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RESOLUÇÃO PELO TRABALHADOR
CADUCIDADE DO DIREITO À RESOLUÇÃO
SUSPENSÃO DE CONTRATO DE TRABALHO
Sumário
I. Na justa causa de resolução do contrato de trabalho fundamentada, entre outros, em factos instantâneos cujos efeitos se protraem no tempo, o juízo a empreender na apreciação da tempestividade do exercício do direito deve fazer-se em função de cada caso concreto a fim de aferir o momento a partir do qual, no contexto da relação laboral, o trabalhador ficou ciente da efectiva gravidade dos factos e da sua pré-ordenação à inexigibilidade à manutenção do contrato. II. Nestes casos, em que os efeitos do(s) acto(s) gerador(es) da afectação dos direitos e das garantias do trabalhador são susceptíveis de agravamento com o decurso do tempo, o prazo para o exercício do direito à resolução do contrato de trabalho não se inicia no momento do conhecimento da materialidade dos factos, mas antes no momento em que, pela sua gravidade e consequências, impedem a subsistência do contrato de trabalho. III. A circunstância de o trabalhador ter estado, nos sete meses que antecederam a resolução do contrato de trabalho, em situação de incapacidade temporária para o trabalho devidamente certificada, não determina que se considere que o prazo para operar a resolução do contrato de trabalho se inicie no primeiro dia de incapacidade, posto que a aferição da gravidade dos factos e do seu impacto na relação jurídico-laboral não é incompatível com um estado de latência do contrato de trabalho motivada pela sua suspensão. IV. A decisão quanto à questão da caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho está, também nestes casos, na dependência do apuramento dos factos que densificam a justa causa e da sua sujeição a instrução contraditória.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
AA intentou acção declarativa de condenação emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma do Processo Comum, contra “XX, Lda.” peticionando seja reconhecida a justa causa resolutiva do contrato de trabalho por si operada e que, por conseguinte, seja a ré condenada no pagamento da quantia global de € 66.141,88, sendo € 6.141,88, a título de danos de natureza patrimonial, e € 60.000,00 a título de danos de natureza não patrimonial. Mais peticionou que sobre as quantias peticionadas incidam juros de mora, à taxa legal de 4%, a contabilizar desde a data do seu vencimento e até integral e efetivo pagamento.
2. Realizada a audiência de partes, frustrou-se a conciliação, tendo a ré sido notificada para contestar.
3. A ré contestou a acção, tendo em tal articulado alegado, no que ora releva, a caducidade do direito do autor a proceder à resolução, com fundamento em justa causa, do contrato de trabalho, visto terem decorrido mais de 30 dias sobre o conhecimento dos factos que invoca para fundamentar a justa causa de resolução.
4. O autor, notificado para o efeito, ofereceu resposta à contestação, pugnando, a final, pela improcedência da matéria exceptiva invocada, alegando, quanto a tanto, que os comportamentos da ré foram reiterados no tempo e não situações isoladas.
5. Foi proferido despacho saneador, tendo a Mm.ª Juiz a quo considerado não escrita a matéria alegada pelo autor no articulado referido em 4..
E, conhecendo da matéria de excepção alegada pela ré, considerou a caducidade do direito à resolução do contrato de trabalho operada pelo autor no que se refere aos seguintes factos: (i) a falta de retribuição de 10 dias de férias de 2020 e a inconciliação das férias que a ré lhe permitiu gozar com as férias dos filhos no mesmo ano; (ii) o subsídio de férias de 2016; (iii) a falta de 30.06.2021, justificada mas com perda de retribuição; (iv) o dia de folga não concedido pela ré para os preparativos fúnebres decorrentes do falecimento da avó do autor, em Julho de 2021; (v) a sanção disciplinar aplicada pela ré ao autor em agosto de 2021.
No que concerne aos demais factos alegados – a alteração unilateral do horário de trabalho do autor, com perda de retribuição mensal, o trabalho por aquele prestado para além do horário de trabalho, que nunca terá sido remunerado, a falta de pagamento do subsídio mensal de falhas, no valor de € 40,00, e a falta de pagamento integral do subsídio de alimentação –, a Mm.ª Juiz a quo considerou improcedente a excepção de caducidade do direito do autor a resolver o contrato de trabalho por se tratarem de factos que subsistiram até ao termo do contrato de trabalho.
E, quanto a estes factos, determinou o prosseguimento dos autos, fixando o objecto do litígio e enunciando os temas da prova.
6. Inconformada com o assim decidido, a ré interpôs recurso para este Tribunal da Relação, rematando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
«A. O DOUTO TRIBUNAL A QUO PROFERIU DESPACHO SANEADOR, NÃO JULGOU TOTALMENTE PROCEDENTE A EXCEÇÃO ARGUIDA PELA RECORRENTE DE CADUCIDADE DO EXERCÍCIO DO DIREITO DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO COM ALEGADA JUSTA CAUSA DA INICIATIVA DO AUTOR, NA QUALIDADE DE TRABALHADOR, ORA RECORRIDO, TENDO CONSIDERADO CONTUDO TAL CADUCIDADE, QUANTO A UM CONJUNTO DE FACTOS ALEGADOS PELO AUTOR, ORA APELANTE, NO SEU PETITÓRIO INICIAL, MAS TENDO COSNDIERADO, CONTUDO, QUE NÃO SE ENCONTRA VERIFICADA TAL CADUCIDADE NO QUE SE REFERE AOS SEGUINTES FACTOS: - SUPOSTA ALTERAÇÃO UNILATERAL DO SEU HORÁRIO DE TRABALHO COM PERDA DE RETRIBUIÇÃO MENSAL E QUE ALÉM DO MAIS SE INCONCILIAVA COM O HORÁRIO DE TRABALHO QUE O A. DESENVOLVIA NO Hospital ..., BEM COMO COM AS SUAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS; E - TRABALHO PRESTADO PARA ALÉM DO SEU HORÁRIO DE TRABALHO QUE A R. NUNCA TERÁ REMUNERADO (4H SEMANAIS) E BEM ASSIM AO SUBSÍDIO MENSAL DE FALHAS NO VALOR DE € 40,00 E AO VALOR DO SUBSÍDIO DE ALIMENTAÇÃO PAGO, SEGUNDO O A., COM UM VALOR CORRESPONDENTE A UM HORÁRIO DE TRABALHO PARCIAL.
B. TAL DOUTA DECISÃO, E COM O DEVIDO RESPEITO, VIOLA O DISPOSTO NO ARTIGO 395.º, N.º 1, DO CÓDIGO DO TRABALHO, O QUE PERMITE O SEU RECURSO IMEDIATO, POR SE ENQUADRAR NO DISPOSTO NO ARTIGO 79.º-A, N.º 1, ALÍNEA B), BEM COMO NO N.º 2, ALÍNEA H), DO CÓDIGO DO PROCESSO DO TRABALHO, E DOS ARTIGOS 595º N.º 3, 629º N.º 1, 631.º, N.º 1, 637.º, 638º, 639.º E 644º N.º 1 AL. B), E N.º 2, ALÍNEA H), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
C. POIS QUE ESTAMOS PERANTE UMA DECISÃO QUE É PASSÍVEL DE RECURSO POR SE ENTENDER, COM O DEVIDO RESPEITO, QUE É UMA DECISÃO QUE, SEM PÔR TERMO AO PROCESSO, DECIDA DO MÉRITO DA CAUSA, NO CASO, EMBORA PARCIAL, E TAMBÉM PORQUE A IMPUGNAÇÃO DESTA DOUTA DECISÃO COM O RECURSO DA DECISÃO FINAL SERIA ABSOLUTAMENTE INÚTIL, POIS QUE SENDO DELIMITADO, NO DESPACHO SANEADOR, O OBJETO DO LITIGIO, “SABER SE EXISTE JUSTA CAUSA PARA A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO PELO A. EM FACE DOS MOTIVOS MENCIONADOS SUPRA CONSTANTES DA CARTA DE RESOLUÇÃO: CONSEQUÊNCIAS LEGAIS – INDEMNIZAÇÃO LEGAL”, A CONSIDERAÇÃO DESDE JÁ DA CADUCIDADE DE RESOLUÇÃO DESTE DIREITO POR PARTE DO AUTOR, ORA APELADO, FARÁ COM QUE O OBJETO DO LITÍGIO EM ANÁLISE NOS PRESENTES AUTOS DEIXE DE EXISTIR.
D. QUANTO AO CONHECIMENTO DOS FACTOS RELATIVOS À SUPOSTA ALTERAÇÃO UNILATERAL DO SEU HORÁRIO DE TRABALHO COM PERDA DE RETRIBUIÇÃO MENSAL E QUE ALÉM DO MAIS SE INCONCILIAVA COM O HORÁRIO DE TRABALHO QUE O A. DESENVOLVIA NO Hospital ..., BEM COMO COM AS SUAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS, O APELADO, NO SEU PETITÓRIO INICIAL, CONFESSA QUE DELES TEVE CONHECIMENTO, EMBORA NÃO CONCRETIZE A DATA EM QUE TAL SE VERIFICOU, NO ANO DE 2019 (ARTIGO 20.º DA PI), OU SEJA, MAIS DE 3 ANOS ANTES DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO COM ALEGADA JUSTA CAUSA POR INICIATIVA DO AUTOR, ORA RECORRIDO, QUE OCORREU POR CARTA DATADA DE 18 DE MARÇO DE 2022.
E. PARA ALÉM DE QUE A SITUAÇÃO VIGORAVA HÁ MAIS DE 3 ANOS, SEM QUALQUER ATUAÇÃO DO AUTOR, ORA [A]PELADO, NO SENTIDO DE TAL SER FUNDAMENTO DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO COM JUSTA CAUSA.
F. E O MESMO SE DIGA QUANTO AO OUTRO “GRUPO” DE FACTOS QUE A DOUTA DECISÃO CONSIDEROU NÃO ESTAR CADUCADO O DIREITO DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO COM JUSTA CAUSA POR INICIATIVA DO APELADO, A SABER: - TRABALHO PRESTADO PARA ALÉM DO SEU HORÁRIO DE TRABALHO QUE A R. NUNCA TERÁ REMUNERADO (4H SEMANAIS) E BEM ASSIM AO SUBSÍDIO MENSAL DE FALHAS NO VALOR DE € 40,00 E AO VALOR DO SUBSÍDIO DE ALIMENTAÇÃO PAGO, SEGUNDO O A., COM UM VALOR CORRESPONDENTE A UM HORÁRIO DE TRABALHO PARCIAL.
G. O APELADO HÁ MUITO SABIA DESTAS (ALEGADAS) CONDIÇÕES QUANTO AO TRABALHO PRESTADO PARA ALÉM DO SEU HORÁRIO DE TRABALHO (QUE DIGA-SE ESTÁ EM ABSOLUTA CONTRADIÇÃO COM TUDO O QUE ALEGA QUANTO À QUESTÃO DA ALEGADA ALTERAÇÃO DO SEU HORÁRIO DE TRABALHO OCORRIDA EM 2019), POIS QUE ALEGA QUE TAL ACONTECIA DESDE O INÍCIO DA RELAÇÃO LABORAL (MAS NÃO CONCRETIZANDO A EM QUE AMPLITUDE DE HORÁRIO TAL SE VERIFICAVA).
H. NÃO CONCRETIZANDO QUANDO SE TERÁ VERIFICADO A RETIRADA DO SUBSÍDIO MENSAL DE FALHAS, POIS QUE NÃO SE PERCEBE, DA ALEGAÇÃO VERTIDA NA PETIÇÃO INICIAL, QUANDO TAL FOI RETIRADO PELA APELANTE, NEM PORQUÊ. NADA!
I. ADEMAIS, E QUANTO AO SUBSÍDIO DE ALIMENTAÇÃO PAGO COMO SE DE UM HORÁRIO DE TRABALHO PARCIAL DE TRATASSE, IGNORANDO, NESTA SEDE, A SUA LEGALIDADE, TAMBÉM ERA, HÁ MUITO, DO CONHECIMENTO DO AUTOR, ORA APELADO.
J. PELO QUE ESTE CONJUNTO DE FACTOS ERA, DO CONHECIMENTO DO APELADO HÁ MUITO MAIS DE 30 DIAS AQUANDO DO ENVIO DA CARTA DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO POR INICIATIVA DO TRABALHADOR, ORA APELADO, QUE OCORREU A 18 DE MARÇO DE 2022.
K. MAS, AINDA SEMPRE SE DIGA QUE, COMO ALEGADO PELA APELANTE NA SUA CONTESTAÇÃO, MORMENTE NOS ARTIGOS 27.º E 28.º, E QUANTO A TODOS ESTES FACTOS, O ENTÃO AUTOR ESTEVE EM SITUAÇÃO DE INCAPACIDADE PARA O TRABALHO POR DOENÇA, ENTRE 25 DE AGOSTO DE 2021 E 21 DE MARÇO DE 2022, DATA EM QUE CESSOU O CONTRATO DE TRABALHO, EM CONSEQUÊNCIA PELA CARTA POR ESTE REMETIDA EM 18 DE MARÇO DE 2022.
L. PELO QUE, DESDE O DIA 25 DE AGOSTO DE 2021 E MARÇO DE 2022, POR IMPOSSIBILIDADE NATURAL DO APELADO PRESTAR O SEU TRABALHO, NENHUM FACTO POR ESTE ALEGADO PODERÁ TER SIDO COMETIDO PELA RÉ QUANTO A SI, QUE PUDESSE FUNDAMENTAR A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO COM JUSTA CAUSA DA INICIATIVA DO TRABALHADOR.
M. PODER-SE-IA ACEITAR, EMBORA NÃO SE CONCORDE COM TAL POSIÇÃO, QUE SENDO FACTOS CONTINUADOS, O PRAZO DE 30 DIAS PARA RESOLVER O CONTRATO DE TRABALHO COM JUSTA CAUSA POR INICIATIVA DO TRABALHADOR SE INICIARIA, NO PRESENTE CASO, A 25 DE AGOSTO DE 2021, DATA EM QUE O APELADO FICOU TEMPORARIAMENTE INCAPACITADO PARA O TRABALHO, TERMINANDO A 24 DE SETEMBRO DE 2021.
N. MAS NÃO SE PODERÁ ACEITAR QUE, ESTANDO O CONTRATO DE TRABALHO SUSPENSO POR FACTO IMPUTÁVEL AO TRABALHADOR (DOENÇA), QUE O PRAZO DE 30 DIAS APÓS O CONHECIMENTO DOS FACTOS QUE PERMITAM A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO COM JUSTA CAUSA POR INICIATIVA DO TRABALHADOR, NÃO SE TIVESSE SEQUER INICIADO, QUANTO A ESTES FACTOS, COMO CONSIDERA, VERDADEIRAMENTE, A DOUTA DECISÃO ORA EM CAUSA.
O. PELO QUE O PRAZO PREVISTO NO ARTIGO 395.º, N.º 1, DO CÓDIGO DO TRABALHO, QUE DISPÕEQUE O TRABALHADOR DEVE COMUNICAR A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO AO EMPREGADOR, POR ESCRITO, COM INDICAÇÃO SUCINTA DOS FACTOS QUE A JUSTIFICAM, NOS 30 DIAS SUBSEQUENTES AO CONHECIMENTO DOS FACTOS, PARA FAZER OPERAR TAL CESSAÇÃO CONTRATUAL, HÁ MUITO SE ENCONTRAVA ULTRAPASSADO.
P. DEVENDO, POR TAL, A DOUTA DECISÃO VERTIDA NO DESPACHO SANEADOR SER SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE CONSIDERE A CADUCIDADE DO DIREITO DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO COM JUSTA CAUSA POR INICIATIVA DO TRABALHADOR, ORA APELADO QUANTO AOS SEGUINTES FACTOS: SUPOSTA ALTERAÇÃO UNILATERAL DO SEU HORÁRIO DE TRABALHO COM PERDA DE RETRIBUIÇÃO MENSAL E QUE ALÉM DO MAIS SE INCONCILIAVA COM O HORÁRIO DE TRABALHO QUE O A. DESENVOLVIA NO Hospital ..., BEM COMO COM AS SUAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS; E TRABALHO PRESTADO PARA ALÉM DO SEU HORÁRIO DE TRABALHO QUE A R. NUNCA TERÁ REMUNERADO (4H SEMANAIS) E BEM ASSIM AO SUBSÍDIO MENSAL DE FALHAS NO VALOR DE € 40,00 E AO VALOR DO SUBSÍDIO DE ALIMENTAÇÃO PAGO, SEGUNDO O A., COM UM VALOR CORRESPONDENTE A UM HORÁRIO DE TRABALHO PARCIAL».
Conclui a recorrente pela revogação da decisão proferida na 1.ª instância, devendo a mesma ser substituída por outra que, apreciando os fundamentos do recurso, conclua pela caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho operada pelo autor, porque incumprido o prazo previsto no art. 395.º, do Código do Trabalho.
7. O autor não contra-alegou.
8. O recurso foi admitido por despacho datado de 24 de Junho de 2024.
9. Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de dever não dever ser concedido provimento ao recurso interposto pela ré.
10. Ouvidas as partes, apenas o autor se pronunciou, aderindo, na íntegra, ao Parecer da Exma. Procuradora-Geral Adjunta.
11. Cumprido o disposto na primeira parte do n.º 2 do art. 657.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
II. Objecto do Recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente – art. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do art. 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho –, temos que a única questão a conhecer consiste em saber se deverá considerar-se estar caduco o direito do autor a resolver o contrato de trabalho por, à data em que assim procedeu, terem já decorrido mais de 30 (trinta) dias desde o conhecimento dos factos que fundamentam o dito direito.
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III. Fundamentação de Facto
O art. 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Sentença”, determina que, na elaboração da sentença, o juiz deve discriminar os factos que considera provados, avultando, de entre eles, os admitidos por acordo, provados por documentos ou confissão reduzida a escrito (n.º 4, do mesmo preceito legal).
O enunciado preceito é aplicável aos acórdãos, nos termos do disposto no art. 663.º, n.º 2, do mesmo compêndio adjectivo.
Nesta conformidade e a fim de apreciar a questão que é objecto de recurso devem ter-se por provados os seguintes factos, todos eles fundados no acordo das partes e nos documentos – não impugnados – juntos no processo:
1. Datado de 18 de Julho de 2016, o autor e a ré, então denominada “YY, Lda.”, celebraram o convénio que designaram de “Contrato de Trabalho a Termo Certo e a Tempo Parcial”, nos termos do qual foi aquele admitido para «trabalhar por conta, a favor e sob as ordens e direcção» desta última com a categoria profissional de aprendiz de operador. (facto provado por via do documento que corporiza o contrato de trabalho celebrado entre as partes. As partes também não dissentem, face ao teor dos respectivos articulados, quanto a celebração e subsequente vigência, entre elas, de um vínculo de natureza laboral. No que respeita à denominação da ré, extrai-se do teor da certidão permanente do registo comercial junta aos autos que foi aquela alterada de “YY, Lda.” para a actual designação através da Ap. 7/20170110).
2. O convénio referido em 1. teve início na data de 19 de Julho de 2016, tendo as partes acordado que o autor auferiria a retribuição mensal € 412,50 e observaria um perídio normal de trabalho semanal de 30 horas, a prestar em turnos variáveis, no período compreendido entre as 8h00 e as 24h00 (facto provado por via do documento que corporiza o contrato de trabalho celebrado entre as partes).
3. O autor esteve em situação de incapacidade temporária para o trabalho, devidamente certificada, desde 3 de Agosto de 2021 até 14 de Agosto de 2021 e desde 25 de Agosto de 2021 até 19 de Março de 2022. (facto provado com base nos certificados de incapacidade para o trabalho juntos aos autos e não impugnados).
4. Datada de 18 de Março de 2022, o autor enviou à ré missiva, que esta recebeu em 21 de Março de 2022, sendo o seguinte o seu teor:
«(…)
Assunto: Resolução do Contrato de Trabalho por Justa Causa
Exmos. Senhores,
Eu, AA (…) venho, pela presente, comunicar a imediata resolução do meu contrato de trabalho, celebrado no dia 18 de Julho de 2016, tendo por fundamento as alíneas b), c) e f) do artigo 394.º do Código do Trabalho, a saber: 1) por motivo de violação culposa de garantias legais ou convencionais do trabalhador; 2) aplicação de sanção abusiva; 3) ofensa à integridade física ou moral, liberdade e honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, praticada pelo empregador ou seu representante.
Como sabem V. Exas. já colaboro com a v/ empresa desde Julho de 2016, o que significa que a empresa já conhece bem a minha pessoa, bem como o meu [empenho] nas tarefas que me são atribuídas, nomeadamente o respeito pelos Clientes e Colegas e, em especial, o foco em satisfazer o cliente, zelando pelos interesses da empresa no sector da restauração.
Acontece que, desde Março de 2020, aquando da pandemia provocada pelo COVID -19 é que começaram os problemas com a v/ empresa, os quais motivaram a minha e ora decisão.
Cumpre esclarecer.
Tudo começou, como se referiu, com a pandemia, sendo que o primeiro ponto que deu controvérsia foi a alteração do horário de trabalho, isto é, V. Exas. aquando da minha contratação eu tinha uma carga horária de 30 horas semanais, o que foi realizado entre Julho de 2016 a Março de 2018.
Acontece que, a partir de Março de 2018, unilateralmente, V. Exas. decidiram reduzir o meu horário de trabalho para 25 horas, o que foi aceite, mas com a condição de duas folgas semanais: Folgas ao Domingo e às Quartas-Feiras e, continuar a trabalhar no período nocturno, visto que, como V. Exas. sabem, eu trabalho na YY com outras funções e com outro horário.
Ora, este horário foi efectivamente particado, contudo, no período da pandemia, V. Exas. convocaram-me e disseram:
1. Para manter as 25 horas tinha de reduzir o ordenado base ou
2. Manter as 30 horas e aumentar a carga horária, o que era um completo absurdo, porque o anteriormente acordado era fazer as 25 horas e manter as mesmas condições salariais.
Todavia, V. Exas. não aceitaram e foi-me imposto fazer as 30 horas semanais, mantendo as condições das 25 horas que anteriormente tinha sido acordado, o que ainda hoje prevalece, mas que nunca aceitei conforme missiva que V. Exas. receberam e foi datada de 21-09-2020.
Entretanto,
Depois do período de lay-off, com esta nova carga horária, o que sempre manifestei o meu descontentamento, V. Exas. bem sabiam que o novo horário ia coincidir com o meu horário no Hospital, isto é, saía do Hospital pelas 17h e tinha de entrar às 17 horas no restaurante, o que V. Exas. sabem que seria incomportável, mas mesmo assim não se mostraram flexíveis para negociar e impuseram unilateralmente a v/ vontade. Vide que pratiquei este horário desde Março de 2021.
Acresce a tudo isto que, o facto de me imporem unilateralmente um horário que eu não podia, acabou por limitar e complicar a minha vida pessoal, porquanto, como bem sabem, sou Pai e regulei as responsabilidades parentais dos meus filhos, o que me obriga a cumprir um acordo homologado por sentença sem Tribunal, pelo Tribunal de Família e Menores de Loures. Ora, com este horário tornou-se impossível eu conseguir harmonizar o horário que fosse.
Acresce que,
Para além de toda esta situação, ocorreram outras situações, o que podemos identificar como segundo ponto: - ignoraram completamente o meu período de férias.
Cumpre esclarecer.
Conforme referi supra sou Pai e tenho um acordo parental para cumprir, sendo que, em Dezembro de 2020, apresentei na v/ empresa o meu Mapa de Férias no sentido de conciliar as minhas férias com os meus filhos e com a outra entidade empregadora, cujo mapa foi completamente rejeitado no mês de Agosto, bem sabendo V. Exas. que tal nunca tinha acontecido anteriormente e, na empresa, foram beneficiados outros trabalhadores que não têm filhos e praticam o mesmo horário que eu. Ora, tendo em conta que nos anos anteriores, pelo menos desde que eu colaboro com a v/ empresa, jamais tal sucedeu, o que apenas posso compreender que tal atitude para comigo seja uma perseguição.
Para além de tudo o que foi referido ainda ocorreram outras situações, em especial (terceiro ponto): - 10 dias úteis de férias de 2020.
Ora, como V. Exas. bem sabem retiram-me estes 10 dias úteis de férias sem qualquer tipo de negociação prévia, anteriormente a 31 de Março de 2020, o que, nos termos legais, tal não é possível, o que corresponde a um abuso de direito e do qual eu reclamei e disseram-me que não era possível dar-me as férias.
Acresce que,
Outra situação foi criada por V. Exas. (quarto ponto) e diz respeito ao Banco de Horas, isto é, como sabem sempre fiz horas suplementares em prol não só da empresa, mas também dos meus Colegas, o que nunca foi devidamente valorizado por V. Exas., porquanto nunca a empresa me deu uma compensação financeira nem nunca fez o respectivo banco. É de notar que, por semana faço uma média a mais de 4 horas, as quais nunca tiveram retorno do meu esforço e empenho.
Mais, (Quinto Ponto)
Retiraram-me o subsídio de falhas sem aviso prévio, o que mais uma vez consubstancia um abuso do direito, sendo que eu, mesmo assim, continuava a manusear a caixa registadora e acabei por perder mais de € 40,00 no meu vencimento, o que tive que suportar porque V. Exas. bem sabem das minhas necessidades.19
Depois, (Sexto Ponto)
Temos o Subsídio de Férias de 2016 que V. Exas. porventura esqueceram, mas que ainda me recordo que não me foi pago. Aliás, foi dito por V. Exas. que o mesmo só em era pago quando eu saísse da empresa. O que apesar de parecer inacreditável, a verdade é que foi dito. Ora, uma vez que eu precisava efectivamente tive de concordar.
Cumpre referir que, para além das situações já elencadas ainda temos uma que é Gritante: - Da doação de sangue (Sétimo Ponto)
Como V. Exas. sabem eu sou doador de sangue e, um episódio que recordo, no dia 30-06-2021, eu fui doar sangue e avisei a empresa que não poderia ir, pois sentia-me bastante fraco. Ora, V. Exas. responderam que “doar sangue era durante o dia e tu trabalhas à noite”, o que levou a empresa a aplicar-me uma falta justificada, mas com perda de retribuição, o que é manifestamente abusivo, pois se todos os cidadãos fossem como eu talvez não tivéssemos esta falta de dádivas. Esta situação, por vós criada, foi inaceitável, pois bem sabe, que, durante o período da pandemia, foi deveras requerido pela Ministra da Saúde a necessidade de doar sangue e foi assim que a empresa me compensou.
Em Novembro de 2020, (Oitavo Ponto) unilateralmente, V. Exas. ligaram-me, sem qualquer aviso prévio, a dizer que “no dia seguinte tens de te apresentar no VV)”, o que me deixou surpreso e apreensivo, pois não houve nenhuma reunião para me falarem previamente do sucedido, sendo certo que, na empresa, falam que quando querem despedir as pessoas mandam-nas para o WW que fica na área dos 50 Km. Ora, o facto de me enviarem para o VV só pode corresponder a uma repreensão, pois já que não concordas connosco sais da tua zona de conforto. Todavia, a verdade é que eu não aceitei a vossa decisão, pois iria implicar mais despesas e, por vezes, seria incompatível com o meu horário no hospital e as folgas de domingo e quarta-feira, estas fixas, pelo que reclamei e, passado uma semana, V. Exas. decidiram que eu regressasse ao meu posto de trabalho.
Mais,
Houve um episódio que me deixou bastante desgostoso com V. Exas. o qual diz respeito aquando da morte da minha avó, porquanto a minha avó faleceu em finais de ... e eu, enquanto neto, tenho direito a dois duas pelo óbito. Devido a tal facto, necessitei de pedir mais um dia, devido ao facto de o jazigo se encontrar em ..., e a família toda residir em ..., sendo eu o único residente em ... tinha de dar atenção e resolver todo o processo do óbito. Ora, necessitando eu de tempo e também conforto pedi esse mesmo dia, o qual me foi recusado, ao que retorqui que poderíamos negociar visto que eu enquanto trabalhador poderia colocar dias de férias, o que da v/ parte não foi sensato nem respeitoso pelo sentimento de morte, quiçá mesmo imoral, e não me concederam esse dia.
No que respeita ao subsídio de alimentação (Nono Ponto) nunca me foi pago como se fosse um funcionário a full-time, o que V. Exas. sabem que é um direito constitucionalmente consagrado, o qual tenho direito a reclamar.
Acresce também referir que me enviaram uma missiva a aplicar uma sanção abusiva, a qual é claramente ilegítima e que também impugno por não corresponder à verdade dos factos. (Décimo Ponto).
Posto isto, não podendo continuar a consentir com esta situação e para conseguir manter o meu bem-estar e equilíbrio psicológico decido assim resolver o contrato de trabalho com justa causa, em virtude da violação das alíneas referidas e que consubstanciam a justa causa de resolução.
Nesta medida, fico a aguardar o envio, no prazo de 5 dias úteis, da Declaração 5044 da Segurança Social, a qual já junto em anexo parcialmente preenchida, bem como o respectivo Certificado de Trabalho, sem prejuízo dos créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho, nos termos do n.º 1 do artigo 396.º do Código do Trabalho e da indemnização devida pela violação efectiva dos meus direitos enquanto v/ trabalhador.
(…)». (facto provado com base no documento n.º 3, junto pelo autor, e que corporiza o escrito por via do qual operou a resolução do contrato de trabalho celebrado com a ré. Dir-se-á, ainda, que as partes não dissentem do que na missiva se verteu, no seu envio pelo autor e no seu recebimento pela ré).
5. Datada de 31 de Março de 2022, a ré enviou missiva ao autor, sendo o seguinte o seu teor:
«(…)
Exmo. Se. AA
Acusamos a receção da sua carta datada de 19 de março do corrente que mereceu atenção.
Informamos que, contudo, não reconhecemos a justa causa invocada, pois que os motivos que agora invoca e que já foram discutidos anteriormente com V. Exa., não os reputamos de válidos, tendo tido a oportunidade de, anteriormente, explicar a posição da empresa sobre esta situação.
De todo o modo, lamentamos a sua decisão de sair da empresa, que aceitamos, embora não reconhecendo a justa causa, não reconhecimento esse que terá as legais consequências nomeadamente na não concessão de aviso prévio para uma denúncia do contrato de trabalho que, no nosso entendimento, foi o que se verificou.
(…)». (facto que se funda no documento n.º 8, junto pelo autor).
*
IV. Fundamentação de Direito
1. Reportando-se a resolução do contrato de trabalho operada pelo autor, ora recorrido, a 21 de Março de 20221, é-lhe aplicável o regime jurídico ínsito no Código de Trabalho de 20092, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, com as suas subsequentes alterações, maxime as que, ao art. 394.º, foram introduzidas pelas Leis ns. 73/2017, de 16 de Agosto, 14/2018, de 19 de Março, e 93/2019, de 4 de Setembro.
2. Nos termos do disposto no art. 394.º, n.º 1, «[o]correndo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato», estabelecendo o n.º 2 do mesmo preceito as causas que, de forma exemplificativa, poderão integrar o mencionado conceito.
A resolução do contrato de trabalho a operar pelo trabalhador obedece à forma escrita, com indicação sucinta dos factos que a consubstanciam, devendo ser efectuada nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos (n.º 1 do art. 395.º).
O citado prazo caracteriza-se como um prazo de caducidade, atento o disposto no n.º 2 do art. 298.º do Código Civil, e justifica-se, primordialmente, por razões de certeza dos direitos. «O instituto fundamenta-se em razões objectivas de segurança jurídica, bem como na necessidade de definição, dentro de um prazo razoável, das situações jurídicas, evitando-se uma tendencial ‘vinculação perpétua’ por parte do obrigado que, caso contrário, poderia ser a todo o tempo interpelado pelo titular para efectivação do seu direito»3.
A caducidade não opera, todavia, ope legis, carecendo de ser invocada pela parte que dela se pretende prevalecer, uma vez que se trata de matéria que não se encontra excluída da disponibilidade das partes (cfr. o n.º 2 do artigo 333 e o artigo 303.º, do Código Civil), tendo sido justamente matéria invocada, in casu, pela ré, ora recorrente, na acção e, também, no recurso que ora se aprecia.
Louvando-nos, aqui, na jurisprudência que emerge do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Julho de 20174, qual será o «dies a quo para contagem deste prazo de caducidade?
A contagem do prazo de 30 dias previsto no artigo 395.º, n.º 1, inicia-se em geral com o “conhecimento” pelo trabalhador dos factos que integram a justa causa de resolução invocada, conhecimento este que, em princípio, coincide com a data por ele alegada para a sua verificação, atento o estreito envolvimento pessoal das partes no contrato de trabalho e o facto de, por definição (cfr. o artigo 394.º, n.ºs 2 e 3), o(s) facto(s) que integra(m) a justa causa se reflectir(em) de imediato na pessoa do trabalhador, envolvido no devir de um contrato que é executado diariamente (…).
Com a fixação de um prazo de caducidade, o legislador parte do princípio que se depois de tomar conhecimento dos factos que fundamentam a resolução o trabalhador não reagiu por mais de 30 dias, é de supor que o acto do empregador não impossibilitou a prossecução da relação, não havendo por isso justa causa para a resolução.
Mas, em face da multiplicidade de comportamentos do empregador susceptíveis de constituírem justa causa de resolução, suscitam-se por vezes dificuldades na fixação do termo inicial da sua contagem. Tratando-se de factos instantâneos, em que a conduta é uma só, realizada ou executada em dado momento, factos estes que se esgotam com o respectivo acto concretizador, aquele prazo inicia-se sem dúvida no momento do conhecimento da materialidade dos factos. Mas no caso de o comportamento ilícito do empregador ser continuado (p. ex. no caso de violação do direito de ocupação efectiva), o prazo de caducidade só se inicia quando for praticado o último acto de violação do contrato (o conhecimento da situação ilícita renova-se permanentemente enquanto ela se mantiver). Já assim não ocorre com os factos instantâneos que se esgotam com o respectivo acto concretizador, embora os seus efeitos possam protrair-se no tempo (p. ex. em determinados casos de baixa de categoria profissional ou de redução da retribuição). Nestas últimas hipóteses, assentes em factos instantâneos, mas com efeitos duradouros susceptíveis de agravamento com o decurso do tempo, tem-se entendido que aquele prazo se inicia, não no momento do conhecimento da materialidade dos factos, mas quando assumem tal gravidade no contexto da relação laboral que a subsistência do contrato de trabalho se torna imediatamente impossível. Assim, se o trabalhador não tiver logo a exacta percepção das implicações do acto instantâneo do empregador (p. ex. por estar o trabalhador convicto de que se trata de uma situação temporária), deve entender-se que o prazo se inicia não no momento inicial do conhecimento da pura materialidade dos factos mas, sim, quando no contexto da relação laboral o trabalhador fique ciente da sua efectiva gravidade e a mesma seja de molde a tornar inexigível, a partir de então, a manutenção da relação».
Deve pois fazer-se um juízo perante cada caso concreto no sentido de aferir se o trabalhador, quando conheceu os factos que invoca em fundamento da justa causa, ficou logo em condições de ajuizar das implicações de tal acto no devir do contrato, «tendo sempre presente que o necessário nexo cronológico entre a decisão de resolver o contrato e os factos invocados mais não constitui do que “uma manifestação do princípio da actualidade da justa causa que traduz a regra de que a resolução se deve seguir imediatamente à verificação da situação de impossibilidade, até em consonância com a finalidade do direito de resolução – evitar situações insustentáveis”»5.
Note-se, ainda, no quadro do juízo a produzir quanto à justa causa de resolução e à impossibilidade de subsistência da relação laboral a ela associada, que o legislador impõe se atenda ao disposto no n.º 3 do art. 351.º. Esta remissão não pode, contudo, deixar de ser enquadrada pela especificidade inerente ao sujeito que toma a iniciativa de cessar o contrato de trabalho, sabendo-se, como se sabe, que se ao empregador estão disponíveis várias formas de sanar a crise da relação laboral, já ao trabalhador se não oferecem iguais meios de autotutela6. Neste sentido e conforme lucidamente se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Abril de 20227, «de referir que na apreciação da inexigibilidade do trabalhador manter a relação laboral não poderá ser esquecido que, enquanto o empregador dispõe de sanções intermédias para censurar um determinado comportamento, o trabalhador lesado nos seus direitos não tem modos de reacção alternativos à resolução (ou executa o contrato ou resolve-o). Neste contexto, o rigor com que se aprecia a justa causa invocada pelo empregador não pode ser o mesmo com que se aprecia a justa causa invocada pelo trabalhador, sendo certo que, naquele, se tutela a garantia do emprego, por um lado, e que, nesta, não tem o trabalhador, à semelhança do que ocorre com o empregador (que detém um leque variado de sanções disciplinares), outros meios de reacção ao comportamento infractor do empregador».
3. Tecidas as considerações que se nos afiguraram ser as necessárias em ordem ao conhecimento da questão suscitada por via recursória é tempo de reverter ao concreto dos autos.
Não sem antes dois breves parêntesis quanto ao objecto do recurso e sua contextualização.
Em primeiro lugar e como já antes o dissemos, no ponto referente ao Relatório, a Mm.ª Juiz a quo considerou estar caduco o direito do autor, ora recorrido, à resolução do seu contrato de trabalho no que se refere ao seguinte grupo de factos: a falta de retribuição de 10 dias de férias de 2020 e a inconciliação das férias que a ré lhe permitiu gozar com as férias dos filhos no mesmo ano; (ii) o subsídio de férias de 2016; (iii) a falta do dia 30.06.2021, justificada mas com perda de retribuição; (iv) o dia de folga não concedido pela ré para os preparativos fúnebres decorrentes do falecimento da avó do autor, em Julho de 2021; e (v) a sanção disciplinar aplicada pela ré ao autor em agosto de 2021.
Como assim e porquanto o autor, sujeito processual afectado pelo assim decidido, se conformou com o segmento decisório em apreço, transitou o mesmo em julgado, sem embargo, naturalmente, da ponderação dos efeitos em que se produziu, quais sejam os que se associam à causa de pedir alicerçada na justa causa resolutiva.
E transitado em julgado estando esse segmento decisório, na enunciada dimensão, a apreciação da Relação não incidirá, naturalmente, quanto ao que ali se decidiu já.
A nossa apreciação reportar-se-á, pois, aos demais factos integradores da justa causa e que, na perspectiva da recorrente, deverão também ser abarcados pela mesma figura da caducidade. E consistem esses factos na alteração unilateral do horário de trabalho do autor, com perda de retribuição mensal; no trabalho por aquele prestado para além do horário de trabalho, que nunca terá sido remunerado; na falta de pagamento do subsídio mensal de falhas, no valor de € 40,00, e na falta de pagamento integral do subsídio de alimentação.
Em segundo lugar, toda a apreciação que, de seguida, se fará, sustentar-se-á, em abstracto, no que resulta do escrito resolutivo endereçado pelo recorrido à recorrente. É o que se impõe por força da fase processual em que nos situamos, na qual os factos que são objecto da acção não foram ainda sujeitos a instrução, e também em virtude de, na acção por via da qual se aprecie a resolução com justa causa, apenas relevam os factos constantes da comunicação que o trabalhador enderece ao empregador (art. 398.º, n.º 3, que, embora direcionado à acção que o empregador intenta contra o trabalhador, se aplica, também, às acções cujo objecto seja a apreciação da justa causa resolutiva impulsionada pelo trabalhador).
Vejamos, pois.
São quatro, como se viram, as circunstâncias em que assentou o recorrido a justa causa resolutiva e que subsistem para conhecimento, sendo que se analisará cada uma delas a fim de qualificar os factos que, em abstracto, as densificam.
No que à alteração do horário de trabalho respeita, há, desde logo, a salientar não ser claro o escrito resolutivo quanto ao momento em que essa alteração se produziu no contexto da relação laboral mantida com a recorrente, já que o recorrido aduz, por um lado, que se opôs à alteração do horário de trabalho por escrito datado de 21 de Setembro de 2020, e, por outro, que praticou o horário imposto, entenda-se, o já alterado, desde Março de 2021. Independentemente do início da alteração, subentende-se do demais ali alegado que o horário ter-se-á mantido até ao termo do contrato, sem prejuízo da sua suspensão, desencadeada pela certificada incapacidade temporária do autor para prestar trabalho.
A alteração do horário, para além de, segundo alegado, não ter sido acompanhado de incremento retributivo – na medida em que da alteração teria resultado um superior número de horas de trabalho – terá, também segundo alegado, impactado na vida pessoal do recorrido e também na relação laboral que teria com outra entidade empregadora, pois que contendia com o horário que observava nesta última.
Doutro passo, consta também do escrito resolutivo que, durante toda a relação laboral, o recorrido fez «horas suplementares», em número que indica, sem que a recorrente lhe tivesse dado «uma compensação financeira» ou efectuado o «respectivo banco» de horas.
Segue-se a retirada do subsídio de falhas, sem aviso prévio, o que demandou para o recorrido uma perda retributiva de € 40,00 mensais, estando ainda alegado, no escrito resolutivo, que a essa perda se não associou qualquer alteração no modo como era prestado o trabalho.
O recorrido, na comunicação que endereçou à recorrente, não situou temporalmente a alegada conduta ilícita; sem prejuízo, extrai-se do teor da alegação que terá sido decisão que se prolongou até ao termo do contrato de trabalho.
Finalmente, é alegado, na mesma comunicação que corporiza a resolução do contrato de trabalho, que, ao longo de toda a sua execução, nunca terá sido pago ao recorrido o subsídio de alimentação como se fosse um trabalhador a tempo integral.
A relação laboral das partes remonta, tal como se extrai dos factos provados, a 19 de Julho de 2016 (facto provado constante do ponto 1.), sendo que pelo menos o bloco de factos que se reportam ao trabalho suplementar e ao insuficiente pagamento do subsídio de alimentação terá perdurado ao longo de toda a execução do vínculo.
A alteração do horário de trabalho remontará, pelo menos, a Março de 2021. A retirada do subsídio de falhas desconhece-se quando ocorreu, mas reportar-se-á, por necessário, a data anterior a Agosto de 2021.
Do ora exposto decorre, sem que dúvida razoável se nos suscite, que o recorrido, ao longo de toda a execução do contrato soube e pode tomar, por isso, conhecimento, que o trabalho suplementar que alegadamente efectuava não era pago e que não recebia, em valor que considerava ser o devido, o subsídio de alimentação. Do mesmo passo soube, pelo menos desde Março de 2021, que o horário de trabalho fora alterado e que assim se manteve. Apenas no que se reporta ao subsídio para falhas se desconhece quando ocorreu a cessação do seu pagamento, por não estar tanto temporalmente delimitado no escrito resolutivo, podendo-se, contudo, recorrer, quanto a este facto, pelo menos ao momento de início do período de incapacidade temporária para o trabalho do recorrido.
Todos estes factos, embora passíveis de qualificar como factos instantâneos, isto é, reconduzíveis a uma decisão da ora recorrente no sentido de assim sempre proceder ou de assim passar a proceder a partir de um determinado momento, foram aptos protelar-se no tempo, já que do escrito resolutivo se não extrai que, a dado passo, haja a recorrente inflectido na sua decisão com relação a qualquer uma das situações que, antes, deixámos enunciadas. A alegada decisão da recorrente, com referência a cada um dos factos em presença, não obstante temporalmente passível de delimitação, produziu, no entanto, os seus efeitos a partir de então e, no que se refere ao alegado trabalho suplementar não remunerado e ao insuficiente pagamento do subsídio de alimentação, terá perdurado durante toda a execução do vínculo. Tratam-se, assim, todos os factos em apreço, de factos instantâneos e, nessa medida, passíveis de conhecimento pelo recorrido a partir do momento em que ocorreram no contexto da relação jurídica laboral mantida com a recorrente; mas tratam-se, também e de sobremaneira, de factos cujos efeitos não se produziram ou esgotaram com o acto que lhes deu origem, antes sendo aptos a desencadear efeitos que se prolongaram no tempo e, segundo perceptível do escrito resolutivo, até ao termo do vínculo.
Com referência, pois, aos factos instantâneos mas cujos efeitos se protraem no tempo, o dies a quo relevante para aferir da tempestividade da resolução do contrato de trabalho corresponde não ao momento do conhecimento da materialidade dos factos pelo trabalhador, mas quando assumem gravidade tal no contexto da relação laboral que a subsistência do contrato de trabalho se torna imediatamente impossível. E este juízo de impossibilidade ou, se se quiser, de inexigibilidade de manutenção do contrato de trabalho não prescinde da análise do caso concreto e, por isso, do, por necessário, apuramento dos factos e suas circunstâncias. Só assim se poderá avaliar, no juízo a empreender quanto à inexigibilidade de manutenção do contrato de trabalho no quadro da justa causa, o momento em que o trabalhador ficou ciente da gravidade dos factos e da implicação deles no quadro da relação laboral, de molde a não ter que suportar manter-se vinculado a um empregador que, no seu ver, incumpre com as obrigações a que está adstrito, não dando mostras de querer retroceder nas suas decisões ou, pelo menos, atenuar os seus efeitos.
Queremos com o exposto significar que a decisão de não julgar caducado o direito a resolver o contrato de trabalho por parte do recorrido quanto ao grupo de factos que vimos de enunciar foi, com todo o respeito, prematuramente tomada, na medida em que prescindiu do apuramento dos factos que densificam a justa causa e, de sobremaneira, do apuramento do momento em que para o trabalhador se tornou inexigível a manutenção do contrato de trabalho, por não mais poder suportar as condições que, alegadamente, lhe foram impostas e que se produziram na sua esfera jurídica, duas delas durante toda a execução do contrato. Diga-se, de resto, que idêntica solução mereceria a decisão que o contrário tivesse acolhido: também decisão que julgasse caducado aquele direito seria prematura sem que se apurassem os factos em que se funda a justa causa e os que densificam a inexigibilidade de manutenção do contrato, a fim de apurar o momento a partir do qual o trabalhador tomou consciência de não poder mais manter-se vinculado ao empregador.
O caso em presença apresenta, concede-se, uma particularidade que não é despicienda, qual seja a de o autor, ora recorrido, ter estado sem exercer actividade para a recorrente desde 25 de Agosto de 2021 até 19 de Março de 2022, por, durante todo esse lapso temporal, estar em situação de incapacidade temporária, devidamente certificada (facto provado constante do ponto 3), tendo tomado a decisão de operar a resolução do contrato de trabalho por escrito que data da véspera do termo da situação de incapacidade (pelo menos da que nos autos está certificada).
O período de incapacidade do recorrido, provado nos autos, determinou, por força da lei, a suspensão do seu contrato de trabalho (art. 296.º, n.º 1). Sem prejuízo, durante a suspensão do contrato de trabalho mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efectiva prestação de trabalho, inclusive, pois, o direito a resolver o contrato de trabalho (art. 295.º, ns. 1 e 3). O mesmo é dizer que o prazo para operar a resolução do contrato de trabalho não sofre qualquer compressão, interrupção ou suspensão por virtude de impedimento do trabalhador que se prolongue por mais de 30 dias.
O que se deixa dito, contudo, não é apto a colidir com tudo o que, antes, se deixou exposto, uma vez que a aferição da gravidade dos factos e do seu impacto na relação jurídico-laboral não é incompatível com um estado de latência do contrato de trabalho motivada pela sua suspensão, já que um tal juízo não está subordinado à efectiva prestação do trabalho. Pode até suceder que o trabalhador, perspectivando a cessação da situação de incapacidade temporária para o trabalho e, por isso, a necessidade de retomar a sua prestação em situação que considera desrespeitadora dos seus direitos e garantias, só aí tome consciência da sua gravidade e, por isso, da impossibilidade de a manter. Não queremos com isto dizer que é o caso dos autos; o que queremos dizer é que são estas – todas – circunstâncias a apurar em função do que resultar da instrução da causa, estando, pois, carecidos de prova os factos alegados e a motivação que, em contrário, a recorrente aduz, tudo em ordem a aferir da tempestividade, ou não, da justa causa resolutiva operada.
Ou seja, tendo sido introduzidas no contexto do contrato de trabalho alterações relevantes quanto ao modo da sua execução e/ou tendo o contrato sido sempre cumprido em condições cujos efeitos persistem e são duradouros e cujo impacto no vínculo se vai agigantando, não pode seguramente dizer-se que esses efeitos se esgotam ou cessam no momento em que o contrato se suspende, aqui se iniciando o dies a quo para o trabalhador, querendo, fazer cessar o contrato. Obviamente que, durante esse período, na medida em que associados à efectiva prestação do trabalho, esses efeitos estarão, por assim dizer, adormecidos; de todo o modo, esses efeitos, porque duradouros, e a sua repercussão na esfera jurídica do trabalhador persistem durante a suspensão, estão latentes, sobretudo em casos em que a configuração da relação laboral se mantenha ou se perspectiva que assim venha a ser.
Em síntese, pois, e embora com fundamentação distinta, procede o recurso da recorrente no sentido da revogação da decisão recorrida na parte em que não julgou caduca a resolução do contrato de trabalho operada pelo recorrido. Sem embargo, a revogação da decisão recorrida não tem o efeito que, pela recorrente, é o pretendido, antes devendo ser apurados factos e, uma vez estes definidos, decidir-se a matéria de excepção invocada pela ré, ora recorrente, isto é, a da caducidade da resolução do contrato de trabalho operada pelo recorrido no que se reporta ao grupo de factos que ora se apreciaram.
4. As custas ficarão a cargo da parte vencida a final.
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V. Dispositivo
Por tudo quanto se deixou exposto, concede-se parcial provimento ao recurso e, nessa conformidade, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se que seja relegado para final o conhecimento da matéria de excepção invocada pela recorrente, na parte apreciada no presente recurso.
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Custas a cargo da parte que, a final, ficar vencida na acção.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2024
Susana Silveira
Celina Nóbrega
Alexandra Lage
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1. Data em que a ré, ora recorrente, recepcionou o escrito que corporiza a resolução do contrato de trabalho.↩︎
2. Diploma a que, de ora em diante, nos referiremos sem outra menção de origem.↩︎
3. Cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Abril de 2017, proferido no Proc. n.º 176/16.5T8LMG.C1, acessível em www.dgsi.pt.↩︎
4. Proferido no Proc. n.º 2043/14.8T8CSC.L1-4, acessível em www.dgsi.pt, e que, ao que se crê, foi o também de perto seguido na decisão recorrida.↩︎
5. Cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Setembro de 2022, proferido no Processo n.º 1512/21.8T8LRA.C1, acessível em www.dgsi.pt.↩︎
6. Cfr., neste sentido, João Leal Amado, Direito do Trabalho, Relação Individual, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, 2023, pág. 1410.↩︎
7. Proferido no Processo n.º 3191/20.0T8MTS-A.P1.↩︎