedor.
XXXVI. Termos em que deverá considerar-se que os factos provados não preenchem a presunção consagrada na alínea d) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, com as legais consequências.
XXXVII. Deverá a sentença que antecede ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente o incidente de qualificação de insolvência, julgando-a fortuita, com as legais consequências.

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O credor requerente apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Também o Ministério Público contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO MÉRITO DO RECURSO

1. Definição do objeto do recurso

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil (CPC).
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, as questões a decidir são as seguintes:
. Nulidade da sentença nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 615º do CPC;
. Reapreciação da decisão de facto;
. Do não preenchimento das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE.
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2. Da alegada nulidade da sentença

Nas suas alegações recursórias o apelante advoga, desde logo, que o ato decisório sob censura enferma do vício de nulidade, que reconduz à previsão da alínea b) do nº 1 do art. 615º do CPC.
A este propósito refere que a sentença padece de défice de fundamentação de direito, pois não concretiza quais os factos provados que preenchem a previsão das als. a) e d) do nº 2 do art. 186º do CIRE.
 
Dispõe o citado art. 615º, na al. b) do seu nº 1 que “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Como refere TEIXEIRA DE SOUSA[1], esta causa de nulidade verifica-se «quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (art. 208º, n.º 1, CRP; art. 158º, n.º 1)». E, acrescenta o mesmo autor, «o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível».
No mesmo sentido militam ainda LEBRE DE FREITAS et alii[2] quando afirmam que «há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação».
Neste conspecto mostram-se, como sempre, proficientes as considerações de ALBERTO DOS REIS[3] para quem «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade (…). Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do n.º 2 do art. 668° [a que corresponde a atual al. b) do nº 1 do art. 615º]».
Deste modo, face à doutrina exposta, conclui-se que a nulidade da sentença com o aludido fundamento não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final.
Assim, se a decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância contiver os elementos de facto e de direito suficientes para a declaração dos fundamentos da decisão final, não há falta de motivação.
Ora, procedendo à análise do ato decisório sob censura, não se antolha em que medida o mesmo enferme do apontado vício, posto que nele a juiz a quo revelou as razões de facto (enunciando quer a materialidade que considerou provada, quer a facticidade que entendeu não ter logrado demonstração) e de direito que conduziram a concluir pela natureza culposa da insolvência do devedor à luz do disposto nas alíneas a) e d) do nº 2 do art. 186º CIRE.
 Poder-se-á, é facto, não se concordar com o sentido decisório assim sufragado na sentença recorrida. No entanto, tal não consubstancia vício formal que importe a nulidade desse ato decisório, constituindo, quando muito, erro de julgamento.
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3. Recurso da matéria de facto
3.1. Factualidade considerada provada na sentença

Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:

1. BB, NIF ...34..., residente na Rua .... ... ..., foi declarado insolvente nos autos de insolvência com o n.º 6978/21...., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – ... - Juízo de Comércio - Juiz ....
2. Em 25/03/2021 o insolvente (juntamente com a sua ex-mulher) alienou o prédio descrito sob o n.º ...87/... a favor da sociedade denominada “EMP04..., Lda.”.
3. Este prédio foi alienado pelo valor de € 230.000,00, valor este pago através da emissão de sete cheques bancários (doc. 1):
- cheque emitido à ordem de BB, no montante de 11.655,94€;
- cheque emitido à ordem de GG, no montante de 11.655,94€;
- cheque emitido à ordem de HH, no montante de 25.000,00€;
- cheque emitido à ordem de EMP03..., S.A., no montante de 18.000,00€
- cheque emitido à ordem de EMP03..., S.A., no montante de 17.838,65€
- cheque emitido à ordem de BB, no montante de 94.597,09€;
- cheque emitido à ordem de Instituto Gestão Financeira Segurança Social, no montante de € 51.252,38;
4. Sobre este prédio foram constituídas hipotecas voluntárias a favor do Banco 1..., S.A. nos anos de 2004 e 2006 e foi registada uma penhora da “EMP03..., S.A.” em 13/10/2020 no âmbito do processo executivo n.º 1434/20.... - doc. 2.
5. A dívida ao Banco 1..., S.A. ascendia a € 94.597,09 e foi liquidada através do cheque do mesmo valor emitido a seu favor - doc. 3.
6. A dívida à “EMP03..., S.A.” foi liquidada através de dois cheques de valor de € 18.000,00 e € 17.838,65 emitidos a favor desta sociedade.
7. Tal advém de uma letra de câmbio no valor de € 30.000,00 emitida pela sociedade “EMP05..., Lda.” e avalizada pelo insolvente - doc. 5.
8. A dívida à Segurança Social, que detinha uma hipoteca voluntária registada a seu favor (doc. 4), foi liquidada através do cheque no valor de € 51.252,38.
9. As hipotecas voluntárias referidas, como a penhora, foram canceladas em 05/04/2021.
10. Em 15/02/2021 o insolvente alienou, conjuntamente com os restantes titulares e herdeiros do prédio (o insolvente era apenas titular de 1/8), os prédios descritos sob os nºs ...67 e ...15 da freguesia ... (...) a favor da sociedade denominada “EMP01..., Lda.”
11. Os referidos prédios foram alienados pelo valor de € 500.000,00 pago através de cheque bancário emitido a favor do credor hipotecário FF - doc. 6.
12. Sobre este prédio incidia uma hipoteca voluntária a favor do Banco 1... constituída no ano de 2002 para garantia de dívidas da sociedade “EMP05..., Lda.” e uma hipoteca voluntária a favor da Banco 2... constituída no ano de 2017 para garantia de dívida da sociedade “EMP02..., Lda.” - doc. 7.
13. No ano de 2018, a sociedade “EMP05..., Lda.” começou a incumprir algumas prestações perante o Banco 1... e a Banco 2... - doc. 3.
14. Tendo o insolvente e os seus familiares recorrido a um empréstimo junto do Senhor FF no valor global de € 666.000,00 e constituído hipoteca voluntária sobre os imóveis para garantia de pagamento.
15. Com esse empréstimo liquidaram as dívidas ao Banco 1... e à Banco 2....
16. As hipotecas constituídas a favor destas entidades foram canceladas em 21/11/2018, data em que foi registada a hipoteca voluntária a favor de FF.
17. FF instaurou processo executivo n.º 2282/20.... peticionando o pagamento de cerca de € 700.000,00 tendo sido penhorados os imóveis dados de garantia.
18. “EMP01..., Lda.” emitiu um cheque bancário de € 500.000,00 a favor de FF, que aceitou reduzir o seu crédito ao valor recebido.
19. O crédito do Senhor FF encontra-se titulado através de escritura de confissão de dívida e mútuo com hipoteca realizada em 14/11/2018 - doc. 8.
20. Nessa escritura, II, JJ e marido KK, EE e mulher LL, BB e mulher GG confessaram-se devedores de FF da quantia de 666.000,00.
21. Tal empréstimo foi efetuado em várias tranches em numerário ao longo dos anos de 2014, 2015, 2016 e primeiro semestre de 2017. € 344.479,21 foram emprestados em 2018 através do pagamento de dívida ao Banco 1... no valor de € 149.877,21 (transferência bancária), do pagamento de dívida à Banco 2... no valor de € 99.602,00 (transferência bancária), e transferência bancária no valor de € 95.000,00.
22. Em 18/11/2020, o insolvente (juntamente com os restantes herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC) alienou o prédio descrito sob o n.º ...19/... a favor de DD pelo valor de € 5.000,00 pago através de transferência bancária - doc. 9.
23. O produto da venda do prédio foi utilizado para fazer face a despesas correntes e de saúde da sua mãe.
24. O insolvente era sócio e gerente das sociedades denominadas “EMP02..., Lda.”, NIPC ...03, e “EMP05..., Lda.”, NIPC ...44.
25. A sociedade denominada “EMP02..., Lda.” foi declarada insolvente no processo n.º 1515/21.... que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Comércio de ... - Juiz ... em 19/03/2021 - doc. 10.
26. A sociedade denominada “EMP05..., Lda.” foi declarada insolvente no processo n.º 2824/21.... que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Comércio de ... - Juiz ... em 21/05/2021 - doc. 11.
27. A totalidade do passivo reclamado e reconhecido nos presentes autos advém da assunção pessoal de dívidas contraídas para “benefício” das sociedades “EMP02..., Lda.” e “EMP05..., Lda.”, passivo esse que ascende a € 787.970,84.
28. No âmbito do processo de insolvência da sociedade “EMP02..., Lda.” foi elaborado relatório de peritagem no qual o Sr. perito conclui que a sociedade obteve sempre, nos anos de 2017 a 2020, resultados líquidos positivos - doc. 12 - e não existiam, nesse mesmo período, quaisquer dívidas dos clientes, à exceção dos resultados trânsitos negativos acumulados de 2012 a 2017 (no valor de € 80.094,79), a sociedade possuía um desempenho económico-financeiro que lhe permitia passar ao lado de qualquer situação de insolvência.
29. Refere também o Senhor perito que a sociedade “EMP05..., Lda.” era devedora da “EMP02..., Lda.”, no ano de 2019, da quantia de € 150.239,41, e que em 31/12/2020 a dívida ascendia ao valor de € 387.643,86, sendo que, da consulta dos documentos que suportam esses créditos, verificou que, na grande maioria, não existiam e, nos casos em que existiam, tratavam-se apenas de meras notas de lançamento manuais.
30. Sendo que na contabilidade da empresa “EMP02..., Lda.” não existiam comprovativos de meios de pagamento ou transferência de que esses valores tenham efetivamente sido entregues à sociedade “EMP05..., Lda.”.
31. O passivo reconhecido nos presentes autos ascende a € 787.970,84.
Da oposição
1. O aqui Oponente foi citado, em 14.04.2022, da qualificação da insolvência como culposa, para no prazo de 15 (quinze) dias, se opor, querendo, àquela qualificação. – Cfr. doc. 1.
2. O prédio descrito sob o n.º ...87/..., tratava-se da casa de morada de família do oponente, a qual foi construída por este e pela sua esposa, com recurso a crédito bancário.
3. O referido imóvel era um bem comum do extinto casal (uma vez que nessa data já se encontravam divorciados), e foi vendido por ambos.
4. O pagamento efetuado pelo comprador do referido imóvel, no valor de € 11.655,94 a GG (ex-mulher do aqui oponente), corresponde a uma parte da sua quota parte na venda da casa de morada de família, bem comum do extinto casal.
5. Quanto ao cheque no valor de € 11.655,94 (onze mil, seiscentos e cinquenta e cinco euros e noventa e quatro cêntimos) emitido em nome do aqui oponente, foi a única verba que este efetivamente recebeu pela venda do prédio registado sob o artigo ...87/....
6. E utilizou tal quantia para pagamentos das suas despesas correntes, nomeadamente para alimentação, vestuário, saúde e para regularização das pensões de alimentos e despesas extraordinárias de saúde e educação ao seu filho menor, MM, as quais se encontravam vencidas e não pagas desde novembro de 2020. – doc. n.º 1 junto com a petição inicial de insolvência.
7. Relativamente ao cheque no valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) foi efetivamente para pagar uma dívida ao pai da ex-mulher do oponente, NN, proveniente de empréstimos que este concedeu à sua filha.
8. Tal quantia não foi paga pelo aqui oponente, mas sim com o produto da venda da quota parte do imóvel que pertencia à sua ex mulher.
9. Em virtude da venda do prédio descrito sob o artigo ...87/... foram pagas diversas dívidas como já se esclareceu anteriormente, sendo que a única dívida que era da responsabilidade da ex-mulher do oponente era a dívida proveniente do crédito habitação que ao dia da escritura de compra e venda ascendia ao valor de € 94.597,09.
10. As restantes dívidas pagas, concretamente ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P, no valor de € 51.252,38 e à sociedade “EMP03..., SA” no valor de € 35.838,65 (totalizando € 87.091,03) eram da responsabilidade apenas do Oponente, porque derivam de responsabilidades/avais prestados exclusivamente por este (e à revelia da sua ex-mulher) às sociedades de que era gerente.
11. Tendo em conta o exposto resulta que o Oponente teria da sua responsabilidade que liquidar metade do crédito bancário - € 47.298,54, acrescido das dívidas da sua exclusiva responsabilidade (Instituto Segurança Social e EMP03...).
12. Por seu lado, a ex-mulher do Oponente apenas teria de liquidar da sua responsabilidade metade do crédito bancário no valor de € 47.298,54 e € 25.000,00 referente a vários empréstimos que tinham sido concedidos pelo seu pai.
13. A ex-mulher do Oponente concordou efetuar os referidos pagamentos em seu claro prejuízo e ainda permitiu que o Oponente ficasse em seu poder com a quantia de € 11.655,94 (onze mil, seiscentos e cinquenta e cinco euros e noventa e quatro cêntimos) para as suas despesas correntes, pois bem sabia das enormes dificuldades financeiras que este atravessava.
14. No que concerne à casa de morada de família, sita na Rua ..., ... ..., após a celebração da escritura de compra e venda à empresa EMP04..., LDA, nunca mais o Oponente ou a sua ex-mulher voltaram a entrar na referida habitação, tendo entregue as chaves da mesma ao respetivo comprador, na data da venda.
15. O Oponente foi viver com a sua mãe para uma casa arrendada sita na freguesia ... e a sua ex-mulher e filho foram viver para um apartamento sito na Rua ..., freguesia ..., concelho .... cfr. recibos de renda que ora se juntam como doc.s 2 e 3.
16. Os comprovativos desses pagamentos foram juntos pela empresa compradora, sociedade “EMP04..., LDA”, cujos cheques bancários foram passados diretamente aos credores.
17. O cheque bancário no valor de € 94.597,09 foi emitido à ordem do Oponente mas foi entregue ao representante do Banco 1..., S.A., no dia da escritura contra a entrega do distrate das hipotecas voluntárias, pois o preço da venda desse imóvel foi destinado a liquidar dívidas contraídas pelo Oponente e que se encontravam garantidas por hipotecas e penhoras.
18. O oponente, juntamente com os seus familiares, eram sócios gerentes das sociedades “EMP02..., Lda.” e “EMP05..., Lda.”
19. Tais sociedades atravessaram sérias dificuldades económicas e, com o intuito de salvar as referidas empresas, o aqui oponente, juntamente com os seus familiares, contraíram empréstimos pessoais para liquidar dívidas das empresas e deram avais pessoais a vários credores destas.
20. No ano de 2018 a sociedade EMP05..., Lda., começou a incumprir com o pagamento de algumas prestações perante o Banco 1... e a Banco 2....
21. Perante tal cenário, o Oponente e seus familiares recorreram a um empréstimo junto de um particular, o Senhor FF, no valor de € 666.000,00 (seiscentos e sessenta e seis mil euros), dando como garantia de hipoteca os seguintes imóveis:
A. Prédio misto, composto por edifício de 2 pavimentos e arrecadações que servem para comércio, habitação e salão de exposição – 583 metros quadrados, e logradouro com 580 metros quadrados e terreno com 2050 metros quadrados, sito na Rua ..., freguesia ..., ..., inscrito na matriz predial urbana no artigo ...10º e na matriz rustica no artigo ...27º e descrito na Conservatória do Registo Predial no nº ...67/....
B. Prédio urbano, composto pavimento, telheiro que serve a indústria e logradouro, destinado a arrecadações e arrumos, sito na Rua ..., freguesia ..., ..., inscrito na matriz predial urbana no artigo ...14º e descrito na Conservatória do Registo Predial no nº ...15/....
22. Com a quantia mutuada liquidaram a totalidade das dividas perante as referidas instituições bancárias, no valor global de € 344,479,21 (trezentos e quarenta e quatro mil, quatrocentos e setenta e nove euros e vinte e um cêntimos), bem como ainda conseguiram regularizar algumas dívidas perante fornecedores.
23. Apesar de todos os esforços do Oponente e familiares a verdade é que não foi possível cumprir com o acordo celebrado com o credor hipotecário, FF.
24. Em virtude desse incumprimento, o credor hipotecário instaurou processo executivo contra o aqui oponente e familiares, onde peticionou a quantia global de € 697.294,17 (seiscentos e noventa e sete mil, duzentos e noventa e quatro euros e dezassete cêntimos). cfr. citação com título executivo que ora se junta como doc. n.º 4.
25. No âmbito do referido processo executivo foram penhorados os bens dados de garantia e melhor identificados supra. cfr. doc. 5.
26. A mãe do aqui oponente (titular do quinhão de 5/8), II, pessoa de idade avançada e que padece de vários problemas de saúde, começou a ficar muito inquieta e perturbada com o incumprimento perante o credor hipotecário e com a possibilidade de ficar sem os imóveis e consequentemente sem a sua casa de morada de família, tentou obter um comprador para os referidos imóveis, de modo a pagar ao credor hipotecário (única dívida de que possuía), e assim, evitar que os imóveis fossem vendidos no âmbito do processo executivo a preço de “saldos”.
27. Neste sentido, a mãe do Oponente angariou um potencial comprador e exigiu que os restantes herdeiros, seus filhos, de entre os quais o aqui oponente (titular do quinhão de 1/8), vendessem os referidos imóveis para liquidação da dívida ao credor hipotecário.
28. O credor hipotecário em virtude do incumprimento exigia o pagamento da quantia de cerca de € 700.000,00, acrescidas das despesas prováveis no valor de € 34.864,71, ou seja, um valor muito superior ao valor real dos referidos imóveis, correndo o Oponente e familiares sérios riscos de não conseguirem saldar a dívida ao credor hipotecário com o produto da venda dos mesmos. cfr. doc.s 4 e 5 supra juntos.
29. Após obter um interessado na aquisição dos aludidos imóveis, foi possível negociar com o credor hipotecário, o qual aceitou reduzir a dívida exequenda ao valor de 500.000,00 (quinhentos mil euros).
30. A mãe do Oponente ainda conseguiu negociar com o comprador a possibilidade de celebrar um contrato de arrendamento para habitação, referente apenas ao imóvel onde se encontrava a residir (casa de morada de família), de modo a não ser despejada com a venda dos referidos imóveis.
31. No dia dez de fevereiro de 2021 foi celebrada a escritura de compra e venda dos imóveis que se encontravam hipotecados e penhorados à ordem do credor FF, pelo valor global de € 500.000,00 (quinhentos mil euros).
32. O preço da venda foi entregue diretamente ao credor hipotecário, contra a entrega do distrate e do cancelamento das penhoras.
33. Porque o aqui Oponente apenas era titular de um quinhão hereditário correspondente a 1/8, e face à insistência dos seus familiares, em especial da sua mãe, que é uma pessoa idosa e doente, e que viu o seu estado de saúde a degradar-se dia após dia com a situação do processo executivo, decidiu vender os imóveis de modo a liquidar ao credor hipotecário.
34. O mesmo aconteceu com a venda do prédio rústico descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o n.º ...19/..., em que a mãe do Oponente decidiu vender o referido imóvel, de parco valor económico, ao Senhor DD, pelo valor de e 5.000,00 (cinco mil euros), para fazer face às despesas e cuidados de saúde diários que necessitava.
35. O produto da venda reverteu na sua totalidade para a mãe do oponente, para fazer face às suas despesas correntes e de saúde.
36. Ambas as empresas foram declaradas insolventes.
37. No âmbito da Insolvência da sociedade EMP05..., Lda., não foi aberto o incidente de qualificação de insolvência.
38. Já quanto à sociedade EMP02..., Lda., foi, de facto, aberto o incidente de insolvência culposa e existe parecer a qualificar tal insolvência como culposa.
*
3.2. Factualidade considerada não provada na sentença

O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:

44. Assim, contrariamente ao que vem alegado no relatório do Sr. AI, o oponente não dissipou o seu património com o intuito de se furtar ao pagamento aos credores – conclusivo (cls).
45. Pelo contrário, a venda do referido imóvel teve como único objetivo pagar aos credores, os quais possuíam garantias reais sobre o referido imóvel.(cls)
46. Não tendo o oponente beneficiado quaisquer credores, uma vez que estes, em virtude das garantias reais que possuíam, sempre seriam os primeiros a ser pagos pelo produto da venda do referido imóvel.(cls.)
47. Aliás, mesmo que a venda do referido imóvel não tivesse sido realizada pelo oponente mas realizada pelo Sr. AI no âmbito da liquidação do ativo, o resultado seria o mesmo, porquanto os credores a quem foram pagos os créditos, tinham garantias reais.(cls)
48. Aliás, o aqui oponente sempre agiu de boa fé, nunca tendo ocultado a mencionada venda, e prova disso mesmo, é o facto de, quando se apresentou à insolvência, ter dado conhecimento desse facto ao processo.(cls)
55. Porquanto, o aqui oponente sempre acreditou que conseguiriam reverter a situação e recuperar as empresas.(cls)
73. Esta venda ocorreu ainda pelo simples facto do Oponente e familiares não possuírem dinheiro para procederem à limpeza da bouça, tal como estavam legalmente obrigados. (venda referida em 34 da oposição)
79. Contudo, foi deduzida a competente oposição e encontrando-se tais autos a aguardar a prolação da Sentença.
80. Ora, o Sr.AI traz à colação aos presentes autos, os factos que estiveram na origem do processo de qualificação como culposa da empresa EMP02..., (pretendendo-se por via dela afetar os gerentes, onde se inclui o aqui oponente), nomeadamente o relatório de peritagem efetuado à contabilidade da empresa EMP02... no âmbito desse processo, vertendo para o parecer que apresenta nos presentes autos, conclusões vertidas em tal relatório de peritagem, e alicerçando-se em tal relatório pericial para concluir pela qualificação como culposa da insolvência pessoal do aqui oponente.
81. Ora, com o devido respeito, tal é legalmente inadmissível. (cls)
82. Porquanto, encontrando-se pendente o processo de qualificação da insolvência como culposa da empresa EMP02..., da qual o aqui oponente foi gerente, e ao qual deduziu oposição, os factos que estiveram na base desse processo não poderão ser discutidos nos presentes autos, nem servir de fundamento aos presentes autos, sob pena de o aqui oponente estar a ser julgado duas vezes pelos mesmos factos.
83. Assim, contrariamente ao que se pretende fazer crer, o oponente e os seus familiares nunca se apoderaram de qualquer quantia que pertencesse às referidas sociedades.
84. Nem tão pouco dissipou património de forma a furtar-se ao pagamento ao seus credores.(cls)
85. Antes pelo contrário, todo o produto da venda do seu património pessoal, destinou-o ao pagamento aos credores,
86. Pelo que não se verificou qualquer prejuízo aos credores. (cls)
87. Nem tão pouco foram beneficiados uns credores, em detrimento de outros, porquanto, os credores que foram pagos pelo produto da venda dos seus bens pessoais possuíam garantias reais sobre os imóveis alienados.(cls)
88. Assim, a situação em que o oponente se encontra não se fundou em culpa pessoal mas antes em todo o circunstancialismo supra melhor descrito. (cls)
***
3.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto

Nas conclusões recursivas veio o apelante requerer a reapreciação da decisão de facto em relação a um conjunto de factos julgados provados, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Como é consabido, o art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:

1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”.

O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expressa a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.

No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e o apelante impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar e decisão que sugere, mostrando-se, assim, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação dessa decisão.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º do CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “ […] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[4], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[5]
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil.
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[6].
Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão ao apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele preconizados.
Como emerge das respetivas conclusões recursivas, o recorrente advoga que: (i) deve ser alterada a redação dos factos provados nºs 10 e 22; (ii) devem ser eliminados do elenco dos factos provados as afirmações de facto vertidas nos pontos nºs 28, 29 e 30 dos factos provados.
Iniciaremos por analisar a discordância quanto aos factos provados nºs 10 e 22.

Nos referidos pontos de facto deu-se como provado que:
.“Em 15/02/2021 o insolvente alienou, conjuntamente com os restantes titulares e herdeiros (o insolvente era apenas titular de 1/8), os prédios descritos sob os n.º ...67 e ...15 da freguesia ... (...) a favor da sociedade denominada “EMP01..., Lda.” (ponto nº 10);
. “Em 18/11/2020, o insolvente (juntamente com os restantes herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC) alienou o prédio descrito sob o n.º ...19/... a favor de DD pelo valor de € 5.000,00 pago através de transferência bancária” (ponto nº 22).
Defende o apelante que a redação desses pontos deve ser alterada de molde a que os mencionados pontos de facto passem a ter, respetivamente, a seguinte redação:
. “Em 15/02/2021, os herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai CC (o insolvente detinha um quinhão de 1/8), alienaram os prédios descritos sob os nºs ...67 e ...15 da freguesia ... (...) a favor da sociedade denominada “EMP01..., Lda.”;
. “Em 11/11/2020, os herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai CC (o insolvente detinha um quinhão hereditário correspondente a 1/8), alienaram o prédio descrito sob o n.º ...19/... a favor de DD, pelo valor de € 5.000,00 pago através de transferência bancária.”
Compulsando os elementos probatórios juntos aos autos, máxime as escrituras públicas que ficaram a documentar os negócios translativos descritos nos referidos enunciados fácticos, verifica-se assistir, na verdade, razão ao apelante.
Com efeito, da exegese da escritura junta de fls. 51 e ss que documenta a compra e venda em causa resulta que o insolvente detinha um quinhão de 1/8 na herança aberta por óbito de seu pai, da qual faziam parte os prédios descritos sob os nºs ...67 e ...15 da freguesia ... (...), objeto da venda realizada a favor da sociedade denominada “EMP01..., Lda.”, não sendo aquele titular de 1/8 de tais bens, como se fez constar do facto provado nº10. Acresce que este facto nº 10 também enferma de lapso quanto à data da realização da escritura, dado que, como do aludido documento se extrai, a mesma teve lugar em 10.2.2021 e não em 15.2.2021.
Por sua vez, com relação à redação do facto nº 22, pela mesma ordem de ideias - ou seja, por tal resultar do conteúdo dos documentos juntos aos autos (doc. nº 9 junto com o parecer do AI e escritura pública junta de fls. 204 e ss) -, impõe-se a alteração da respetiva redação, quer quanto à data da escritura, quer no concernente à dimensão do direito de que o insolvente dispunha sobre a herança aberta por morte do pai do insolvente, a qual integra o bem objeto da venda.
Como assim, a redação dos mencionados pontos de facto deve ser alterada, passando a ter o seguinte teor:
. “Em 10/02/2021 o insolvente alienou, conjuntamente com os restantes titulares e herdeiros da herança aberta por óbito de seu pai, CC (sendo o quinhão do insolvente de 1/8), os prédios descritos sob os n.º ...67 e ...15 da freguesia ... (...) a favor da sociedade denominada “EMP01..., Lda.” (ponto nº 10);
. “Em 11/11/2020, o insolvente (juntamente com os restantes herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai, CC, ascendendo o respetivo quinhão a 1/8) alienaram o prédio descrito sob o n.º ...19/... a favor de DD pelo valor de € 5.000,00 pago através de transferência bancária” (ponto nº 22).
*
Resta, por conseguinte, determinar se existe válido fundamento para a impetrada alteração da materialidade acolhida nos pontos nºs 28, 29 e 30 dos factos provados que o apelante considera ter sido erroneamente apreciada.

Nos referidos pontos considerou-se provado que:
. “No âmbito do processo de insolvência da sociedade “EMP02..., Lda.” foi elaborado relatório de peritagem no qual o Sr. perito conclui que a sociedade obteve sempre, nos anos de 2017 a 2020, resultados líquidos positivos - doc. 12 - e não existiam, nesse mesmo período, quaisquer dívidas dos clientes, à exceção dos resultados trânsitos negativos acumulados de 2012 a 2017 (no valor de € 80.094,79), a sociedade possuía um desempenho económico-financeiro que lhe permitia passar ao lado de qualquer situação de insolvência”. (ponto nº 28);
. “Refere também o Senhor perito que a sociedade “EMP05..., Lda.” era devedora da “EMP02..., Lda.”, no ano de 2019, da quantia de € 150.239,41, e que em 31/12/2020 a dívida ascendia ao valor de € 387.643,86, sendo que, da consulta dos documentos que suportam esses créditos, verificou que, na grande maioria, não existiam e, nos casos em que existiam, tratavam-se apenas de meras notas de lançamento manuais.” (ponto nº ...9);
. “Sendo que na contabilidade da empresa “EMP02..., Lda.” não existiam comprovativos de meios de pagamento ou transferência de que esses valores tenham efetivamente sido entregues à sociedade “EMP05..., Lda.” (ponto nº 30).
Relativamente a tais proposições argumenta o apelante que as mesmas não deverão constar do elenco dos factos provados, na justa medida em que correspondem a factos não atinentes ao insolvente, mas antes a factos discutidos no âmbito do processo insolvencial de sociedade de que é gerente (que corre seus termos sob o n.º 1515/21.... do Juízo de Comércio de ...), sendo que a realidade neles vertida se ancora em documentos elaborados nesse processo, tendo aí sido alvo de impugnação.
Também neste ponto assiste razão ao apelante por uma dupla ordem de razões: primeiramente, porque as afirmações de facto em crise não dizem diretamente respeito ao devedor insolvente mas antes a sociedade de que é gerente, sendo que a sua esfera jurídica goza de autonomia patrimonial relativamente ao acervo patrimonial desse ente societário; depois, porque, como deflui, designadamente do art. 620º do CPC, o eventual caso julgado formado sobre o substrato factual considerado como provado no processo de insolvência dessa sociedade não é transponível para o presente processo, posto que o mesmo somente produz efeitos dentro daquele processo.
Deste modo determina-se a eliminação dos pontos nºs 28 a 30 do elenco dos factos provados.
***
4. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como é consabido, o incidente de qualificação da insolvência é um instituto jurídico que foi introduzido no nosso ordenamento pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[7], presidindo a esta criação a declarada intenção de obter uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas coletivas.
Com esse desiderato, o seu art. 185º começa por indicar a finalidade do incidente: averiguar as razões que conduziram à situação de insolvência para qualificá-la numa das categorias tipificadas na lei. Desta forma, a insolvência pode ser culposa ou fortuita.
 No caso vertente, o tribunal a quo decidiu proceder à qualificação da insolvência como culposa, ancorando-se nas presunções estabelecidas nas alíneas a) e d) do nº 2 do art. 186º.
O referido julgamento é agora posto em crise pelo apelante, o qual advoga que não se encontra reunido o condicionalismo necessário para fazer operar as mencionadas presunções legais.
Quid juris?
O citado art. 186º, depois de no seu nº 1 fixar uma noção geral de insolvência culposa[8], estabelece nos seus nºs 2 e 3 um conjunto de presunções que assumem caráter taxativo.
Com efeito, para auxiliar a tarefa probatória, o CIRE veio consagrar o denominado duplo sistema de presunções legais[9], sendo que o nº 2 da referida norma contém um elenco de presunções juris et de jure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente; por seu turno, no nº 3 consagra-se um conjunto de presunções juris tantum de culpa grave desses administradores.
No concernente às presunções do primeiro tipo, a doutrina e jurisprudência claramente dominantes[10] vêm considerando que uma vez demonstrado o facto nelas enunciado (base da presunção), fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador (isto é, a insolvência será sempre considerada como culposa), sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento[11].
In casu, tendo em conta a vinculação temática definida pela sentença recorrida e pelas conclusões recursórias, apenas relevam as presunções estabelecidas nas alíneas a) e d) desse nº 2, onde se dispõe que «[c]onsidera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
. destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor (al. a))
. disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros (al. d))».
Portanto, para que seja despoletada a aplicação das presunções juris et de jure estabelecidas nos segmentos normativos transcritos (aplicáveis, com as necessárias adaptações, no caso de pessoa singular insolvente por mor do nº 4 do citado art. 186º), exige-se, na fatispecie normativa da al. a), que o devedor pratique atos de dissipação/danificação/ocultação do seu património, atos esses que resultem em prejuízo dos seus credores; por seu turno, na previsão da al. d), é pressuposta a prática de atos de disposição dos seus bens em benefício direto do próprio ou de terceiros, com o inerente prejuízo dos seus credores pela perda da garantia patrimonial que o seu património representa (cfr. art. 601º do Cód. Civil). Está-se, por conseguinte, em presença de comportamentos do insolvente que envolvem, por via direta ou indireta, efeitos negativos para o seu património, geradores ou agravantes da situação de insolvência, tal como a define o art. 3º.
Isto posto, cumpre então dilucidar se o quadro factual apurado é de molde a permitir densificar faticamente as previsões normativas das citadas als. a) e b) do nº 2 do art. 186º.
Com relevo para a decisão da questão que ora nos ocupa, resultou provado que:
. BB, NIF ...34..., residente na Rua .... ... ..., foi declarado insolvente nos autos de insolvência com o n.º 6978/21...., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – ... - Juízo de Comércio - Juiz ....
. Em 25/03/2021 o insolvente (juntamente com a sua ex-mulher) alienou o prédio descrito sob o n.º ...87/... a favor da sociedade denominada “EMP04..., Lda.”.
. Este prédio foi alienado pelo valor de € 230.000,00, valor este pago através da emissão de sete cheques bancários (doc. 1):
- cheque emitido à ordem de BB, no montante de 11.655,94€;
- cheque emitido à ordem de GG, no montante de 11.655,94€;
- cheque emitido à ordem de HH, no montante de 25.000,00€;
- cheque emitido à ordem de EMP03..., S.A., no montante de 18.000,00€
- cheque emitido à ordem de EMP03..., S.A., no montante de 17.838,65€
- cheque emitido à ordem de BB, no montante de 94.597,09€;
- cheque emitido à ordem de Instituto Gestão Financeira Segurança Social, no montante de € 51.252,38;
. Sobre este prédio foram constituídas hipotecas voluntárias a favor do Banco 1..., S.A. nos anos de 2004 e 2006 e foi registada uma penhora da “EMP03..., S.A.” em 13/10/2020 no âmbito do processo executivo n.º 1434/20.... - doc. 2.
. A dívida ao Banco 1..., S.A. ascendia a € 94.597,09 e foi liquidada através do cheque do mesmo valor emitido a seu favor - doc. 3.
. A dívida à “EMP03..., S.A.” foi liquidada através de dois cheques de valor de € 18.000,00 e € 17.838,65 emitidos a favor desta sociedade.
. Tal advém de uma letra de câmbio no valor de € 30.000,00 emitida pela sociedade “EMP05..., Lda.” e avalizada pelo insolvente - doc. 5. . A dívida à Segurança Social, que detinha uma hipoteca voluntária registada a seu favor (doc. 4), foi liquidada através do cheque no valor de € 51.252,38.
. As hipotecas voluntárias referidas, como a penhora, foram canceladas em 05/04/2021.
.Em 10/02/2021 o insolvente alienou, conjuntamente com os restantes titulares e herdeiros da herança aberta por óbito de seu pai, CC (sendo o quinhão do insolvente de 1/8), os prédios descritos sob os n.º ...67 e ...15 da freguesia ... (...) a favor da sociedade denominada “EMP01..., Lda.
. Os referidos prédios foram alienados pelo valor de € 500.000,00 pago através de cheque bancário emitido a favor do credor hipotecário FF - doc. 6.
. Sobre este prédio incidia uma hipoteca voluntária a favor do Banco 1... constituída no ano de 2002 para garantia de dívidas da sociedade “EMP05..., Lda.” e uma hipoteca voluntária a favor da Banco 2... constituída no ano de 2017 para garantia de dívida da sociedade “EMP02..., Lda.” - doc. 7.
. No ano de 2018, a sociedade “EMP05..., Lda.” começou a incumprir algumas prestações perante o Banco 1... e a Banco 2... - doc. 3.
. Tendo o insolvente e os seus familiares recorrido a um empréstimo junto do Senhor FF no valor global de € 666.000,00 e constituído hipoteca voluntária sobre os imóveis para garantia de pagamento.
. Com esse empréstimo liquidaram as dívidas ao Banco 1... e à Banco 2....
. As hipotecas constituídas a favor destas entidades foram canceladas em 21/11/2018, data em que foi registada a hipoteca voluntária a favor de FF.
. FF instaurou processo executivo n.º 2282/20.... peticionando o pagamento de cerca de € 700.000,00 tendo sido penhorados os imóveis dados de garantia.
. “EMP01..., Lda.” emitiu um cheque bancário de € 500.000,00 a favor de FF, que aceitou reduzir o seu crédito ao valor recebido.
. O crédito do Senhor FF encontra-se titulado através de escritura de confissão de dívida e mútuo com hipoteca realizada em 14/11/2018 - doc. 8.
. Nessa escritura, II, JJ e marido KK, EE e mulher LL, BB e mulher GG confessaram-se devedores de FF da quantia de € 666.000,00.
. Tal empréstimo foi efetuado em várias tranches em numerário ao longo dos anos de 2014, 2015, 2016 e primeiro semestre de 2017. € 344.479,21 foram emprestados em 2018 através do pagamento de dívida ao Banco 1... no valor de € 149.877,21 (transferência bancária), do pagamento de dívida à Banco 2... no valor de € 99.602,00 (transferência bancária), e transferência bancária no valor de € 95.000,00.
. Em 11/11/2020, o insolvente (juntamente com os restantes herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai, CC, ascendendo o respetivo quinhão a 1/8) alienaram o prédio descrito sob o n.º ...19/... a favor de DD pelo valor de € 5.000,00 pago através de transferência bancária.
 . O produto da venda do prédio foi utilizado para fazer face a despesas correntes e de saúde da sua mãe.
Tendo por base o descrito tecido fáctico, cumpre agora aferir se o mesmo é passível de legitimar conclusão no sentido de que se encontram reunidos os pressupostos normativos de que depende a qualificação da insolvência como culposa tendo por base as presunções contidas nas ditas als. a) e d).
O que esse substrato factual revela é que o insolvente procedeu à alienação do direito que detinha sobre os imóveis identificados em 2, 10 e 22 pelos montantes referidos nos pontos nºs 3, 11 e 22, importâncias essas que canalizou integralmente, não para proveito próprio ou de terceiros, mas antes para satisfação de alguns dos seus débitos, concretamente de créditos que, na sua essência, assumem natureza de créditos garantidos (cfr. art. 47º, nº 4, al. a)).
É certo que em relação a uma parte do produto das vendas, concretamente €5.000,00, resultou demonstrado que o mesmo foi utilizado no pagamento de despesas de saúde de sua mãe. De igual modo, relativamente à quantia de €11.655,94 que o insolvente recebeu pela venda do prédio registado sob o artigo ...87/..., a mesma, como se provou, foi utilizada para pagamentos das suas despesas correntes, nomeadamente para alimentação, vestuário, saúde e para regularização das pensões de alimentos e despesas extraordinárias de saúde e educação ao seu filho menor, MM, as quais se encontravam vencidas e não pagas desde novembro de 2020.
Ora, na presença da dita materialidade, afigura-se-nos não estar demonstrada uma efetiva situação de dissipação reconduzível à fattispecie das citadas als. a) e d) do nº 2 do art. 186º (que, como se deu nota, pressupõe, para a sua afirmação, uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor), sendo certo que, conforme se vem entendendo, a prova dos elementos de facto tendentes ao preenchimento da respetiva previsão normativa, mormente do facto base da presunção nelas contempladas, impende sobre os credores, o Ministério Público e/ou o Administrador da Insolvência.
Deste modo, perante a ausência, in concreto, de materialidade que permita a densificação fáctica das mencionadas alíneas, não poderá, pois, considerar-se como culposa a insolvência do devedor BB, devendo antes ser qualificada como “fortuita”.
Impõe-se, nessa medida, a procedência do presente recurso.
***
III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, qualificando-se como fortuita a insolvência do devedor BB.
Custas do recurso a cargo do credor           requerente.
                                                          
Guimarães, 28.11.2024


[1] In Estudos sobre o Processo Civil, pág. 220 e seguinte.
[2] In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 297; em análogo sentido, RODRIGUES BASTOS (in Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 194), ressaltando que «a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afeta o valor legal da sentença».
[3] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140.
[4] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência.
[5] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[6] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1),ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[7] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[8]  Nos termos do qual “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo”. Resulta, assim, da exegese do normativo transcrito constituírem requisitos da insolvência culposa: i) o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; ii) a ilicitude desse comportamento; iii) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); iv) o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
[9] Como sublinha CARNEIRO DA FRADA (in A responsabilidade dos administradores na insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, vol. II [setembro], pág. 701), a opção por esta técnica legislativa justifica-se pela necessidade de garantir uma maior “eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências”, favorecendo, para além disso, a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos. 
[10] Cfr., por todos, na doutrina, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pág. 680, CARNEIRO DA FRADA, op. citada, pág. 689 e MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, pág. 274; na jurisprudência, acórdãos da Relação de Coimbra de 21.01.2014 (processo nº 174/12.8TJCBR.C1) e de 14.01.2014 (processo nº 785/11.9TBLRA-A.C1) e acórdãos desta Relação de 27.02.2014 (processo nº 1595/10.6TBAMT-A.P2) e de 18.12.2013 (processo nº 41/10.0TYVNG-D.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[11] Isso mesmo é enfatizado por MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, pág. 132, onde afirma que se tratando de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no nº 2 do art. 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato.