DOENÇA PROFISSIONAL
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
Sumário

I – O direito de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais não cobertos pela reparação objectiva da Lei n.º 98/2009 (LAT) e fundado na violação culposa de preceitos legais sobre segurança e saúde no trabalho por parte do empregador de que resulte doença profissional, gera-se no âmbito da responsabilidade contratual.
II – Neste domínio, a ilicitude traduz-se numa desconformidade entre a conduta do empregador e aquilo que deveria ter sido feito segundo as normas legais que enquadram a obrigação geral de segurança do empregador, segundo as leis próprias que enunciam as regras de segurança a adoptar no âmbito da específica actividade exercida pelo empregador, ou as “leges artis” geralmente observadas no sector, ou os usos nele adoptados, ou, ainda, segundo outra fonte convencional (contrato de trabalho ou instrumento de regulamentação colectiva) que vincule o empregador.
III – Em matéria de responsabilidade civil contratual não está o autor dispensado de alegar a factualidade integrante da acção ou omissão e da sua contrariedade à ordem jurídica (ilicitude), mas já terá facilitada a matéria relativa à imputação subjectiva desse facto (culpa), face ao regime que emerge do artigo 18.º, n.º 1, da LAT, e à presunção estabelecida no artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil
IV – Nas situações de violação de regras de segurança no trabalho, o facto prejudicial aos interesses do outro contraente consubstancia-se geralmente numa omissão e a ilicitude traduz-se na desconformidade entre a conduta do empregador e aquilo que deveria ter sido feito segundo as normas legais que enquadram em geral a obrigação de segurança e as leis próprias que enunciam as regras de segurança a adoptar no âmbito da específica actividade exercida pelo empregador, ou as “leges artis” geralmente observadas no sector, ou os usos nele adoptados, ou, ainda, outra fonte convencional (contrato de trabalho ou instrumento de regulamentação colectiva) que vincule o empregador.
V – No âmbito do Acordo relativo ao Transporte Internacional de Mercadorias Perigosas por Estrada (ADR) e do Decreto-Lei n.º 41-A/2010, de 29 de Abril, que regula o transporte terrestre, rodoviário e ferroviário, de mercadorias perigosas, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/90/CE, da Comissão, de 3 de Novembro, e a Directiva n.º 2008/68/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Setembro, e seus anexos, não se mostra prevista a necessidade de protecção das vias respiratórias dos tripulantes dos veículos de transporte de gasóleo em cisterna, nem que aos mesmos deva ser fornecida máscara de protecção.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
1.1. AA intentou a presente acção declarativa de condenação para efectivação de responsabilidade civil emergente de doença profissional, ao abrigo do artigo 155.º do Código de Processo do Trabalho, contra:
- “Transportes TT, Lda.” e
- “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.”
peticionando a condenação das rés no pagamento da quantia de € 410.000,02.
Em fundamento da sua pretensão alegou, em síntese: que a 1.ª ré se dedica, entre outras, à actividade de transporte de mercadorias perigosas, tais como combustíveis, asfalto, fuel, produtos químicos, lubrificantes e gás; que foi admitido ao seu serviço em 2 de Janeiro de 2009 a fim de exercer as funções de motorista de veículos pesados e ligeiros; que no âmbito dessas funções, a 1.ª ré o incumbiu de conduzir um camião cisterna de transporte de combustível rodoviário e agrícola, assim como das tarefas de carga e descarga para abastecer os combustíveis aos clientes, tais como oficinas de reparação automóvel, postos de abastecimento de combustível, condomínios, empresas agrícolas e particulares; que a 1.ª ré colocou à sua disposição botas, capacete, luvas, viseiras e aventais para o exercício das suas funções; que no exercício das suas funções esteve sempre exposto à inalação de vapores e gases tóxicos emanados dos combustíveis aquecidos; que sempre as exerceu sem a utilização de uma máscara respiratória para evitar a inalação de gases e vapores tóxicos; que, devido a problemas pulmonares, esteve de baixa médica no período compreendido entre Dezembro de 2014 e Abril de 2015, sendo que, em Setembro de 2016, como tivesse voltado a sentir cansaço extremo e dificuldades respiratórias, voltou a ficar de baixa médica, assim permanecendo desde essa data; que lhe foi diagnosticada fibrose pulmonar, insuficiência respiratória parcial e dislipdemia, em correlação ou nexo de causalidade com o manuseamento e exposição, por inalação, de produtos químicos, mais concretamente, combustíveis aquecidos; que se encontra numa situação de incapacidade permanente não inferior a 70% e absoluta para o trabalho habitual, a aguardar transplante pulmonar, tendo sido apresentada participação obrigatória por doença profissional em 14 de Junho de 2017; que a 1.ª ré sabia e não podia deixar de saber que os combustíveis por si comercializados libertam gases e vapores nocivos à saúde e que o sujeitava à sua inalação; que a ausência de condições de segurança para o exercício da sua actividade foi causa directa da doença que padece; que auferia, de retribuição base, a quantia de € 580,00, auferindo, ainda todos os meses, valores a título de diuturnidades, subsídio de risco, complemento de trabalho extra e ajudas de custo; que se encontra incapacitado de exercer a sua actividade profissional, bem como tarefas normais do quotidiano, actividades de lazer ou de desporto, carecendo, ainda, de ajuda permanente de terceira pessoa para a realização de tarefas normais do seu dia-a-dia; que tem dois filhos gémeos, de 7 anos de idade, com os quais não pode jogar à bola, passear, brincar ou simplesmente pegar ao colo devido às lesões de que padece; que a sua doença lhe acarreta perda de alegria de viver, angústia e desgosto e, devido à perda da sua qualidade de vida, é uma pessoa deprimida, triste e isolada.
Em despacho liminar foi decidido que havia erro na forma do processo (a acção prevista no art. 155.º, do CPT, pressupõe a existência de prévia fase conciliatória com a qual o Autor discorde, o que no caso não existe), convolando-se a acção e determinando-se que a mesma prossiga como acção comum.
Realizada a audiência de partes e, não tendo havido conciliação, foi ordenada a notificação das RR. para contestar (fls. 64 e verso).
A ré Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. contestou a acção, alegando, em suma: que o autor configura a acção como de responsabilidade civil derivada de actuação culposa da empregadora que terá provocado doença profissional; que não ocorreu nenhum acidente de trabalho, daí que nenhuma assistência médica ou medicamentosa haja sido prestada ao autor e que não foram alegados quaisquer factos susceptíveis de desencadear a responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho, sendo o regime emergente de doença profissional distinto e independente, pelo que defende a improcedência da acção, devendo, nessa conformidade, ser absolvida dos pedidos contra si formulados.
A ré Transportes TT, Lda. apresentou também contestação, aduzindo desde logo defesa por excepção, na qual invocou a ineptidão da petição inicial e a excepção dilatória inominada decorrente de os pedidos do autor assentarem em doença profissional ainda não reconhecida. No mais, impugnou os factos alegando, em síntese: que o autor exerceu as mesmas funções, de forma ininterrupta e desde, pelo menos, o ano de 2000, para as sociedades Shell e Repsol, sendo que, antes disso, foi, durante largos anos, operário da construção civil; que a máscara respiratória não era, nem é, um equipamento de protecção individual obrigatório; que procede, continuamente, a solicitação de pareceres, avaliações da exposição profissional a agentes químicos e avaliações de riscos profissionais, dispondo, ainda, de inspectores em estrada a fim de aferir se os trabalhadores utilizam os equipamentos de protecção que lhes são disponibilizados, e que o autor nunca solicitou que lhe fosse fornecida máscara respiratória para o exercício da sua actividade, nem nunca informou que os problemas respiratórios de que padece seriam derivados da inalação de gases e vapores tóxicos. Conclui pela procedência da matéria de excepção invocada, com a sua consequente absolvição da instância ou, assim não se entendendo, que se admita o pedido de intervenção provocada – principal ou acessória – da sociedade “Repsol Portuguesa, S.A.” e, a final, ser a acção julgada improcedente com a sua consequente absolvição dos pedidos.
Foi fixado o valor da causa em € 410.000,02, proferido despacho saneador e dispensada a realização de audiência prévia.
No despacho saneador (fls. 212 e ss.) foi julgada improcedente a matéria de excepção invocada pela ré Transportes TT, Lda., foi absolvida da instância, por ilegitimidade, a ré Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. e foi indeferido o pedido de intervenção provocada da Repsol Portuguesa, S.A. formulado pela 1.ª ré.
Fixou-se o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova.
O autor apresentou articulado de ampliação do pedido (fls. 387-389), admitido por despacho de fls. 399.
Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a R. do pedido.
*
1.2. O A., inconformado, interpôs recurso desta decisão e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
“1. A nocividade de hidrocarbonetos, para a saúde humana, é um FACTO PÚBLICO E NOTÓRIO, e tanto assim é que se deu como provado que, ao longo de cerca de 16 anos, o A. esteve exposto a hidrocarbonetos derivados de petróleo (cfr. facto provado n.° 13) e que por via de tal exposição ficou a padecer de doença profissional, com IPP de 99% (cfr. factos provados nrs. 23 a 26).
2. O conhecimento de tal perigosidade, pela Ré, resulta, também, da cláusula 11a do contrato de trabalho junto à petição inicial como documento n.° 2, denominada “TRANSPORTE DE MATÉRIAS PERIGOSAS" e atribuição do respetivo subsídio de risco para o transporte de combustíveis.
3. E, os documentos 5 a 7, juntos pela própria R., com a contestação, expressamente referem a necessidade de utilização de aparelho de proteção respiratória (APR), ao identificarem as vias respiratórias como zona do corpo a proteger, mediante uso de APR, quando o trabalhador é exposto a gases e vapores (por exemplo, cfr. documento n° 5, pág. 10), remetendo a entidade empregadora, na escolha do EPI, para a o anexo II à portaria 98/93, de 6.10, o qual expressamente prevê o APR para proteção das vias respiratórias (cfr. DOC. 5 pág. 12).
4. E tal era, também, o que se extraía do documento junto pela R. em 28.9.23, designado Regras Sobre Boas Práticas Comuns - Transportes Rodoviários - de Produtos Petrolíferos.
5. Por outro lado, como documento n.° 8 com a contestação, a R. juntou um “parecer técnico”, de avaliação da exposição profissional a agentes químicos da atmosfera de trabalho, elaborado em 18.7.2019, aparentemente pelos seus próprios serviços internos, referente à atividade de carga e descarga de combustível, do qual constava que a “concentração de vapores de gasolina depende de fatores climatéricos, nomeadamente, temperatura e humidade ”, e tinha por base um tempo médio de exposição de 2 a 3 horas diárias.
6. Ao juntar tal relatório, a R. jamais alegou - e muito menos demonstrou - que tenha adequado os equipamentos de proteção individual e a prevenção de risco de exposição em função dos fatores climatéricos ali aludidos.
7. E, no documento n.° 9 junto à contestação (“avaliação da exposição profissional a agentes químicos ” elaborada pelo Instituto Ricardo Jorge, em 9.7.2019), referente à descarga de combustíveis (gasolina, gasóleo simples e gasóleo aditivado) de camião cisterna para tanque de abastecimento no subsolo, sem proteção respiratória, conclui-se que “exposições superiores ao VLE-MP (valor limite de exposição - média ponderada) e inferiores ao VLE - CD (valor limite de exposição - curta duração) não devem exceder os 15 minutos e não devem ocorrer mais do que 4 vezes por dia. Estas exposições devem ter um espaçamento temporal de 60 min, pelo menos
8. Ou seja, do confronto entre estes dois relatórios constatava-se, desde logo, que o tempo médio de exposição considerado no primeiro (duas a três horas diárias) excedia largamente o valo médio limite admitido pelo Instituto Ricardo Jorge, para a mesma operação, que não deveria exceder 60 minutos por dia (15 x 4, espaçados por 60 mn de intervalo).
9. E, como se tal não bastasse, apesar de esta operação de abastecimento de combustível (descarga para subsolo) ser diferente da que é descrita no ponto 11° dos factos provados, e de o relatório ser posterior ao período durante o qual o A. desempenhou as tarefas aí mencionadas ao serviço da R., certo é que esta juntou tal documento sem qualquer menção de que em tal período os riscos de exposição eram diferentes ou menores.
10. Aliás, não consta dos autos qualquer relatório semelhante referente ao risco de exposição a hidrocarbonetos durante as operações que o A., de facto, levava a cabo, e que se encontram dadas como assentes (cfr. facto provado n.° 11).
11. Ora, à luz do disposto no art.° 799°, n.° 1, do CC, era sobre a R. que impendia o ónus da prova de que, entre 2009 e 2014, tais operações descritas no facto provado n.° 11 não acarretavam risco de exposição por inalação.
12. Seja como for, em 19.9.23, pelo A., foram juntas aos autos fichas de segurança referentes ao manuseamento de gasóleo rodoviário e de aquecimento, emitidas pela BP, REPSOL (clientes da ré), CEPSA e GALP (DOCS. 1, 2, 3 e 4 com o requerimento de 19.9.23).
13. De tais fichas de segurança resultava, de forma clara, que os produtos que eram manuseados pelo A., ao serviço da ré, eram rotulados com os seguintes riscos: “nocivo por inalação’", “suspeito de provocar cancro"", “pode afetar os órgãos após exposição prolongada ou repetida1", e “mortal por ingestão e penetração nas vias respiratórias".
14. E, a própria R., no seu requerimento de 4.10.2023 (46696794), veio juntar ficha de segurança do produto gasóleo de aquecimento, elaborada pela sua cliente Repsol, em 19.6.2020, da qual, para além dos riscos aludidos (é “nocivo por inalação"", “suspeito de provocar cancro"", “pode afetar os órgãos após exposição prolongada ou repetida", e pode ser “mortal por ingestão e penetração nas vias respiratórias""), resulta o seguinte: “a inalação à temperatura ambiente é improvável devido à baixa pressão do vapor da substância. A exposição aos vapores poderá, no entanto, acontecer quando a substância for manuseada a temperaturas elevadas ou com pouca ventilação” (secção 4.1 - descrição das medidas de primeiros socorros em caso de inalação).
15. Foi, pois, a própria R. a fazer prova documental de que o gasóleo de aquecimento era, também ele, nocivo por inalação, suscetível de provocar emissão de vapores a temperaturas superiores à temperatura ambiente, e impunha utilização de máscara respiratória em caso de exposição prolongada e quando não era possível um conhecimento concreto dos níveis de exposição inerentes a determinada operação.
16. A R. não alegou - e muito menos demonstrou - que a composição de tais produtos era diferente e sem riscos, no referido período de 2009 a 2017.
17. E bem assim, a R., em momento algum, alegou desconhecer tais fichas de segurança ou impugnou a sua autenticidade.
18. A evidência que daí decorre é só uma: a R. expôs o A. a risco de inalação de vapores daqueles combustíveis e não podia deixar de saber que o expunha, porque as caraterísticas dos produtos em causa constavam de tais fichas que eram naturalmente do seu conhecimento.
19. E tanto assim é que se deu como provado que o A. padece de uma incapacidade de 100% por ter sido exposto à inalação de vapores de hidrocarbonetos no exercício da sua profissão, que no exercício da sua profissão, ao serviço da R., o A. não usava máscara respiratória, por não lhe ter sido distribuída pela R. (cfr. facto provado n.° 12), e que à data em que entrou ao serviço da R., em 2009, era um homem SAUDÁVEL (se não o fosse não seria praticante de vários desportos!) e que os primeiros sintomas de dificuldades respiratórias apenas surgiram 5 anos depois, em 2014 (o que resulta do facto provado n.° 31)!
20. Perante tais factos, a conclusão que se retira é a de que a R. expos, de facto, o A. ao risco de inalação de vapores nocivos.
21. Pelo que é manifesto que o Tribunal recorrido não apenas valorou mal a prova como violou, nessa valoração, a repartição do ónus da prova que resultava do disposto no art.° 799°, n.° 1, do CC: ERA A R. QUE TINHA QUE DEMONSTRAR QUE NO PERÍODO EM CAUSA OS GASÓLEOS RODOVIÁRIO E DE AQUECIMENTO NÃO ERAM PREJUDICIAIS POR INALAÇÃO.
22. E tal prova não se confunde com a circunstância de a R. ter identificado o risco como desprezível: A R. TINHA QUE DEMONSTRAR QUE TAL RISCO ERA, DE FACTO, DESPREZÍVEL.
23. Ora, as fichas de segurança dos produtos manuseados pelo A. ao serviço da R. atestam de forma clara que o risco não era, de todo, desprezível, e tanto assim é que o risco se veio a consumar, como se constata pelo transplante pulmonar a que o A. teve de se sujeitar, com todas as consequências devastadoras que daí resultaram.
24. Por outro lado, o manual ADR e recomendações da APETRO são orientações GENERICAS, que não prejudicam a necessidade de avaliação dos riscos em concreto e adequação dos EPI s a distribuir em conformidade, e são recomendações de foro privado, que não emanam de qualquer órgão legislativo, não encontram respaldo em qualquer ato de delegação de poder, e que, como é evidente, não se sobrepõem ao ordenamento jurídico vigente nem afastam os deveres de prevenção estipulados nos arts. 59°, n.° 1, al. c), da CRP, e 281° do Código do Trabalho, e que recaem sobre o empregador, à luz das circunstâncias concretas.
25. Ora, a R. em momento algum demonstrou ter efetuado a avaliação do risco de exposição a vapores durante as operações mencionadas no ponto 11° dos factos provados, de abastecimento de gasóleo rodoviário e de aquecimento a particulares com depósitos acima do solo (e muito menos que tal avaliação tenha sido feita de forma rigorosa, em dias de calor e sem vento, e com elevada humidade, por exemplo).
26. O entendimento segundo o qual tais fichas de segurança não demonstram o conhecimento, pela Ré, das características nocivas para a saúde humana dos produtos manuseados pelo A., corresponde a um erro flagrante na valoração de tal prova documental.
27. E tal entendimento acarreta a evidente violação da regra de repartição do ónus da prova ínsita no art.° 799°, n.° 1, do CC: era à R. que cabia demonstrar que em tal período (2009-2014) a composição de tais produtos era diferente e sem riscos.
28. Em face do que antecede, deverá dar-se como provado que “considerando a atividade comercial a que se dedica, a Ré sabia e não podia deixar de saber que os combustíveis por si comercializados libertam gases e vapores nocivos à saúde (art.° 23°, da p.i.).
29. E, considerando, também, os factos provados ns. 8°, 9° e 11° e 12°, deverá, em face de tal documentação, dar-se como provado que “no âmbito das suas funções, o A. estava exposto à inalação de tais gases e vapores, diariamente, dada a proximidade a que o mesmo se encontrava dos depósitos a abastecer e tendo em conta que essa operação era repetida várias vezes ao dia” (art.° 24° da p.i.).
30. O A. obrigou-se, perante a R., a zelar pela carga, nas operações de carga e descarga (nos termos da cl.a 13a, al. d)do contrato de trabalho junto como documento n.° 2 com a p.i.).
31. E bem assim, a págs. 20 do documento n.° 1 junto pela R. em 28.9.2023, com a REFa: 46646972, denominado “REGRAS SOBRE BOAS PRÁTICS COMUNS - TRANSPORTES RODOVIÁRIOS DE PRODUTOS PETROLÍFEROS”, temos que a ocorrência de derrames era elemento essencial da avaliação do motorista, podendo levar a suspensão (um derrame) e despedimento (dois derrames).
32. Pelo que é evidente que a ocorrência de derrames não era indiferente para o A. e para quem, como ele, exercia, para a R., as funções descritas no ponto 11° dos factos provados.
33. Das declarações de parte do A. (com início em 00:26:18 do ficheiro “Diligencia_2505-19.0T8BRR_2023-09-11 10-04-51”) e do depoimento da testemunha BB, arrolada pela R. (com início em 00:12:19 - 00:12:48 do ficheiro “Diligencia_2505-19.0T8BRR_2023-09-11_12-19-52”), resulta total coincidência quanto aos seguintes factos essenciais:
34. Ao serviço da Repsol, ambos os depoentes tinham por atividade principal o abastecimento de postos de combustível, que dispõem de tanques no subsolo e respiradores para extração dos gases e vapores, localizados a cerca de cinco ou seis metros do ponto de entrada da mangueira operada pelos depoentes.
35. Quando transitaram para o serviço da R., a atividade levada a cabo pelos depoentes passou a ser essencialmente a de abastecimento de depósitos de particulares, a qual acarretava a necessidade de se posicionarem junto à boca do depósito a ser abastecido, para evitar a ocorrência de derrames, já que era impossível determinar a quantidade exata de combustível no tanque.
36. Neste ponto particular, o A. referiu que se colocava, para tal, a cerca de 50 cm da boca do depósito, e BB (testemunha arrolada pela R., repete- se, e que ainda trabalha para R.), referiu que era uma distância de cerca de 15 cm.
37. Ambos referiram que tais abastecimentos tinham uma duração média de 20 minutos cada.
38. Ambos referiram que com transição da Repsol para a R., passaram a realizar mais abastecimentos a clientes particulares, por dia, ao serviço da R., com uma carga horária bastante superior.
39. O tribunal não justificou, sequer, o motivo pelo qual considerou inverosímil a versão dos fatos narrados nos depoimentos transcritos.
40. Ora, à luz do dever de fundamentação, uma tal conclusão (de inverosimilhança de dois depoimentos) carecia de justificação, nomeadamente, sobre como poderiam os derrames ter sido evitados, sem ser pela forma descrita (colocação do trabalhador junto à boca do depósito).
41. Finalmente, na fundamentação da decisão da matéria de facto não se vislumbra uma linha sobre o depoimento da testemunha CC, arrolada pelo A., cunhado deste e colega de trabalho ao serviço da R. (com início a 03m:45sg do ficheiro Diligencia_2505-19.0T8BRR_2023-09-11_11-51-13).
42. Este depoimento, que o tribunal inexplicavelmente omitiu, confirma, ponto por ponto, os factos essenciais descritos pelo A. e pela testemunha BB, nomeadamente, quanto ao número de abastecimentos diários, e ao facto de o trabalhador ter de se colocar junto à boca do depósito (entre 15 centímetros a meio metro) para controlar a progressão do enchimento do depósito e evitar derrames.
43. Pelo que, em face de tais elementos de prova, teria que dar-se como provado que “no âmbito das suas funções, o A. estava exposto à inalação de tais gases e vapores, diariamente, dada a proximidade a que o mesmo se encontrava dos depósitos a abastecer e tendo em conta que essa operação era repetida várias vezes ao dia” (art.° 24° da p.i ).
44. Deu-se, de resto, como provado, que o A. padece de doença profissional absolutamente incapacitante por causa da exposição prolongada a hidrocarbonetos (13°, 23° e 25° dos factos provados) e que a R. não lhe distribuiu máscara respiratória (12° dos factos provados).
45. A prova testemunhal transcrita (a única produzida sobre o modo como o A. desempenhava as tarefas descritas no ponto 11° dos factos provados) é inequívoca no sentido de que o A. se tinha que colocar junto aos depósitos a abastecer para evitar derrames, o que fazia pelo menos 10 vezes por dia!
46. As fichas de segurança do gasóleo rodoviário e de aquecimento elaboradas pela Repsol, Galp, Cepsa e BP são claríssimas quanto à nocividade de tais produtos, por inalação.
47. A R. limitou-se a juntar relatório de avaliação de risco de exposição na operação de abastecimento a postos de combustíveis, que é muito diferente da operação de abastecimento a particulares, com muito menor exposição a vapores, como vimos nos depoimentos supra transcritos, por se tratar de abastecimento para o subsolo, por gravidade, e em depósito com respirador para exaustão de vapores situado a 5 ou 6 metros de distância do local onde o trabalhador introduz a mangueira.
48. E, se é certo que a R. juntou um documento, em 28.9.23, no qual identificou o risco de exposição por inalação como “desprezível”, nas tarefas de carga e descarga dos seus motoristas (o que se deu como provado - cfr. 49° dos factos provados), tal não significa que essa conclusão (risco desprezível) tenha sido precedida de análise prévia dos riscos, mediante utilização de equipamentos de medição dos níveis de exposição e descrição, em concreto, da operação cujo risco era qualificado como desprezível.
49. Caso a R. tivesse promovido a uma avaliação do risco de exposição da operação de abastecimento a depósitos de particulares, tal resultaria, certamente, de um relatório semelhante, que não existe nos presentes autos.
50. Ora, como é evidente, a conclusão, genérica e imprecisa, de que um risco é desprezível, teria que ser acompanhada da demonstração científica dos níveis de exposição medidos, em determinada data e operação concreta, por referência à proximidade do trabalhador ao combustível, à quantidade deste, ao tipo de depósito, temperatura ambiente, e condições climatéricas, por exemplo.
51. Isto, sem esquecer o disposto no art.° 799°, n.° 1, do CC, por um lado, e, por outro, a obrigação que impende sobre o empregador de assegurar as melhores condições de higiene e segurança ao trabalhador.
52. E, sobre esta matéria, das declarações de parte do gerente da R., DD (Diligencia_2505-19.0T8BRR_2023-10-09_10-49-28, com início a 28mn:30sg), resulta a admissão, pelo responsável indicado pela R., que NENHUMA AVALIAÇÃO CONCRETA DO RISCO FOI FEITA PELA R., no que respeita às tarefas que o A. levava a cabo (abastecimento de combustível a particulares), tendo a operação transitado, sem alterações, da Repsol para a R., admitindo aquele nem saber se a Repsol levou a cabo tal avaliação!
53. Em face do exposto, teria que se dar como provado que a Ré não identificou o risco de inalação de gases tóxicos por parte do A., nem tão pouco planificou a execução das suas tarefas de modo a minimizar a exposição deste àqueles riscos (por exemplo, através da distribuição de máscara com filtro respiratório (arts. 25° e 26° dap.i.)).
54. Naturalmente, em face do que antecede, não se poderia dar como provado que nos anos de 2009 a 2013, a R. promoveu a avaliação dos riscos na execução das tarefas de carga e descarga acometidas aos motoristas NO ABASTECIMENTO DE GASÓLEO a particulares.
55. O tribunal entendeu que apenas se deu como provado que a exposição do A. a hidrocarbonetos ocorreu ao longo de 16 anos e não, apenas, ao serviço da R., e que apesar de a exposição decorrer de inalação ser uma conclusão “intuitiva” para leigos, não se logrou apurar com exatidão o meio de exposição que provocou a patologia de que o A. padece.
56. Atendendo, contudo, ao disposto no art.° 799°, n. 1, al. c), do CC, por um lado, e ao dever que impendia sobre a R., de garantir a higiene e segurança do A. (através de exames de aptidão física regulares e atribuição de equipamento de proteção individual adequado), era sobre a R. que recaía o ónus de prova de que o A. já padecia da doença profissional quando entrou ao seu serviço, em 2009.
57. Ora, como vimos, deu-se como provado que o A., em 2.1.2009, começou a trabalhar para a R. (2° facto provado), que os primeiros sintomas da doença pulmonar (infeção respiratória que evoluiu para pneumonia) apenas surgiram em finais de 2014 e que, até essa data, o A. tinha por hábito jogar à bola aos fins de semana, e praticava tiro ao prato e pesca, conforme resulta dos pontos 14° e 31° dos factos provados.
58. Pelo que a matéria dada como provada era inequívoca no sentido de não ter sido feita qualquer prova, pela R., de que a doença pulmonar do A. era preexistente ao seu ingresso nos quadros da R..
59. Aliás, no seu requerimento de 28.9.23, com a REFa: 46646972, a R. alegou que, da informação recolhida, consta que o Trabalhador fez o exame de admissão a 20/12/2008, Empresa de Medicina do Trabalho Clinerg, tendo sido dado como apto. Ou seja, foi a própria R. a demonstrar que o A. era saudável em 20.12.2008.
60. Como se tal não bastasse, por ofício do Centro de Saúde..., em 11.1.2022, foram juntos aos autos os registos clínicos do A., naquela instituição, desde 2006, dos mesmos não constando qualquer referência a problemas respiratórios prévios a dezembro de 2014.
61. Por outro lado, como se extrai dos depoimentos da testemunha BB e do próprio A., o ingresso destes ao serviço da R. foi acompanhado de uma alteração muito substancial das funções desenvolvidas, que passaram a assentar numa carga horária muito superior, e no abastecimento de gasóleo a particulares, com frequência não inferior a dez clientes por dia, com a necessidade de se posicionarem junto à boca do depósito para controlarem a progressão do enchimento e evitarem derrames.
62. O que se traduzia, naturalmente, num risco de exposição a vapores nocivos superior ao da operação de abastecimento de depósitos no subsolo de postos de combustível, descrita no relatório do Instituto Ricardo Jorge junto aos autos pela R..
63. Daqui se conclui que nenhum indício existe de que a doença de que o A. veio a padecer pudesse ser anterior ao seu ingresso na R..
64. Pelo contrário, TODA a prova produzida aponta para o facto de que tal doença surgiu durante a vigência do contrato de trabalho celebrado entre o A. e a R..
65. A R. tinha o dever de realizar exames médicos de rotina ao A., nos termos do disposto no art.° 127°, n.° 1, al. g), do CT.
66. Se o tivesse feito, e se este padecesse, de facto, de doença preexistente, esta teria sido diagnosticada e a R. poderia ter demonstrado nos autos tal preexistência.
67. Ora, afigura-se de mediana clareza que a R. não pode ser beneficiada pela inexistência de registos clínicos que lhe cabia ir obtendo e coligindo ao longo do tempo.
68. Pelo que, mesmo que sobre a R. não recaísse já a presunção de culpa e o ónus de tal prova, por força do disposto no art.° 799°, n.° 1, do CC, sempre a falta de elaboração de registos clínicos de medicina do trabalho que permitissem apontar para a pré-existência da doença pulmonar teria que ser ponderada à luz do disposto no art.° 344°, n.° 2, do CC.
69. Não obstante a natureza das tarefas descritas no ponto 11° dos factos provados, o A. desempenhava-as sem máscara respiratória, por esta não lhe ter sido disponibilizada pela R. (12° facto provado).
70. E, como resulta da perícia de pneumonologia realizada em 26.3.21, no Hospital XX (junta aos autos em 9.4.2021), a exposição consistiu na inalação prolongada de vapores e gases de gasóleo de aquecimento, por necessidade de inspeção visual e direta dos depósitos, de forma quase permanente e com frequência quase diária, sem máscara respiratória e sem equipamento de ventilação, descartando-se outras causas prévias de tal patologia.
71. Finalmente, deu-se como provado que a R. distribuiu ao A. botas, aventais, capacete, luvas e viseiras (9° facto provado). A R. jamais alegou que o A. não tivesse usado tais equipamentos. Pelo que, das duas uma: ou a exposição não decorreu de qualquer contacto com a pele ou tal EPI sempre era inadequado.
72. Seja como for, independentemente de sabermos se por inalação, ingestão, contacto com a pele ou outra, certo é que tal exposição ocorreu e que, repete- se, apenas ao fim de 6 anos ao serviço da R., sem qualquer sintomatologia prévia, surgiram os primeiros sinais da doença.
73. Finalmente, o tribunal desconsiderou, quanto a este ponto da matéria de facto, o próprio teor do relatório pericial elaborado pelo Instituto de Medicina Legal, de 26.10.2022, e que não foi objeto de qualquer reclamação por parte da R..
74. Assim, a resposta ao quesito “desde quando padece o A. destas lesões” é a seguinte: “O quadro em questão trata-se de um quadro evolutivo insidioso. As queixas estão documentadas como tendo iniciado em dezembro de 2014 conforme registos clínicos do centro de saúde. No entanto, para melhor entendimento dos períodos de tempo e incapacidades temporárias admite-se que o examinando padece estas lesões desde o seu diagnóstico anatomopatológico, aquando da emissão do relatório relativo a biopsia pulmonar, ou seja, a 12/4/2017. ”
75. O entendimento de que patologia de que o A. padece poderia ser preexistente à sua contratação pela R. não tem a menor correspondência com a resposta dada pelo INML, e que o tribunal nem um indício de esforço argumentativo faz para contrariar.
76. Pelo que se terá que dar como provado que a exposição do A. a tais riscos, enquanto trabalhador da R., foi causa da doença de que o mesmo padece (art.° 27° da p.i.).
77. Para o tribunal recorrido, o empregador nem sequer tem que demonstrar que realizou estudos tendentes a identificar os riscos inerentes às tarefas desempenhadas pelo A.: basta que tenha feito outros estudos para outras tarefas.
78. Aliás, da sentença recorrida resulta que o tribunal acredita que a ré realizou estudos no tempo e locais de trabalho do A., apesar de estes não terem sido juntos aos autos, e, estranhamente, APESAR DE A R. JAMAIS TER ALEGADO QUE OS REALIZOU.
79. Tal entendimento, para além de atentatório do senso comum, constitui um grosseiro atropelo da regra ínsita no art.° 799°, n.° 1, do CC: incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.
80. De facto, não era ao A. que cabia medir os níveis de exposição a vapores em cada dia em que esteve ao serviço da R., e no desempenho das tarefas descritas no ponto 11° dos factos provados, nem isso lhe era exigível por não ter meios nem formação para tal, nem resultar das suas funções contratualmente assumidas no âmbito do contrato de trabalho celebrado com a R..
81. Pelo contrário, tal era uma obrigação da R., nos termos do disposto nos arts. 127°, n.° 1, al. g), e 281°, do Código do Trabalho, e 3°, als. a) e b), do art.° 15°, da Lei n.° 102/2009, de 10.9, e, também, do DL 50/2005, de 25.2 (Prescrições Mínimas de Segurança e de Saúde na Utilização de Equipamentos de Trabalho).
82. Pelo que, somando-se tal obrigação ao ónus da prova decorrente do disposto no art.° 799°, n.° 1, do CC, teriam que se dar como provados os seguintes factos:
• Considerando a atividade comercial a que se dedica, a Ré sabia e não podia deixar de saber que os combustíveis por si comercializados libertam gases e vapores nocivos à saúde (art. ° 23°, da p.i.), e que, no âmbito das suas funções, o A. estava exposto à inalação de tais gases e vapores, diariamente, e com grande intensidade, dada a proximidade a que o mesmo se encontrava dos depósitos a abastecer e tendo em conta que essa operação era repetida várias vezes ao dia (art.° 24° da p.i.);
• Ré não identificou o risco de inalação de gases tóxicos por parte do A., nem tão pouco planificou a execução das suas tarefas de modo a minimizar a exposição deste àqueles riscos (por exemplo, através da distribuição de máscara com filtro respiratório (arts. 25° e 26° da p.i.)); Em conformidade, não se poderia dar como provado que nos anos de 2009 a 2013, a R. promoveu a avaliação dos riscos na execução das tarefas de carga e descarga acometidas aos motoristas NO ABASTECIMENTO DE GASÓLEO a particulares.
• A exposição do A. a tais riscos, enquanto trabalhador da R., foi causa da doença de que o mesmo padece (art.° 27° da p.i.).
83. Naturalmente, a consideração de tais factos como provados impunha a condenação da R. nos valores peticionados a título de danos morais e patrimoniais, se se configurasse a sua responsabilidade como delitual (nos termos conjugados dos arts. 18° da LAT e 483° e ss. do CC), por se mostrarem verificados os pressupostos da ilicitude (violação da integridade física por inobservância dos citados deveres legais de prevenção da saúde do trabalhador) e negligência.
84. Idêntica conclusão se alcançaria por força da verificação do incumprimento contratual, pela R., da obrigação de segurança e saúde do empregador para com o trabalhador.
85. Independentemente, porém, de tudo quanto antecede, certo é que, nos termos do direito aplicável, o conjunto de factos dados como provados impunham, por si só, a condenação da R..
86. De facto, deu-se como provado que o A. padece de doença profissional por ter estado exposto a hidrocarbonetos, desde 2000 a 2017, ao serviço da Repsol e da R. (13°, 23° e 25° factos provados), que quando entrou ao serviço da R., em 2009, fazia uma vida normal, praticando desporto regularmente (31° facto provado), que apenas em 2014 surgiram os primeiros sintomas (14° facto provado), que entre 2009 e 2014, ao serviço da R., abastecia cerca de 10 depósitos de clientes particulares, por dia, tendo cada abastecimento a duração de 20 minutos, acarretando a necessidade de se aproximar da entrada do depósito no início e próximo do período de conclusão do abastecimento para evitar potenciais derrames (11° facto provado), e que, para tal, a R. não lhe distribuiu máscara respiratória (9° e 12° factos provados).
87. Em síntese, como vimos, o tribunal recorrido enquadrou a responsabilidade da ré como contratual e procedeu corretamente à enunciação das normas das quais decorre a previsão do dever de prevenção que impende sobre o empregador: os arts. 5° e 15°, da Lei n.° 102/2009, de 10.9, e o art.° 3° do DL n.° 50/2005, de 25.2, concluindo que tais normas definem o princípio da prevenção, consagrado pelo art.° 59°, n.° 1, al. c), da Lei Fundamental.
88. Contudo, a interpretação de tal conjunto de normas e a sua aplicação no caso concreto é absolutamente errada e contrária à letra e ratio de tais normas.
89. A afirmação de que não se pode concluir que a exposição tenha excedido os limites legais, esbarra, numa evidência: A R. JAMAIS PROCEDEU À DEMONSTRAÇÃO DE QUAIS OS VALORES A QUE O A. ESTAVA EXPOSTO.
90. A R. não fez prova de ter cumprido o dever de prevenção, mediante uma avaliação CONCRETA, RIGOROSA, OBJETIVA, e SINDICÁVEL, de quais os riscos a que o A. estava, de facto exposto.
91. Sucede que tal era uma obrigação da R., e não do A., nos termos do disposto nos arts. 127°, n.° 1, al. g), e 281°, do Código do Trabalho, e 3°, als. a) e b), do art.° 15°, da Lei n.° 102/2009, de 10.9, e, também, do DL 50/2005, de 25.2 (Prescrições Mínimas de Segurança e de Saúde na Utilização de Equipamentos de Trabalho).
92. Pelo que, à luz do disposto no art.° 799°, n.° 1, do CC, e, também, do disposto no art.° 344°, n.° 2, do CC (caso se configurasse a responsabilidade da ré como extracontratual), nunca poderia o tribunal penalizar o A. pela inexistência de prova relativa aos concretos valores de exposição ocorridos entre 2009 e 2014.
93. A relevância dada ao ponto 56° dos factos provados configura uma grotesca subversão da presunção de culpa estatuída no art.° 799°, n.° 1, do CC, e um atropelo grosseiro do dever de prevenção, que é, assim, para todos os efeitos, esvaziado de conteúdo por tal interpretação.
94. O entendimento segundo o qual a R. pode ser eximida de responsabilidade pela inobservância do dever de prevenção porque o A. não lhe deu conhecimento das consequências de tal inobservância não tem o menor respaldo no disposto nos arts. 127°, n.° 1, al. g), e 281°, do Código do Trabalho, e 3°, als. a) e b), do art.° 15°, da Lei n.° 102/2009, de 10.9, e, também, do DL 50/2005, de 25.2 (Prescrições Mínimas de Segurança e de Saúde na Utilização de Equipamentos de Trabalho) e constitui uma muito flagrante violação das regras de repartição do ónus da prova (art.° 799°, n.° 1, do CC).
95. A demonstração da prévia existência de “doença, que, pela sua natureza, é evolutiva, tantas vezes insidiosa ” cabia à R., tendo o entendimento, contrário, do tribunal, violado o disposto no art.° 799°, n.° 1, do CC, e 127, n.° 1, al. g), do CT.
96. E mesmo seguindo o regime da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, o simples facto de se considerar que a doença profissional de que o A. padece resultou de 16 anos de exposição a hidrocarbonetos e não apenas da exposição ocorrida entre 2009 e 2014, ao serviço da R., não poderia levar à absolvição da R..
97. De facto, perante os factos dados como provados, a consequência seria a prevista no art.° 497° do CC. E, à luz de tal preceito, nada obstaria à condenação da R., face à matéria de facto provada, sem prejuízo de a mesma, em ação subsequente, instaurar ação contra a Repsol, para exercício do direito de regresso, na medida da proporção das culpas de cada uma, considerando, aliás, que o próprio legal representante da R. admitiu não ter avaliado os riscos das tarefas descritas em 11° dos factos provados porque confiou que tal era feito pela Repsol.
98. A idêntica conclusão se chegaria, também, por via da aplicação do regime da responsabilidade pelo risco, cujos pressupostos se mostram, também, preenchidos, atendendo aos factos dados como assentes.
99. Por tudo o que antecede, é manifesto que a sentença recorrida fez errada interpretação do direito aplicável aos factos dados como provados, devendo ser, em consequência revogada, com a consequente condenação da R..
100. Resultam provados os factos suficientes, para, com a revogação da sentença recorrida, a R. ser condenada no pagamento ao A. das seguintes quantias:
101. No período compreendido entre 12.1.2017 e 22.1.2020 A. sofreu perda salarial mensal, média, de 902,03 € (1.516, 29 € - 614, 29 €), e total de 32.473,22 €.
102. O A. sofreu dano patrimonial correspondente a perda de capacidade de ganho, traduzida na perda de remunerações futuras, não inferior a 369.315,20 € (32 x 19.365,00 € - 7.823,90 €).
103. No que respeita aos montantes peticionados a título de dano biológico, no valor de 100.000,00 € (traduzido nas limitações do dia a dia, essencialmente) e danos morais, no valor de 250.000,00 €, foi o próprio tribunal recorrido a reconhecer a sua importância devastadora, como se extrai do ponto 4.2 da fundamentação de direito.
104. A existência de tais danos mostra-se alicerçada no relatório do INML, de que a R. não reclamou, e dos factos provados 14° a 27°, e 31° a 41°.
105. A equidade de tais pedidos, é confirmada pela jurisprudência dos tribunais superiores mais recente.
106. Em face do exposto, deve a douta sentença recorrida ser revogada e, em conformidade, ser a R. condenada no pagamento ao A. de tais montantes, acrescidos de todas as despesas já suportadas e a suportar com cirurgias, exames, medicamentos, equipamentos, tratamentos, internamentos, consultas, deslocações e reabilitação relacionadas com a doença profissional descrita nos autos, e de juros de mora à taxa legal.”
*
1.3. A R. apresentou contra-alegações que concluiu do seguinte modo:
“a) Ao serviço da Recorrida, o Recorrente desempenhou funções de carga e descarga de combustível (gasóleo), em postos de combustível e em clientes particulares, actividade essa que já tinha desenvolvido, durante anos, para a Repsol, sua anterior entidade empregadora;
b) O gasóleo (ao contrário da gasolina, produto nunca transportado pelo Recorrente) não liberta gases/vapores;
c) Os EPI's dados pela Repsol e pela Recorrida foram os mesmos e são os que estão estipulados como obrigatório para a actividade (transporte de combustíveis) e produto em causa (gasóleo, classe 3), seja para operadores nacionais, seja para operadores internacionais: roupa antifúngica, botas de biqueira de aço, capacete e luvas
d) Não existe normativo legal, ou outro, que obrigue ou imponha outro EPI - nomeadamente, máscara respiratória - para a actividade de transporte de combustível (gasóleo, classe 3)
e) Ao longo da relação laboral a Recorrida deu formação ao Recorrente relacionada com os riscos da actividade desenvolvida e sobre os EPI's obrigatórios
f) A Recorrida tem na estrada/terreno diversos fiscais para verificarem o cumprimento das instruções relativas às cargas e descargas mas também dos uso dos EPI's (tanto mais que tem auditorias anuais das petrolíferas)
g) A Recorrida sempre efectuou regularmente avaliações de risco da actividade em causa e até pediu pareces a entidades externas (ex: Instituto Ricardo Jorge)
h) O Recorrente nunca informou a Recorrida da sua doença, do seu estado de saúde nem nunca solicitou alteração de funções ou de EPI's (nomeadamente, nunca solicitou máscara respiratória)
i) A Recorrida, empresa com 50 anos de actividade, nunca teve uma situação como a do Recorrente em nenhum dos seus colaboradores, nem tem conhecimento que algo similar alguma vez tenha acontecido com algum trabalhador de um outro operador nacional
j) Os exames de medicina de trabalho efectuados pela Recorrente aos seus trabalhadores motoristas de transporte de combustíveis cumprem todos os formalismos legais e respeitam o protocolo Apetro;
k) Em 2016, em exame periódico, o Recorrente foi considerado apto
Assim, cremos que dúvidas não podem restar a este Venerando Tribunal que nada mais poderia ser exigido à Recorrida, não existindo, por isso, qualquer violação de regras de segurança e saúde no trabalho já que não houve qualquer facto ilícito seu, culpa e mesmo nexo de causalidade entre o facto e o dano,
Pelo que não tem o Recorrente direito aos valores que peticiona.
Assim, a Recorrida não tem dúvidas que nenhuma alteração deve ser feita na factualidade provada e não provada, sendo a sentença proferida isenta de vícios, nulidades ou erros, pelo que deverá ser mantida por este Venerando Tribunal, o que se requer.
Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o Douto suprimento de V. Exas.,
a) Deve ser rejeitado o recurso na parte em que impugna a matéria de facto com reapreciação de prova gravada por incumprimento do disposto no artigo 640°, n° 2, alínea a), do NCPC; e
b) Deve o presente recurso ser considerado improcedente, com a consequente manutenção da decisão recorrida!”
*
1.4. O recorrente suscitou a questão da intempestividade das contra-alegações apresentadas em requerimento apresentado em 19 de Abril de 2024 e, na mesma peça, veio afirmar que, por lapso, apenas identificou o trecho final das declarações de parte e indicou os minutos em que se compreende o trecho que pretende invocar, fazendo o mesmo quanto a trechos de um depoimento testemunhal que invoca (fls. 797-800).
*
1.5. A recorrida respondeu defendendo se considere que as contra-alegações foram tempestivamente apresentadas e alegando, ainda, que o recorrente não pode rectificar a sua alegação e que deve ser recusado parcialmente o recurso na parte em que solicita a reapreciação de prova (fls. 801-802).
*
1.6. O recurso foi admitido com efeito devolutivo, afirmando a Mma. Juiz a quo serem tempestivas as contra-alegações apresentadas.
*
1.7. Recebidos os autos nesta Relação, em despacho da ora relatora, em conformidade com o despacho liminar, que definiu a forma de processo comum como a adequada e se reveste de força de caso julgado formal (cfr. o artigo 620.º do Código de Processo Civil), foi decidido serem tempestivas as contra-alegações apresentadas.
Foi ainda considerada improcedente a questão prévia de o requerimento de interposição de recurso não ser dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, também suscitada pela recorrida.
E reservou-se para a Conferência a análise da questão do incumprimento por parte do recorrente do ónus previsto no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, na impugnação da decisão de facto, tendo em consideração que a recorrida se reporta, especificamente, a um ónus (a exigência da indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados) cujo incumprimento ou cumprimento deficiente a jurisprudência tem entendido que apenas acarreta a rejeição nos casos em que se dificulte, gravemente, a análise pelo tribunal de recurso e/ou o exercício do contraditório pela outra parte.
*
1.8. Perante este despacho, o recorrente veio apresentar novo requerimento em que indicou ter apresentado em 19 de Abril de 2024 requerimento em que supriu as alegadas insuficiências (incompleta identificação dos depoimentos que sustentam o recurso sobre a matéria de facto), mas deu-se agora conta de que apresentou tal requerimento incompleto, requerendo a junção desse requerimento integral, com a rectificação das transcrições, o que faz a fls. 810 a 816.
*
1. 1.9. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em douto Parecer, concluiu que a matéria de facto impugnada pelo recorrente deve ser mantida e que o recurso, em matéria de direito, não merece provimento.
*
1.10. Apenas o recorrente respondeu a este Parecer, dele discordando.
*
1.11. Foi, entretanto, recebido da 1.ª instância expediente remetido pelo Instituto da Segurança Social contendo uma impugnação judicial da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário formulado pelo recorrente àquele Instituto, no sentido de lhe ser concedido o benefício do Apoio Judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (fls. 827 e ss.).
Por despacho da ora relatora considerou-se este tribunal de 2.ª instância incompetente para conhecer da impugnação do referido acto administrativo de indeferimento e determinou-se a remessa do expediente respectivo ao tribunal a quo.
*
Colhidos os “vistos” e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
1. 2. Objecto do recurso
2. *
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho.
Ao tribunal de recurso cabe ainda apreciar as questões que se suscitem nas contra-alegações (artigo 81.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho) e as que, entretanto, surjam nos autos de que lhe caiba competência para decidir.
Assim, as questões que incumbe enfrentar são, por ordem lógica da sua apreciação, as seguintes:
1.ª – da questão prévia da admissibilidade das peças processuais juntas pelo recorrente a fls. 797 e ss. e 810 e ss;
2.ª – da impugnação da matéria de facto, o que pressupõe a análise do cumprimento, pelo recorrente, dos ónus legais para essa impugnação;
3.ª – de saber se a doença profissional de que padece o recorrente provém da violação, pela recorrida, enquanto empregadora daquele, da obrigação de garantir a saúde e segurança do recorrente ao longo do tempo em que o mesmo executou funções de transporte e abastecimento de gasóleo ao seu serviço, por não ter procedido à devida avaliação dos riscos de exposição e consequente atribuição de equipamento de proteção individual adequado, designadamente máscara de protecção;
4.ª – caso se considerem preenchidos os pressupostos da responsabilidade da recorrida, cabe aferir dos termos e medida dessa responsabilidade.
6. *
3. Questão prévia
7. *
Uma vez notificado das contra-alegações do recurso, nas quais a recorrida alegou, além do mais, que o recorrente não havia cumprido os ónus legais de impugnação da decisão de facto previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, veio o recorrente em 2024.04.19 (fls. 797 e ss.) referir que por lapso apenas identificou nas suas alegações o trecho final das declarações de parte e não cumpriu com a indicação das passagens concretas. Desenvolve, depois, alegação para colmatar tal invocado lapso, indicando os minutos em que se compreende o trecho que pretende invocar, fazendo o mesmo quanto a trechos de um depoimento testemunhal que invoca (fls. 797-800).
Mais tarde, já nesta instância, e após notificado do despacho liminar da relatora, veio apresentar novo requerimento em 2024.07.04 (fls. 810 e ss.) no qual invoca, desta feita, que o requerimento que apresentou em 2024.04.19, já após as contra-alegações, no qual “supriu as alegadas insuficiências” das alegações, se encontra incompleto, requerendo a sua junção “na íntegra”. Nesta última peça desenvolve também alegação para colmatar o invocado lapso, indicando os minutos em que se compreende o trecho dos depoimentos de duas testemunhas e do legal representante da R. , com a respectiva transcrição.
Ora, como bem diz a recorrida, não lhe era lícito proceder deste modo.
Com efeito, não resulta do todo das alegações que a omissão, nas mesmas, do que o recorrente diz derivar de um “lapso” seja efectivamente resultado de um lapso ou erro material, – que pudesse ser rectificado em face do disposto no artigo 249.º do Código Civil – pois que este sempre teria que resultar evidente, ou manifesto, do próprio texto das alegações.
Estava, pois, vedado ao recorrente, uma vez que se havia já esgotado o prazo de apresentação das alegações de recurso – artigo 80.º, n.º 1 e 3 do Código de Processo do Trabalho –, alegar a mais, o que quer que fosse, em fundamento da apelação deduzida.
Acresce que, em face do disposto no artigo 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, nunca seria possível a prolação de um despacho de aperfeiçoamento – que não teve lugar –, na medida em que tal possibilidade se mostra reservada às conclusões, que não ao corpo das alegações. E não se mostra prevista também a possibilidade de aperfeiçoamento no que respeita à impugnação da decisão da matéria de facto, pois que, por força do disposto no artigo 640.º, n.º 1, in fine, do mesmo diploma, a alternativa está na admissão ou na rejeição do recurso1.
Nesta conformidade, não se admitem as peças processuais juntas pelo recorrente em 2024.04.19 e 2024.07.04, a fls. 797 e ss. e 810 e ss., respectivamente.
*
8. 4. Fundamentação de facto
4.1. O recorrente dedica uma grande parte das suas alegações à impugnação da decisão da matéria de facto.
Nas contra-alegações, a recorrida invoca que o recorrente não cumpriu o ónus do artigo 640°, n° 2, alínea a), do CPC pois se limita a referir o momento do início, mas não o do fim, das suas declarações de parte, se limita a referir o momento do início de todo o depoimento da testemunha BB e não indica as passagens do mesmo, o mesmo sucedendo com o depoimento da testemunha CC e com as declarações de parte do gerente da Ré. Defende que, por isso, deve a impugnação da matéria de facto com reapreciação da prova gravada ser rejeitada.
Vejamos.
A propósito dos requisitos para a impugnação da matéria de facto, estabelece o artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, “sob pena de rejeição”: “a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”. Para o caso previsto na citada alínea b), dispõe a alínea a) do n.º 2 que “[q]uando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Como temos repetidamente afirmado, o critério subjacente à definição da conformidade das conclusões com o comando do artigo 640.º do CPC está necessariamente relacionado com a respectiva aptidão para exercerem a sua função delimitadora e sinalizadora do campo de acção interventiva do tribunal de recurso. É esta função das conclusões que legitima a existência de normas processuais que as exijam.
Além disso, cabe ter presente que, uma vez que as conclusões delimitam o objecto do recurso – artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, aplicáveis ex vi do disposto nos artigos 1.º, n.º 2, alínea a), e 87.º do Código de Processo do Trabalho –, é necessária a indicação, nas conclusões, pelo menos, dos concretos pontos de facto de cuja decisão o recorrente discorda, embora se admita que a indicação dos meios de prova em que o recorrente sustenta a sua discordância possa ter lugar nas alegações, pois que consubstancia matéria relativa à correspondente fundamentação. Quanto ao sentido da decisão, cabe atender ao recente Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/20232, segundo o qual nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, “o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”..
No caso em análise, a indicação dos concretos pontos de facto elencados na sentença que o recorrente considera incorrectamente julgados não foi feita do modo mais ortodoxo mas é possível a este tribunal, apesar de tudo, apreender o que foi impugnado. O recorrente, não obstante estar a impugnar a decisão constante da sentença, que tem um elenco de factos provados e não provados, faz a sua alegação por reporte ao articulado inicial, defendendo que devem ser aditados e provados os factos que alegou nos artigos 23.º a 27.º da petição inicial (conclusões 28.ª, 29.ª, 43.ª, 53.ª, 76.ª e 82.ª), em vez de identificar os segmentos da decisão em que a Mma. Juiz a quo reputou os factos alegados em tais artigos da petição inicial como “não provados”, a saber, os pontos 1., 4. e 5. dos factos “não provados”. Além disso, resulta das conclusões da apelação (conclusões 54.ª e 82.ª) que também impugna a decisão constante do ponto 49. dos factos provados na sentença, que não identifica por referência à sua numeração no elenco de factos provados, mas apenas descritivamente, não restando dúvidas ao tribunal de que é o factp 49. o que o recorrente tem em vista e de que é sua pretensão que se considere o mesmo como não provado.
A questão poderá colocar-se quanto à falta de indicação das passagens das gravações dos depoimentos e declarações em que o recorrente se funda para alcançar uma diferente decisão de facto. Isto porque o recorrente não localiza com exactidão as passagens da gravação em que se funda por referência à gravação efectuada na audiência de julgamento, como resulta da leitura da sua peça alegatória e bem nota a recorrida.
Verifica-se, contudo, que a recorrente concretiza a prova pessoal em que se baseia, não só identificando as testemunhas e as partes (por apelo às suas declarações de parte, ao depoimento da testemunha BB, ao depoimento da testemunha CC e às declarações de parte do gerente da Ré), como ainda transcrevendo os excertos dos depoimentos em que se fundamenta, para além da demais argumentação que aduz, para ver alterada a decisão de facto.
Embora a redacção da alínea a) do artigo 640.º, n.º 2, do Código de Processo Civil indicie a necessidade de, em primeira mão, se indicarem as passagens da gravação em que se funda o recurso, constituindo a transcrição um “mais” de que o recorrente pode lançar mão, entendemos que se mostra suficientemente cumprido o ónus prescrito naquela norma se o recorrente identifica correctamente as testemunhas cujo depoimento pretende ver reapreciado, o mesmo sucedendo com as partes, se os factos indicados são precisos, não demandando particulares dificuldades no sentido da sua concreta identificação, e se a transcrição efectuada é, em si, elucidativa quanto aos fundamentos por que o recorrente pretende uma decisão de facto diversa, como sucede no caso vertente3.
Há ainda a ter em consideração que a exigência da indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados constitui um ónus cujo incumprimento ou cumprimento deficiente a jurisprudência tem entendido que apenas acarreta a rejeição nos casos em que se dificulte, gravemente, a análise pelo tribunal de recurso e/ou o exercício do contraditório pela outra parte4, o que no caso não ocorre como se infere da leitura das contra-alegações.
Assim, apesar da apontada deficiência da alegação da recorrente, entendemos não ser caso de rejeição do recurso em matéria de facto pois que resulta da peça recursória globalmente considerada os pontos da decisão constante da sentença de que o recorrente discorda, sendo possível descortinar das alegações e das conclusões, apesar do seu menor rigor formal, os meios probatórios que, no seu entender, demonstram os erros de julgamento que considera ocorrer, bem como a decisão que defende dever ser proferida sobre os pontos de facto impugnados.
Julga-se improcedente a questão prévia suscitada pela recorrida.
*
4.2. A impugnação da matéria de facto
(…)
*
4.3. A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos:
«1. A ré5 dedica-se, entre outras actividades, ao transporte de mercadorias perigosas, tais como combustíveis, asfaltos, fuel, produtos químicos, lubrificantes e gás.
2. Datado de 2 de Janeiro de 2009, autor e ré subscreveram o convénio denominado “Contrato de Trabalho a Termo Certo” nos termos do qual o autor se obrigou a, sob as ordens, direcção e fiscalização da ré, exercer as funções inerentes à categoria profissional de motorista, competindo-lhe, nesse âmbito, a condução de veículos automóveis (pesados e ligeiros), e zelar, na sua execução, pela boa conservação e limpeza do veículo, pela carga que transporta e sua guarda, orientação da carga e descarga e, ainda, a sua amarração (cfr., cláusula 1.ª).
3. Em contrapartida do exercício das funções referidas em 2., convencionaram autor e ré que esta lhe pagaria a retribuição mensal ilíquida de € 585,00 (cfr., cláusula 9.ª).
4. Convencionaram, ainda, as partes o pagamento de ajudas de custo e de um subsídio de risco, nos termos constantes das cláusulas 11.ª e 12.ª, do convénio referido em 2., cláusulas essas cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
5. Datado de 2 de Julho de 2009, autor e ré subscreveram novo convénio a que denominaram “Contrato de Trabalho a Termo Certo”, sendo o seu teor em tudo idêntico, no que ora releva, ao convénio referido em 2..
6. Datado de 2 de Janeiro de 2010, autor e ré subscreveram o convénio denominado “Adenda ao Contrato de Trabalho a Termo Certo Celebrado em 2 de Janeiro de 2009”, nos termos do qual acordaram em prorrogar este contrato por mais 12 meses, com início em 2 de Janeiro de 2010.
7. Acordaram as partes, nos termos dos ditos convénios, que o autor exerceria a sua actividade 40 horas semanais, em regime de horário móvel.
8. Ao autor foram, em concreto, atribuídas as seguintes tarefas: condução de camião cisterna de transporte de combustível rodoviário, agrícola e combustível de aquecimento (os denominados combustíveis brancos, no caso, gasóleo); carga e descarga com vista ao abastecimento dos referidos combustíveis aos clientes da ré, tais como oficinas de reparação automóvel, postos de abastecimento de combustível, condomínios, empresas agrícolas e particulares.
9. Nos termos dos convénios referidos em 2., 5. e 6., ao autor foi atribuído, pela ré, o seguinte equipamento de trabalho: botas, capacete, luvas, viseiras e aventais.
10. Equipamento esse que o autor se obrigou a utilizar.
11. A fim de executar as tarefas referidas em 8., designadamente as de abastecimento de combustíveis de clientes particulares da ré, serviço que era o predominantemente efectuado pelo autor e que compreendia entre 9 a 10 clientes por dia, com a duração de, em média, 20 minutos, em função da quantidade do produto a abastecer, procedia este à inspecção/sondagem do tanque/depósito aquando do início do abastecimento, introduzia neste a mangueira que transportava o combustível, marcava, no contador, a quantidade de combustível solicitada pelo cliente e, próximo do período de conclusão do abastecimento, permanecia junto ao tanque/depósito a fim de evitar potenciais derrames, retirando, findo o abastecimento, a mangueira.
12. Na execução das suas tarefas, o autor nunca utilizou, por não lhe ter sido disponibilizada pela ré, uma máscara respiratória.
13. Devido à actividade profissional que exerceu ao longo de cerca de 16 anos, o autor esteve exposto a hidrocarbonetos derivados do petróleo.
14. O autor esteve em situação de incapacidade para o trabalho, vulgo baixa médica, desde 26 de Dezembro de 2014 até 15 de Abril de 2015, por infecção respiratória que evoluiu para pneumonia.
15. O autor voltou a estar em situação de incapacidade para o trabalho desde 12 de Setembro de 2016 até 30 de Setembro de 2016, então por dificuldades respiratórias (queixas de falta de ar).
16. O autor esteve em situação de incapacidade para o trabalho desde 12 de Janeiro de 2017, estando documentados certificados de incapacidade para o trabalho até 10 de Junho de 2019.
17. Em 19 de Fevereiro de 2015, após realização de exames complementares – TAC – ao autor foi diagnosticada fibrose pulmonar e padrão de pneumonia intersticial usual.
18. No início de 2017, foi prescrita ao autor oxigenoterapia de Longa Duração (OLD) – 24 horas por dia.
19. Em 9 de Junho de 2017, o autor efectuou provas de função respiratória no Hospital XXServiço de Pneumologia, tendo sido emitido relatório, em 19 de Junho de 2017, que concluiu por alteração ventilatória restritiva grave, transferência alvéolo-capilar comprometida e trocas gasosas (em repouso) mantidas.
20. No período compreendido entre 27 de Março de 2017 e 31 de Março de 2017, o autor esteve internado no Hospital YY, tendo efectuado a seguinte terapêutica: analgesia, antibioterapia e cinesiterapia respiratória, mais tendo sido, em 28 de Março de 2017, submetido a intervenção cirúrgica que consistiu na ressecção em cunha do segmento VI por videotoracoscopia.
21. Em Junta Médica de 11 de Julho de 2018, ao autor foi atribuída, desde 2018, uma incapacidade de 70%, carecendo o autor, desde o início de 2017, de oxigénio 24 horas por dia.
22. Em 1 de Março de 2017, o autor foi referenciado para consulta de transplante pulmonar, transplante bipulmonar que veio a ser realizado em 5 de Dezembro de 2019.
23. No dia 19 de Julho de 2017, foi efectuada participação por doença profissional, tendo o médico que procedeu à participação obrigatória, o Dr. EE, emitido parecer no sentido da existência de «nexo de causalidade entre as lesões pulmonares que [o autor] apresenta e os produtos químicos com que trabalha. Em meu entender dever ser atribuída a reforma por invalidez por doença profissional».
24. O mesmo médico efectuou, na dita participação, o seguinte diagnóstico provisório:
«Pneumonite de hipersensibilidade crónica em fase de fibrose pulmonar. Evolução desfavorável com necessidade de O2 24h7dia. A situação clínica é causa de grande incapacidade».
25. O processo de doença profissional foi concluído no Departamento de Protecção contra os Riscos Profissionais da Segurança Social em 14 de Fevereiro de 2022, tendo sido determinada a seguinte situação:
«Existe nexo de causalidade entre a exposição profissional e a doença declarada. Incapacidade funcional de Grau IV da TNI. cap VII. Atribuída IPP de 90% mais aplicação do factor de correcção para a idade (1.5)».
26. Na sequência do referido em 25., foi atribuída ao autor, pelo Departamento de Protecção contra os Riscos Profissionais da Segurança Social, uma IPP de 100%, por Fibrose Pulmonar, e pensão, desde 6 de Dezembro de 2019, no valor mensal de € 528,84.
27. O autor esteve em lista de espera para transplante pulmonar, tendo efectuado transplante bipulmonar em 5 de Dezembro de 2019, com consolidação em 15 de Julho de 2020.
28. No período compreendido entre Janeiro e Setembro de 2016, o autor auferiu, ao serviço da ré, as seguintes prestações:
- retribuição base/vencimento: € 585,00;
- diuturnidades; € 28,06;
- subsídio de risco: € 99,54, no mês de Janeiro; € 71,10, no mês de Fevereiro; € 90,60, no mês de Março; € 113,76, no mês de Abril; € 85,32, no mês de Maio; € 80,58, no mês de Junho; € 80,58, no mês de Julho; € 104,28, no mês de Agosto; € 56,88, no mês de Setembro;
- complemento trabalho extra: € 25,00, no mês de Fevereiro; € 25,00, no mês de Março; € 50,00, no mês de Abril; € 75,00, no mês de Maio; € 25,00, no mês de Junho; € 50,00, no mês de Julho; € 50,00, no mês de Agosto; € 25, no mês de Setembro;
- ajudas de custo: € 1.028,00, no mês de Janeiro; € 715,00, no mês de Fevereiro; € 878,00, no mês de Março; € 1.228,00, no mês de Abril; € 834,00, no mês de Maio; € 715,00, no mês de Junho; € 819,00, no mês de Julho; € 1.057,00, no mês de Agosto.
29. Desde Janeiro de 2019, a retribuição base do autor ascende a € 630,00.
30. O autor nasceu no dia 8 de Novembro de 1974.
31. O autor, até ao surgimento dos primeiros sintomas – em finais de 2014 –, tinha por hábito jogar à bola ao fim-de-semana, assim como gostava de praticar tiro ao prato e pesca, de conviver com os amigos, sendo uma pessoa alegre e bem-disposta.
32. A partir daquele momento, o autor deixou de praticar tais actividades.
33. No período compreendido entre o início do ano de 2017 até à realização do transplante bipulmonar, o autor não conseguia respirar pelos seus próprios meios, padecendo de um quadro de cansaço generalizado.
34. FF nasceu no dia ... de ... de 2012, sendo seus progenitores o ora autor e GG.
35. HH nasceu no dia ... de ... de 2012, sendo seus progenitores o ora autor e GG.
36. O autor terá novamente sido pai há aproximadamente 2 anos.
37. O autor, devido à doença que padece, não tem apetência para estar com os amigos ou socializar, tendo, também, receio, devido à medicação que toma, que lhe transmitam vírus potenciadores de infecção.
38. O autor, devido à sintomatologia que padeceu e à doença que padece, padece de tristeza e de angústia devido ao receio de poder falecer e de, por isso, não poder acompanhar o crescimento dos seus filhos.
39. O autor, em consequência da sintomatologia que apresentou e do transplante bipulmonar a que foi sujeito, foi submetido a seguimento médico, a exames complementares e a tratamentos, inclusive a necessidade de utilização de oxigenoterapia em ambulatório, que determinam o grau 5 do quantum doloris.
40. Em virtude da intervenção cirúrgica a que foi submetido, o autor ficou com cicatrizes operatórias que determinam dano estético de 3 graus.
41. Em consequência do condicionamento físico após o transplante, o autor é portador de prejuízo sexual computável no grau 3.
42. Até 2009, o autor exerceu, primeiro para a Shell e, depois, para a Repsol, as funções de motorista de pesados, consistindo as suas tarefas, ao serviço daquelas entidades, no transporte de gasóleo rodoviário e gasóleo agrícola e na descarga directa para o solo desses combustíveis em postos/bombas de combustível. Ao serviço da Repsol, o autor efectuou também o transporte de gasóleo, inclusive de aquecimento, a particulares.
43. O que dez durante 9 anos (desde 2000).
44. Antes de exercer as funções inerentes à categoria profissional de motorista de pesados e ligeiros, o autor foi, desde 1990 até 2000, operário da construção civil, exercendo as funções de condutor manobrador até 1995 e, depois, até 2000, as funções de motorista de pesados por conta da sociedade “ZZ, S.A.”.
45. O autor, aos 5 anos de idade, padeceu de broncopneumonia que determinou o seu internamento no Hospital WW.
46. Ao serviço das entidades referidas em 42. e ao serviço da ré, o autor utilizou sempre os mesmos equipamentos de protecção individual, tendo, em concreto, sido distribuídos pela ré ao autor os seguintes: botas, kit de protecção (luvas, óculos, capacete), casaco anti-fogo.
47. O autor desempenhou, ao serviço da ré, as suas funções nos seguintes períodos:
- desde 2 de Janeiro de 2009 até 25 de Dezembro de 2014;
- desde 16 de Abril de 2015 até 11 de Setembro de 2016;
- desde 1 a 22 de Outubro de 2016;
- desde 21 de Novembro de 2016 até 11 de Janeiro de 2017,
estando em situação de baixa médica desde 12 de Janeiro de 2017, mais tendo estado nessa situação desde 26 de Dezembro de 2014 até 15 de Abril de 2015, desde 12 de Setembro de 2016 até 30 de Setembro de 2016, desde 23 de Outubro de 2016 até 20 de Novembro de 2016.
48. De acordo com os instrumentos aos quais recorre a ré no exercício da sua actividade, entre eles o ADR, as fichas de segurança da marca e o manual ASRA, da associação APETRO, para a actividade cuja execução foi atribuída ao autor não está prevista a utilização de máscara respiratória.
49. Nos anos de 2009 a 2013, a ré promoveu a avaliação dos riscos na execução das tarefas de condução, carga e descarga acometidas aos motoristas, identificando o risco de afecções respiratórias, considerando-o como desprezível.
50. A ré procede a fiscalizações em estrada, abrangendo os veículos ao seu serviço e, bem assim, os trabalhadores a fim de aferir e garantir a utilização correcta dos equipamentos de protecção individual.
51. O autor frequentou diversas acções de formação, algumas delas relacionadas com os equipamentos de protecção individual e os riscos inerentes à actividade de transporte de matérias perigosas, nunca tendo, nessa sequência, solicitado ou interpelado a ré que lhe fosse fornecida máscara respiratória para o exercício da sua actividade.
52. O autor nunca informou a ré que padecia de problemas respiratórios derivados da inalação de gases e vapores.
53. As entidades referidas em 42. não forneceram ao autor máscara respiratória.
54. O autor não solicitou à ré o uso de máscara respiratória.
55. Também não denunciou o autor à ACT a ausência de distribuição dessa tipologia de equipamento de protecção.
56. A ré nunca teve notícia que a algum trabalhador ao seu serviço, com a tipologia de actividade acometida ao autor, padecesse de problemas respiratórios ou da doença que é portador o autor.
57. O subsídio de risco, referido em 28., era pago ao autor em função dos dias em que efectuasse o transporte de matérias.
58. No período compreendido entre 12 de Janeiro de 2017 e 22 de Janeiro de 2020, o autor auferiu, a título de subsídio por doença profissional, a quantia de € 22.113,22.
59. No ano de 2020, o autor auferiu, a título de pensão por invalidez, a quantia de € 4.487,05.
60. No ano de 2021, o autor auferiu, a título de pensão por invalidez, a quantia de € 7.823,90.»
*
*
5. Fundamentação de direito
*
Cabe responder à questão essencial colocada no recurso de saber se a doença profissional de que padece o recorrente (factos 23. a 26.) provém da violação, pela recorrida, enquanto empregadora daquele, da obrigação de garantir a saúde e segurança do recorrente ao longo do tempo em que o mesmo executou funções de transporte e abastecimento de gasóleos rodoviário e de aquecimento ao seu serviço, por não ter procedido à devida avaliação dos riscos de exposição e não ter atribuído equipamento de proteção individual adequado.
Caso se conclua em sentido afirmativo, e se considerem preenchidos os pressupostos da responsabilidade da recorrida na reparação dos danos peticionados pelo recorrente, haverá que aferir dos termos e medida dessa responsabilidade.
*
5.1. Na acção em que foi interposto o presente recurso, o recorrente imputa à recorrida a inobservância das regras impostas por lei no âmbito da execução do contrato de trabalho, em particular as normas de segurança e saúde no trabalho que seriam as aptas ou idóneas, na sua perspectiva, a obstar à contracção da doença profissional que lhe veio a ser diagnosticada e reconhecida, pela qual se encontra a receber uma pensão mensal nos termos da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (LAT).
O trabalhador vítima de doença profissional tem direito a uma compensação pela perda da capacidade reprodutiva daí decorrente, em conformidade com os critérios estabelecidos na LAT, suportada em princípio, através do Sistema Público da Segurança Social (cfr. os artigos 93.º e ss. da LAT). Contudo, nos casos em que a doença profissional resulte da falta de observação, por parte do empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a própria LAT remete para o regime geral responsabilidade civil no nº. 1 do seu artigo 18.º – aplicável às doenças profissionais, por força do n.º 2, do artigo 1.º – dispondo que nesse caso “a responsabilidade individual ou solidária abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares nos termos gerais”.
É neste momento pacífico que a causa de pedir, tal como estruturada na presente acção, deverá ser perspectivada nos termos da responsabilidade contratual, sendo à luz dos seus pressupostos – artigos 798.º e ss. do Código Civil – que deverá ser analisada a pretensão do recorrente, uma vez que foi no âmbito da execução do contrato de trabalho vigente entre as partes que se verificou o alegado incumprimento, por parte da recorrida, das regras sobre a segurança, higiene e saúde no trabalho que se lhe impõe observar enquanto empregadora.
Com efeito, nos termos do preceituado no artigo 127º, do Código, do Trabalho, são obrigações do empregador no âmbito do contrato de trabalho, nomeadamente, “[p]revenir riscos e doenças profissionais, tendo em conta a protecção da segurança e saúde do trabalhador, devendo indemnizá-lo dos prejuízos resultantes de acidentes de trabalho" [alínea g)], “[a]doptar, no que se refere à higiene, segurança e saúde no trabalho, as medidas que decorram, para a empresa, estabelecimento ou actividade, da aplicação das prescrições legais e convencionais vigentes" [alínea h)] e “[f]ornecer ao trabalhador a informação e a formação adequadas à prevenção de riscos de acidente e doença" [alínea i)].
Por seu turno o artigo 281.º, que enuncia no Código do Trabalho os princípios gerais em matéria de segurança e saúde no trabalho, prescreve no seu n.º 1 que “[o] trabalhador tem direito a prestar trabalho em condições de segurança e saúde”, no seu n.º 2, que “[o] empregador deve assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta princípios gerais de prevenção”, e no n.º 3 que “[n]a aplicação das medidas de prevenção, o empregador deve mobilizar os meios necessários, nomeadamente nos domínios da prevenção técnica, da formação, informação e consulta dos trabalhadores e de serviços adequados, internos ou externos à empresa”.
Como ficou dito na sentença, “a responsabilidade civil por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da violação, pela entidade empregadora, do que legalmente se estabelece em matéria de higiene, saúde e segurança no trabalho de que resultou doença profissional, pode ter, simultaneamente, natureza extracontratual e contratual, pois o mesmo facto pode constituir, concomitantemente, uma violação do contrato e um facto ilícito lesivo do direito à saúde”.
Ali se enfatiza também, com fundamento em douta jurisprudência6, que se de um vínculo negocial resultarem danos para uma das partes, o pedido de indemnização deve alicerçar-se nas regras da responsabilidade contratual, configurando-se esta como a solução que se mostra mais correcta no plano sistemático e no da justiça material, por acautelar devidamente todos os interesses atendíveis do lesado.
Os pressupostos são os mesmos para ambos os tipos de responsabilidade, contratual e extracontratual: a existência de um facto voluntário, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano. Mas no que concerne ao ónus da prova dos factos que consubstanciam a culpa do agente, o regime é distinto: se na responsabilidade civil extracontratual o lesado não está dispensado do ónus da prova de tais factos, já na responsabilidade contratual a culpa presume-se nos termos do artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil.
Especificamente sobre o pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais não cobertos pela reparação objectiva da Lei n.º 98/2009 (LAT) e fundado na violação culposa de preceitos legais sobre segurança e saúde no trabalho por parte do empregador – como acontece no caso sub judice, atenta a causa de pedir em que o A. fundou os seus pedidos –, a jurisprudência tem seguido este entendimento de que o respectivo direito se gera no âmbito da responsabilidade contratual7.
*
5.2. A responsabilidade contratual prevista nos artigos 798.º e ss do Código Civil pressupõe, antes de mais, que se detecte um facto voluntário ilícito.
Por regra, nas situações de violação de regras de segurança no trabalho, o facto prejudicial aos interesses do outro contraente consubstancia-se numa omissão. A omissão pode ser causa do dano sempre que haja o dever jurídico de praticar o acto8.
E a ilicitude traduz-se numa desconformidade entre a conduta do empregador e aquilo que deveria ter sido feito segundo as normas legais que enquadram em geral a obrigação de segurança e as leis próprias que enunciam as regras de segurança a adoptar no âmbito da específica actividade exercida pelo empregador, ou as “leges artis” geralmente observadas no sector, ou os usos nele adoptados, ou, ainda, outra fonte convencional (contrato de trabalho ou instrumento de regulamentação colectiva) que vincule o empregador.
No caso vertente, segundo alega o recorrente, trata-se da omissão por parte da recorrida do cumprimento do dever de prevenção que impende sobre o empregador, por não ter efectuado a avaliação concreta e rigorosa dos riscos a que o recorrente estava exposto e não ter adoptado as medidas necessárias a evitar a doença profissional, com o fornecimento do equipamento de protecção individual adequado, designadamente o fornecimento de máscara respiratória.
O recorrente invoca como disposições legais infringidas pela empregadora as normas dos artigos 127.º, n.º 1, alínea g) e 281.º do Código do Trabalho, 5.º e 15.º, da Lei n.º 102/2009, de 10/09, e 3.ª do Decreto-Lei n.° 50/2005, de 25/02, de que decorre o dever de prevenção consagrado pelo artigo 59.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.
Neste conspecto, é necessário ter presente que existe uma diferenciação conceitual entre a ilicitude e a culpa, enquanto pressupostos distintos e autónomos da responsabilidade civil.
E lembrar, também, que em matéria de responsabilidade civil contratual não está o autor dispensado de alegar a factualidade integrante da acção ou omissão e da sua contrariedade à ordem jurídica (ilicitude), mas já terá facilitada a matéria relativa à imputação subjectiva desse facto (culpa), face ao regime que emerge do artigo 18.º, n.º 1, da LAT e à presunção estabelecida no artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil.
Assim, perante o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, competia ao autor alegar, e provar, factos que permitam concluir que a sua empregadora omitiu alguma das obrigações compreendidas na obrigação geral de prevenção que sobre si impende, nomeadamente a avaliação dos riscos do trabalho, e que sobre a mesma impendia a obrigação de fornecer ao trabalhador equipamento de protecção individual adequado a evitar a doença profissional de que este ficou a padecer.
Uma vez reunidos os pressupostos da responsabilidade civil, recai sobre o lesante a obrigação de indemnizar o lesado pelos prejuízos sofridos, sejam estes de índole patrimonial ou não patrimonial, nos termos gerais, tal como emerge do disposto nos artigos 18.º, n.º 1, da LAT e 798.º, do Código Civil.
Vejamos pois.
*
5.2.1. A obrigação de segurança e saúde do empregador tem raíz constitucional no artigo 59.º, n.º 1, al. c), da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “[t]odos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito: (…) [à] prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde”.
No ordenamento jurídico nacional são acauteladas as duas vertentes do problema da segurança e saúde no trabalho: uma a montante, que tem a ver com a prevenção dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais, onde se destaca o regime da segurança, higiene e saúde no trabalho e surge a obrigação do empregador de prevenção, com vista a eliminar ou diminuir (não sendo possível a eliminação) os riscos profissionais a que estão potencialmente expostos os seus trabalhadores; outra a jusante, que contende com a reparação dos danos sofridos em consequência de acidente de trabalho ou de doença profissional, onde surge a obrigação do empregador (ou, em caso de responsabilidade meramente objectiva, da seguradora para quem transferiu a sua responsabilidade, ou da Segurança Social) de reparação nos termos do regime dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais.
O artigo 281.º do Código do Trabalho, já citado, consagra no seu n.º 2 o dever geral de prevenção, privilegiando a avaliação do risco e a tomada de medidas que o anulem ou minimizem, tendo em vista, naturalmente, evitar a exposição ao risco ou reduzir, na medida do possível, essa exposição, tudo em ordem a evitar a produção do dano.
Num segundo nível de densificação do dever de prevenção, mas ainda em termos gerais, a Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, que estabelece o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho e transpõe para a ordem jurídica interna directivas comunitárias nesta matéria, define no seu artigo 4.º o «Perigo» como “a propriedade intrínseca de uma instalação, actividade, equipamento, um agente ou outro componente material do trabalho com potencial para provocar dano” [alínea g)]; o «Risco» como “a probabilidade de concretização do dano em função das condições de utilização, exposição ou interacção do componente material do trabalho que apresente perigo” [alínea h)]; e a «Prevenção» como “o conjunto de políticas e programas públicos, bem como disposições ou medidas tomadas ou previstas no licenciamento e em todas as fases de actividade da empresa, do estabelecimento ou do serviço, que visem eliminar ou diminuir os riscos profissionais a que estão potencialmente expostos os trabalhadores” [alínea i)].
Como princípios gerais de prevenção de riscos profissionais, o artigo 5.º desta lei estabelece, designadamente, que “[o] trabalhador tem direito à prestação de trabalho em condições que respeitem a sua segurança e a sua saúde, asseguradas pelo empregador ou, nas situações identificadas na lei, pela pessoa, individual ou colectiva, que detenha a gestão das instalações em que a actividade é desenvolvida” (n.º 1) e que “[a] prevenção dos riscos profissionais deve assentar numa correcta e permanente avaliação de riscos” (n.º 3).
Por seu turno o artigo 15.º do mesmo diploma estabelece as obrigações gerais do empregador do seguinte modo:
«1 - O empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho.
2 - O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção:
a) Evitar os riscos;
b) Planificar a prevenção como um sistema coerente que integre a evolução técnica, a organização do trabalho, as condições de trabalho, as relações sociais e a influência dos fatores ambientais;
c) Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos;
d) Integração da avaliação dos riscos para a segurança e a saúde do trabalhador no conjunto das atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, devendo adotar as medidas adequadas de proteção;
e) Combate aos riscos na origem, por forma a eliminar ou reduzir a exposição e aumentar os níveis de proteção;
f) Assegurar, nos locais de trabalho, que as exposições aos agentes químicos, físicos e biológicos e aos fatores de risco psicossociais não constituem risco para a segurança e saúde do trabalhador;
g) Adaptação do trabalho ao homem, especialmente no que se refere à conceção dos postos de trabalho, à escolha de equipamentos de trabalho e aos métodos de trabalho e produção, com vista a, nomeadamente, atenuar o trabalho monótono e o trabalho repetitivo e reduzir os riscos psicossociais;
h) Adaptação ao estado de evolução da técnica, bem como a novas formas de organização do trabalho;
i) Substituição do que é perigoso pelo que é isento de perigo ou menos perigoso;
j) Priorização das medidas de proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual;
l) Elaboração e divulgação de instruções compreensíveis e adequadas à atividade desenvolvida pelo trabalhador.
3 - Sem prejuízo das demais obrigações do empregador, as medidas de prevenção implementadas devem ser antecedidas e corresponder ao resultado das avaliações dos riscos associados às várias fases do processo produtivo, incluindo as atividades preparatórias, de manutenção e reparação, de modo a obter como resultado níveis eficazes de proteção da segurança e saúde do trabalhador.
4 - Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.
5 - Sempre que seja necessário aceder a zonas de risco elevado, o empregador deve permitir o acesso apenas ao trabalhador com aptidão e formação adequadas, pelo tempo mínimo necessário.
6 - O empregador deve adotar medidas e dar instruções que permitam ao trabalhador, em caso de perigo grave e iminente que não possa ser tecnicamente evitado, cessar a sua atividade ou afastar-se imediatamente do local de trabalho, sem que possa retomar a atividade enquanto persistir esse perigo, salvo em casos excecionais e desde que assegurada a proteção adequada.
7 - O empregador deve ter em conta, na organização dos meios de prevenção, não só o trabalhador como também terceiros suscetíveis de serem abrangidos pelos riscos da realização dos trabalhos, quer nas instalações quer no exterior.
8 - O empregador deve assegurar a vigilância da saúde do trabalhador em função dos riscos a que estiver potencialmente exposto no local de trabalho.
9 - O empregador deve estabelecer em matéria de primeiros socorros, de combate a incêndios e de evacuação as medidas que devem ser adotadas e a identificação dos trabalhadores responsáveis pela sua aplicação, bem como assegurar os contactos necessários com as entidades externas competentes para realizar aquelas operações e as de emergência médica.
10 - Na aplicação das medidas de prevenção, o empregador deve organizar os serviços adequados, internos ou externos à empresa, estabelecimento ou serviço, mobilizando os meios necessários, nomeadamente nos domínios das atividades técnicas de prevenção, da formação e da informação, bem como o equipamento de proteção que se torne necessário utilizar.
11 - As prescrições legais ou convencionais de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas para serem aplicadas na empresa, estabelecimento ou serviço devem ser observadas pelo próprio empregador.
12 - O empregador suporta a totalidade dos encargos com a organização e o funcionamento do serviço de segurança e de saúde no trabalho e demais sistemas de prevenção, incluindo exames de vigilância da saúde, avaliações de exposições, testes e todas as ações necessárias no âmbito da promoção da segurança e saúde no trabalho, sem impor aos trabalhadores quaisquer encargos financeiros.
13 - Para efeitos do disposto no presente artigo, e salvaguardando as devidas adaptações, o trabalhador independente é equiparado a empregador.
14 - Constitui contra-ordenação muito grave a violação do disposto nos n.ºs 1 a 12.
15 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, o empregador cuja conduta tiver contribuído para originar uma situação de perigo incorre em responsabilidade civil».
Já num terceiro nível de densificação do dever de prevenção, e especificamente estabelecendo as prescrições mínimas de segurança e de saúde na utilização dos equipamentos de trabalho, o Decreto-Lei n.° 50/2005, de 25 de Fevereiro, diploma também invocado pelo recorrente, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 89/655/CEE, do Conselho, de 30 de Novembro, alterada pela Directiva n.º 95/63/CE, do Conselho, de 5 de Dezembro, veio dispôr no seu artigo 3.º, sob a epígrafe “obrigações gerais do empregador”, que:
«Para assegurar a segurança e a saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de trabalho, o empregador deve:
a) Assegurar que os equipamentos de trabalho são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efectuar e garantem a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização;
b) Atender, na escolha dos equipamentos de trabalho, às condições e características específicas do trabalho, aos riscos existentes para a segurança e a saúde dos trabalhadores, bem como aos novos riscos resultantes da sua utilização;
c) Tomar em consideração os postos de trabalho e a posição dos trabalhadores durante a utilização dos equipamentos de trabalho, bem como os princípios ergonómicos;
d) Quando os procedimentos previstos nas alíneas anteriores não permitam assegurar eficazmente a segurança ou a saúde dos trabalhadores na utilização dos equipamentos de trabalho, tomar as medidas adequadas para minimizar os riscos existentes;
e) Assegurar a manutenção adequada dos equipamentos de trabalho durante o seu período de utilização, de modo que os mesmos respeitem os requisitos mínimos de segurança constantes dos artigos 10.º a 29.º e não provoquem riscos para a segurança ou a saúde dos trabalhadores.»
Num último nível de densificação do dever de prevenção, as medidas de protecção na saúde e segurança no trabalho são perspectivadas pelo legislador em função das especificidades e características de determinada actividade ou trabalho9.
Como bem nota a sentença, avulta do regime legal da Segurança e Saúde no Trabalho o princípio da prevenção que “rege sobre toda a tipologia de actividade com vista a neutralizar ou minimizar, na sua origem, os riscos a que estão sujeitos os trabalhadores” e se projecta “no dever de avaliação dos riscos a que estão sujeitos ou expostos os trabalhadores, devendo eles ser aquilatados em função das concretas funções que lhes estejam acometidas e dos riscos que estas sugiram”, sendo esta avaliação que habilita o empregador “à identificação dos riscos a que estão expostos os seus trabalhadores” e o obriga, depois, “a implementar as medidas que justamente protejam a sua saúde e garantam a sua segurança, atribuindo ao trabalhador os equipamentos de segurança adequados, sejam eles colectivos ou individuais”.
Neste último nível, o dever de prevenção implica que se atenda às regras – com a amplitude acima referenciada – de cada sector de actividade, procurando aferir se das mesmas emerge para o empregador o dever de adoptar condutas aptas à eliminação ou minoração do risco profissional que se evidencie através da avaliação dos riscos a que estão expostos os trabalhadores no desenvolvimento do trabalho a seu cargo, no contexto da específica actividade a que se dedica o empregador e do seu concreto posto de trabalho.
*
5.2.2. E poderá dizer-se que, no caso vertente, a recorrida violou o dever de prevenção no âmbito da segurança e saúde no trabalho que sobre si impende, como defende o recorrente, não tendo avaliado os riscos a que o recorrente estava exposto na execução das suas tarefas e não tendo adoptado as medidas adequadas a preveni-lo, atribuindo-lhe máscara respiratória para as desenvolver?
O que equivale a perguntar se a recorrida prosseguiu uma conduta ilícita, pois que só em caso afirmativo pode dizer-se que se verifica este pressuposto da responsabilidade civil contratual.
*
5.2.2.1. A sentença da 1.ª instância, no que diz respeito a esta questão, discorreu lapidarmente nos seguintes termos:
«[…]
O dano, é, pois, para nós, evidente e está, como dito, suficientemente densificado nos factos provados.
No mais e com todo o respeito, adiantamo-lo já, entende o tribunal não estarem provados factos susceptíveis de integrar os demais pressupostos da responsabilidade civil contratual.
Teve já ensejo de se enunciar os deveres que, em matéria de segurança e saúde no trabalho, a lei impõe aos empregadores. Na qualidade de empregadora é para nós clarividente que à sua observância não escapa a ré, sobretudo se levarmos em linha de conta o seu objecto: o transporte de mercadorias perigosas, tais como combustíveis, asfaltos, fuel, produtos químicos, lubrificantes e gás (facto provado constante do ponto 1.).
Como se viu, a responsabilidade civil contratual pressupõe, no âmbito das relações negociais, a assunção de um comportamento – por acção ou por omissão – que atente contra os deveres que sobre as partes impendem. Ora, no caso é verdade que a ré não forneceu ao autor máscara respiratória. Sem prejuízo, não se provou, por inexistir obrigação associada ou norma que o impusesse, que sobre a ré impendesse a obrigação de atribuir ao autor esse concreto equipamento de protecção, equipamento esse que, no seu ver, seria o idóneo a evitar a sua exposição aos hidrocarbonetos (embora o autor restrinja, na acção, a exposição ao que impropriamente chamou de combustível aquecido que, na verdade, é o combustível de aquecimento). A adequação deste equipamento à eliminação ou minimização dos riscos de exposição aos hidrocarbonetos sequer se prova, cumprindo salientar que, atenta a multiplicidade de equipamento desta tipologia que existe (o que é facto notório), sequer se apurou que tipo de máscara o autor entendia ser a adequada. É evidente que está provado que a doença que o autor padece decorre da exposição aos hidrocarbonetos; sem prejuízo, de todo se prova que existisse norma ou obrigação que, com vista a reduzir ou eliminar esse risco, obrigasse a ré a distribuir ao autor uma máscara respiratória e qual.
Veja-se que nos anos de 2009 a 2013, a ré promoveu a avaliação dos riscos na execução das tarefas de condução, carga e descarga acometidas aos motoristas, identificando o risco de afecções respiratórias, considerando-o como desprezível; a ré distribuiu sempre equipamento de segurança ao autor; a ré recorre a instrumentos no âmbito da sua actividade, designadamente a actividade cuja execução estava incumbido o autor, em nenhum estando prevista a utilização de uma máscara respiratória. Finalmente, a ré ministrou formação ao autor, designadamente em matéria equipamentos de protecção individual e dos riscos inerentes à actividade de transporte de matérias perigosas.
Não se olvida ou desconsidera não se conhecer em que estudos baseou a ré a avaliação dos riscos, designadamente, que estudos ou pareceres determinaram se concluísse no sentido de o risco de afecções respiratórias ser desprezível e, nessa medida, concluímos nós, não impositivo de qualquer equipamento de segurança adicional, mormente a máscara respiratória. Doutro passo, extrai-se dos pareceres juntos pela ré aos autos, elaborados pelo Instituto Ricardo Jorge, que, nesta tipologia de actividade – embora os estudos não se refiram exactamente às descritas tarefas do autor –, se farão estudos de exposição a fim de aquilatar se o tempo de exposição e a quantidade de partículas existentes na atmosfera do ambiente de trabalho são ou não superiores aos limites vigentes, mormente os previstos na norma 1796/2014. Sem prejuízo, o facto de se não conhecerem esses estudos, realizados no tempo e locais de trabalho do autor, não significa que não existam; e, ainda que não existissem, que, a terem sido efectuados, demandariam se concluísse pela ultrapassagem daqueles valores de exposição em termos tais que à ré se impusesse a disponibilização de equipamento de segurança adicional, entre ele a máscara respiratória.
Conhece-se, naturalmente, a tipologia de tarefas atribuída ao autor. Estão elas descritas nos factos provados. Sem prejuízo, da sua caracterização e da circunstância de se saber que, efectivamente, o autor esteve exposto a hidrocarbonetos não se pode extrair, com todo o respeito, que essa exposição tivesse excedido os limites legais e que, por isso, à ré fosse imposta a obrigação de disponibilização de outros equipamentos de segurança, maxime, a máscara respiratória.
Vale o exposto por dizer, em síntese, que de facto a ré não disponibilizou ao autor uma máscara respiratória.
Todavia, não se prova que, ao assim proceder, tivesse violado comando prescrito na lei ou instrumento que directamente regulasse a actividade em presença.
Por outro lado, a ré nunca teve notícia que algum trabalhador ao seu serviço, com a tipologia de actividade acometida ao autor, padecesse de problemas respiratórios ou da doença que é portador o autor (facto provado constante do ponto 56.) o que, em termos de previsibilidade, não sugeria meios de segurança adicionais.
[…]»
Subscrevemos este juízo, que se nos afigura conforme com as regras legais aplicáveis e tem em consideração a factualidade apurada na presente acção.
Apenas dois aspectos se nos afigura relevante acrescentar, face aos termos da alegação do recorrente.
*
5.2.2.2. Em primeiro lugar, para sublinhar que na petição inicial da presente acção o ora recorrente nunca questionou que a R. tenha procedido a uma avaliação concreta, rigorosa, objectiva e sindicável dos riscos a que o A. se encontrava exposto, como vem alegar na apelação (vg. nas conclusões 22.ª, 48.ª, 50.ª 89.ª e 90.ª), nem assentou a violação do dever de prevenção em que radica o seu direito indemnizatório em tal circunstância, mas, sim, na ausência de disponibilização pela R. de máscara de protecção nas tarefas de descarga de combustível.
Aliás, como já se referiu, nem tão pouco o fez quando foi notificado dos documentos de fls. 606 e ss. que corporizam as avaliações feitas pela R. e vieram a dar origem à decisão constante do ponto 49. do elenco de factos provados10.
A questão que agora o recorrente suscita a tal propósito, recuando a violação da obrigação de segurança e saúde que imputa à recorrida para o momento prévio da avaliação dos riscos, prefigura-se, pois, como uma questão nova, que à partida não incumbiria a este tribunal apreciar – artigo 627.º do Código de Processo Civil.
Todavia, uma vez que a sentença abordou esta questão – em termos que, como já dito, merecem a nossa concordância e subscrevemos – e o recorrente vem invocar que o tribunal a quo não poderia penalizá-lo pela inexistência de prova dos concretos valores de exposição ocorridos entre 2009 e 2014, invocando o disposto no artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil, cabe lembrar que esta é uma regra da lei civil que se aplica no âmbito da culpa e não no da ilicitude (que constitui um pressuposto distinto da responsabilidade civil). Ao nível da ilicitude, que agora nos ocupa, pois que se procura aferir se a recorrida inobservou as regras legais que lhe impõem a avaliação ou identificação dos riscos previsíveis – cfr. o artigo 15.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.° 102/2009 – não tem cabimento o apelo a esta norma que, no âmbito da responsabilidade contratual, presume a culpa do devedor que adoptou um comportamento ilícito.
Pelo que, estando provado que “nos anos de 2009 a 2013, a recorrida promoveu a avaliação dos riscos na execução das tarefas de condução, carga e descarga acometidas aos motoristas, identificando o risco de afecções respiratórias, considerando-o como desprezível” (facto provado constante do ponto 49.), sem que na 1.ª instância se tenha questionado o acerto e correcção de tal avaliação, tal se nos afigura suficiente para concluir que a recorrida observou a obrigação geral de prevenção prescrita na enunciada previsão legal do artigo 15.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.° 102/2009.
*
5.2.2.3. Em segundo lugar, e já ao nível da alegada obrigação da recorrida de fornecer ao recorrente equipamento de protecção individual adequado, é importante ter em consideração que de forma alguma pode dizer-se, como faz o recorrente, que o manual ADR e recomendações da APETRO sejam “recomendações de foro privado, que não emanam de qualquer órgão legislativo, que não encontram respaldo em qualquer ato de delegação de poder”, e que “não se sobrepõem ao ordenamento jurídico vigente”.
Senão vejamos.
A este propósito, ficou provado na sentença que “[d]e acordo com os instrumentos aos quais recorre a ré no exercício da sua actividade, entre eles o ADR, as fichas de segurança da marca e o manual ASRA, da associação APETRO, para a actividade cuja execução foi atribuída ao autor não está prevista a utilização de máscara respiratória” (facto 48.), referindo-se na motivação da decisão de facto, que “de acordo com a APETRO, de acordo com o manual ADR e instruções da marca, não está descrito o perigo de inalação”). E, na fundamentação de direito ficou a constar que “a ré recorre a instrumentos no âmbito da sua actividade, designadamente a actividade cuja execução estava incumbido o autor, em nenhum estando prevista a utilização de uma máscara respiratória”, vindo a Mma. Juiz a quo a concluir que, ao não disponibilizar ao autor máscara respiratória para o exercício das suas funções, a ora recorrida não violou comando prescrito na lei ou instrumento que directamente regulasse a actividade em presença.
E fê-lo com acerto, respaldada em instrumentos que, não obstante transcritos no referido “Manual ADR” e “Recomendações da APETRO (Associação Portuguesa de Empresas Petroliferas)”, como se constata de fls. 420 e ss. dos autos, têm uma vasta e longa história no direito nacional, internacional e europeu.
Com efeito, o Acordo relativo ao Transporte Internacional de Mercadorias Perigosas por Estrada (ADR) foi concluído em Genebra, em 30 de Setembro de 1957, e foi aprovado para adesão pelo Decreto-Lei n.º 45 935, de 19 de Setembro de 196411, sendo Portugal parte contratante do mesmo.
Este Acordo regula com minúcia a matéria do Transporte Internacional de Mercadorias Perigosas por Estrada e não tem, efectivamente, qualquer referência à necessidade de protecção das vias respiratórias dos trabalhadores encarregues do transporte, carga e descarga de combustível rodoviário agrícola e para aquecimento, nem a que aos mesmos deva ser fornecida máscara de protecção pelo empregador.
O mesmo sucede com os instrumentos provindos da União Europeia que, não sendo Parte Contratante no ADR, tem estabelecido através das suas instituições a posição a tomar em seu nome na instância criada por esses acordos, em particular por intermédio dos Estados-Membros que são todos Partes Contratantes no ADR e aplicam esse Acordo, agindo conjuntamente no interesse da União.
E, como é demonstrado pelas sucessivas Directivas que vem publicando (vide infra a nota 12) e pelas Decisões que adopta – como acontece com a DECISÃO (UE) 2022/1663 DO CONSELHO, de 26 de Setembro de 2022 (Jornal Oficial da União Europeia L 250/19, de 28 Set. 2022), relativa à posição a tomar em nome da União Europeia no que diz respeito às alterações aos anexos do Acordo relativo ao Transporte Internacional de Mercadorias Perigosas por Estrada (ADR) e aos regulamentos anexos ao Acordo Europeu relativo ao Transporte Internacional de Mercadorias Perigosas por Via Navegável Interior (ADN) – a União Europeia preocupa-se particularmente com garantir o transporte seguro e eficiente de mercadorias perigosas, tendo em conta o progresso científico e técnico no sector e o aparecimento de novas substâncias e artigos cujo transporte seja suscetível de constituir um perigo.
Por seu turno ao nível da lei interna, cabe atentar no Decreto-Lei n.º 41-A/2010, de 29 de Abril12, que regula o transporte terrestre, rodoviário e ferroviário, de mercadorias perigosas, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/90/CE, da Comissão, de 3 de Novembro, e a Directiva n.º 2008/68/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Setembro, do qual não consta também qualquer referência à necessidade de protecção das vias respiratórias dos trabalhadores encarregues das correspondentes tarefas, nem a que aos mesmos deva ser fornecida máscara de protecção pelo empregador.
Se no artigo 13.º, n.º 4, alínea g) do diploma se estabelece que constitui obrigação do transportador, nos termos dos anexos i e ii:, “[g]arantir a existência dos equipamentos de proteção geral e individual da tripulação do veículo ou do maquinista do comboio, aplicáveis de acordo com as instruções escritas”, a análise do seu anexo i13 em que se detalham regras de segurança com mais pormenor, evidencia que, na parte que contém as “prescrições relativas à tripulação, ao equipamento, à operação e à documentação dos veículos” (Parte 8), não consta qualquer referência à necessidade de protecção das vias respiratórias dos trabalhadores membros da tripulação de veículos de matérias perigosas especificamente no que concerne ao transporte de gasóleo, nem que aos mesmos deva ser fornecida máscara de protecção pelo empregador.
Assim, se compreende o específico esclarecimento prestado pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT, I.P.) no seu site14, relativamente ao específico “transporte de gasóleo em cisterna”, que se encontra submetido às disposições do ADR e do Decreto-Lei nº 41-A/2010, de 29 de Abril, onde aquela entidade elenca os equipamentos que devem existir no veículo (ponto 8.) do seguinte modo:
«8. No veículo devem existir os seguintes equipamentos:
Combate a incêndio, de acordo com a secção 8.1.4
a) Dois extintores, no mínimo (para princípio de incêndio no motor ou cabina e na carga), com uma capacidade mínima que depende do peso bruto do veículo: PB até 3,5 ton: 2 kg (motor ou cabina) + 2 kg (na carga) // PB de 3,5 até 7,5 ton: 2 kg (motor ou cabina) + 6 kg (na carga) // PB acima de 7,5 ton: 2 kg (motor ou cabina) + 10 kg (na carga, sendo que, se existirem dois extintores para perfazerem esta capacidade mínima, um deles deve ter pelo menos 6 kg);
Proteção geral, de acordo com a secção 8.1.5
b) Dois sinais de aviso portáteis (cones ou triângulos refletores ou luzes cor de laranja intermitentes);
c) Pelo menos um calço para as rodas;
d) Líquido de lavagem para os olhos;
Proteção individual, de acordo com a secção 8.1.5
e) Um colete ou fato fluorescente por cada membro da tripulação;
f) Uma lanterna de bolso para cada membro da tripulação;
g) Luvas de proteção e proteção para os olhos (por exemplo, óculos), para cada membro da tripulação;
Equipamento suplementar para determinadas classes, de acordo com a secção 8.1.5
h) Uma pá, um recipiente coletor e uma proteção de grelhas de esgotos
Esta informação tem já em conta a Portaria n.º 283/2023, de 18 de Setembro, que aprova os anexos da Diretiva Delegada (UE) 2022/2407 da Comissão, de 20 de setembro de 2022, que adapta ao progresso científico e técnico os anexos da Diretiva 2008/68/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Setembro, relativa ao transporte terrestre de mercadorias perigosas15, e que deve ser tomada em consideração16.
No referido ponto 8.1.5. da Portaria n.º 283/2023, mostra-se prescrito o seguinte:
«8.1.5 Equipamentos diversos e equipamento de proteção individual
8.1.5.1 Qualquer unidade de transporte que contenha mercadorias perigosas a bordo deve estar munida de equipamentos de proteção geral e individual, de acordo com o 8.1.5.2. Os equipamentos devem ser escolhidos consoante o número da etiqueta de perigo das mercadorias transportadas. Os números das etiquetas encontram-se no documento de transporte.
8.1.5.2 Qualquer unidade de transporte deve ter a bordo os seguintes equipamentos:
- um calço para as rodas por veículo, de dimensões apropriadas à massa máxima do veículo e ao diâmetro das rodas;
- dois sinais de aviso portáteis;
- líquido de lavagem para os olhos (Não prescrito para os números de etiquetas de perigo 1, 1.4, 1.5, 1.6, 2.1, 2.2 e 2.3.); e
para cada membro da tripulação
- um colete ou fato retrorrefletor (semelhante por exemplo ao descrito na norma europeia EN ISO 20471);
- um aparelho de iluminação portátil de acordo com as prescrições da secção 8.3.4;
- um par de luvas de proteção; e
- uma proteção para os olhos (por exemplo óculos de proteção).
8.1.5.3 Equipamento suplementar prescrito para determinadas classes:
- uma máscara de proteção antigás a bordo da unidade de transporte, para cada membro da tripulação do veículo que transporte mercadorias com as etiquetas de perigo Nºs 2.3 ou 6.1;
- uma pá§;
- uma proteção para grelhas de esgotos§;
- um recipiente coletor§.»
E destes anexos à Portaria n.º 283/23 de 18 de Setembro resulta também:
- que as etiquetas de perigo Nº 2.3 são as relativas a “gases tóxicos” e as N.º 6.1. a “matérias tóxicas”, sendo sinalizadas com caveira sob duas tíbias cruzadas em negro;
- que a classe dos gases é a classe 2 (vide 2.2.2), abrangendo “os gases puros, as misturas de gases, as misturas de um ou vários gases com uma ou várias outras matérias e os objetos contendo tais matérias”, subdividindo-se as matérias e objetos da classe 2 em: Gás comprimido; Gás liquefeito (a alta pressão e a baixa pressão), Gás liquefeito refrigerado (gás que, quando embalado para o transporte, se encontra parcialmente líquido devido à sua baixa temperatura), Gás dissolvido, Geradores de aerossóis e recipientes de baixa capacidade contendo gás (cartuchos de gás), Outros objetos contendo um gás sob pressão, Gases não comprimidos submetidos a prescrições particulares (amostras de gás), Produtos químicos sob pressão (matérias líquidas, pastosas ou pulverulentas sob pressão, pressurizadas às quais é adicionado um gás propulsor que se enquadra na definição de um gás comprimido ou liquefeito e as misturas de essas matérias), Gás adsorvido (gás que, quando embalado para transporte é adsorvido num material poroso sólido resultando num recipiente de pressão interna inferior a 101,3 kPa a 20 °C e inferior a 300 kPa a 50 °C);
- que o gasóleo se inscreve na classe 3, dos “líquidos inflamáveis” (2.2.3).
Ou seja, analisando esta legislação com um evidente pendor exaustivo e, assumidamente, resultante, por um lado, da preocupação de assegurar que o transporte, carga e descarga, de mercadorias perigosas por via terrestre, que apresenta riscos consideráveis, sejam realizados nas melhores condições de segurança possíveis e, por outro, da preocupação de adaptação do regime do transporte de mercadorias perigosas ao progresso científico e técnico (como é repetidamente afirmado nos preâmbulos dos respectivos diplomas), verificamos que a máscara de protecção para os membros da tripulação apenas se mostra prevista para os membros da tripulação dos veículos que transportam “gases tóxicos” e “matérias tóxicas”, não estando prevista para o transporte de gasóleo em veículos com cisterna, como o que o recorrente conduzia.
É de notar que a anterior Portaria n.º 309-A/2021, de 17 de Dezembro, dispunha a este propósito exactamente nestes termos, o mesmo sucedendo com os primitivos anexos ao Decreto-Lei n.° 41-A/2010, nos quais se inscrevia a previsão da “máscara de protecção antigás (b) para cada membro da tripulação” apenas nos veículos que transportem mercadorias “com as etiquetas de perigo 2.3 ou 6.1”, igualmente sob o título de “[e]quipamento suplementar prescrito para determinadas classes”.
O que denota que a exposição a hidrocarbonetos derivados do petróleo a que se mostra sujeito o motorista do camião cisterna de transporte de gasóleo – exposição que nestes autos ficou demonstrado existir (factos 8., 11. e 13.) – não é valorada pelo legislador nacional e da União Europeia, bem como pelos Estados contratantes do Acordo ADR, como um risco para a segurança e saúde do trabalhador, que deva ser eliminado, ou minimizado, com a atribuição de uma máscara respiratória.
Acresce que mesmo na lista de doenças profissionais aprovada pelo Decreto Regulamentar n.º 6/2001 de 5 de Maio17 a exposição a hidrocarbonetos e seus derivados (prevista nos códigos 12.02.e 12.07) não tem como manifestação clínica típica a doença respiratória ou pneumológica, nem nas listas exemplificativas dos trabalhos susceptíveis de provocar a doença respiratória ou pneumológica consta o trabalho de transporte e descarga de combustíveis.
Não pode por isso concluir-se que se impusesse à recorrida, empregadora do recorrente, que identificasse como risco previsível da actividade laboral deste o da ocorrência de fibrose pulmonar em consequência da exposição a hidrocarbonetos inerente ao desempenho das suas funções, nem, consequentemente, que adoptasse medidas destinadas a protegê-lo de tal através da atribuição de um equipamento de protecção individual, especificamente através de uma máscara de protecção.
O que, de per se, impede a conclusão de que a recorrida tenha violado qualquer uma das obrigações previstas no artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro.
E consequentemente impede se afirme a ilicitude da sua conduta.
É assim de considerar que a sentença fez uma correcta análise das regras que deviam nortear a recorrida na observância da sua obrigação de Segurança e Saúde no Trabalho, nos vários níveis de densificação do dever de prevenção acima assinalados, incluindo o último que se reporta às regras específicas do sector em que a empregadora exerce a sua actividade .
*
5.2.3. Em conclusão, sem questionar que o dano se verificou – a doença profissional de que padece o recorrente e os demais danos patrimoniais e não patrimoniais a ela associados que a matéria de facto evidencia – e que o mesmo decorreu da exposição do trabalhador a hidrocarbonetos derivados do petróleo devido à actividade profissional que exerceu ao longo de 16 anos (factos 13. a 27., 31. a 33. e 37. a 41.), não se detecta que a recorrida tenha inobservado quaisquer regras de segurança, quer gerais, quer específicas, que, no âmbito do exercício da sua actividade, lhe impusessem a adopção de medidas que não tenha adoptado ou que tenha revelado um grau de diligência inferior ao padrão de um empresário normalmente diligente do sector do transporte de mercadorias perigosas, especificamente de gasóleo.
A mera verificação da doença de que o recorrente ficou a padecer e dos danos da mesma decorrentes, não permite concluir que a recorrida violou os deveres de prevenção que sobre si impendem e que tenha adoptado, por isso, uma conduta ilícita.
Importa não esquecer que qualquer actividade laboral comporta riscos, sendo as pretensões de ressarcimento dos danos emergentes de doenças profissionais deles decorrentes reclamáveis perante o Centro Nacional de Protecção contra os Riscos Profissionais da Segurança Social (CNPRP).
Pelo que, sem prejuízo da responsabilidade objectiva com os limites decorrentes da LAT, que o recorrente já fez valer perante o CNPRP, não pode a recorrida ser responsabilizada pelo ressarcimento dos demais danos que o recorrente sofreu na sua esfera jurídica, nos termos gerais da responsabilidade civil.
*
5.2.4. Não podendo afirmar-se que a recorrida prosseguiu uma conduta ilícita, é de considerar que não se mostra preenchido este pressuposto nuclear da responsabilidade civil contratual, o que tanto basta para que se julgue improcedente a apelação, quedando prejudicada a análise da verificação dos demais pressupostos da responsabilidade civil e, igualmente, a questão das consequências ressarcitórias do reconhecimento dessa responsabilidade – cfr. o artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Merece inteira confirmação a douta sentença sob recurso.
*
5.3. Porque o recorrente ficou vencido no recurso interposto, a obrigação de pagamento de custas recai sobre si (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo, porém, do que vier a ser decidido em sede de apoio judiciário e que deverá ser atendido. Uma vez que se mostra paga a taxa de justiça devida e no presente recurso não houve lugar a encargos, as custas devidas restringem-se às custas de parte que haja.
*
6. Decisão
*
Em face do exposto, decide-se:
6.1. não admitir as peças processuais juntas pelo recorrente em 2024.04.19 e 2024.07.04, a fls. 797 e ss. e 810 e ss., respectivamente;
6.2. julgar improcedente a questão prévia suscitada quanto ao incumprimento dos ónus de impugnação da decisão de facto;
6.3. negar provimento ao recurso e manter a douta sentença da 1.ª instância.
*
Condena-se o recorrente nas custas de parte que haja a contar, tendo-se de qualquer modo em consideração o que vier a ser decidido em sede de apoio judiciário.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil anexa-se o sumário do presente acórdão.
*
Lisboa, 5 de Dezembro de 2024
Maria José Costa Pinto
Manuela Bento Fialho
Sérgio Almeida
_______________________________________________________________
1. No sentido de que a inobservância dos ónus enunciados no art. 640.º do Código de Processo Civil não pode ser objecto de convite ao aperfeiçoamento ou de despacho de aperfeiçoamento, vide António Abrantes Geraldes, in Recursos no novo Código de Processo Civil, p. 167, e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 2016, processo n.º 781/07.0TYLSB.L1.S1, de 14 de Julho de 2016, processo n.º 111/12.0TBAVV.G1.S1, de 19 de Dezembro de 2018, processo n.º 2364/11.1TBVCD.P2.S2, de 18 de Junho de 2019, processo n.º 152/18.3T8GRD.C1.S1 e de 21 de Março de 2023, Processo 296/19.4T8ESP.P1.S1, todos in www.dgsi.pt.
2. Publicação: Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, com rectificação através da Declaração de Retificação nº 25/2023 (que rectifica o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023, Proc. n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1) publicada no Diário da República n.º 230/2023, Série I de 2023-11-28.
3. Vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2018.03.21, Processo n.º 5074/15.7T8LSB.L1.S1, de 2016.01.05, Processo n.º 36/09.6TBLMG.C1.S1 e de 2015.10.29, Processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, ambos in www.dgsi.pt.
4. Vide, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Abril de 2024, processo 26736/20.1T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
5. Referir-nos-emos, sempre, à ré “Transportes TT, Lda.” atenta a circunstância de a ré “Fidelidade” ter sido, em sede de despacho saneador, absolvida da instância [nota da sentença].
6. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Setembro de 2019, proferido no Processo n.º 9773/16.8T8LSB.L1-7, in www.dgsi.pt e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016, proferido no Processo n.º 06S2448 e de 15 de Maio de 2019, proferido no Processo n.º 835/15.0T8LRA.C3.S1, no mesmo sítio.
7. Vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2019, citado na nota anterior, o Acórdão da Relação de Coimbra de 27 de Janeiro de 2023, proferido no Processo n.º 835/15.0T8LRA.C4, e o Acórdão da Relação de Lisboa de 17 de Maio de 2023, proferido no Processo n.º 884/22.1T8CSC.L1, subscrito pela ora relatora como adjunta, todos in www.dgsi.pt. Sobre a caracterização da responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho e doença profissional como responsabilidade contratual, vide Júlio Gomes e Viriato Reis, “Acidente de trabalho devido a culpa. Em torno do artigo 18.º da LAT (Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro”, in A Revista. - N.º 04 (Jul.- Dez. 2023), p. 128
8. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Volume I, 4ª edição revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 1984, p. 448.
9. Neste nível se inserem por exemplo as prescrições legais do Decreto 41821, de 11 de Agosto de 1958, que contém o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil,
10. Como supra se fez notar – vide 4.2.2.
11. Diário do Governo n.º 221/1964, 1º Suplemento, Série I de 1964-09-19, que aprova, para adesão, o Acordo europeu relativo ao transporte internacional de mercadorias perigosas por estrada (ADR), celebrado em Genebra no dia 30 de Setembro de 1957, tendo anexo ao Decreto-Lei o seu texto em francês e a sua tradução em português.
12. Diploma que foi objecto de sucessivas alterações, sendo a última introduzida pelo Decreto-Lei n.º 99/2021 (que alterou o regime jurídico relativo ao transporte terrestre de mercadorias perigosas, transpondo para a ordem jurídica nacional a Diretiva Delegada (UE) 2020/1833 da Comissão, de 2 de outubro de 2020). Sofreu ainda as alterações decorrentes do Decreto-Lei n.º 9/2021 (que aprovou o Regime Jurídico das Contraordenações Económicas), do Decreto-Lei n.º 24-B/2020 , de 08/06 (transpondo a Diretiva 2018/1846 (UE), do Decreto-Lei n.º 41/2018, de 11/06, do Decreto-Lei n.º 111-A/2017 (que transpôs a Diretiva (UE) 2016/2309), do Decreto-Lei n.º 246-A/2015, de 21/10 (transpondo a Diretiva n.º 2014/103/UE, da Comissão, de 21 de novembro de 2014, que adapta pela terceira vez ao progresso científico e técnico os anexos da Diretiva n.º 2008/68/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa ao transporte terrestre de mercadorias perigosas), do Decreto-Lei n.º 19-A/2014, de 07/02 (este transpondo a Diretiva n.º 2012/45/UE, da Comissão, de 3 de dezembro) do Decreto-Lei n.º 206-A/2012, de 31/08 (transpondo a Diretiva n.º 2010/61/UE, da Comissão, de 2 de setembro, e conformando o regime da certificação das entidades formadoras de conselheiros de segurança e de condutores de veículos de mercadorias perigosas com o Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de julho) e da Declaração de Rectificação n.º 18/2010, de 28/06.
13. Aplicável ao transporte rodoviário. O anexo ii. reporta-se ao ferroviário
14. https://www.imt-ip.pt/sites/IMTT/Portugues/TransportesRodoviarios/TransporteMercadoriasPerigosas/EsclarecimentosIMT/Paginas/PaginaGeraldeConteudos.aspx
15. Esta Portaria introduziu modificações nos anexos I e II do Decreto -Lei n.º 41-A/2010, de 29 de Abril, com a redação dada pela Portaria n.º 309 -A/2021, de 17 de Dezembro, sendo de notar que os primitivos anexos ao Decreto-Lei n.° 41-A/2010 deixaram de subsistir por ter o mesmo sido nessa parte revogado pelo artigo 6.º do Decreto-Lei n.° 99/2021, de 17 de Novembro. Este último diploma veio prever que os anexos da Diretiva Delegada (UE) 2020/1833 da Comissão, de 2 de outubro de 2020, que adapta ao progresso científico e técnico os anexos da Diretiva 2008/68/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de setembro, relativa ao transporte terrestre de mercadorias perigosas, serão aprovados por portaria do membro do Governo responsável pela área dos transportes (artigo 3.º), que até à publicação da portaria a que se refere o artigo anterior mantêm-se em vigor os anexos i e ii ao Decreto-Lei n.º 41-A/2010, de 29 de abril, na sua redação atual (artigo 4.º), que as referências feitas em qualquer diploma legal aos anexos i e ii do Decreto-Lei n.º 41-A/2010, de 29 de abril, na sua redação atual, consideram-se feitas aos anexos i e ii da portaria a que se refere o artigo 3.º (artigo 5.º) e que são revogados os anexos i e ii ao Decreto-Lei n.º 41-A/2010, de 29 de abril, na sua redação atual (artigo 6.º).
16. Vide o artigo 5.º do Decreto-Lei n.° 99/2021, de 17 de Novembro, citado na nota anterior.
17. Na redacção actual conferida pelo Decreto Regulamentar n.º 76/2007, de 17 de Julho.