CRIME DE MAUS TRATOS
LAR DE IDOSOS
JULGAMENTO EM SEPARADO
PRINCÍPIO "NE BIS IN IDEM"
CASO JULGADO
PROVA PROIBIDA
DIREITOS FUNDAMENTAIS
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
EXCEPÇÕES
DEVER DE COOPERAÇÃO
SEGREDO PROFISSIONAL
DEVER DE SIGILO
PRESSUPOSTOS
Sumário

I – Ao proibir o julgamento mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, o princípio “ne bis in idem” liga-se ao caso julgado e ao objeto do processo, sendo que este é um recorte, um pedaço de vida, um conjunto de factos em conexão natural analisados em toda a sua possível relevância jurídica, ou seja, à luz de todos os juízos jurídicos pertinentes.
II – Ora, estando em causa um pedaço de vida atinente a eventuais maus tratos sobre múltiplas pessoas, o julgamento prévio, em separado, dos responsáveis por eventuais maus tratos praticados sobre uma delas, não obsta ao seu posterior julgamento relativamente aos eventuais maus tratos praticados sobre as demais pessoas abrangidas por tais condutas.
III – É comummente aceite que o processo penal prossegue três finalidades essenciais: a realização da justiça e descoberta da verdade material, a proteção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento da paz jurídica posta em causa com a prática do crime.
IV – Dada a antinomia existente entre estas finalidades, é necessário operar a concordância prática entre as mesmas, procurando minimizar as perdas para cada uma delas e respeitando o limite da dignidade da pessoa humana, o que se faz conjugando os princípios constitucionais e normas vigentes na ordem jurídica, das quais decorre que os direitos fundamentais e liberdades públicas podem ser comprimidos desde que se respeite os princípios da legalidade, da intervenção mínima e da proporcionalidade, daí derivando que, no tocante aos métodos proibidos de prova legalmente estatuídos, há algum espaço para a harmonização e concordância prática das supra referidas finalidades do processo penal.
V – Sendo certo que o desrespeito pelo princípio da legalidade da prova tem como consequência a nulidade das provas obtidas através de métodos proibidos, não podendo as mesmas ser utilizadas.
VI – No tocante à necessidade de concretização da concordância prática entre as finalidades da realização da justiça e de descoberta da verdade material e a de proteção do direito fundamental à privacidade, a relação entre o dever de segredo e o dever de cooperação com a justiça, o legislador afastou as teses da prevalência total e excludente de um interesse sobre o outro, do dever de segredo sobre o dever de colaboração com a justiça penal ou vice-versa, devendo ser feita uma ponderação de interesses entre a dimensão repressiva da justiça penal e a violação do segredo, tudo dependendo da gravidade dos crimes a perseguir.
VII – Assim, no artigo 135º do CPP admite-se a justificação da violação do dever de segredo desde que esteja em causa a perseguição dos crimes mais graves, dos que provocam maior alarme social.
VIII – Estando em causa criminalidade violenta e o alarme social que esse tipo de ilícitos contra idosos suscita, os médicos e enfermeiros ouvidos como testemunhas, ao tomarem a decisão de depor, não invocando a escusa com base no segredo profissional, agiram de forma justificada, pois entre o dever de segredo e o dever de colaboração com a justiça na perseguição de crimes graves como os maus tratos contra idosos investigados nos autos, a ponderação de interesses justa e adequada é em favor do dever de colaboração com a justiça e contra a manutenção do dever de segredo profissional.
IX – Pelos mesmos motivos, não constituem prova proibida os registos clínicos apresentados à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, bem como os documentos ou quaisquer objetos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se quem os detiver invocar, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado.

(Da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 62/17.1PEMTS.P1

Relator: William Themudo Gilman
1º Adjunto: Liliana Páris Dias
2º Adjunto: José Piedade

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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:
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1-RELATÓRIO

1.1 - No Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal de Vila do Conde - Juiz 2, após julgamento, em 19.03.2024 foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
Julgando a acusação/decisão instrutória de pronúncia parcialmente procedente por provada, acordam as Juízas que integram este Tribunal Colectivo em:
Absolver cada um dos arguidos AA, BB e Lar A... da prática em co-autoria material e em concurso real de 17 (dezassete) crimes de maus tratos p. e p., cada um deles, pelo artigo 152ºA, nº 1, alínea a), e nº 2, alínea b), do Código Penal – sendo que relativamente aos arguidos AA e BB, conjugado com o artigo e 11º, nº 7, ambos do Código Penal, e relativamente à arguida “Lar A...” em conjugação com o disposto no artigo 11º, nº 2, alínea a), e nº 4, do Código Penal.
Absolver cada um dos arguidos AA, BB e Lar A... da prática em co-autoria material e em concurso real de 32 (trinta e dois) crimes de maus tratos p. e p., cada um deles, pelo artigo 152ºA, nº 1, alínea a), do Código Penal – sendo que relativamente aos arguidos AA e BB, conjugado com o artigo e 11º, nº 7, ambos do Código Penal, e relativamente à arguida “Lar A...” em conjugação com o disposto no artigo 11º, nº 2, alínea a), e nº 4, do Código Penal
Condenar cada um dos arguidos AA e BB prática em co-autoria material e em concurso real de 18 (dezoito) crimes de maus tratos p. e p., cada um deles, pelo artigo 152ºA, nº 1, alínea a), do Código Penal, conjugado ainda com o art.º 11.º, n.º7 do Código Penal nas respectivas 18 (dezoito) penas parcelares de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão
Em cúmulo jurídico, ao abrigo do disposto no art.º 30.º e 77.º do Código Penal, condenar cada um dos arguidos nas respectivas penas únicas de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Condenar a arguida O Lar A..., instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para pessoas idosas (ERPI) pela prática em concurso real de 18 (dezoito) crimes de maus tratos p. e p., cada um deles, pelo artigo 152ºA, nº 1, alínea a), do Código Penal, conjugado ainda com o art.º 11.º, n.º2, al a) e n.º 4 do Código Penal nas respectivas 18 penas parcelares de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão correspondente, nos termos do art.º 90.º B do Código Penal a 18 penas parcelares de 280 (duzentos e oitenta dias) de multa.
Em cúmulo jurídico, ao abrigo do disposto no art.º 30.º, 77.º, 90.º B e 47.º ex vi deste último normativo, todos do Código Penal, condenar a mesma arguida na respectiva pena única de 600 (seiscentos) dias de multa, à taxa diária de € 850,00 (oitocentos e cinquenta euros), perfazendo a multa um total de € 510.000,00 (quinhentos e dez mil euros).
Julgando o pedido de indemnização civil formulado nos autos parcialmente procedente, acordam as mesmas Juízas deste Colectivo em
Condenar solidariamente os (3) arguidos no pagamento aos demandantes da quantia de € 18.000,00 (dezoito mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida CC
Sendo absolvidos do demais que vem peticionado.
À sobredita quantia acrescem os legais juros de mora contabilizados desde a notificação do pedido e até efectivo e integral pagamento.”
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1.2- Não se conformando com esta decisão, recorreram para este Tribunal da Relação, por um lado e em peça conjunta os Arguidos AA e BB e, por outro lado, a Arguida ... Lar A...”, concluindo as respetivas motivações nos seguintes termos:
1.2.1- Os Arguidos AA e BB concluíram a motivação nos seguintes termos (transcrição parcial):
«CONCLUSÕES:
1.ª
Os arguidos, aqui recorrentes, foram condenados pela prática, em coautoria material, e em concurso real, de 18 (dezoito) crimes de maus tratos ‒ enquadrados no crime previsto e punível pelo disposto no artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal. Por cada um dos 18 (dezoito) crimes foi aplicada a pena parcelar de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão e, em cúmulo jurídico, foram os dois arguidos condenados na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. Esta decisão, porém, não pode manter-se.
Desde logo,
- A VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM:
2.ª
Nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa [n]inguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. Quer isto dizer, na dimensão do princípio que aqui mais importa, que, os mesmos factos, a mesma conduta, os mesmos comportamentos, contidos num “pedaço de vida”, passíveis de configurar a prática de um crime, não podem ser julgados duas vezes.
3.ª
Sucede que, os comportamentos imputados aos arguidos nestes autos são rigorosamente os mesmos comportamentos que lhes foram imputados no Processo n.º ..., no âmbito do qual foi proferida decisão final (absolutória) no dia 01.03.2024 (ou seja, em data anterior à decisão aqui recorrida, proferida a 19.03.2024), pelo Juiz 1 do Juízo Local Criminal de ....
4.ª
Diferem, no objeto dos dois processos, a identidade das pessoas idosas alegadamente vítimas dos maus-tratos: nestes autos (Processo n.º 67/17.1PEMTS) identificaram-se, na acusação, 67 “vítimas”, e naqueles (Processo n.º ...) identificou-se uma, a Senhora DD, utente do Lar entre 02.05.2017 e 14.05.2020 ‒ pelo que ali residia à data da denominada “perícia médico-legal”, realizada nestes autos (...) no dia 09.07.2019, não tendo sido esta idosa, porém, examinada, por não se encontrar em situação de particular vulnerabilidade. Ora,
5.ª
Tratando-se embora de pessoas/“vítimas” diferentes ‒ encontrando-se descritas nas acusações as especificidades próprias do quadro de saúde de cada uma ‒, as condutas imputadas aos arguidos são, rigorosamente, as mesmas. O “pedaço de vida” é o mesmo, situado entre janeiro de 2015 e fevereiro de 2020 e as imputações inserem-se, exclusivamente, no quadro das funções exercidas pelos arguidos ... Lar A...”. Repare-se que,
6.ª
Os maus-tratos não foram imputados aos arguidos por força de ações diretas que os mesmos tenham adotado sobre cada uma das pessoas idosas; o que lhes foi imputado foi a omissão de ações (reputadas pelo Ministério Público de) adequadas a evitar o quadro de saúde detetado a cada uma das pessoas idosas.
7.ª
Ora, essa alegada omissão vem consubstanciada num conjunto de factos partilhado pelos dois processos. As condutas imputadas aos arguidos são, assim, as mesmas.
8.ª
Em cada uma e em ambas as acusações, a conduta imputada aos arguidos (pessoas singulares) é a seguinte: (1) o recorrente na qualidade de presidente da direção e no interesse ... Lar A...” e a recorrente na qualidade de diretora de serviços, (2) em violação dos deveres inerentes às suas funções, porquanto detentores de um especial dever de garante em relação aos idosos utentes do Lar, (3) motivados pela vontade de conter gastos económicos, e (4) conscientes/com a intenção de que causavam um tratamento indigno aos utentes do Lar A...: (5) não providenciaram pela contratação de profissionais de saúde e de funcionários em número suficiente, (6) não cuidaram de adquirir e de manter em bom estado de conservação todos os equipamentos necessários ao bem-estar dos utentes, (7) nem cuidaram de lhes proporcionar atividades de lazer.
9.ª
Sendo esta a conduta imputada aos arguidos, ela não perde unidade por estarem em causa 68 pessoas (67 pessoas no Processo n.º ... e uma no Processo n.º ...).
10.ª
As 68 pessoas podem ter sido vítimas da conduta dos arguidos e isso justifica que a estes sejam imputados 68 crimes por se tratar, in casu, de um crime que protege bens jurídicos eminentemente pessoais (circunstância que exclui, conforme decorre do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 30.º do Código Penal, a possibilidade de se considerar a prática um só crime continuado), mas a conduta ilícita que as vitimizou é sempre a mesma. E sendo a mesma e apenas uma, não pode ser julgada duas vezes (tal como não podia nem foi julgada tantas vezes quanto o número de pessoas ofendidas!). Manifestamente,
11.ª
Há, houve sempre, uma relação de conexão entre os dois processos, que teria justificado a sua apensação, tudo nos termos do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea a), 28.º e 29.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal. Todavia, a apensação, determinada pela relação de conexão, não aconteceu, tendo os dois processos corrido termos em simultâneo, de tal sorte que as decisões finais proferidas distam, uma da outra, apenas 18 dias: a do Processo n.º ... foi proferida no dia 01.03.2024 e a destes autos foi proferida no dia 19.03.2024. Donde resulta que,
12.ª
Os factos julgados nestes autos no dia 19.03.2024 já se mostravam julgados desde o dia 01.03.2024 no Processo n.º .... E não se diga que nada releva esta ordem cronológica das decisões, porque aqui não operam, nem as regras da conexão/apensação de processos, (em que o processo instaurado em segundo lugar seria apensado ao que foi instaurado primeiro), opção processual que não se tomou, nem as regras respeitantes à exceção do caso julgado material (que ainda não
se verifica, podendo apenas inusitadamente sugerir-se que se aguarde pela decisão que primeiro transite em julgado para, nesse momento, se conhecer a sorte dos arguidos).
13.ª
O que está em causa é, apenas e só, uma “litispendência” que o princípio ne bis in idem resolve: ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. Posto o que,
14.ª
Não podendo os arguidos ser submetidos a dois julgamentos pela mesma conduta, mas tendo-o sido, o segundo julgamento, materializado na decisão sob recurso, por ter violado a proibição constitucional consagrada no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, encontra-se ferido da mais grave das invalidades: a inexistência jurídica, com a consequente impossibilidade, nos termos gerais de Direito, de produzir quaisquer efeitos jurídicos.
15.ª
Deve, assim, ser declarada, com a consequente ineficácia jurídica na esfera dos arguidos, a inexistência jurídica da decisão recorrida ou, se assim não se entender, mas pelas mesmas razões, decorrentes da violação do princípio ne bis in idem, devem os arguidos ser absolvidos nestes autos.
Sem embargo do exposto,
‒ A VALORAÇÃO DE PROVA PROIBIDA:
16.ª
A decisão da matéria de facto alicerçou-se em três elementos probatórios essenciais: (i) a “perícia médico-legal” de fls. 1091 a 1099, (ii) os registos clínicos e (iii) os depoimentos de médicos e enfermeiros. Sucede que,
17.ª
A denominada “perícia médico-legal” considerada pelo Tribunal a quo, constante de fls. 1091 a 1099 e posteriormente complementada já em fase de julgamento com o registo fotográfico junto com a refa citius 35320957, não respeitou qualquer das exigências legais para que pudesse ser tratada como meio de prova nestes autos. Isto porquanto, desde logo,
18.ª
Não foi ordenada nestes autos a realização de qualquer perícia médicolegal. O que o Ministério Público promoveu e o Senhor Juiz de Instrução Criminal autorizou foi, apenas, uma busca domiciliária.
19.ª
O Ministério Público promoveu uma busca domiciliária, o Senhor Juiz de Instrução autorizou-a, o órgão de polícia criminal, incumbido pelo Ministério Público de realizar a busca, acrescentou, por sua iniciativa, a intervenção do Instituto de Medicina Legal, e depois, na diligência de busca, estiveram, sem se saber por ordem ou iniciativa de quem, para além do Instituto de Medicina Legal, outros organismos nomeadamente, Unidade de Fiscalização do Norte da Segurança Social (que também produziu um “Auto de Vistoria” (junto a fls. 1070 e ss.). E de tudo isto resultou,
20.ª
A produção pelo Instituto Nacional de Medicina Legal (INML) do documento denominado de “Relatório da Perícia Médico-Legal”, junto a fls. 1090 e ss. no dia 26.09.2019 (ou seja, mais de dois meses depois da diligência), onde começa por ler-se “Exame solicitado por Comarca do Porto ‒ DIAP/Ministério Público ‒ ..., através de ofício 15-07-2019 no âmbito do Processo/Inquérito n.º ...”, ofício esse que, para além de se desconhecer por completo o seu teor, terá sido enviado ao INML depois da diligência! Ora,
21.ª
É óbvio que jamais poderia este documento ter sido tratado, como foi pelo Tribunal a quo, como prova pericial: esta “perícia” do INML não foi ordenada por autoridade judiciária (foi a PSP que teve a iniciativa de fazer intervir o INML, tendo para tanto contactado a Drª EE, do Instituto de Medicina Legal do Porto, no sentido de ser nomeada uma equipa forense!!) ‒ iniciativa perante a qual, de resto, ao invés de ter aproveitado para “emendar a mão”, o Ministério Público continuou a tratar a diligência da forma tal e qual a havia promovido: como busca domiciliária. Por outro lado,
22.ª
Tratando-se de “perícia” sobre características físicas e/ou psíquicas de pessoas, não houve consentimento destas nem despacho judicial a ponderar, em face de uma falta de consentimento (que nem houve nem deixou de haver), a necessidade da realização da “perícia” ante o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade das pessoas visadas ‒ Cf. artigo 269.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 172.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Constata-se, assim, que,
23.ª
O “relatório pericial” de fls. 1090 e ss., em que se encontra predominantemente ancorada a decisão sob recurso, foi produzido completamente à margem das regras previstas nos (nunca referenciados!) artigos 151.º e ss. do Código de Processo Penal e, bem assim, da Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto (que estabelece o Regime Jurídico das Perícias Médico-Legais), de cujo artigo 3.º, n.º 1, decorre que as perícias médico-legais têm que ser ordenadas (obviamente!) por despacho da autoridade judiciária. Nesta medida,
24.ª
Faltando-lhe o valor, que nunca teve, da prova pericial, não está o referido documento sujeito à disciplina do artigo 163.º do Código de Processo Penal, preceito que subtrai à livre apreciação da prova os juízos técnicos/científicos vertidos na prova pericial, cujos autores/”peritos”, de resto, o Tribunal nem sequer ouviu. Mas, mais do que isso,
25.ª
Tendo-se presente o princípio da legalidade da prova, consagrado no artigo 125.º do Código de Processo Penal (são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei), do que estamos perante, verdadeiramente, é de um método proibido de prova, nos termos do disposto no artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, porquanto a prova “pericial”, obtida mediante exames médico legais que não foram determinados por autoridade judiciária, se reconduz (tal como ninguém hesita em afirmar que sucederia se estivéssemos perante escutas telefónicas realizadas sem prévio despacho judicial) a uma prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento dos respetivos titulares e por isso nula, não podendo ser utilizada. Ora,
26.ª
A decisão de condenação dos arguidos foi suportada ‒ Vide páginas 99 (último parágrafo) e 114/115 do PDF do acórdão recorrido ‒, na dita “perícia”, cuja valoração se mostra, afinal, proibida. Pelo que,
27.ª
Constatando-se que o “relatório pericial” foi determinante, mesmo que em concurso com outros meios de prova, para a decisão proferida, impõe-se a absolvição dos arguidos ou, de todo o modo, impõe-se expurgá-la deste meio proibido de prova, o que não pode ser feito senão através do reenvio dos autos, nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (Neste sentido, ANDRADE, Manuel da Costa ‒ Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Reimpressão. Coimbra Editora, 2013. Pág. 65 e ss.) ou, se assim não se entender, através da anulação da decisão recorrida, que deverá ser repetida com a exclusão da referida prova. Em segundo lugar,
28.ª
Determinantes para a condenação dos arguidos foram, outrossim, os “registos clínicos” das pessoas idosas. Ora, “Processo clínico” (o mesmo que “registo clínico”) é, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, da Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro (Informação Médica Pessoal e Informação de Saúde), bem como, com o mesmo texto, nos termos do disposto no artigo 39.º, n.º 2, do Regulamento n.º 707/2016, de 21 de julho, da Ordem dos Médicos (Regulamento de Deontologia Médica) qualquer registo, informatizado ou não, que contenha informação de saúde sobre doentes ou seus familiares.
29.ª
Estabelecem aqueles acervos normativos, ademais, que o processo clínico só pode ser consultado, para além de pelo próprio paciente, por médico incumbido da realização de prestações de saúde a favor do doente a que respeita ou, sob a supervisão daquele, por outro profissional de saúde obrigado a segredo e na medida do estritamente necessário à realização das mesmas, sem prejuízo da investigação epidemiológica, clínica ou genética que possa ser feita sobre os mesmos (Vide artigo 5.º, n.º 5, da Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro e 39.º, n.º 5, do Regulamento n.º 707/2016, de 21 de julho. Ademais,
30.ª
A informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos, é propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os depositários da informação, a qual não pode ser utilizada para outros fins que não os da prestação de cuidados e a investigação em saúde e outros estabelecidos pela lei ‒ artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro (destaque nosso). Facilmente se alcança, assim, que o “processo clínico”,
31.ª
Na medida em que contém informação sobre a saúde das pessoas, encontrasse sujeito a segredo médico ‒ Cf. artigo 30.º do Regulamento de Deontologia Médica e artigo 139.º do Estatuto da Ordem dos Médicos (Decreto-Lei n.º 282/77, de 5 de julho, na redação vigente), do mesmo modo que se encontra abrangido pelo sigilo profissional a que também os enfermeiros se encontram obrigados ‒ Cf. artigo 106 do Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de abril (Ordem dos Enfermeiros e Respetivo Estatuto), estando igualmente sujeitas a segredo as unidades de saúde depositárias dos processos clínicos (Vide artigo 31.º do Regulamento de Deontologia Médica). Donde,
32.ª
Para o que aqui importa considerar, apenas perante (i) o consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu representante legal, ou perante (ii) uma absoluta necessidade para a defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico, do doente ou de terceiros, não podendo em qualquer destes casos, contudo, revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do Bastonário ‒ Vide artigo 32º, alíneas a) e b) do Regulamento de Deontologia Médica e artigo 139.º, n.º 6, alíneas a) e b) do Estatuto da Ordem dos Médicos ‒ pode um médico revelar/transmitir informação sobre a saúde das pessoas,
33.ª
Do mesmo modo que (e de forma mais restrita ainda), também o enfermeiro apenas poderá revelar factos abrangidos pelo sigilo profissional após autorização do presidente do conselho jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, estabelecendo-se, para além disso, que não podem fazer prova em juízo as declarações prestadas pelo enfermeiro em violação do segredo profissional ‒ Cf. n.ºs 2, 3, e 4 do artigo 106.º do Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de abril e artigo 8.º do Regulamento n.º 338/2017, de 23 de junho. Assim, evidentemente,
34.ª
É à luz destas normas deontológicas que tem que ser conformado o dever de colaboração daqueles profissionais com um processo judicial quando lhes é pedido que forneçam “registos clínicos”. Com efeito,
35.ª
No processo criminal, quando se prevê, no artigo 182.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que [a]s pessoas indicadas nos artigos 135.º a 137.º [isto é, pessoas sujeitas a um dever de segredo] apresentam à autoridade judiciária, quando esta ordenar, os documentos ou quaisquer objetos que tiverem em sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado,
36.ª
Este dever de colaboração (i) não derroga o dever de segredo, (ii) não coloca na esfera de disponibilidade do seu detentor a possibilidade de o respeitar ou não, (iii) nem constitui uma causa autónoma de justificação da violação do segredo profissional. Pelo contrário,
37.ª
O médico, o enfermeiro e as unidades de saúde estão, sempre, obrigados a não divulgar ou transmitir, seja de que forma for e a quem for, a informação de que são depositários, pelo que têm, sempre, o dever, imperativo, de invocar a escusa (caso contrário poderão sujeitar-se a responsabilidade disciplinar e criminal ‒ Vide artigo 195.º do Código Penal). Por conseguinte,
38.ª
Quando confrontados com a solicitação de informação sujeita a segredo profissional, o médico, o enfermeiro ou a unidade de saúde depositária de tais informações, partem sempre de uma situação de escusa. Estão impedidos, pelas normas profissionais que os vinculam, de prestar a informação por força do dever de segredo. Assim, apenas poderão prestar a colaboração solicitada pela autoridade judiciária,
39.ª
Só depois de cumpridos os procedimentos que lhes permitem obter o consentimento e/ou a autorização referidos, é que poderá o médico/o enfermeiro/a unidade de saúde fornecer os elementos pedidos pela autoridade judiciária e, ainda assim, neste último caso (o da autorização concedida pela respetiva Ordem), podem o médico/o enfermeiro/a unidade de saúde optar por manter o segredo e recusar o pedido feito pela autoridade judiciária - Vide artigos 5.º, n.º 4, do Regulamento n.º 228/2019, de 15 de março (Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional, da Ordem dos Médicos) e artigo 17.º, n.º 3, do Regulamento n.º 338/2017, de 23 de junho (que regula a divulgação de informação confidencial e a dispensa de sigilo profissional, da Ordem dos Enfermeiros). Repare-se, ademais, que,
40.ª
Prevê-se no artigo 3.º, n.º 4, do Regulamento de Dispensa de Sigilo Profissional da Ordem dos Médicos (Regulamento n.º 228/2019, de 15 de março) que [n]o caso de se pretender a dispensa de segredo para o médico depor em processo em curso ou para juntar documentos a um qualquer processo, o requerimento deverá ser apresentado com antecedência em relação à data em que esteja marcada a diligência ou em que seja possível apresentar o documento, ressalvando-se situações de manifesta urgência ou excecionais, devidamente justificadas, de modo a poder ser proferida uma decisão em tempo útil. Posto o que,
41.ª
O dever de colaboração previsto no artigo 182.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não afasta/derroga/dispensa o procedimento vindo de enunciar, antes o pressupõe e com ele se concilia, salvaguardando-se, no entanto (Cf. Artigo 182.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) que, caso seja invocado, por escrito, o segredo profissional (o que pode ser ocasionado pela falta de consentimento do doente e/ou pela falta de autorização do órgão da Ordem Profissional competente para decidir da dispensa do sigilo ou, ainda, pela decisão do próprio profissional de manter o segredo mesmo estando legitimado a quebrá-lo), pode desencadear-se um incidente Processual tendente ao levantamento judicial do segredo (Cf. artigo 135.º, n.ºs 2 e 3, ex vi artigo 182.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) caso se suscitem dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa. Forçoso é constatar-se, assim, que,
42.ª
Fora dos casos em que haja consentimento do doente, autorização do órgão competente da Ordem profissional correspondente nos termos procedimentais assinalados supra, ou levantamento judicial do segredo desencadeado nos termos do disposto no artigo 135.º, n.º 2, ex vi do artigo 182.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, os “registos clínicos” dos doentes e, bem assim, quaisquer outros elementos documentais carreados para um processo com violação do segredo profissional constituem, porque reconduzidos a uma ingerência não consentida na vida privada das pessoas, prova proibida, nos termos do disposto no artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. Acresce que,
43.ª
A lei ordena que se apresentam à autoridade judiciária, quando esta ordenar, os documentos ou quaisquer objetos que tiverem em sua posse e devam ser apreendidos, o que, necessariamente, tendo em conta a natureza do segredo profissional em causa (médico), impõe a aplicação das regras processuais que regulam as apreensões em consultório médico (aliás, o enquadramento sistemático, na lei processual penal, do dever de colaboração, no capítulo das apreensões enquanto meio de obtenção de prova documental, confirma a incindibilidade dessa relação).
Assim,
44.ª
Desde logo, a apreensão em consultório médico é da exclusiva competência do Juiz de Instrução Criminal ‒ Vide artigos 17.º e 268.º, alínea c), do Código de Processo Penal. Ademais,
45.ª
Nos termos do disposto no artigo 180.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não é permitida, sob pena de nulidade, a apreensão de documentos abrangidos pelo segredo profissional, ou abrangidos por segredo profissional médico, salvo se eles mesmos constituírem objeto ou elemento de um crime.
46.ª
Daí que, nos termos do n.º 3 do artigo 179.º (aplicável ex vi do artigo 180.º, n.º 3), do Código de Processo Penal, [o] juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo [dos documentos abrangidos pelo segredo profissional]. Se [os] considerar relevante[s] para a prova, fá-[los] juntar ao processo; caso contrário, restitui-[os] a quem de direito, não podendo ser utilizad[os]como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova. Do que se conclui que,
47.ª
A solicitação, ao abrigo do artigo 182.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, de elementos abrangidos por segredo médico, não pode ser feita pelo Ministério Público.
48.ª
Aliás, isso configuraria uma subversão de tudo quanto aquelas normas processuais pretendem impedir: o acesso e a utilização de elementos sujeitos a segredo sem o crivo do Juiz de Instrução. Porque, como é evidente, a lei não pode exigir que seja um Juiz a ordenar e a presidir a uma apreensão feita num consultório médico, exigindo-lhe, também, que faça uma seleção rigorosa dos elementos fundadamente necessários para a investigação, e ao mesmo tempo permitir que um Procurador da República, no conforto do seu gabinete, solicite a um médico/consultório médico/unidade de saúde que lhe forneçam a mesmíssima informação (ou a que bem entender) que, assim, fica completamente despida de qualquer controlo jurisdicional. Do que se conclui que,
49.ª
A solicitação e obtenção de “registos clínicos” aos seus portadores médicos/enfermeiros/unidades de saúde, pelo Ministério Público, configura, por violação da competência reservada do Juiz de Instrução Criminal prevista nos artigos 17.º e 268.º, alínea c), do Código de Processo Penal, uma nulidade processual insanável, nos termos do disposto no artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal,
50.ª
Afetando em simultâneo a própria admissibilidade da prova que, assim obtida, consubstancia uma intromissão arbitrária na vida privada das pessoas, constituindo, por isso, prova proibida, que não pode ser utilizada, nos termos do disposto no artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. Ora, sucede que,
51.ª
Os “registos clínicos” considerados pelo Tribunal a quo, não só foram carreados para os autos sem qualquer cogitação, por quem quer que fosse, do segredo profissional, como foram solicitados e obtidos pelo Ministério Público.
52.ª
Concretamente, foram fornecidos aos autos os Registos clínicos de fls. 30 a 33, 186 a 252, 253 a 270, 555 a 644, 778, 876 a 916, 949 a 963, 976, 1107 a 1113, 1214 a 1215, 1217 a 1221, 1222 a 1228, 1229 a 1230, 1231 a 1239, 1240 a 1249, 1250 a 1264, 1265 a 1267, 1268 a 1273, 1274 a 1279, 1280 a 1292, 1293 a 1296, 1298 a 1301, 1305, 1481 a 1543, 1677 a 1678, 1764 a 1765, os registos clínicos de fls. 13 e 14 do Apenso A [NUIPC ...] e os registos clínicos de fls. 24 a 25, 45 a 72, 75 a 154 do Apenso com o NUIPC .... Ora,
53.ª
Tendo-se novamente presente o princípio da legalidade da prova, consagrado no artigo 125.º do Código de Processo Penal (são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei), estamos, uma vez mais, perante um método proibido de prova, nos termos do disposto no artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, porquanto foram os “registos clínicos” obtidos com violação do segredo profissional e, para além disso, através de um ato processual fulminado pela nulidade insanável prevista 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal ‒ por violação do disposto os artigos 17.º e 268.º, alínea c), do Código de Processo Penal ‒, que afeta a admissibilidade da prova, reconduzida, assim, a uma prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento dos respetivos titulares e por isso nula, não podendo ser utilizada. Com efeito,
54.ª
Tendo sido a decisão de condenação dos arguidos suportada ‒ Vide páginas 99 (último parágrafo) e 114/115 do PDF do acórdão recorrido ‒, nos referidos “registos clínicos”, cuja valoração se mostra, afinal, proibida, impõe-se a absolvição dos arguidos, ou, de todo o modo, impõe-se expurgá-la deste meio proibido de prova, o que não pode ser feito senão através do reenvio dos autos, nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou, se assim nãos e entender, através da anulação da decisão recorrida, que deverá ser repetida com a exclusão da referida prova.
55.ª
De resto, sempre estaria ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do disposto nos artigos 125.º e 182.º, n.º 1, do Código de Processo Penal no sentido de ser admissível e valorável prova obtida com violação de segredo profissional médico, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos.
56.ª
Bem como, igualmente ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 29.º, n.ºs 4 e 8, da Constituição da República Portuguesa, estaria a interpretação do disposto no artigo 182.º, n.º 1, do Código de Processo Penal segundo a qual pode o Ministério Público solicitar/ordenar a junção aos autos de elementos documentais abrangidos por segredo profissional médico em detrimento da intervenção do Juiz de Instrução compreendida nas exigências previstas nos artigos 180.º e 268.º, alínea c), do Código de Processo Penal, inconstitucionalidade que, para todos os efeitos, aqui expressamente se argui.
57.ª
Determinantes para a decisão proferida foram, também, os depoimentos de 13 enfermeiros e de 4 médicos. Com efeito, a questão que aqui se suscita, novamente, é a (da violação) do segredo profissional. Ora,
58.ª
A prova testemunhal, à semelhança da prova documental, é um dos meios de prova mais utilizados no processo penal e consiste precisamente no depoimento prestado por uma pessoa que é alheia à factualidade objeto do julgamento, mas em relação à qual tem um conhecimento (em princípio) direto que torna a sua colaboração imprescindível para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa.
59.ª
Com efeito, qualquer pessoa chamada a depor num julgamento, posto que tenha capacidade para ser de testemunha, tem o dever de falar e de responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas ‒ Cf. artigo 132.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Penal ‒, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal ‒ Cf. artigo 360.º do Código Penal. Acontece que,
60.ª
Quando as testemunhas são titulares de segredos profissionais, suscita-se um conflito entre dois interesses/deveres: o de segredo profissional e o de colaboração com a Justiça. Necessário será, assim, fazer-se uma ponderação entre os dois, decidindo-se pela prestação de depoimento caso seja este o interesse que se conclui ser preponderante no caso concreto, e pela escusa de prestação de depoimento caso se conclua que o segredo profissional assume preponderância. Acontece que,
61.ª
Essa ponderação/decisão não cabe ao titular do dever de segredo e só pode ser feita de duas formas alternativas: a primeira, através dos mecanismos estabelecidos pelas respetivas Ordens Profissionais (no caso dos médicos, através do procedimento instituído Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional - Regulamento de Dispensa Profissional ‒ e no caso dos enfermeiros, através do procedimento instituído no Regulamento n.º 338/2017, de 23 de junho, da Ordem dos Enfermeiros); e a segunda do mecanismo (tendente à determinação judicial da quebra do sigilo) desencadeado nos termos do disposto no artigo 135.º, n.ºs 2 e ss. do Código de Processo Penal. Assim,
62.ª
Quando a lei refere que os obrigados ao dever de segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos (Cf. artigo 135.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), não lhes está a conferir uma decisão baseada no seu livre arbítrio nem uma causa autónoma de justificação da violação do segredo, está, simplesmente, a harmonizar-se com a tutela do segredo profissional prevista noutros acervos normativos, cujo cumprimento pressupõe.
63.ª
O profissional obrigado ao segredo parte sempre, como se disse já, de uma situação de impedimento de revelar quaisquer factos por ele abrangidos, cumprindo-lhe fazer desencadear os competentes mecanismos que lhe permitam prestar um depoimento que possa ser admitido e valorado. Com efeito,
64.ª
A partir do momento em que só são admissíveis as provas admitidas por lei (Cf. artigo 125.º do Código de Processo Penal) e existe expressamente na legislação regulamentar das profissões em questão um dever de guardar sigilo sobre os factos que conhecem por força do exercício do exercício profissional, se a testemunha depuser com violação do segredo (ou seja, sem consentimento e/ou com dispensa prévia) o seu depoimento reconduz-se, no Direito probatório material, ao regime das proibições de prova.
65.ª
Aliás, isso mesmo se deixou expresso no Estatuto da Ordem dos Enfermeiros:
Não podem fazer prova em juízo as declarações prestadas pelo enfermeiro em violação do sigilo profissional, ressalvado o disposto nos artigos 135.º do Código de Processo Penal e 417.º do Código de Processo Civil ‒ Cf. artigo 106.º, n.º 2, do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros. In casu,
66.ª
Não podia o Tribunal, simplesmente, conformar-se com a decisão da testemunha em depor, porquanto não é a testemunha que, em caso algum, pode dispensar-se o a si própria do segredo!
67.ª
Aliás, a vinculação do Tribunal à natureza erga omnes do dever de segredo, deve ter como manifestação primeira a advertência da testemunha de que os factos pelos quais seria inquirida podem contender com o segredo profissional a que está obrigada, em ordem a evitar a produção, que compete ao Tribunal impedir, de prova ferida de nulidade. Pelo contrário, nestes autos, perante 17 testemunhas sujeitas a segredo profissional, entendeu este Tribunal que não estava em causa a necessidade de uma expressa advertência a tal propósito. Conclui-se, assim, que,
68.ª
Nenhum dos profissionais (4) médicos e (13) enfermeiros se apresentou em Tribunal devidamente dispensado do dever de sigilo nem se escusou a depor ‒ sendo absolutamente inócua (ou, antes, preocupante!) a aparição, a páginas tantas, de uma ʻpreocupaçãoʼ da Ordem dos Enfermeiros que antes do julgamento/produção de prova veio espontaneamente aos autos ʻavisarʼ o Tribunal do ʻriscoʼ ou ʻperigoʼ de violação do Código Deontológico, posto que o que se impunha resultar cumprido era o procedimento que a própria Ordem estabelece como impreterível, sob pena de (nos termos previstos em norma expressa!) não poderem fazer prova em juízo as declarações prestadas pelo enfermeiro. Pelo que,
69.ª
Tendo-se presente o princípio da legalidade da prova (são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei) ‒ Cfr. artigo 125.º do Código de Processo Penal, estamos, novamente, perante um método proibido de prova, que não pode ser utilizada, nos termos do disposto no artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, porquanto foram os depoimentos de 17 testemunhas (4 médicos e 13 enfermeiros) obtidos com violação do segredo profissional sendo por isso ilegal e reconduzida a prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento dos respetivos titulares. Com efeito,
70.ª
Tendo sido a decisão de condenação dos arguidos suportada ‒ Vide páginas 96 e ss. do PDF do acórdão recorrido ‒, nos referidos depoimentos, cuja valoração se mostra, afinal, proibida, impõe-se a absolvição dos arguidos ou, de todo o modo, impõe-se expurgá-la deste meio proibido de prova, o que não pode ser feito senão através do reenvio dos autos, nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal ou, se assim nãos e entender, através da anulação da decisão recorrida, que deverá ser repetida com a exclusão da referida prova.
71.ª
De resto, sempre estaria ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do disposto nos artigos 125.º e 135.º, n.º 1, do Código de Processo Penal no sentido de ser admissível e valorável prova obtida com violação de segredo profissional médico, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos. Sem prejuízo do exposto,
‒ OS VÍCIOS DA DECISÃO:
72.ª
O Tribunal a quo condenou os arguidos, aqui recorrentes, pela prática, em coautoria, do crime de maus-tratos, previsto e punível pelo disposto no artigo 152.º- A, n.º 1, alínea a), do código Penal. Ora,
73.ª
A coautoria é uma das formas de autoria previstas no artigo 26.º do Código Penal, onde se lê que [é] punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.
74.ª
A co-autoria prevista no art. 26.º do CP, como tal referida na tipologia das formas de autoria (3.ª alternativa) configura uma forma de participação em que o domínio do facto é exercido com outro ou outros, tratando-se de um domínio, agora “colectivo”, ou de um condomínio de facto. A actuação de cada autor é essencial na execução do plano comum, ela sendo a tarefa com vista à realização desse plano. O acordo ou a decisão conjunta representa a componente subjectiva da co-autoria e é esse elemento que permite justificar que o agente que levou a cabo apenas uma parte da execução típica responda, afinal, pela totalidade do crime. (Ac. do STJ, de 14.12.2017, Processo n.º 470/16.5JACBR.S1, disponível em www.dgsi.pt; destaque nosso)
Sucede que,
75.ª
Dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo não consta (nem daqueles que a propósito da coautoria são mencionados na fundamentação acima transcrita nem de quaisquer outros) qualquer um que descreva e, por isso, de que resulte, a existência de um acordo/plano delituoso estabelecido entre os arguidos.
O Tribunal bastou-se, pois, com a afirmação categórica da existência de uma coautoria, sem qualquer base factual reveladora do plano prévio dessa atuação conjunta, da repartição de tarefas entre os arguidos, da coordenação de esforços e do domínio conjunto do facto, de forma a poder afirmar que havia um objetivo delituoso(e um dolo!) comum. Assim,
76.ª
Verificando-se a inexistência [reconduzida ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal] de factos que permitam concluir pela coautoria, e posto que foi sob esta modalidade de (com)participação criminosa que se conformou o objeto do processo, não sendo agora possível alterá-lo, constata-se a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, impondo-se por isso a absolvição dos arguidos (cuja forma de atuação ficou por se provar).
A assim não se entender, deverão os autos ser remetidos para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Por outro lado,
77.ª
As motivações apontadas para a comissão (omissiva) do crime de maus-tratos é reconduzida, da decisão recorrida, a “razões económicas”/contenção de gastos ‒ Vide factos provados n.ºs 73.º, 75º e 76.º (em contradição com o 77.º). Com efeito, de acordo com o Tribunal a quo, os arguidos descuraram do tratamento e cuidado devidos às pessoas, não contrataram pessoal em número suficiente nem adquiriram os equipamentos necessários, tudo por razões económicas (para pouparem dinheiro que não era seu!). Acontece que,
78.ª
Essa afirmação não encontra suporte em qualquer facto revelado por qualquer suporte probatório. Pelo contrário, são vários os elementos que impedem aquele juízo (Vide depoimento da testemunha FF, enfermeira, Relatório Social da arguida ... Lar A... e declarações da arguida BB). Pelo que se verifica o vício do erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
Assim,
79.ª
Todas as referências às “razões económicas” dos arguidos se mostram completamente arbitrárias, destituídas de substrato probatório (não tendo, de resto, merecido qualquer referência em sede de motivação da decisão), razão pela qual se impõe desde já eliminar, dos artigos 73.º, 75.º e 76.º “dos factos provados”, a menção àquele suposto e indemonstrado móbil do crime, com necessárias repercussões ao nível da apreciação do tipo subjetivo do crime em causa nos autos. Acresce que,
- A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLETIVAS E AS REGRAS DE IMPUTAÇÃO PREVISTAS PELO ARTIGO 11.º, N.º 2, ALÍNEAS A) E B) DO CÓDIGO PENAL ‒ O ENQUADRAMENTO FUNCIONAL DA ARGUIDA BB:
80.ª
«A responsabilidade penal dos entes coletivos encontra assento fundamental no art. 11º do Código Penal, e exige um facto de conexão, que é um facto ‒ um comportamento ativo ou omissivo - de uma pessoa física que pela posição que ocupa dentro da pessoa coletiva está em condições de a vincular. O art. 11º, nº 2, alínea a), estatui que os factos serão atribuídos ao ente coletivo quando “forem cometidos em seu nome e por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nela ocupem uma posição de liderança”, nelas se incluindo as pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo, ”os órgãos e representantes da pessoa coletiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade”, incluindo os membros não executivos do órgão de administração e os membros do conselho de fiscalização, sendo assim necessário identificar os líderes dentro da pessoa coletiva, as pessoas físicas que atuam no seu nome e no seu interesse e através das quais a pessoa coletiva se manifesta no mundo exterior e torna responsável por alguma coisa.
81.ª
Ao mesmo tempo, e sem desvirtuar a matriz da responsabilização da pessoa coletiva a partir da atuação ou omissão de pessoas individuais, o legislador entendeu que devia também incluir na esfera das pessoas físicas capazes de comprometer a pessoa coletiva os agentes subordinados (trabalhadores ou funcionários de uma instituição), na condição de terem atuado em nome e no interesse da pessoa coletiva e sob a autoridade dos seus dirigentes, e desde que estes tenham violado de forma negligente ou dolosa os deveres de vigilância e de controlo que lhes competiam (art. 11º, nº 2, alínea b). Por último, dispõe o art. 11º, nº 7, oportunamente lembrado pelo Tribunal, que a responsabilidade da pessoa coletiva não invalida a responsabilidade individual dos autores individuais do facto, o que permite punir duas ou mais pessoas ‒ a pessoa jurídica e a pessoa natural ou pessoas naturais que a dirigem ou tenham atuado sob a vigilância destas últimas ‒ de acordo com um modelo específico de relacionamento entre elas que não constitui co-autoria, nem outra forma legalmente reconhecida de concurso de pessoas (autoria ou cumplicidade).
82.ª
O facto de conexão neste processo é representado pelo crime de maus tratos previsto e punido pelo art. 152º-A do Código Penal, que o Ministério Público e o Tribunal consideraram ter sido praticado pelos arguidos AA e BB na qualidade de dirigentes da pessoa coletiva Lar A..., o que significa que a responsabilização da pessoa coletiva foi feita a partir do critério de imputação previsto pela alínea a), do nº 2, do art. 11º, do mesmo Código, e que houve necessidade de definir previamente as posições que estas pessoas ocupavam na organização, as suas atribuições, competências e poderes.
83.ª
O arguido AA exercia funções como Presidente da direção do Lar A... desde 1991, representando (nº 1 dos factos provados) “a arguida em todos os seus atos de gestão, direção e decisão”. Ao mesmo tempo, a arguida BB iniciou as suas funções de diretora de serviços no ano de 2003, cabendo-lhe, e passamos a citar (nº 2 dos factos provados) “organizar e dirigir as atividades da instituição do Lar A..., supervisionar a articulação dos serviços do Lar A..., entre eles a ERPI (estrutura residencial para idosos), o apoio domiciliário e o centro de dia, bem como a articulação entre esses serviços e a direção do Lar, coordenar esses serviços, apurar os problemas existentes e formular propostas da sua solução, apresentando à direção as correspondentes propostas de melhoria e correção de procedimentos, funcionar como elemento de transmissão das ordens e diretivas juntos dos diversos serviços, supervisionando o seu cumprimento e reportando-o à direção, planear a utilização dos recursos humanos, equipamentos, materiais, instalações e capitais e colaborar na política financeira e verificação dos custos”. Da prova relativa às condições pessoais, familiares, profissionais e sócio-económicas dos arguidos resulta identicamente que BB exercia funções como diretora de serviços do Lar A... a partir de 2003, sendo que o conteúdo funcional dessas responsabilidades dizia sobretudo respeito ao apoio administrativo à direção, “nomeadamente na articulação entre os elementos da direção e as direções técnicas de cada unidade/departamento do lar”.
84.ª
É verdade que AA não só manifestava um claro afastamento em relação ao funcionamento da instituição que não permite relacioná-lo de perto com os factos que corporizam o mau trato relativamente aos utentes, como não exercia desacompanhado as suas funções, sendo várias vezes referida nos autos a existência de dois vice-Presidentes e de um conselho de direção composto por mais seis membros. Em todo o caso, é impossível deixar de concordar com o Tribunal quando lhe atribui a qualidade de dirigente da instituição à luz de uma repartição formal de funções.» Todavia,
85.ª
No que diz respeito à arguida BB, é manifesto que não podemos qualificá-la como dirigente. «De acordo com GERMANO MARQUES DA SILVA, o conceito de liderança utilizado pela lei é um conceito amplo que permite qualificar como líder ou dirigente todo aquele que dirige a instituição ”com autonomia decisória”, mas será que BB tinha efetiva autonomia decisória?
86.ª
As funções de um diretor de serviços são fundamentalmente de acompanhamento e de gestão. Cabe a um diretor de serviços acompanhar a realização da atividade principal pelos funcionários, elaborar planos de atividade, gerir recursos humanos e organizar o pessoal, tomar conhecimento e adotar as medidas necessárias como resposta a reclamações de utentes, garantir registos, e servir de elo de ligação em relação ao órgão decisor, ógão [a] que BB [prestava suporte] (...)
87.ª
Por outro lado, ensina PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE que o critério de imputação à pessoa coletiva se “afere pela conduta do respetivo diretor, gerente ou administrador à data da prática do facto ilícito”, logo pela forma como o agente atuava à data dos factos, e [a conclusão que se tira], quer da descrição das competências de BB feita nos autos, quer da forma como agia, é a de que atuava como uma coordenadora, servindo de elo de ligação entre os serviços e a direção, como um “quase núncio”, validando por vezes pedidos de material, elaborando regulamentos, horários, e planos de trabalho, mas tendo um poder de execução e decisório pouco concreto, diluído por inúmeros serviços e departamentos.
88.ª
BB afirma que: “assistia às reuniões de direção mas não participava nas deliberações/decisões, apenas apontava o que era elencado como problema a resolver” (...) ”fazia quando muito o recrutamento e seleção das pessoas que apresentava à direção para ser decidido, participava nos processos disciplinares que a direção instaurava” (...) “visitava os departamentos da casa para perceber se era reportada alguma coisa” (...) “acompanhou a busca domiciliária porque a diretora técnica não estava presente e estava de férias; não esteve presente em toda a visita porque englobava várias equipas em vários setores” e ia, por vezes, à enfermaria. Ora esta forma de atuar não exprime o contacto direto com a situação, as necessidades, e o sofrimento dos utentes da área dos dependentes, e ao mesmo tempo o poder decisório que exigiria a sua identificação como responsável/dirigente de natureza fundamentalmente executiva, à luz do art. 152º-A, deste departamento.
89.ª
O Tribunal não recorreu à alínea b), do nº 2, do art. 11º, do Código Penal, para fundamentar a responsabilidade da arguida Lar A..., que impunha a comprovação de uma violação dos deveres de vigilância e de controlo dos dirigentes da pessoa coletiva relativamente aos seus funcionários e prestadores de serviços e o apuramento da responsabilidade destas pessoas.» No entanto,
90.ª
A perseguição criminal da arguida BB, trabalhadora da instituição, só seria possível com esse enquadramento normativo! Repare-se que,
91.ª
(...) BB não só não tomava decisões vinculantes para a instituição, como não tinha competência para praticar todos “os atos de gestão necessários à proteção e segurança de todos os idosos residentes no Lar A...”, ao contrário do que lê na sentença que a condenou.
92.ª
Na verdade, a autonomia destas chefias intermédias e dos atos de execução que iam praticando não podia deixar de ter tido reflexos na decisão do caso concreto, uma vez que traduz a falta de controlo e de domínio do facto por parte dos dirigentes formalmente identificados, impedindo a afirmação do seu dolo.
93.ª
Esta falta de controlo sobre funcionários e chefias intermédias [de que a arguida BB fazia parte!] apenas (...) poderia ser censurada enquanto violação de deveres de vigilância relativamente a subordinados com base na alínea b), do no 2, do art. 11º, mas o Ministério Público e o Tribunal decidiram não recorrer a esta via de imputação. Na enfermaria das pessoas dependentes trabalhavam uma chefe de limpeza, uma chefe de enfermagem, médicos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, e outros funcionários, cujas decisões e formas de atuar influenciavam, porventura de forma ainda mais decisiva do que as [dos] dirigentes, o bem-estar das pessoas internadas (...).» Pelo que,
94.ª
À arguida BB, tal como sucederia em relação aos outros funcionários, na sua maioria com uma ligação muito mais próxima com os utentes (veja-se o caso da diretora técnica da ERPI), só poderia ser assacada responsabilidade acaso tivesse sido apurada a responsabilidade de tais funcionários, com o enquadramento e para efeito do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 11.º do Código Penal. Ademais,
95.ª
«Como bem sublinha a sentença de 4 de março de 2024, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto ‒ Juízo Criminal de ..., que absolveu os mesmíssimos arguidos pela prática do crime de maus tratos na sequência de um processo crime que teve inicio na denuncia de uma utente do Lar A... a partir dos mesmos factos: “note-se que, numa estrutura residencial com cinco pisos, e utentes na ordem das centenas, não é razoável impor aos arguidos que detivessem conhecimento integral das ocorrências enunciadas nos factos provados, que tivesse sido apresentada uma reclamação pela assistente ou alguém em sua representação e que, ainda assim, a situação deficitária se mantivesse. É certo que podemos configurar que o conhecimento se impunha aos arguidos pelas funções que exerciam, mas não podemos deixar de atentar na especificidade das lacunas praticadas por enfermeiros, pessoal de limpeza e assistentes (considerando apenas as que se consideraram demonstradas), que não têm se ser conhecidas dos demais”.» Sucede, pois, que,
96.ª
«O Tribunal não avaliou a responsabilidade destas pessoas, e partiu do princípio de que se alguma responsabilidade pudessem ter perante a realidade em que se consubstanciaram os maus tratos sofridos pelas pessoas internadas, essa responsabilidade seria forçosamente negligente, o que tornaria impossível o preenchimento do art. 152º-A e o funcionamento da alínea b), do no 2, do art. 11º, como critério de imputação da responsabilidade à pessoa coletiva.»
97.ª
«Ora, não só fica por demonstrar, tendo em conta o que dissemos, que não tivesse existido qualquer nesga de responsabilidade dolosa na atuação destas pessoas como, e mais importante do que isso, o dolo que o Tribunal presumiu inexistente em relação às instâncias de execução mais próximas do que se passava na enfermaria, não hesitou em admitir em relação aos dirigentes da instituição [qualidade erradamente atribuída, também, à arguida BB,] naturalmente muito mais afastados dos factos e da situação dos doentes concretos (lembre-se que não estamos a falar apenas do estado de equipamentos e de serviços, mas da forma como toda essa realidade se repercutiu no bem estar de pessoas concretas).
98.ª
Além disso, veio imputar aos mesmos dirigentes [qualidade erradamente atribuída, também, à arguida BB,] a responsabilidade pela violação de um dever de vigilância totalmente genérico relativamente a subordinados que deduziu do exercício de funções de liderança, e que por isso incluiu no quadro da alínea a), do nº 2, do art. 11º, onerando ainda mais a sua posição. E assim pode ler-se: ”Cabia-lhes vigiar e controlar os atos dos prestadores de serviços do Lar A... com vista à proteção daquelas pessoas”, e mais à frente na sentença “cabia aos arguidos (...) vigiar e controlar os atos de todos os funcionários e prestadores de serviços da arguida Lar A... com vista à efetiva proteção daquelas pessoas colocadas ao seu cuidado e à sua guarda”, desconsiderando deste modo toda a responsabilidade de quem executava, fazia ou não fazia, ou simplesmente não cuidava.» Ora, é manifesto que,
99.ª
A arguida BB, diretora de serviços do Lar e, por isso, sua trabalhadora e não dirigente, não podia ter sido alvo de perseguição criminal quando o não foram os demais.
100.ª
Foi, assim, errada a perseguição criminal, e é clamorosamente errada a condenação, da arguida BB, que não pode ser responsabilizada ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 11.º do Código Penal. Pelo que, deve a decisão recorrida ser revogada, com a consequente absolvição da arguida BB. Acresce que,
‒ O TIPO OBJETIVO DO CRIME DE MAUS TRATOS:
101.ª
«O crime de maus tratos encontra-se previsto no art. 152º-A, nº 1, do Código Penal, que estabelece que: “Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e: a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; b) A empregar em atividades perigosas, desumanas ou proibidas (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”. O nº 2, alínea a), deste artigo, prevê uma agravação para as situações em que dos factos previstos no nº 1 resulte ofensa à integridade física grave, ou na hipótese prevista pela alínea b), a morte da vítima.
102.ª
O crime de maus tratos pode ser praticado por ação ou por omissão, e o Tribunal entendeu que os arguidos praticaram o crime previsto no art. 152º-A do Código Penal violando os deveres que os obrigavam a agir no sentido de preservar os bens jurídicos dos utentes internados no Lar A..., ou seja, por omissão.
103.ª
Positivamente que os tipos legais que incriminam a comissão por ação não podem valer sem reservas em relação a toda a omissão que conduz aos mesmos resultados sob pena de um alargamento intolerável do espectro das condutas puníveis (a omissão não pode ser penalmente relevante apenas como “não fazer nada”, apenas ganhando sentido como omissão da ação esperada ou devida) pelo que a comissão por omissão exige a correspondência material entre o conteúdo de ilicitude da ação descrita no tipo legal de crime e a ilicitude decorrente da omissão ou do non facere do agente concreto. Em ordem a evitar que esta equiparação tivesse de ser feita integralmente pelo aplicador do direito de acordo com a sua valoração do caso concreto - em termos totalmente divergentes do que impõe o princípio da legalidade -, o legislador estabeleceu as condições da equiparação da omissão à ação no art. 10º, do Código Penal, que começa por depender da imposição ao agente “de um dever que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado”, genericamente designado pela doutrina e pela jurisprudência como dever de garante.
104.ª
O Tribunal considerou que o dever de garante dos arguidos tinha fundamento no contrato de prestação de serviços celebrado entre cada uma das pessoas identificadas e o Lar A..., pelo qual a instituição assumiu todos “os deveres de garante da saúde física, mental, psíquica, do bem estar emocional, da satisfação das necessidade básicas, inerentes até à sobrevivência, como seja a alimentação, a higiene, a saúde, a medicação adequada, assistência médica e de enfermagem” em relação a estas pessoas, deveres que por sua vez transferiu para os dirigentes que a representavam, pelo que deviam ser os termos desse contrato e do Regulamento para residentes a servir de ponto de apoio para identificar os principais deveres dos arguidos, em particular o ponto um da Norma XXIV do mesmo Regulamento que estabelece que “são direitos dos residentes a) obter a satisfação das suas necessidades básicas, físicas, psíquicas e sociais; b) ser respeitado na sua individualidade e privacidade e a Norma IV do Capítulo I, que confere o direito ao residente de recorrer sem encargos aos serviços médicos e de enfermagem disponibilizados pela instituição, e a fisioterapia.
105.ª
Da leitura da prova produzida não resulta que a ratio de funcionários necessária para garantir o reposicionamento dos doentes e a sua higienização não estivesse cumprida, aliás as declarações da diretora técnica GG contrariam esta conclusão (e o próprio Tribunal admite na sentença que foram “cumpridos os quadros e mapas dos colaboradores da forma prevista para a instituição”), o mesmo acontecendo em relação aos horários de mudança da fralda dos utentes e à sua rotação, que tinham sido estabelecidos pela própria arguida.
106.ª
Este contrato de prestação de serviços fundava um outro dever para os arguidos que o Tribunal também identificou: ... dever de vigiar e de controlar os atos de todos os funcionários e prestadores de serviços da arguida Lar A... com vista à efetiva proteção daquelas pessoas colocadas aos seus cuidados e à sua guarda”.
107.ª
Mas vimos que estes “funcionários e prestadores de serviços” que acompanhavam e tratavam dos idosos internados, e que não podem ser alheios à criação e manutenção do clima de abandono, de mau trato físico e psíquico que se vivia na enfermaria relativamente aquelas pessoas, também tinham deveres de garante, deveres de garante esses que o Tribunal reconheceu ao dizer que ”a relação negocial assim fixada transfere para os donos proprietários, para a direção técnica e em última instância para os cuidadores ao serviço da instituição ou do lar o supra aludido dever de garante da saúde física, mental, psíquicas, do bem estar geral emocional, da satisfação da necessidade básica de sobrevivência como seja desde logo a alimentação, a higiene, etc”.
108.ª
Ao condenar os dirigentes pela violação de um dever de vigilância relativamente a estas pessoas, sem que concomitantemente tenha sido apurada a sua responsabilidade pelos factos, o Tribunal mais não fez senão transferir para os mesmos dirigentes as consequências da violação de deveres alheios, o que anda próximo de uma forma de responsabilização objetiva e sem culpa proibida no direito penal.
109.ª
O Tribunal não ficou convencido do cumprimento das regras que integravam as obrigações provenientes do contrato de prestação de serviços celebrado entre os utentes e o Lar A... e concluiu que o número de funcionários era insuficiente (em concreto) para garantir o bem-estar e saúde dos utentes, e que a qualidade dos serviços prestados era deficiente. A este propósito convém dizer o seguinte. Independentemente da realidade dada como provada nos autos relativamente à falta de condições que se vivia na enfermaria do Lar A..., da qual não duvidamos, deve entender-se que quando a definição da responsabilidade penal de uma pessoa está dependente da avaliação do cumprimento ou incumprimento de regras extrapenais de cuidado (regras de circulação rodoviária, leges artis médicas, protocolos, regulamentos), existe uma diferença importante entre a violação dessas regras e o seu cumprimento.
110.ª
Em caso de violação da regra técnica prevalece sempre a avaliação das circunstâncias do caso concreto na definição da violação do cuidado penalmente exigido, constituindo a violaçãobda regra extra-penal (o desrespeito do sinal vermelho de um semáforo na avaliação da responsabilidade negligente por um homicídio) um mero indício de falta de cuidado do comportamento (um médico pode ter violado uma norma técnica e ter agido quando a sua intervenção foi imperiosa por razões de urgência, ou teve lugar num contexto que tornou a regra profissional desadequada).
111.ª
Inversamente, tem-se entendido que o cumprimento dos regulamentos ou das regras que regem uma atividade deve ser considerado sinal suficiente de que o dever de cuidado foi cumprido, a não ser em situações absolutamente excecionais em que a regra se mostre totalmente desadequada, na medida em que o profissional deve poder confiar sempre no cumprimento das regras que regem a sua atividade para manter afastada a responsabilidade penal.
112.ª
Dissemos que o Tribunal não ficou convencido do cumprimento do dever de garante pelos arguidos, mas, e este aspeto parece ter sido relativamente descurado na avaliação dos factos, a equiparação entre a omissão e a ação de acordo com os critérios do art. 10º, do Código Penal, não procede independentemente da análise das circunstâncias do caso concreto e das condições físicas e psicológicas do titular do dever de garante de cumprir esse dever. É que, como salientámos, a equiparação entre o desvalor da omissão e da ação é uma equiparação normativa e material, pelo que só pode existir o preenchimento do tipo objetivo de ilícito - neste caso correspondente ao art. 152º-A ‒ se for possível provar que o agente tinha condições de cumprir o dever de garante numa dada situação ambiente, que tinha efetiva possibilidade de realizar a cabo a ação devida. Estamos a referir-nos à exigibilidade/não exigibilidade como causa de atipicidade do comportamento relacionada com a falta de capacidade física para a ação, incluindo a falta de capacidade técnica, de conhecimentos ou meios de auxílio, e com a própria incapacidade psicológica ou interna de cumprir o dever: a ordem jurídica não pode qualificar como tipicamente relevante um comportamento (leia-se omissão) que não poderia esperar da generalidade das pessoas.
113.ª
Entendemos - embora exista alguma dificuldade em distinguir a avaliação sobre a exigibilidade da ação como intervenção ou ação física, do juízo sobre a exigibilidade da diligência ou da ação cuidadosa - que esta ideia da não exigibilidade da ação pode e deve ser utilizada no caso em apreço como forma de excluir a ilicitude típica da omissão dos arguidos. De resto, este princípio foi utilizado pelo Tribunal Criminal de ... ‒ sem referência expressa à sua designação ‒ para fundamentar a absolvição no processo de AA e BB: “assim, não resta senão reconhecer que o acervo factual nos autos não suporta a conclusão de que os arguidos estavam realmente cientes da deficiente prestação de cuidados à ofendida, nos moldes já enunciados e suscetíveis de configurar “maus tratos”, e que para além disso estavam efetivamente capazes de adotarem as medidas necessárias para corrigir tal situação”.
114.ª
A possibilidade de cumprimento do dever de ação pelos arguidos relativamente às condições do lar e à vigilância de factos alheios só pode ser devidamente avaliada tendo em conta que houve ações e omissões autónomas da parte de subordinados de que os dirigentes não podiam ter conhecimento, que se tratava de um estabelecimento com vários serviços e departamentos, e que os factos em avaliação dizem respeito a uma enfermaria com doentes na sua maioria acamados e com necessidades específicas, o que tudo indica não foi ponderado pelo Tribunal neste Acórdão.
115.ª
Uma enfermaria de pessoas com muita idade e várias patologias não é um espaço que permita reconhecer com facilidade certas deficiências de cuidado e de acompanhamento dos doentes, como falhas no cumprimento de dietas específicas, ou identificar problemas de saúde a afetar locais pouco visíveis do corpo, sobretudo por parte de dirigentes e de pessoas com funções de gestão que não trabalham na área da saúde e da enfermagem e que não estão em contacto direto com os doentes.»
Conclui-se, assim que,
116.ª
Não ficou demonstrado que os arguidos, com funções de gestão (em diferentes patamares, devemos reforçar, já que carece de suportes factual e probatório a atribuição da qualidade de “dirigente” à arguida BB), tivessem violado quaisquer regras regulamentares quanto a equipamentos e serviços, nem que tivessem conhecimento e capacidade fáctica, técnica e pessoal, para assegurar o funcionamento sem lacunas ou deficiências de uma estrutura residencial com cinco pisos e, em particular, de uma área de residentes dependentes cujo estado de saúde exigia conhecimentos e cuidados que os arguidos não têm, tendo legitimamente confiado nos cuidados prestados por profissionais habilitados, para tanto contratados. Pelo que,
117.ª
Atenta a ausência de preenchimento da tipicidade objetiva do crime de maus tratos, previsto e punível pelo disposto no artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, deve a decisão recorrida ser revogada, com a consequente absolvição dos arguidos. Não obstante,
‒ O TIPO SUBJETIVO DO CRIME DE MAUS TRATOS:
118.ª
«(...) o crime de maus tratos é um crime doloso que não admite a realização negligente, pelo que mesmo aceitando a tipicidade da omissão dos arguidos no plano objetivo, pressupondo que tinham possibilidade de cumprir o seu dever de ação relacionado com o controlo total dos equipamentos, condições de higiene, alimentação e saúde dos utentes, e com a fiscalização das atuações e omissões de todos os funcionários, diretores técnicos, chefes de limpeza de enfermagem, do referido setor do internamento, sempre teria que ficar cabalmente demonstrado que também tinham o conhecimento integral desta realidade de facto ‒ de todas estas deficiências de meios e comportamentais - e da forma como ela se repercutiu nos bens jurídicos dos utentes (elemento intelectual do dolo) como condição da correta orientação da sua vontade no sentido da prática do crime (elemento volitivo), tendo ainda de deter os mesmos arguidos, agora no plano da culpa, a plena consciência do ilícito em que incorriam com as suas omissões.
119.ª
A verdade é que ao nível do tipo subjetivo de ilícito doloso tudo, ou quase tudo, ficou por comprovar neste processo. O Tribunal reconheceu expressamente que a imputação subjetiva do tipo previsto pelo art. 152º-A “tem o seu fundamento exclusivo no dolo em qualquer das suas modalidades que justamente por causa das diferentes formas que a consumação do crime pode revestir tem conteúdo variável. Implica, desde logo, sempre o conhecimento da existência dos deveres inerentes à assunção da relação laboral, ou do vínculo de proteção subordinação, do estado de menoridade, deficiência, velhice, doença ou gravidez da vítima. Na vertente de maus tratos físico, o dolo abrange o resultado, qual seja, a consciência de causar a lesão da integridade física da vítima e, nos restantes casos, implica a consciência e a vontade de criar o risco de lesão da saúde da pessoa do ofendido ou do perigo de afetação do normal desenvolvimento da criança aos cuidados do agente ou de criação de prejuízos para a saúde da vítima”.
120.ª
Na prática, o Tribunal limitou-se a deduzir o conhecimento dos arguidos relativamente ao estado dos equipamentos e condições dos serviços e em relação ao estado de saúde dos utentes a partir dos deveres gerais de cuidado estabelecidos pelo regulamento para residentes que os obrigava a satisfazer as necessidades básicas dos mesmos utentes, “conheciam, e não podiam deixar de conhecer, que nos termos do regulamento para residentes a arguida lar A... estipulou que”, estabelecendo assim uma verdadeira presunção de conhecimento relativamente à situação de facto e ao resultado que constituíam o verdadeiro fundamento do seu dever de agir, a partir da “natureza evidente e inegável da degradação do espaço, dos equipamentos, do material, e das falhas do mesmo”. ”Enquanto responsáveis pela gestão e exploração da empresa e em função dos usos do comércio deste tipo de atividade, os arguidos não poderiam deixar de tomar conhecimento das condições físicas, psíquicas e estado geral da saúde dos idosos que foram admitidos e acolhidos no Lar A...”.
121.ª
O que é manifestamente escasso em termos de prova de conhecimento, quer sob o ponto de vista das condições em que era prestado cuidado aos idosos internados, quer sob o ponto de vista da situação concreta de cada uma das vítimas, porque a vulnerabilidade e o precário estado de saúde das pessoas idosas internadas numa enfermaria é, à partida, um dado adquirido, exigindo-se um conhecimento específico e reforçado da parte dos arguidos relativamente ao estado de saúde, à má alimentação, à degradação da dignidade de cada uma delas.
122.ª
Por outro lado, o conhecimento que é exigido relativamente ao autor de um crime de maus tratos não pode restringir-se ao conhecimento do mau estado de instalações e de equipamentos e à má qualidade dos serviços prestados, e da vulnerabilidade e fragilidade da vítima, mas tem de abranger a forma como essa vulnerabilidade, o bem estar psíquico e físico dos utentes, os seus bens jurídicos, são afetados pela violação dos deveres do agente, de modo a que seja possível dizer que se conformou ‒ ao menos - com o resultado de maus tratos relativamente a cada vítima, o que nos parece que apesar da enumeração dos nomes das vítimas também não ficou provado.
123.ª
É que mesmo admitindo que os arguidos soubessem de todas as falhas e perigos que rodeavam os utentes, e da sua situação concreta, [não é possível daí retirar-se o] conhecimento exato quanto às repercussões que essa situação objetiva pudesse ter sobre a saúde e bem-estar de cada um deles, uma vez que os dirigentes não podem ser omnipresentes numa instituição com esta dimensão e a prestar este tipo de serviços, e não têm condições de conhecer bem cada utente e a sua realidade.
124.ª
Por exemplo, no que diz respeito à existência de úlceras de pressão, vulgarmente designadas como escaras ‒ pese embora o mau cheiro que exalam ‒ sabemos que podem ser perfeitamente disfarçadas por baixo da roupa de cama, sendo apenas acessível o seu conhecimento a quem trata e tem de virar e cuidar destas pessoas: pessoal de enfermagem e médicos, não a uma diretora de serviços de quem mais do que uma vez se diz que aparecia “de vez em quando na enfermaria”, e menos ainda a um Presidente da direção (além de que estamos a falar de um tipo de complicação que nem a mais perfeita higienização e cuidado pode evitar totalmente com consequências que podem ser fatais).
125.ª
Nesse sentido fica completamente por demonstrar que “estiveram sempre cientes da prática de atos que atentavam contra a individualidade e a contra a dignidade da pessoa humana, bem como da desumanidade e crueldade desses atos e da humilhação e sofrimento que causavam aos residentes dependentes”,
126.ª
O conhecimento que o Tribunal considerou relevante para afirmar a vontade enquanto conformação dos arguidos relativamente aos maus tratos praticados e, por conseguinte, o seu dolo eventual, foi um conhecimento abstrato, parcialmente deduzido de regras gerais constantes de um regulamento e das funções exercidas, e um conhecimento totalmente genérico e parcial presumido a partir da situação de facto que se vivia na instituição (o mau estado dos equipamentos, das nstalações, e os maus serviços prestados aos utentes).
127.ª
O conhecimento efetivo da realidade da parte dos arguidos não ficou comprovado, nem é suficiente para falar em conformação com o resultado de maus tratos enquanto consciência ou adesão à possibilidade da concretização desses maus tratos como resultado da conduta/omissão, pelo que não parecem legitimas afirmações como “atuaram intencionalmente”, “aceitaram a colocação em perigo dos bens jurídicos”, “correspondeu à sua vontade”.
128.ª
A falta do conhecimento impede o preenchimento do tipo de ilícito e a própria apreciação da própria culpa dos arguidos, porque só o conhecimento exato das circunstâncias de direito e de facto da conduta praticada é que permite ao agente orientar-se quanto ao desvalor da ilicitude da mesma conduta.
129.ª
Efetivamente, a afirmação do dolo (...) exige que ... agente conheça, saiba, represente corretamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objetivo”, em suma, de “tudo o que é necessário a uma correta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à ação intentada, para o seu carácter ilícito”. E de forma mais específica em relação aos crimes de comissão por omissão, mas absolutamente alinhada com FIGUEIREDO DIAS na doutrina nacional, diz FISHER: ... dolo tem de abranger além do resultado, as circunstâncias de facto que fundamentam o dever”. Caso contrário, continuamos agora nós, não existindo o completo conhecimento da realidade de facto que integra o tipo objetivo de ilícito, não é possível dizer que o agente quer, ou numa escala mais abaixo de vontade, se conforma, com a possibilidade da ocorrência do resultado. O que é claro se tivermos presente o regime do erro previsto pelo art. 16º, no 1 e nº 3, do Código Penal, que estabelece que aquele a quem falta o conhecimento da realidade, o elemento intelectual do dolo, apenas pode ser punido por negligência.
130.ª
A natureza evidente da falta de condições do lar vale mais como um indicador de previsibilidade e de evitabilidade objetivas de lesão dos bens jurídicos das vítimas, ou seja, de negligência, do que como sinónimo de conhecimento e de conformação com o resultado dessa lesão. E eis-nos chegados à conclusão que retirou a sentença do Tribunal de ... [junta sob o Documento n.º 2](...) em relação à conduta dos mesmos arguidos no mesmo estabelecimento em relação a outra utente:” Contudo, não se demonstrou que os arguidos estavam cientes das referidas deficiências nos serviços prestados, que para as mesmas tenham sodo alertados e, ainda assim, nada fizessem para corrigir a situação, designadamente mediante a contratação de novos funcionários ou otimização dos recursos humanos existentes (...) Assim, não resta senão reconhecer que o acervo factual nos autos não suporta a conclusão, de que os arguidos estavam realmente cientes da deficiente prestação de cuidados à ofendida nos moldes já enunciados e suscetíveis de configurar “maus tratos” e que, para além disso, estavam efetivamente capazes de adotarem as medidas necessárias para corrigir tal situação”.» Assim,
131.ª
Ficou também por demonstrar o conhecimento e a vontade de realização do crime por parte dos arguidos (elemento intelectual e volitivo do dolo), na medida em que tais conhecimento e vontade não podem deduzir-se de um determinado “estado de coisas” genérico, antes sendo necessária ‒ para, pelo menos, se poder afirmar uma conformação dos arguidos com o resultado da sua conduta omissiva ‒ a demonstração do conhecimento das repercussões concretas, para cada uma das 18 (sem se perceber exatamente porquê estas 18) pessoas ofendidas, identificadas nos autos.
132.ª
Tal como ficara já excluído (Vide pontos 43 e 44 da presente motivação) aquilo que na decisão recorrida, sem qualquer elemento de prova que suporte a afirmação, se identificou como sendo o móbil do crime: “razões económicas”/contenção de despesas. Pelo que,
133.ª
Atenta a ausência de preenchimento do elemento subjetivo do crime de maus tratos, previsto e punível pelo disposto no artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, deve a decisão recorrida ser revogada, com a consequente absolvição dos arguidos. Ademais,
134.ª
Naturalmente que, posto que a condenação no pagamento de uma indemnização civil aos demandantes se funda, desde logo, na prática do ilícito criminal que vimos de tratar, valem como fundamentos para a revogação, que se impõe, da decisão recorrida, na parte civil, todos os que se expenderam supra, que para este efeito se dão aqui por integralmente reproduzidos. Por último,
‒ A ERRADA PONDERAÇÃO DA MEDIDA DA PENA:
135.ª
Os arguidos foram condenados pela prática, em concurso real, de 18 (dezoito) crimes de maus tratos ‒ artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, punível com pena de prisão de 1 a 5 anos. Por cada um dos 18 (dezoito) crimes foi aplicada a pena parcelar de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão e, em cúmulo jurídico, foram os dois arguidos condenados na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. Constata-se, assim, que,
136.ª
O Tribunal não só não atendeu à atenuação especial prevista no artigo 10.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, como fixou as penas parcelares, perante a comissão de um crime por omissão e com dolo eventual, muito acima do limite mínimo. Ora,
137.ª
Não se vê razão alguma para assim suceder, e da fundamentação da decisão mais não resulta do que uma evidente ‒ guiada por critérios puramente subjetivos ‒ vontade punitiva do Tribunal. É, pois, manifesto que a fixação da medida, em 2 anos e 4 meses por cada crime, ou seja, muito acima do mínimo previsto na norma incriminadora (1 ano), não encontra compatibilidade, ultrapassando-a, com a medida da culpa (dolo eventual), que constitui o critério fixador do limite máximo das penas ‒ Cf. artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal. Impõe-se, assim, que,
138.ª
Desde logo, seja atendida e aplicada a atenuação especial da pena. O artigo 10.º, n.º 3, do Código Penal prevê que, nos casos de comissão do crime por omissão, a pena pode ser especialmente atenuada.
139.ª
Como refere a Ilustre Jurisconsulta, Professora Doutora Paula Ribeiro de Faria, «(...) a violação do dever de garante existindo a possibilidade da prática da ação de salvamento dos bens jurídicos por parte do agente (a violação de deveres de ação) “não se apresenta, em regra, tão grave como a violação das proibições correspondentes”, como justamente assinala na doutrina nacional FIGUEIREDO DIAS.
Trata-se, é verdade, de uma atenuação especial facultativa, mas a sua aplicação só deve ser recusada em casos excecionais (é FIGUEIREDO DIAS que utiliza expressamente a palavra excecionalmente) quando o grau de controlo do processo causal pelo omitente e outras circunstâncias sejam de molde a revelar uma particular ilicitude e culpa do agente.» Assim,
140.ª
Porquanto ... delito impróprio de omissão apesar de equiparação típica, surge em regra como dotado de uma menor dignidade punitiva que o delito de ação correspondente, resultante de um conteúdo menos grave de ilicitude e (sobretudo) de culpa”, deveria ter sido/deverá ser concedida aos arguidos a especial atenuação da pena, com a consequente redução de um terço do limite máximo e ao mínimo legal ‒ passando-se assim para uma moldura de 1 mês a 3 anos e quatro meses, segundo os critérios previstos nos artigos 41.º, n.º 1, e 73.º, n,º 1, alíneas a) e b) do Código Penal. Repare-se que,
141.ª
O arguido AA ‒ tal como resulta do seu relatório social, que o Tribunal considerou fastidioso citar ‒ tem atualmente 81 anos. Foi presidente da direção ... Lar A...” durante 30 anos, entre 1991 e 2021.
142.ª
Em momento algum foi este facto sopesado na apreciação do objeto do processo, suscitando pelo menos a dúvida acerca do preenchimento da tipicidade da conduta de uma pessoa que trazia quase três décadas de exercício daquelas funções sem haver nota de qualquer situação “precedente”; deveria pelo menos o Tribunal ter-se questionado sobre o que teria levado um homem, ao cabo de quase 30 anos, a, por “razões económicas”, afinal inexistentes, conformar-se com o tratamento desumano de pessoas idosas.
143.ª
Ora, sopesando agora, como se impõe, esse facto, tem o mesmo que contribuir para um juízo favorável ao arguido, concorrente com o concreto envolvimento do arguido nos factos objeto dos autos e com circunstâncias posteriores aos factos em causa nestes autos: o arguido já não exerce quaisquer funções ... Lar A...” (ou em qualquer outro lar de idosos), encontra-se aposentado e bem inserido socialmente.
144.ª
Em relação à arguida BB, sendo embora absolutamente inconcebível que a sua condenação se mantenha, deverá, se assim suceder, considerar-se o concreto contexto da sua conduta, a que acima nos reportámos, revelador de uma ilicitude e de uma culpa, que não podem ter-se senão como baixas e, por isso, pouco expressivas ao nível das finalidades das penas (a que são alheios quaisquer ímpetos justiceiros, moralistas ou revanchistas do Estado).
145.ª
Ademais, a arguida cessou o seu vínculo laboral com ... Lar A...” em 2021; tem 50 anos, não exerce atualmente quaisquer funções relacionadas com idosos e encontra-se bem inserida socialmente. Neste sentido,
146.ª
Tendo-se presente que do que aqui se tratou, mesmo que pudesse permanecer intocado o decidido pelo Tribunal a quo, foi de um alheamento (conduta omissiva) em relação à realidade vivida na área de dependentes inserida na Estrutura Residencial Para Idosos ... Lar A...”, distribuída por 5 pisos e com capacidade para mais de duas centenas de pessoas, e não de uma qualquer atuação determinada pelos arguidos a terceiros que comprometesse o bem estar dos idosos e, muito menos, que visasse molestá-lo, Bem como, ainda,
147.ª
Considerando-se a inexistência de exigências de prevenção, nem geral, nem especial que justifiquem, de forma fundada nos critérios constitucionais da necessidade, adequação e proporcionalidade, o encarceramento destas duas pessoas,
148.ª
Deverão fixar-se no limite legal mínimo (1 mês de prisão) as penas, especialmente atenuadas, dos arguidos, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 3, do Código Penal, por ser este mínimo legal a única medida compatível com os limites da culpa assacável aos arguidos (já de si correspondente do patamar mínimo da censurabilidade penal),
149.ª
Tudo com a consequente suspensão da execução da pena de prisão, posto que, de acordo com os critérios previstos no disposto no artigo 50.º do Código Penal, ou seja, à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, é incontestável que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
150.ª
Com efeito, mostram-se violadas na decisão recorrida as normas dos artigos 10.º, n.º 3, 72.º, 41.º, 71.º e 72.º, todos do Código Penal.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, que V/Exas. doutamente suprirão, deve ser dado
provimento ao presente recurso, e, em consequência:
- serem os recorrentes absolvidos dos crimes por que foram condenados;
Ou, a assim não se entender,
- ser ordenado o reenvio do processo ou anulada a decisão recorrida ordenando-se a sua substituição por outra que exclua os meios de prova proibidos utilizados na decisão sob censura;
Assim, farão V/Exas.
Justiça! »

1.2.2- A Arguida ... Lar A...” concluiu a motivação nos seguintes termos:
«Conclusões
1) o ato de julgar firma-se e sustenta-se, ao longo de toda a audiência de discussão e julgamento, num ativo e constante processo de formação de uma convicção do julgador, que se pretende livre e objetiva, mas que nunca se pode deixar de pautar por:
i. - Analisar toda a prova segundo as regras da experiência comum;
ii. - Saber conduzir a análise da prova pelos ditames da lógica, numa apreciação minuciosa (mas globalizante), crítica e dialéctica da prova; e,
iii. - Atender a corretos juízos de inferição e ilação sobre toda a documentação e prova apresentada;
2) Impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto no que respeita à arguida ... Lar A...”, ora recorrente, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal por Erro na apreciação da prova.
3)Não foi tido em consideração e devida apreciação pelo Tribunal “a quo” os termos estabelecidos nos estatutos sociais e na lei quanto à forma de formação e manifestação da vontade da instituição enquanto pessoa coletiva, mais precisamente no que respeita à gestão e administração da instituição, ora recorrente:
i. - designadamente as suas decisões de gestão são proferidas por um órgão social colegial - a Direção – e não somente pelo Presidente como como foi entendimento do Tribunal;
ii. - O Presidente da Direção não é um corpo gerente mas sim, e somente uma função, a quem cumpre, unicamente, no exercício mesma salvaguardar os fins e interesses sociais da Instituição recorrente, superintender a execução das referidas decisões da direção que têm de estar refletidas em atas daquele órgão social colegial
4)O Tribunal a quo, não teve em devida e adequada atenção todos os elementos de prova carreados para os autos, não efetuou a devida e adequada ponderação e articulação de todos os elementos de prova apresentados, e não percecionou os devidos e regulares termos de funcionamento da instituição e formas e termos para as tomadas de decisão que deram origem aos factos em julgamento.
i. - As decisões não foram nunca assumidas por qualquer corpo gerente da instituição;
ii. - Nunca foram levadas ao efetivo conhecimento do órgão colegial – a Direção;
5)O arguido AA, enquanto Presidente, não detinha, nem detém, internamente, qualquer poder proporcionalmente semelhante a um “jus imperium”, pelo qual lhe seja assim concedido um poder executivo exclusivo, o direito de mandar, de exercer autoridade, de gerir sem dar, ou prestar, qualquer satisfação, ou poder de intervenção, aos restantes membros do órgão colegial da Direção.
6)A responsabilidade da sociedade não tem de ser puro reflexo da responsabilidade do agente do facto ilícito.
7)Em nenhum momento da prova, designadamente documental, surge ou foi levada à apreciação, qualquer ata da direção de onde emane qualquer diretiva, instrução ou vontade da Direção de ... Lar A...” que corrobore, permita ou silencie qualquer comportamento assumido indevidamente para com qualquer utente!
8)Em nenhum momento da prova, designadamente documental, foi identificada qualquer ata ou diretiva da direção pela qual se assuma que este corpo gerente tivesse tido conhecimento ou intervenção, mesmo que a título omissivo, dos factos de que a ora recorrente foi condenada por efeito dos procedimentos assumidos pelos demais arguidos.
9)Os arguidos AA e BB, conforme resultou da prova documental e sobretudo, de prova testemunhal prestada em sede de audiência de discussão e julgamento, viviam a instituição como se fosse “coisa sua” e dominavam todas as decisões, sem em momento algum prestarem qualquer satisfação ou esclarecimento ou permitiram qualquer intervenção ao órgão colegial a quem competia a efetiva gestão da Instituição – A Direção
10) O órgão colegial da Direção, a quem competia proferir as diretivas de gestão da instituição e assumir em atas todas as decisões de investimento em pessoal e meios para a instituição, foi arredada pelo arguido AA de qualquer intervenção, tendo este assumido, na sua pessoa, em plena colaboração com a arguida BB, com quem vivia em união de facto, a plena Direção da instituição como se aquela Instituição fosse sua exclusiva propriedade e domínio.
11) Quem, no exercício da sua posição de liderança, abusa das suas funções sociais, o facto não deve ser considerado como praticado em nome e no interesse da sociedade, mas em nome próprio.
12)No elenco dos factos provados e identificados a (.), que por uma questão de economia processual se remete, deverão os mesmos ser alterados no sentido de retirar a menção ao interesse e intervenção da ora recorrente na assunção e prática dos aludidos factos e decisões aí identificadas, porquanto as condutas e omissões praticadas só podem obrigar e responsabilizar os arguidos AA e BB como interesses próprios, porquanto foram assumidos sem que o Lar A... tenha manifestado a sua vontade própria pelo órgão eleito que legitima, e legalmente, poderia manifestar essa vontade.
13) A Direção do Lar A..., enquanto corpo gerente colegial e verdeiro responsável pela organização e gestão da instituição, não tinha, nem lhe era reconhecido, por força do arguido AA, qualquer domínio de decisão ou direção.
14) Resulta da prova realizada em audiência e discussão e julgamento, todas as queixas, reclamações e reuniões foram apresentadas e eram efetuadas, sempre, unicamente, aos arguidos AA e BB e eram realizadas unicamente com a sua presença.
15) A culpa da pessoa coletiva não se confunde necessariamente com a culpa das pessoas físicas que agem por ela, quer isto significar que sendo o exercício do domínio da organização para a execução do facto típico (por parte daqueles que ocupam uma posição de liderança) condição necessária da responsabilização coletiva, não é, porém, condição suficiente para a imputação subjetiva do facto ilícito à coletividade.
16) É indispensável que o crime tenha sido perpetrado pelo órgão de liderança ou representante, em nome e no interesse coletivo [n.º 2, al. a) do art. 11.º] e que o agente não tenha atuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito (n.º 6 do art. 11.º).
17) A “vontade” da pessoa coletiva é sempre construída normativamente, nos termos legalmente prescritos com respeito pelas regras legais ou estatutárias que definem as condições de formação dessa vontade juridicamente relevante, caso contrário, a pessoa coletiva não pode ser responsabilizada, na medida em que o facto não constitui uma manifestação de vontade da coletividade.
18) A inexistência de qualquer vontade, ordem ou instrução formada pelo corpo gerente da instituição por inexistência de qualquer reunião convocada pelo Presidente, ora arguido, não pode ser imputada como ato doloso, mesmo que a título eventual que permita a responsabilização da ora recorrente nos termos em que o tribunal a quo veio a efetuar pela decisão que ora se impugna.
19) Ao corpo gerente de Direção, nunca foi dado efetivamente a conhecer qualquer queixa, reclamação ou suscitada qualquer intervenção, (tendo em atenção que o Presidente arguido, nunca em momento algum partilhou com a Direção, convocou os membros que constituíam aquele órgão colegial, ou foi redigida qualquer ata, ou atas, de onde resulte a referida manifestação de vontade.
20) A acusação não fez qualquer prova que efetivamente a vontade da instituição, O Lar A..., foi legitima e formalmente manifestada, fosse de que modo fosse, que lhe permitisse ver a ora Recorrente responsabilizada nos precisos termos que foram consignados e estabelecidos no Acórdão por efeitos de aplicação do disposto no artigo 11.º, n.º 2, al. a) e 4 do Código Penal.
21) Não tendo sido efetuada essa prova material, não se pode também retirar que da inexistência dessa mesma vontade manifestada pelo corpo gerente - Direção, mesmo considerando esta inexistência de vontade como uma omissão da Direção, seja a mesma passível de lhe ser atribuída a título de dolo, mesmo que eventual porquanto não havia qualquer conhecimento efetivo dos factos nem existe qualquer ata de direção que comprove que a Direção tinha conhecimento e nada fez!
22) Porque estamos aqui perante um tipo de crime específico porquanto só é condenável a título de dolo, teria a recorrente de ser necessariamente absolvida porquanto não lhe poderia aqui ser atribuída qualquer responsabilidade por efeito e nos termos do artigo 11.º, n.º2 e 4 do Código Penal.
Sem prescindir, e entendendo-se que a ora recorrente deve ainda assim ser responsabilizada pelos atos dos arguidos, o que só por mera hipótese académica se aceita,
23) Se a culpa da pessoa coletiva não se confunde necessariamente com a culpa das pessoas físicas que agem por ela, existindo alterações substanciais no comportamento daquela arguida, ora recorrente, esta merecia uma devida e adequada ponderação com vista a uma atenuação da sua pena porquanto, a nova Direção, como aliás muito bem se reconhece e ficou demonstrado em sede de audiência de discussão e julgamento e reconhecido no Acórdão de que ora se recorre, foi proativa e efetuou as alterações e os investimentos que estavam há muito em falta e que não haviam sido reconhecidos pelos arguidos AA e BB como necessários e essenciais para cumprimento das necessidades sociais da instituição!
FACE AO EXPOSTO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE POR DEMONSTRADO E PROVADO E EM CONSEQUÊNCIA REVOGADA A DECISÃO PROFERIDA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE ABSOLVA A RECORRENTE DA RESPONSABILIDADE QUE LHE FOI IMPUTADA NOS TERMOS DO ARTIGO 11.º, N.º 2 E 4 DO CÓDIGO PENAL, COM AS INERENTES CONSEQUÊNCIAS SOBRE O PEDIDO CIVIL
E mesmo que assim se não entenda, (o que só por manifesta hipótese académica se admite)
ATENTA A COMPROVADA E DEMONSTRADA ALTERAÇÃO DO COMPORTAMENTO APRESENTADO PELA ARGUIDA PERANTE OS SEUS UTENTES DEVERÁ A MEDIDA DA PENA SER ESPECIALMENTE ATENUADA NOS TERMOS DOS ARTIGOS 90.º-A E 72.º E 73.º, TODOS DO CÓDIGO PENAL.
ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!»
*
O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, apresentou as seguintes conclusões:
«1. A arguida “Lar A...” é uma instituição particular de solidariedade social, sem fins lucrativos, cujo objetivo primordial é cumprir o dever moral de solidariedade entre os indivíduos e, no caso concreto, a proteção na velhice;
2. O art.º 152ºA, do CP, tal como refere Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, artigos 152º e 152ºA: «(…) tem por objeto os maus tratos praticados nas escolas, hospitais, nas creches ou infantários, em lares de idosos ou instituições ou famílias de acolhimento de crianças, bem como os maus tratos cometidos na própria casa de habitação ou na empresa, não deixando de fora, ainda e por exemplo, as pessoas que assumam, espontânea e gratuitamente, o encargo de tomar conta de “pessoas particularmente indefesas”, nomeadamente crianças, idosos, doentes ou pessoas com deficiência»;
3. Por sua vez, o art.º 10º do CP equipara, em geral, a omissão à ação; os crimes comissivos por omissão imprópria, porque o evento antijurídico pertinente à consumação do crime, segundo a sua descrição típica, resulta do incumprimento do dever jurídico de evitar esse resultado, ou seja, de garante da não ocorrência do resultado antijurídico;
4. Esse dever jurídico, pode ter várias fontes de proveniência, pelo que pode resultar diretamente da lei ou de um contrato, como é o caso dos autos, uma vez que as 18 vítimas, outorgaram, em seu nome ou representação, com a arguida“Lar A...”, representada pelo arguido HH, como presidente da direção da arguida, os contratos de prestação de serviços, pelo que transferiram para a arguida, através dessas relações contratuais, as obrigações de vigiar e controlar os atos de todos os funcionários e prestadores de serviços, com vista à efetivação e proteção de todos os utentes, colocados ao seu cuidado e à sua guarda;
5. Os idosos quando são acolhidos em instituições ou lares de acolhimento ou de assistência, através de um contrato de prestação de serviços remunerado, a relação negocial assim fixada transfere para o dono/s, proprietário/s, para a direção ao serviço da instituição do lar ou instituição o dever de garante;
6. Estando as vítimas a residir no Lar, necessariamente se relacionam em termos de causa e efeito, com os deficientes serviços prestados ou a falta deles e, mesmo que a arguida estivesse munido de pessoal suficiente, em termos de quadro de pessoal, em obediência aos respetivos regulamentos, por força do referido dever de garante, tinham os arguidos o dever de verificar e de saber se os serviços se eram prestados de forma adequada, sobretudo na unidade de dependentes “Enfermaria”, por serem os mais vulneráveis;
7. Pelo que a responsabilização da arguida “Lar A...”, previsto no art.º 11.º, mormente n.ºs 2, al a) e 4 C. Penal, decorre dada a prestação de serviços contratadas com essa instituição para acolher e dar assistência aos ofendidos, derivada do especial contexto relacional de confiança e de apoio à satisfação das necessidades a que a instituição estava contratualmente obrigada e vinculada, o que integra um crime de maus tratos, p. e p., pelo artigo 152ºA, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
8. Acresce que as testemunhas FF e II, respetivamente, enfermeira e auxiliar de serviços gerais, ao serviço do Lar, referiram que o Dr. JJ, vice-presidente, fez uma supervisão a enfermaria para melhoramento do que ali estava a ocorrer e nada foi feito;
9. Por sua vez a arguida BB referiu que estava presente nas reuniões da direção a quem reportava o ocorrido, que o Lar era permanentemente fiscalizado e escrutinado, na sequência, foram efetuados vários relatórios (vistorias inspeções) por diversas entidades e as suas conclusões eram debatidas na direção;
10. Destarte, deverá improceder a alegada inexistência da responsabilidade criminal da arguida “Lar A...” e desconhecimento por parte da Direção, pelo que deverá manter-se a pena de multa nos termos constantes no Ac., que, surpreendentemente, não foi impugnada, nem existe qualquer fundamento legal, para ser especialmente atenuada;
11. No que concerne, à alegada extinção do procedimento criminal, pelos recorrentes AA e BB, por violação do princípio “ne bis in idem”, dado se encontrar pendente o processo n.º ..., do Juízo Local Criminal, J1 deste Tribunal, nos quais foram absolvidos da prática de um crime de maus tratos, por sentença ainda não transitada em julgado por ter sido objeto de recurso por parte do MP e da Assistente DD;
12. O principio “ne bis in idem”, tal como referem os recorrentes, tem assento constitucional no artº 29º, n.º 5 da CRP, que dispõe: “(…) Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, e tem tradução em instrumentos internacionais, aceites e vinculativos para a Ordem jurídica portuguesa (artº 8º CRP), como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 (artº14. 7), Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 22/11/1984 (§ 4º do protocolo n° 7) e Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (50º);
13. Por conseguinte, aplicando a jurisprudência e a doutrina supra referida e, passando para a situação concreta dos autos, resulta que no âmbito do processo n.º ..., do Juízo Local Criminal, J1 deste Tribunal, ainda, não foi proferida decisão transitada em julgado, as vítimas destes autos, não coincidem com a vítima daquele, a assistente DD, inexiste coincidência de factos, foram praticados em lapso temporal anterior e distinto do daqueles e estamos perante um “pedaços de vida” totalmente diferentes;
14. Estamos perante a imputação da prática de um crime de natureza pessoal, relativamente a estas 18 vítimas, com diferentes condutas, factos e crimes, em que essa omissão se concretizou em cada um dos utentes nos maus tratos infligidos;
15. Destarte, não se verificando o circunstancialismo que se impunha, atento o exposto, para a verificação de violação do principio ne bis in idem, deverá, nesta parte, ser indeferido o recurso dos arguidos e, quanto à apensação de ambos os processos, já foi proferido despacho nos autos, com o qual os recorrentes se conformaram, uma vez que inexiste qualquer recurso interlocutório;
16. Da valoração de prova proibida e/ou ilegal:
17. No âmbito do inquérito e em sede de audiência de julgamento, foram colhidos depoimentos de testemunhas, profissionais de saúde, médicos e enfermeiros, com predominância destes últimos;
18. O segredo profissional define-se com a proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma atividade profissional;
19. O dever de segredo profissional, não é um dever absoluto, isto é, não prevalece sempre sobre qualquer outro dever que com ele entre em conflito, no caso dos autos a realização da justiça, com a respetiva descoberta da verdade material dos factos;
20. Após a inquirição das testemunhas (médicos e enfermeiros), em sede de audiência de julgamento, a defesa dos arguidos recorrentes, questionou todos eles, se o que relataram sobre os factos, se foi em virtude das funções que exercem ou exerceram, ao que todos responderam afirmativamente;
21. Trata-se, pois, dos depoimentos dos médicos: KK; LL; MM e NN e dos depoimentos dos enfermeiros: OO; FF; PP; QQ; RR; SS; TT; UU; VV; WW; XX; YY e ZZ;
22. Tudo isso foi devidamente escalpelizado no Acórdão, pois, ai se refere que estes profissionais de saúde estão obrigados ao dever do sigilo profissional sobre o que tomem conhecimento no exercício da sua profissão (tal como previsto no art.º 106º do estatuto da Ordem dos Enfermeiros, aprovado pelo DL 104/98, de 21.04 e tal como previsto no art.º 30º do regulamento de deontologia médica 707/2016, de 21.07 e no art.º 13º do Estatuo da Ordem dos médicos aprovado pelo DL 282/77 de 5.07.1977) estando em causa a reserva de vida intimidade da vida privada (dos doentes ou pacientes ou mais precisamente, no caso sub-judice, os residentes do Lar A...) e confidencialidade das informações ou dados pessoais da condição e estado de saúde dos cidadãos tal como decorre desde logo da Constituição da República Portuguesa – vide art.º 26.º;
23. Todas as referidas testemunhas, já inquiridas em fase de inquérito, por serem determinantes para a descoberta da verdade material dos factos e a gravidade dos crimes pelos quais todos arguidos vieram a ser acusados e pronunciados, nenhuma delas invocou, em qualquer fase processual, o segredo profissional, nem se recusou a prestar todos os esclarecimentos tidos por necessários, sendo conhecedores das normas deontológicas que regem o desempenho das suas funções, tendo optado livre e espontaneamente por prestar os depoimentos;
24. O Tribunal teve, ainda, em consideração, atentando nos concretos depoimentos prestados, mesmo que existisse um nexo de causalidade entre a atividade que exercem e os factos sobre os quais depuseram e que passaram a conhecer por isso mesmo, não foram inquiridas sobre factos sigilosos, antes e apenas sobre factos e circunstâncias do conhecimento e visíveis ou disponíveis a outras testemunhas, muitas das vezes estavam em causa factos instrumentais;
25. Por outro lado, os inquiridos limitaram-se a confirmar alguns registos clínicos e relatórios da sua autoria, com os quais foram confrontados, sendo que os senhores enfermeiros, descreveram o funcionamento do Lar, as funções que lá exerciam, as dinâmicas que constaram a propósito das lides e quotidiano dos residentes, em especial na enfermaria, as falhas que constaram, as preocupações que até revelaram a propósito de tais falhas, como seja de pessoal, de material, dos cuidados que prestaram e ficaram por prestar aos utentes, que em nada contende com o segredo profissional;
26. Destarte, por não se tratar de um método proibido de prova (artº 126º, nº 3 do CPP), alegado pelos recorrentes, se conclui que nenhum entrave processual existe que eventual e, consequentemente, inquine de uma qualquer nulidade a valoração dos depoimentos em causa;
27. Quanto aos elementos clínicos e relatórios médicos, muitos deles foram juntos por própria iniciativa dos visados ou dos seus familiares, acompanhando por vezes as denúncias, queixas e informações suplementares que trouxeram aos autos, não existindo qualquer violação do direito de privacidade ou outro dos respetivos 18 utentes/vítimas;
28. Destarte, por não se tratar de uma nulidade insanável e, muito menos, a invocada pelos recorrentes, da violação das regras da competência do Tribunal (artº 119º, al. e) do CPP), se conclui que nenhum entrave processual existe na valoração dessa prova documental;
29. Dos vícios do Acórdão, insuficiência da matéria de facto, na coautoria da arguida e Inexistência do crime de maus tratos, por inverificados os elementos objetivos e subjetivos;
30. Dos vícios do Acórdão, insuficiência da matéria de facto, na coautoria da arguida e inexistência do crime de maus tratos, por inverificados os elementos objetivos e subjetivos:
31. O art.º 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, “o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”;
32. Pelo que, os vícios descritos, nessas 3 al., são de conhecimento oficioso Acórdão do STJ n.º 7/95: «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.»., in DR, I-A Série, de 28-12-1995.;
33. Este erro para a insuficiência da matéria de facto provada tem de ser ostensivo, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente e afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar;
34. Por outro lado, as sentenças judiciais, constituindo atos decisórios necessariamente fundamentados – arts. 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 97º n.ºs 1 a) e 5, do Código de Processo Penal -, devem especificar os motivos de facto e de direito que lhes servem de sustentação e observar os demais requisitos fixados no art.º 374º, do citado Código, que visa garantir, para além de qualquer dúvida, com a indicação e exame crítico das provas, que o julgador contemplou todos os factos submetidos à sua apreciação, por forma a assegurar o efetivo exercício do direito ao recurso, constitucionalmente garantido pelo art.º 32º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
35. Como é bom de ver e facilmente se conclui do anteriormente exposto não é o facto de o recorrente discordar da valoração probatória realizada pelo tribunal a quo, no que concerne a falta de dolo no cometimento do crime, que determina a ocorrência de nulidade por falta ou insuficiência de fundamentação;
36. Tal invalidade relaciona-se antes com a incapacidade do julgador em exprimir, em moldes claros e adequados, a convicção adquirida, qual o caminho percorrido para a atingir e os elementos probatórios considerados para o efeito;
37. Assim, após as M.ªs Juízas terem plasmado os princípios gerais como formulam a sua convicção na apreciação da prova, fizeram-no em concreto e de uma forma critica, pelo que deverá igualmente improceder o recurso, nesta parte;
38. Quanto a coautoria por parta da arguida BB, esta é uma das formas de autoria previstas no artigo 26.º do Código Penal, onde se refere: “Que é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”;
39. Esta figura jurídica configura uma forma de participação em que o domínio do facto é exercido com outro ou outros, em que a atuação de cada autor é essencial na execução do plano comum ou conjunto. É esse acordo ou a decisão conjunta que representa a componente subjetiva da coautoria e é esse elemento que permite justificar que o agente que levou a cabo apenas uma parte da execução típica responda, afinal, pela totalidade do crime;
40. Retomando o caso concreto, a arguida optou por prestar declarações tentando eximir-se às suas responsabilidades, justificando que foi diretora de serviços desde 2003 a 2021, com função essencialmente administrativa de acessória e apoio à Direção; a partir do ano 2011, por imposição da Segurança Social; cabia-lhe também atender pessoas e funcionários em representação da direção; transmitia à direção o que lhe era reportado; estava presente nas reuniões; fazia o recrutamento e seleção das pessoas que apresentava à direção para ser decidido; participava em processos disciplinares que a direção instaurava e, em suma, não tinha poder de decisão, limitando-se a cumprir ordens;
41. Essas declarações foram contrariadas pelos depoimentos das testemunhas AAA, FF, BBB, CCC, PP, DDD, EEE, GG, UU, XX, FFF, GGG e HHH, ao referirem que era à arguida que eram reportados: os problemas; as queixas; os pedidos de reuniões e solicitadas mudanças, por ter sido incumbida pelo arguido AA;
42. Realidade essa de que ambos os arguidos sempre foram sabendo e tomando consciência, seja pelas exposições e reclamações dos familiares dos utentes/residentes como seja: III, DDD, JJJ, EEE, GG, GGG, HHH, bem como dos funcionários e em particular dos enfermeiros do Lar (FF, PP, UU, VV e XX;
43. Assim, os arguidos AA e BB, na sua qualidade, respetivamente, de presidente da direção da arguida “Lar A...” e de diretora de serviços da instituição arguida conheciam e, não podiam deixar de conhecer, das condições físicas, psíquicas e estado geral de saúde dos idosos que foram admitidos e acolhidos no Lar A...;
44. No que concerne à imputação subjetiva do tipo, que apenas pode ser perpetrado numa das modalidades de dolo elencadas no artº 14º do CP, basta-se, desde logo, com a existência do vínculo de proteção/subordinação, no caso tratando-se de dolo eventual, do nº 3;
45. A matéria respeitante ao dolo da atuação, porque se situa no campo da subjetividade, é sempre de difícil discernimento, pelo que tem que se inferir dos factos objetivos em causa, a luz das regras da experiência comum;
46. Assim, se quem atua não esclarece qual o estado de alma em que atuou, ou quando o faz se contraria a demais prova, tal como fez a arguida BB, terá de ir buscar-se a elementos, a dados objetivos reveladores da verdadeira vontade, o sentimento que determinou a sua atuação;
47. Foram os arguidos, pessoas singulares, como presidente da direção da arguida “Lar A...” e como diretora de serviços, esta com a abrangência descrita sob no art.º 2.º do Ac., que atuaram em nome e interesse do Lar, nas mais diversas valências, com vista à efetiva proteção daquelas vítimas, colocadas ao seu cuidado e à sua guarda, por força dos referidos contratos;
48. Foi com base nessas conclusões e enquadramento jurídico, que o Tribunal concluiu que os arguidos enquanto agentes dos crimes assim perpetrados previram os resultados que em julgamento se apuraram, o dolo eventual, no desempenho das suas funções tomaram as decisões que contrariavam os deveres/obrigações/cuidados a que se haviam contratualmente obrigado para com os residentes do Lar A...;
49. Quem como os arguidos AA e BB, gere, organiza, dirige, supervisiona, coordena, toma decisões de um negócio de prestação de serviços de assistência e cuidados de saúde e outros a pessoas idosas tem que criar todas as condições logísticas, físicas, equipamentos adequados, recursos materiais e humanos, com recrutamento de técnicos especializados para poder prestar um serviço com um mínimo de qualidade e dignidade, o que não se verificou e deve recrutar quadros para tanto, mesmo que preencham os ratios estipulados em legislação específica;
50. O Tribunal não se bastou com a afirmação categórica da existência de uma coautoria, sem qualquer base factual reveladora do plano prévio dessa atuação conjunta, da repartição de tarefas entre os arguidos, da coordenação de esforços e do domínio conjunto do facto, de forma a poder afirmar que havia um objetivo delituoso comum;
51. Da análise do acórdão sob recurso consideramos que a matéria de facto dada como provada, a qual deve ser mantida, é clara e incontroversa, quanto à sua qualificação jurídica;
52. Encontram-se de forma nítida verificados o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos desse tipo legal de crime, de maus tratos, p. e p. pelo artº 152ºA do CP, pelos quais os arguidos foram condenados, pelo que se dão como reproduzidas todas as considerações doutrinárias e jurisprudências elencadas pelo Tribunal no Ac., da equiparação da omissão à ação (crimes comissivos por omissão imprópria) e do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime;
53. A errada ponderação da medida das penas parcelares e da pena única:
54. Os arguidos AA e BB, aqui recorrentes, impugnam a condenação das penas parcelares de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, por cada uma das 18 vítimas e a pena única de 6 anos e 6 meses de prisão;
55. O Ac. sob recurso descreve de forma exaustiva, em termos doutrinários e jurisprudenciais, os princípios que norteiam a fixação da medida concreta da pena, pelo que dispensam muitas das considerações a tecer a este respeito;
56. Apesar disso, de forma sintética sempre se dirá que para a aferição da medida concreta da pena há que considerar: a delimitação rigorosa das molduras penais abstratamente aplicáveis ao caso concreto; a fixação do grau de culpa do agente, que figurará como limite máximo da moldura penal, acima do qual a imposição de qualquer pena viola o princípio da culpa e, simultaneamente, a dignidade humana constitucionalmente protegida e, por último, a equação das exigências de prevenção social e especial que auxiliarão o julgador no âmbito da qualificação penal;
57. Por sua vez o art.º 70º do Código Penal, enuncia os critérios de opção pela aplicação da pena privativa de liberdade ou não e, o art.º 71º, do mesmo diploma legal, manda que o Tribunal, no encontro da pena, que atue em função da culpa do agente, das exigências de prevenção geral e especial e na ponderação das demais circunstâncias aí elencadas;
58. Por outro lado, nos termos do disposto no artº 40º do mesmo código, a pena não pode ultrapassar a medida da culpa e que aquela visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade;
59. Desta forma, o percurso conducente à fixação da pena concreta não se move no domínio de princípios mais ou menos vagos, geradores de uma prática judiciária marcada pela insegurança e ambiguidade, antes pelo contrário, tem que estar ancorada em regras e comandos normativos precisos;
60. Da análise do acórdão sob recurso a matéria de facto dada como provada é clara, bem como a sua qualificação jurídica, pelas razões supra referidas, da prática pelos arguidos, em coautoria material e em concurso real, dos 18 crimes de maus tratos;
61. No caso concreto, o grau de violação dos deveres impostos aos arguidos é muito elevado, atenta a situação de especial vulnerabilidade de cada uma das vítimas e as respetivas relações contratuais ao abrigo das quais a arguida “Lar A...”, por seu intermédio, a representam e assumiram a obrigação de prestar todos os cuidados necessários à satisfação das necessidades básicas, à preservação e manutenção da dignidade inerente à condição humana dos residentes/utentes do lar, com especiais necessidades decorrentes da sua condição física e idade avançada, sobretudo dos da unidade de dependentes, colocados na enfermaria, por serem os mais vulneráveis;
62. O grande alarme social que estes crimes provocam, dada a sua proliferação, evidenciada, desde logo, pelas notícias veiculadas na comunicação social e os danos provocados por estes crimes que são invariavelmente irreversíveis, pelo que se conclui, tal como fez o Tribunal, serem muito elevadas as exigências de prevenção geral;
63. As únicas circunstâncias que militam a favor dos arguidos e o facto de não terem antecedentes criminais, estarem inseridos social e familiarmente como o demonstram os respetivos relatórios sociais, estão já afastados das funções que exerciam no Lar A... e tão-pouco exercendo funções semelhantes numa qualquer outra instituição, o que faz diminuir as específicas exigências de prevenção especial de reincidência deste tipo de crime;
64. Pelo que o Tribunal, sopesados todos esses fatores, sem distinção em relação a cada um dos arguidos, a moldura penal abstrata para cada um dos crimes, entendemos serem adequadas, por justas e proporcionais, as penas parcelares de 2 anos e 4 meses de prisão, quanto a cada um dos (18) crimes, por ser esse o número de vítimas, inexistindo qualquer fundamento de facto e de direito, para que as penas possam ser especialmente atenuadas, nos termos elencados nas várias al., embora meramente exemplificativas, do nº 2, do artº 72º do CP;
65. A moldura dentro da qual se deve fixar a pena do concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite máximo a soma das penas parcelares aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar os 25 anos de prisão;
66. No caso concreto, esses limites são de 2 anos e 4 meses de prisão, correspondente à pena mais grave aplicada e de 24 anos, correspondente ao somatório das referidas penas parcelares de prisão em concurso;
67. Cabe de seguida, tal como fez o tribunal a quo, a fixação da pena única, tendo em conta o conjunto dos factos;
68. Sendo que para a determinação da pena única importa que se considere o disposto no art.º 77.º, n.º 1, do CP, onde se diz que: “Na determinação concreta da pena serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
69. Assim, tendo em conta a factualidade dada como provada, quanto a forma como os crimes foram perpetrados e todas as referidas circunstâncias que militam a favor e contra os arguidos, entendemos, tendo em conta os critérios supra referidos, para a fixação das penas parcelares, que deverá ser mantida a pena única de 6 anos e 6 meses de prisão efetiva, para cada um dos arguidos AA e BB, pelo que fica prejudicada a suspensão da execução da pena e
70. Destarte, o Ac. recorrido, além de aplicar o DIREITO ao caso concreto, cumprindo com as regras processuais penais legalmente admissíveis, fez também JUSTIÇA, ao condenar a arguida “Lar A...” e os arguidos AA e BB nos sobreditos termos, pelo que deve ser mantido.
Porém, Vossas Excelências farão a habitual JUSTIÇA!»
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Os Demandantes cíveis DDD e JJJ concluíram as suas alegações de resposta no sentido de «serem julgados totalmente improcedentes os recursos apresentados, confirmando-se integralmente a decisão recorrida, apenas assim sendo feita uma verdadeira e sã justiça.»
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Nesta instância, o Ministério Público, no seu parecer, pronunciou-se no sentido de que os recursos não merecem provimento.
*
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, tendo os recorrentes AA e BB respondido com a junção de um acórdão proferido pelo Juízo Central de Évora.
*
Colhidos os vistos e indo os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir.
*

2-FUNDAMENTAÇÃO

2.1- QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Assim, face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
1- Violação do princípio ne bis in idem.
2- Valoração de prova proibida.
3-Vícios da decisão - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova - artigo 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do CPP.
4- Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento.
5- Preenchimento do tipo de ilícito, pretensão de absolvição.
6-Determinação da medida da pena – redução da pena principal e substituição.
2.2- A DECISÃO RECORRIDA:
Tendo em conta as questões objeto do recurso, da decisão recorrida importa evidenciar a fundamentação da matéria de facto, que é a seguinte (transcrição):
«Fundamentação
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo prescrito por lei, conforme se alcança das actas das sessões que tiveram lugar a 14.02.2023; 18.09.2023; 19.09.2023; 25.09.2023; 26.09.2023; 3.10.2023; 17.10.2023; 31.10.2023; 7.11.2023; 14.11.2023; 28.11.2023; 12.12.2023; 23.01.2024
(Não deixando de se consignar que a realização da audiência de discussão e julgamento foi alvo de contingências diversas que determinaram uma sucessão de alterações das datas das várias sessões, sejam as greves dos senhores funcionários judiciais, seja inclusivamente a alteração da composição do colectivo, esse último e respectivo despacho datado de 7.09.2023, com a refª citius 451355061)
Resultaram os seguintes
Factos provados

O arguido AA iniciou o exercício das funções de presidente da direção da arguida ... Lar A...” em 1991, representando, assim, a arguida “Lar A...” em todos os seus atos, de gestão, direção e decisão.

A arguida BB iniciou o exercício das funções de diretora de serviços no ano de 2003, cabendo-lhe: organizar e dirigir as atividades da instituição “Lar A...”;
supervisionar a articulação dos serviços do “Lar A...”, entre eles a ERPI (estrutura residencial para idosos), o apoio domiciliário e o centro de dia, bem como a articulação entre esses serviços e a Direção do Lar; coordenar esses serviços, apurar os problemas existentes e formular propostas da sua solução, apresentando à Direção as correspondentes propostas de melhoria e correção de procedimentos; funcionar como elemento de transmissão das ordens e diretivas junto dos diversos serviços, supervisionando o seu cumprimento e reportando-o à Direção; planear a utilização dos recursos humanos, equipamentos, materiais, instalações e capitais; e, colaborar na fixação da política financeira e verificação dos custos.

A arguida “Lar A...” tem como principal atividade o alojamento e assistência a
pessoas idosas de ambos os sexos, mediante a proteção dos cidadãos na velhice e
contemplando situações particulares de invalidez e de falta ou diminuição de meios de
subsistência; pelo que,

Dispõe para o efeito de Estrutura Residencial para Pessoas Idosas [ERPI], sita na Rua ..., em ..., ..., com denominação idêntica à sua, ou seja, “Lar A...”,

Sendo que as pessoas idosas que integram essa ERPI residem em quartos distribuídos por cinco pisos, estando as acamadas e sem autonomia para sozinhas assegurarem as atividades de vida diárias alojadas na designada “área de dependentes”, situada no primeiro piso, com a denominação – e letreiro afixado - de “Enfermaria”.

Cabia aos arguidos AA e BB, na sua qualidade, respetivamente, de
presidente da direção da arguida “Lar A...” e de diretora de serviços da instituição arguida, e em nome e interesse desta, desenvolver as tarefas e praticar os atos de gestão necessários à proteção e segurança de todos os idosos residentes no “Lar A...”, em particular, pela sua vulnerabilidade, daqueles que não pudessem viver autonomamente, ou seja, dos dependentes para as suas atividades de vida diária, e vigiar e controlar os atos de todos os funcionários e prestadores de serviços da arguida “Lar A...”, com vista à efetiva protecção daquelas pessoas, colocadas aos seus cuidados e guarda.

Os arguidos AA e BB, na sua qualidade, respetivamente, de presidente da direção da arguida “Lar A...” e de diretora de serviços da instituição arguida conheciam, e não podiam deixar de conhecer, que nos termos do Regulamento para Residentes, a arguida “Lar A...” estipulou, entre o mais, que:
- «em caso de doença do Residente, poderá este recorrer sem encargos aos serviços médicos e de enfermagem disponibilizados pela instituição, salvo aqueles que tenham tarifário específico» [ponto 2.1. da Norma IV do Capítulo I];
- «os serviços médicos e de fisioterapia estão disponíveis das 08,00 às 12,00 horas e das 14,00 às 17,00 horas» [Norma XIII ponto quatro]; e, essencialmente, que,
- «são direitos dos Residentes: a) Obter a satisfação das suas necessidades básicas, físicas, psíquicas e sociais; b) Ser respeitado na sua individualidade e privacidade» [Norma XXIV ponto Um];

Assim, (pelo menos) entre 21 de março de 2017 e início de fevereiro de 2020, apenas um médico exerceu funções na ERPI da arguida “Lar A...”, cabendo-lhe efetuar
consultas e demais atos médicos a todos os residentes da ERPI, incluindo os residentes da área de dependentes, no horário das 14h00 às 16h30/17h00, de segunda a sexta-feira, inclusive, sendo o referido médico, conforme os arguidos sabiam, pessoa com idade avançada, posto que nascido em ../../1938.

Em igual período apenas prestaram assistência aos residentes da ERPI da arguida “Lar A...”, incluindo os da área de dependentes, dois enfermeiros de manhã [um de serviço na área de dependentes e um para os demais residentes da ERPI), dois enfermeiros durante a tarde e um enfermeiro durante a noite [para toda a ERPI],
10º
E como funcionários, auxiliares de ação médica e de limpeza, seis de manhã para a área de dependentes, dois da parte da tarde para toda a ERPI e dois de noite para toda a ERPI.
11.º
Nesse contexto, os arguidos sabiam que com referido quadro de pessoal:
1. Não era possível providenciar e proceder ao reposicionamento sistemático dos utentes acamados, sabido, como sabiam, que as pessoas acamadas, em especial as idosas, devem ter o seu posicionamento trocado de três em três horas, para evitar feridas de pressão; e, que, por isso, por falta desse cuidado básico, os acamados iriam necessariamente desenvolver escaras;
2. Era impossível proceder à devida higienização dos utentes da área dos dependentes e, bem assim, à necessária limpeza dos quartos e das casas de banho da área dos residentes dependentes, pelo que, amiúde, as roupas sujas ou fraldas com urina e fezes permaneceram durante horas nos quartos e nas zonas de passagem;
3. Não era possível disponibilizar funcionários para acompanharem os residentes dependentes em passeios ao ar livre, no espaço de jardim anexo ao lar;
4. Não era possível alimentar em tempo útil, em particular de manhã, os residentes dependentes e dar-lhes os alimentos com o tempo e com as cautelas exigíveis para alimentação de idosos, com vista a evitar o engasgamento do alimentado e de, por força disso, potenciar o risco de pneumonias por aspiração;
5. Se tornava necessário, a partir das 16h00, encaminhar os residentes não acamados para as respetivas camas e aí os manter até à manhã seguinte.
12º
A falta de recursos humanos motivou também o envio dos residentes dependentes para os serviços de urgência hospital – do Hospital 1... e Hospital 2... – sem acompanhante.
13º
Por frequentemente se apresentarem com desorientação inerente a quadros de infecção e febre, os residentes dependentes não dispunham de capacidade para descreverem a sua sintomatologia e queixas; e, implicando, ainda, a necessidade de exames suplementares - que caso tivesse sido convenientemente explicada a sintomatologia e queixas não seriam precisos - e, consequentemente, um diagnóstico, tratamento e intervenção médicos mais tardios. Foram disso exemplo, o envio, entre outros, dos seguintes residentes dependentes:
a) KKK, no dia 16 de outubro de 2016;
b) KKK, no dia 16 de agosto de 2017;
c) LLL, no dia 13 de janeiro de 2019;
d) LLL, no dia 26 de janeiro de 2019;
e) MMM, no dia 29 de junho de 2019
f) NNN, no dia 17 de agosto de 2019;
g) OOO, no dia 11 de novembro de 2019;
h) PPP, no dia 21 de novembro de 2019.
14º
Todas essas situações foram repetidamente reportadas à arguida BB, por força das suas funções de diretora de serviços, bem como ao arguido AA, na sua qualidade de presidente de direção da arguida “Lar A...”,
15º
E, apesar disso, os arguidos nada fizeram, podendo fazê-lo, e desse modo permitiram que todas essas situações continuassem,
16º
Sempre cientes de que estavam a causar sofrimento aos idosos dependentes colocados ao cuidado da arguida “Lar A...”, em nome da qual exerciam funções.
17º
De igual modo, os arguidos AA e BB, na sua qualidade, respetivamente, de presidente da direção da arguida “Lar A...” e de diretora técnica da instituição arguida, vendo a degradação do espaço e do mobiliário e demais equipamentos da área dos residentes dependentes – a denominada “enfermaria” – não adotaram, como se lhes impunha, todas as condutas ou ações para a sua reparação ou para adquirirem novos equipamentos e mobiliário, podendo fazê-lo, e sabendo que, por essa forma, iriam provocar dor e sofrimento aos residentes dependentes, nos termos a seguir descritos.
18º
Assim, não cuidaram de equipar todas as camas da área de dependentes com colchões próprios para acamados [colchões especiais antiescaras];
19º
Ao invés, mantiveram camas equipadas com colchões de pequena espessura e comuns [colchões normais], que por vezes se apresentavam sujos e danificados/rasgados, sabendo, e não podendo deixar de saber por força das suas funções, que estes colchões eram impróprios para acamados - tanto mais que, conforme sabiam, alguns dos residentes dependentes estavam no leito com carácter permanente e os demais estavam deitados entre as 15h00/16h00 e as 10h00 do dia seguinte - e eram potenciadores de lesões físicas graves, nomeadamente escaras [úlceras de pressão];
20º
Mantendo na área de dependentes camas de articulação manual e apenas com levante da cabeceira, sabendo, e não podendo deixar de saber por força das suas funções, que esse mobiliário dificulta a higienização e movimentação das pessoas acamadas, acarretando concomitante sofrimento a essas pessoas sempre que tais cuidados são prestados,
21º
Tanto mais que, os arguidos BB e AA [por si e em representação da arguida “Lar A...”] sabiam, por não terem cuidado da sua aquisição, que na área de dependentes não havia cadeira de banho elevatória nem existiam estrados para as bases de duche na área dos dependentes [denominada enfermaria], e que por isso era impossível proceder à higienização/banhos dessas pessoas dependentes fora da cama.
22º
Os arguidos AA e BB, na sua qualidade, respetivamente, de presidente da direção da arguida “Lar A...” e de diretora técnica da instituição arguida, tinham também perfeita consciência e conhecimento de que a falta de limpeza dos espaços, a falta de higiene pessoal dos residentes dependentes e a degradação dos equipamentos e mobiliário, em especial das camas e dos colchões, são potenciadores da propagação de microorganismos multirresistentes;
23º
Pelo que, ao manterem as situações descritas, colocaram em risco a saúde e bem-estar das pessoas residentes na área de dependentes [enfermaria], que frequentemente foram acometidas de infeções advenientes desses microorganismos multirresistentes – nomeadamente, infecções do trato urinário e infeções respiratórias.
24º
Também por instruções/ordens ora dos dois arguidos AA e BB, ora apenas da arguida BB, em nome da arguida “Lar A...”, os enfermeiros que prestavam serviço no lar - em particular os que exerciam funções de enfermeiro responsável – reportavam e dirigiam à arguida BB os pedidos de aquisição de material necessário ao funcionamento da área de dependentes.
25º
Assim, foram vários os pedidos que esses enfermeiros responsáveis dirigiram à arguida BB para a aquisição de apósitos para escaras e de nutrientes [suplementos proteicos] próprios para acamados e preventivos do aparecimento de escaras em acamados.
26º
Contudo, a arguida BB não diligenciava pela realização dessas aquisições, sempre que necessário
27º
Determinando os enfermeiros a, por razões humanitárias e por sua iniciativa, recorrerem a dádivas de centros de saúde, sempre que os residentes dependentes não tinham familiares ou tinham familiares ausentes, ou, ainda, quando os familiares não dispunham de meios económicos.
28º
Quanto aos suplementos proteicos, apenas os residentes cujos familiares lhos adquiriam lhes tinham acesso e os tomavam.
29º
A medicação era colocada em tampas de garrafas ou de frascos e assim ministrada aos residentes dependentes;
30º
Circunstância que aliada ao facto de (1.) não constar da unidose a identificação da pessoa a quem a unidose se destinava [nome completo, data de nascimento e o quarto de residência], (2.) de não haver registo da administração da terapêutica e (3.) não haver identificação nas camas das pessoas nelas deitadas, potenciava, como os arguidos BB e AA [por si e em representação da arguida “Lar A...”] sabiam, e não podiam deixar de saber, atentas as suas funções, o risco de troca de medicação e risco da sua perda e, por essa forma, constituía perigo para a saúde dos residentes dependentes.
31º
A muda das fraldas, a cargo dos funcionários, não era feita sempre que era necessária [ou seja, quando a fralda ficava suja], mas em regra, em fases pré-determinadas, duas/três vezes por dia, de manhã, à tarde (excecionalmente) e à noite.
32º
A arguida BB foi também por diversas vezes alertada – pelo menos, durante o período compreendido entre maio de 2019 e fevereiro de 2020, pela enfermeira PP, que exerceu funções de enfermeiro responsável, – para a inadequação dos horários de alimentação dos residentes da área dos dependentes, concretamente, para o longo período de jejum a que estes eram sujeitos, uma vez que jantavam às 18h00 e só comiam de novo na manhã seguinte, ao pequeno-almoço.
33º
No entanto, a arguida BB, bem como os arguidos AA e “Lar A...” por ele representada, nunca manifestaram intenção nem cuidaram de ajustar os horários de alimentação dos residentes dependentes, ou sequer de introduzirem uma pequena refeição entre o jantar e o pequeno almoço.
34º
Tal circunstancialismo, para além da fome e da carência nutricional que provocou aos
residentes dependentes, acarretou-lhes sofrimento e, também, riscos para a sua saúde,
particularmente graves para os diabéticos.
35º
Sendo que os arguidos sabiam, e não podiam deixar de saber por força das suas funções, que na área de dependentes residiam muitas pessoas com diabetes e que esta doença exige a ingestão regular de alimentos, já que a não ingestão prolongada de alimentos desencadeia, frequentemente, hipoglicémia e pode em consequência originar um quadro de coma e mesmo a morte.
36º
No entanto, nada fizeram para alterar essa situação, mantendo-a e aceitando que continuasse naqueles exatos termos.
37º
Os arguidos BB, AA e “Lar A...”, em nome e no interesse da qual atuaram, não adotaram as medidas necessárias e suficientes para que as pessoas residentes na área de dependentes, usufruíssem de atividades para ocupação dos tempos livres,
38º
Pelo que, para além de verem televisão, essas pessoas não tinham acesso a outros meios de informação, como jornais, e não gozavam de deslocações sequer para atividades religiosas, incluindo idas à capela da instituição, nomeadamente para a eucaristia semanal,
39º
Permaneciam durante todo o dia ou sentados na mesma cadeira ou deitados na cama, e, quando sentados, eram colocados em fileiras, lado a lado, num amontoado,
40º
Não lhes sendo proporcionada necessária e adequada atividade física, ainda que processada por exercícios de mobilização passiva, nem promovida a sua colaboração nas atividades de vida diárias,
41º
Ao não tomarem essas medidas, que se lhes impunham e de que eram capazes, os arguidos BB, AA e “Lar A...”, em nome e no interesse da qual atuaram, contribuíram, direta e necessariamente, para que as pessoas residentes na área de dependentes não tivessem todos os estímulos, intelectual e/ou físico de que careciam,
42º
Ademais, os residentes dependentes não usufruiam de tempo ao ar livre, nomeadamente não eram passeados no espaço de jardim circundante ao edifício do lar com auxílio de funcionários do lar.
43º
Era também do inteiro conhecimento dos arguidos BB, AA e “Lar do
A...” que na maioria dos quartos não existia equipamento de resguardo da privacidade [tipo biombo] entre elas;
44º
Os arguidos BB, AA e “Lar A...” sabiam, e não podiam deixar de saber, que os residentes dependentes eram por vezes vestidos com a roupa de outras pessoas e os residentes do sexo masculino por vezes não eram barbeados.
45º
E que eram mantidos alguns dos residentes amarrados às camas, com ambas as mãos presas, cada uma a um dos lados cama, de barriga para o ar, durante todo o dia e noite.
46º
A arguida “Lar A...” fixou um horário de visitas aos residentes instalados na área dos dependentes, permitindo visitas das 14h00 às 17h00
47º
Facto que, sendo do conhecimento do arguido AA, por si e como representante da arguida “Lar A...”, e da arguida BB, por força das suas funções de dirigente de serviços da arguida “Lar A...”, era também consentâneo com a sua vontade.
48º
Na sequência de denúncias apresentadas ao Núcleo de Fiscalização de Equipamentos Sociais do Centro Distrital do Porto do “ISS, IP”, nos anos de 2016 a 2019 e das decorrentes fiscalizações que por esse Núcleo foram efetuadas, os três arguidos tiveram conhecimento das queixas e factos que as motivaram,
49º
Sabiam, assim, não podendo deixar de o saber por força das funções que exerciam, de tudo o que antes ficou descrito e, não obstante, nada fizeram para alterar qualquer uma das situações descritas, aceitando a sua continuação nos mesmos e exatos termos.
50º
No dia 9 de julho de 2019, foi efetuada busca domiciliária às instalações da arguida “Lar A...”, com a presença, entre o mais, de equipas das seguintes entidades: Unidade de Fiscalização do Norte da Segurança Social, Unidade de Saúde Pública de ... e Instituto Nacional de Medicina Legal.
51º
Encontravam-se a residir nessa Estrutura Residencial Para Idosos duzentos e quarenta e três pessoas, de ambos os sexos, estando sessenta e três delas a residir na área dos dependentes, denominada “Enfermaria”.
52º
Essas sessenta e três pessoas foram identificadas pelos serviços da arguida “Lar A...”, nos seguintes termos:
1- QQQ [quarto 1];
2- RRR [quarto 1];
3- SSS [quarto 1];
4- TTT [quarto 2];
5- UUU [quarto 2];
6- VVV [quarto 2];
7- WWW, [quarto 3];
8- XXX [quarto 3];
9- YYY [quarto 3];
10- ZZZ [quarto 4 - 208];
11- AAAA [quarto 4];
12- BBBB [quarto 4];
13- PPP [quarto 5];
14- CCCC [quarto 5];
15- DDDD [quarto 6];
16- EEEE [quarto 6];
17- FFFF [quarto 6];
18- LLL [quarto 7];
19- GGGG [quarto 7];
20- HHHH [quarto 7];
21- IIII [quarto 8];
22- JJJJ [quarto 8];
23- KKKK [quarto 8];
24- LLLL [quarto 9];
25- MMMM [quarto 9];
26- NNNN [quarto 9]
27- OOOO [quarto 10];
28- PPPP [quarto 10];
29- QQQQ [quarto 10];
30- DDD [quarto 11];
31-RRRR [quarto 11];
32- SSSS [quarto 11];
33- TTTT [quarto 12];
34- UUUU [quarto 12];
35- VVVV [quarto 12];
36- WWWW [quarto 13];
37- XXXX [quarto 13];
38- YYYY [quarto 13];
39- ZZZZ [quarto 14];
40- AAAAA [quarto 14];
41- BBBBB [quarto 14];
42- CCCCC [quarto 15];
43- OOO [quarto 15];
44- DDDDD [quarto 15];
45- EEEEE [quarto 16];
46- FFFFF [quarto 16];
47- NNN [quarto 16];
48- GGGGG [quarto 17];
49- HHHHH [quarto 17];
50- IIIII [quarto 17];
51- JJJJJ [quarto 18];
52-KKKKK [quarto 18];
53- LLLLL [quarto 18];
54- MMMMM [quarto 19];
55- NNNNN [quarto 19];
56- OOOOO [quarto 19];
57- PPPPP [quarto 20];
58- QQQQQ [quarto 20];
59- RRRRR [quarto 20];
60- EEE [quarto 21];
61- MMM [...];
62- SSSSS[...];
63- TTTTT[...],
53º
Sendo os seus nomes completos os seguintes:
1- QQQ, acamado no quarto 1;
2- RRR;
3- SSS;
4- TTT, acamada no quarto 2;
5- UUU, acamada no quarto 2;
6- VVV, acamada no quarto 2;
7- WWW;
8- XXX, acamada no quarto 3;
9- YYY, acamada no quarto 3;
10- ZZZ, acamada no quarto 4;
11- AAAA;
12- BBBB, acamada no quarto 4;
13- PPP, acamada no quarto 5;
14- CCCC;
15- DDDD, acamada no quarto 6;
16- EEEE, acamada no quarto 6;
17- FFFF
18- LLL
19- GGGG
20- HHHH
21- IIII;
22- JJJJ, acamada no quarto 8;
23- KKKK, acamada no quarto 8;
24- LLLL;
25- MMMM, acamada no quarto 9;
26- NNNN, acamada no quarto 9;
27- OOOO, acamada no quarto 10;
28- PPPP, acamada no quarto 10;
29- QQQQ;
30- CC, acamada no quarto 11;
31-UUUUU;
32- SSSS;
33- TTTT
34- UUUU, acamada no quarto 12;
35- VVVVV;
36- WWWW;
37- XXXX, acamado no quarto 13;
38- YYYY;
39- ZZZZ, acamado no quarto 14;
40- AAAAA, acamado no quarto 14;
41- BBBBB;
42- CCCCC;
43- OOO, acamado no quarto 15;
44- DDDDD, acamado no quarto 15;
45- EEEEE;
46- FFFFF;
47- NNN;
48- GGGGG, acamada no quarto 17;
49- HHHHH;
50- IIIII;
51- JJJJJ;
52- KKKKK, acamada no quarto 18;
53- LLLLL;
54- MMMMM, acamada no quarto 19;
55- NNNNN, acamada no quarto 19;
56- OOOOO, acamada no quarto 19;
57- PPPPP, acamada no quarto 20;
58- QQQQQ, acamada no quarto 20;
59- RRRRR, acamada no quarto 20;
60- EEE, acamada no quarto 21;
61- MMM, falecida à data da busca [faleceu no dia ../../2019];
62- SSSSS, acamada em quarto designado de isolamento;
63- TTTTT, acamada no mesmo quarto designado de isolamento.
54º
No início da busca domiciliária, a área de residentes dependentes [assinalada à sua entrada com o letreiro “Enfermaria”] apresentava, logo na sala de estar da entrada, um intenso cheiro a urina.
55.º
Os quartos [vinte e um quartos com três camas cada e dois quartos individuais] apresentavam-se sujos, alguns com intenso cheiro a urina, com camas com ferrugem e com paredes desgastadas.
56º
Existiam camas com os respetivos colchões rasgados,
57º
E colchões exalando intenso cheiro a urina.
58º
Existiam poucas camas providas de colchões antiescaras, todos eles adquiridos por familiares dos idosos nelas acamados,
59º
Não tendo as demais camas colchões antiescaras.
60º
Os sistemas de alarme acoplados às camas ou se encontravam em local que não permitia ao acamado alcançá-los [a título de exemplo, camas dos idosos EEEE, DDDD, dos estavam não funcionantes [a título de exemplo, o alarme acoplado à cama da idosa MMMM, que se encontrava cortado, com os fios elétricos expostos] ou não existiam sequer [a título de exemplo, inexistência de alarme junto das camas dos idosos TTT, OOOO, XXXX, FFFFF e junto de todas as camas dos quartos 11 e 12].
61º
Nos quartos e nas salas de banho comuns não existiam objetos de higiene pessoal –
nomeadamente, escovas de dentes e escovas de cabelo – nem sabonetes e/ou desinfetante para as mãos.
62º
Encontravam-se amarrados à cama, pelos punhos, e sem indicação do motivo, os idosos/residentes acamados VVV [no quarto 2], YYY e XXX [no quarto 3], PPP [no quarto 5], KKKK e JJJJ [no quarto 8], AAAAA e ZZZZ [no quarto 14],
63º
Ao exame físico direto, os senhores peritos médicos observaram:
1. TTTTT, acamada no quarto de isolamento, com infecção por MSRA e EPC desde 20 de dezembro de 2018, apresentava PEG na região abdominal [sonda flexível de alimentação, passada para o estômago, através da parede abdominal], úlcera de pressão na região sagrada de grau IV [ausência total da pele com necrose do tecido subcutâneo ou lesão do músculo, osso ou estruturas de suporte (tendão, cápsula articular)] e solução de continuidade com crosta na face anterior da perna esquerda e uma zona de maceração do maléolo lateral da perna direita;
2. SSSSS, acamada na sequência de fratura do colo do fémur;
3. MMMMM, com aspeto emagrecido, com unhas compridas e com sujidade, e com hiperemia conjuntival [inflamação dos olhos – conjuntivite – com conjuntiva avermelhada]. Apresentava placas esbranquiçadas na língua e úlcera de pressão de grau II [a derme, epiderme ou ambas estão destruídas; podem observar-se flictenas e escoriações].
4. NNNNN, emagrecida, despida e apenas com uma toalha colocada sobre o peito, com unha compridas e sujas, com o mamilo da mama esquerda invertido e aspeto inflamatório e com úlcera na região sagrada de grau II [a derme, epiderme ou ambas estão destruídas; podem observar-se flictenas e escoriações] e com sinais de infecção;
5. QQQQQ, com úlcera de pressão na região sagrada;
6. TTT, com fralda suja de urina e fezes e ainda sem tomar o pequeno almoço às 10h30;
7. RRRRR (RRRRR), com úlcera de pressão trocantérica à direita em cicatrização e, apesar disso, sem cama com colchão antiescara;
8. VVV, com fralda suja com urina e amarrada pelos punhos; e,
9. EEE, acamada e presa à cama pelos pulsos, com fralda exalando intenso cheiro a urina, com unhas compridas, com úlcera de pressão de grau I [com eritema cutâneo que não desaparece ao fim de 15 minutos de alívio da pressão; e, em que apesar da integridade cutânea, já não está presente resposta capilar] na face lateral do terço médio da perna direita;
64º
Observando, também, a insuficiência de cuidados de higiene pessoal e na desinfeção do material usado nos banhos dos residentes dependentes e do isolamento de contacto dos residentes infetados com MRSA e EPC.
65º
Posto que, aos residentes da área de dependentes apenas era dado um banho completo uma vez por semana e nos restantes dias aqueles eram apenas parcialmente lavados, sendo usados os mesmos recipientes ou o mesmo recipiente (bacia) que também era partilhada por vários doentes, incluindo os infetados com MRSA [infeções pela bactéria Staphylococcus Aureus – bactéria comensal que coloniza as narinas, axilas, faringe, vagina e superfícies cutâneas, com capacidade de invadir e provocar doença em tecidos previamente saudáveis -, resistente ao antibiótico meticilina] e EPC [enterobactérias multirresistentes],
66º
Sendo tal uso dos mesmos recipientes, ou do mesmo recipiente, e a falta de higiene geral antes referida, potenciadores da propagação de infeções com MRSA e EPC e, também, de infeções do trato urinário nos residentes dependentes, por contaminação cruzadas pelo uso para todos das mesmas bacias, ou da mesma bacia, sem serem devidamente esterilizadas entre cada utilização,
67º
Vários residentes sofrerem de infeções do trato urinário, incluindo por bactéria multiresistente, como sucedeu com MMM, falecida no dia ../../2019, e com GGGGG, falecida no dia ../../2019.
68º
Assim, considerando que as enterobacteriáceas resistentes aos carbapenemos (CRE) – um subgrupo de enterobacteriáceas dotadas de resistência aos antibióticos do grupo dos carbapenemos – se transmitem por contacto e que são medidas preventivas da colonização/infecção as medidas de isolamento de contacto - relativamente aos quartos, por alocação em quarto individual – e que a bactéria Staphylococcus Aureus se transmite igualmente por contacto e que são medidas preventivas da colonização/infecção as medidas de isolamento e de precaução de contacto, podiam e deviam os arguidos BB e AA, por si e como dirigente da arguida “Lar A...”, terem instaurado todos os procedimentos necessários a evitá-lo, concretamente, a disponibilização do material necessário destinado à higiene pessoal e proteção, o que não fizeram, podendo e devendo tê-lo feito.
69º
Entre a data da realização da busca domiciliária - dia 9 de julho de 2019 - e o dia 19 de
novembro, dos identificados residentes dependentes/ofendidos:
1. MMMMM [que se à data da busca se encontrava no estado
físico referido no artigo 73º-3.] faleceu no Dia ../../2019, na área dos dependentes, sendo emitido certificado de óbito pelo Dr. MM com causa de paragem cardio-respiratória;
2. LLLLL faleceu no dia ../../2019 no Hospital
1... [que à data de entrada no serviço de urgência, em 15 de julho de 2019,
apresentava aspeto muito emagrecido, sendo-lhe diagnosticada pneumonia de aspiração];
3. YYYY faleceu no dia ../../2019, às 12h58, no Hospital 1... [encontrava-se acamado na área de dependentes e foi conduzido nesse mesmo dia – 19.08.2019 - ao serviço de urgência, onde deu entrada cerca das 10h00, por aspiração de conteúdo alimentar];
4. SSS faleceu no dia ../../2019 no Hospital 1... [à data de entrada no serviço de urgência, em 7 de novembro de 2019, para onde foi enviado pelo lar sem acompanhante, apesar do seu quadro demencial, SSS apresentava aspeto emagrecido e sinais de desidratação, e várias úlceras de pressão];
5. NNN faleceu no dia ../../2019 no Hospital 1... [à data de entrada no serviço de urgência, em 17 de agosto de 2019, para onde foi enviado pelo lar sem acompanhante e sem carta, apesar do seu quadro demencial, NNN apresentava aspeto emagrecido e sinais de desidratação, sendo-lhe diagnosticada infeção respiratória com possível contributo de aspiração];
6. FFFFF faleceu no dia 18 de outubro de 2019 no Hospital 1..., com quadro de broncopneumonia devida a microorganismo não identificado;
7. NNNNN faleceu no dia ../../2019 no Hospital 1... [à data de entrada no serviço de urgência, em 6 de agosto de 2019, para onde foi enviada pelo lar sem acompanhante, apesar do seu quadro demencial, NNNNN apresentava-se muito emagrecida e com muita desidratação, com urina com cheiro fétido e com desconforto respiratório evidente];
8. GGGGG faleceu no dia ../../2019 no Hospital
1... [à data de entrada no serviço de urgência, em 7 de agosto de 2019, apresentava sinais de desidratação e úlceras de pressão, na região sagrada, nos calcâneos e na grade costal esquerda, sendo-lhe diagnosticada infeção urinária e infeção com EPC];
9. AAAA, faleceu no dia ../../2019 no Hospital 1...
... [com diagnóstico de quadro compatível com infeção do trato urinário e infeção
respiratória];
10. TTTTT, faleceu no dia ../../2019, no Lar A..., sendo emitido certificado de óbito pelo Dr. MM com causa de paragem cardio respiratória;
11. QQQQQ, faleceu no dia ../../2019 no Hospital 2... [esteve internada nesse hospital entre 30 de setembro e 8 de outubro de 2019, por pneumonia de aspiração e voltou a recorrer ao serviço de urgência no dia 18 de outubro de 2019, por apresentar dispneia associada a tosse com expetoração mucopurulenta e febre e sem indicação do início desses sintomas; faleceu com diagnóstico de pneumonia nosocomial com componente de aspiração];
12. WWWWW, faleceu no dia ../../2019 no Hospital 1... [à data de entrada no serviço de urgência, em 21 de outubro de 2019, para onde foi enviada pelo lar sem acompanhante e sem história clínica, apesar do seu quadro de desorientação, WWWWW apresentava aspeto emagrecido, caquético, e múltiplas úlceras de pressão, exsudativas e com cheiro fétido, a de maior dimensão na região sagrada e também nos dois membros inferiores, com os dedos dos pés a evoluírem para necrose]
13. CCCC faleceu no dia ../../2019 no Hospital 1... [à data de entrada no serviço de urgência, em 14 de outubro de 2019, apresentava úlceras de pressão na região sagrada e calcâneos, sendo a causa de morte sepsis com origem nessas úlceras e infecção respiratória]; e,
14. XXXXX, faleceu no dia ../../2019 no Hospital 1... [com entrada no serviço de urgência, em 4 de outubro de 2019, às 21:39, com diagnóstico compatível com pneumonia de aspiração e de mau funcionamento renal, provavelmente em contexto de desidratação].
70º
Para além dos residentes dependentes acima referidos
I- Pessoas que foram residentes na área de dependentes e que faleceram antes do dia 9 de julho de 2019:
1- KKK, nascido em ../../1923:
1.1. Na sua qualidade de sócio da arguida “Lar A...”, deu entrada nessa instituição em 2013, após o seu aniversário, quando se encontrava a recuperar de uma cirurgia sequente a um acidente vascular cerebral;
1.2. Residiu desde então num quarto individual da área dos residentes não dependentes até ser submetido a uma cirurgia no Hospital 1... para colocação de “pacemaker”; contudo, quando após alta médica retornou ao lar, no dia 4 de maio de 2017, foi alojado, sem a sua autorização ou consentimento, na área dos dependentes (denominada “enfermaria”), a título definitivo, sendo desalojado do seu anterior quarto;
1.3. A partir daí começaram a vesti-lo com roupas que não eram as suas – tendo as suas roupas, que deixou no quarto antes do internamento hospitalar, desaparecido;
1.4. Retiraram-lhe o relógio e os óculos, deixando de ler o jornal que a filha lhe levava na visita;
1.5. A longa permanência no leito e a ausência de qualquer estímulo, para além da televisão colocada no salão, contribuiu para a deterioração da sua capacidade de discernimento e de raciocínio e da sua capacidade de interação social;
1.6. Face à sua imobilização no leito, à insuficiente muda de fraldas diária – duas mudas, uma de manhã e outra à noite -, às condições do colchão da sua cama - velho e sem espessura -, inapropriado para acamados, por não ser colchão antiescaras, e, ainda, não ter a alimentação adequada a idosos acamados – nomeadamente, toma de suplementos proteicos, preventivos do surgimento de escaras - desenvolveu úlceras de pressão, com maior gravidade e dimensão na região do sacro;
1.7. Por não estar instituído o cuidado de promover a ingestão de líquidos aos acamados, não lhe foram facultados os líquidos necessários, razão pela qual, em diversas ocasiões, apresentou quadro de desidratação, registado nas suas entradas no serviço de urgência do Hospital 1...;
1.8. Deu entrada no serviço de urgência do Hospital 1... no dia 3 de Julho de 2017. O médico que o observou, Dr. YYYYY, anotou “algaliado cronicamente desde o último internamento não consigo perceber o motivo e não sei se foi ou não algaliado no lar após a alta”, sendo que o último internamento hospitalar havia ocorrido em abril de 2017;
1.9. Voltou a dar entrada no serviço de urgência do Hospital 1... no dia 17 de Julho de 2017, ficando internado por apresentar úlcera da região sagrada infetada, urosepsis [infeção provocada por bactéria do trato urogenital] e pneumonia nosocomial;
1.10. Apesar de no dia 4 de agosto de 2017, o médico do Hospital 1... responsável pela sua alta hospitalar lhe ter prescrito «plano alimentar personalizado» para ser cumprido pelo Lar «com reforço hídrico» com espessante [a fim de evitar engasgamento ao beber] e «suplemento proteico», e desse plano nutricional ter sido entregue à arguida “Lar A...” [estando esse plano junto ao processo clínico de KKK existente no “Lar A...”, dele constando ainda a indicação dos alimentos a ingerir e da respetiva quantidade e hora da sua ingestão], esse plano nutricional não foi cumprido – mesmo com sucessivos pedidos dos familiares de KKK para que tal plano fosse cumprido;
1.11. Raparam-lhe todo o cabelo em duas ocasiões
1.12. Sendo diabético nunca lhe foi fornecida dieta própria para diabéticos; ao invés, em
diversas ocasiões foi-lhe dado a comer papas de cereais com açúcar;
1.13. No dia 16 de agosto de 2017, deu entrada no serviço de urgência do Hospital 1..., sem acompanhante apesar de quadro cognitivo deteriorado, apresentando-se com febre e com hiperglicemia; apresentava-se desidratado e emagrecido, com úlceras de pressão de decúbito em ambos os membros inferiores e na região sagrada; foi-lhe diagnosticada infeção do trato urinário, de pneumonia de aspiração, de diabetes mellitus tipo 2 descompensada e escaras infetadas com tecido necrótico; faleceu no dia ../../2017.
2. MMM, nascida no dia ../../1931.
2.1. Estava acamada, totalmente dependente;
2.2. No dia 1 de junho de 2019, foi transportada do Lar A... para o Hospital 1..., por dispneia e prostração; à entrada apresentava sinais de desidratação, com provável contexto em recusa alimentar e infeção respiratória;
2.3. Na mesma data, e com prescrição médica, foi-lhe data alta médica, regressando ao Lar A....
2.4. Recorreu novamente ao serviço de urgência do Hospital 1... no dia 17 de junho de 2019, por prostração com três dias de evolução e tosse com expetoração, ficando internada; apresentava-se desidratada e com infeção do trato urinário, bem como com úlceras de pressão na região lombar sagrada e nos calcâneos; feito exame deu resultado positivo para EPC [enterobactérias multirresistentes];
2.5. Foi-lhe dada alta em 21 de junho de 2019, com medicação com antibiótico e com plano de dieta individual personalizada;
2.6. Recorreu novamente ao serviço de urgência do Hospital 1... no dia 29 de junho de 2019, por vómito alimentar, taquicardia e dor torácica; continuava a apresentar úlcera de pressão sagrada e calcaneana; os exames médicos revelaram leucocituria e elevação da proteína C-reativa; foi-lhe alterada a medicação e dada alta hospitalar;
2.7. Faleceu no dia ../../2019, no lar, sendo o seu óbito certificado com causa de morte de causa natural, por “paragem cardio-respiratória”, sem realização de autópsia.
II- Pessoas que foram residentes na área de dependentes e que deixaram a ERPI antes do dia 9 de julho de 2019:
1. ZZZZZ, nascida em ../../1923:
1.1. Entrou para o lar no dia 9 de agosto de 2005, sendo aí admitida como residente vitalícia nº ...60;
1.2. Residiu na habitação nº 103 do “Lar A...” até ao dia ../../2015, data em que na sequência de uma queda acidental sofreu uma fratura do fémur do membro inferior direito, sendo submetida a cirurgia;
1.3. Esteve, nessa sequência, internada no Hospital 1... de 19 de dezembro a 23 de dezembro de 2015;
1.4. Nesse dia (23-12-2015), retornou ao “Lar A...” fazendo-se acompanhar do
relatório médico de alta, com as indicações dos cuidados a observar no pós-operatório, desde logo a necessidade de fisioterapia e de treino de deambulação com apoio, e de que devia ser evitada permanência no leito fora do normal período de descanso noturno;
1.5. Contudo, em virtude da arguida “Lar A...” não ter serviço de fisioterapia nem pessoal habilitado a prestar cuidados e serviços de fisioterapia, ZZZZZ foi mantida no leito;
1.6. Face à sua imobilização na cama, desenvolveu uma úlcera de pressão no calcanhar do pé direito, lesão que foi observada no dia 27 de janeiro de 2016, na consulta de ortopedia, no Hospital 1..., pelo médico ortopedista Dr. LL e pela enfermeira AAAAAA;
1.7. Nesse dia, ZZZZZ apresentava úlcera com placa de necrose no calcâneo direito e úlcera de pressão na face posterior da perna direita, sendo desbridadas;
1.8. A enfermeira que efetuou o tratamento/desbridamento redigiu uma carta de transferência de enfermagem, de que foi entregue cópia à arguida “Lar A...”, nela sendo indicados os produtos que deveriam ser usados na execução do penso e a periodicidade da mudança do penso, sem prejuízo de alteração desta periodicidade mediante a avaliação a ser feita em cada mudança de penso;
1.9. Voltou a consulta externa no Hospital 1... no dia 10 de fevereiro de 2016, para tratamento das úlceras de pressão, constatando-se agravamento clínico: a úlcera de pressão no calcâneo tinha placa de gangrena seca e apresentava úlcera na face lateral da perna com exsudado seroso e pequeno halo de sinais inflamatórios, pois que, ao contrário do determinado na carta de transferência, não foi aplicado o tratamento com aplicação dos produtos químicos para desbridamento enzimático, nomeadamente, hidrosorb gel e placa de allenvyn;
1.10. Foi feita nova prescrição médica, com indicação dos cuidados antipressão no leito;
1.11. No dia 16 de fevereiro de 2016, na consulta de Medicina Física e Reabilitação do
Hospital 1..., o médico que observou ZZZZZ determinou-lhe duas sessões semanais de fisioterapia no hospital, tendo a primeira ocorrido no dia 25 de fevereiro de 2016;
1.12. No início da sessão de fisioterapia do dia 24 de março de 2016, face ao cheiro que
exalava da ferida na sua perna direita, ZZZZZ foi encaminhada para o serviço de urgência, anotando-se no registo de triagem «vem da fisioterapia, foi aconselhada a vir ao SU por apresentar uma ferida na perna direita com muito mau cheiro»; com efeito, nessa data, a úlcera do calcâneo direito já se apresentava com infeção e com extensa placa de necrose superficial e, na região lateral da perna direita já apresentava duas úlceras, sendo a inferior mais superficial;
1.13. ZZZZZ foi, por isso, submetida a pequena cirurgia com desbridamento das placas de necrose das referidas úlceras de pressão;
1.14. No dia 12 de abril de 2016 na carta de transferência do hospital para o lar, de que foi entregue uma cópia à arguida “Lar A...”, foi consignado que ZZZZZ deveria manter o membro inferior direito elevado, evitar cadeira de rodas a alternar decúbito;
1.15. Durante a sua permanência na área de residentes dependentes, apenas lhe foi dado banho completo uma vez por semana; e,
1.16. Vestiram-ma amiúde com roupas que não eram as suas;
1.17. Nunca lhe deram suplementos proteicos;
1.18. Não lhe colocaram na cama colchão antiescaras;
1.19. Nem sempre trataram as úlceras de pressão com apósitos para escaras mas com outro tipo de pensos, não adequados ao tratamento de úlceras de pressão;
1.20. No dia 21 de abril de 2016, ZZZZZ foi retirada do “Lar A...” pelos seus familiares; vindo a falecer a 6.07.2019.
2. BBBBBB, nascido em ../../1933 e falecido a ../../2023:
2.1. No dia 19 de janeiro de 2015, por vontade própria, foi residir para o “Lar A..., ficando a ocupar um quarto individual;
2.2. No dia 8 de fevereiro de 2015, escorregou quando ia para a cama e, em virtude da prótese total da anca da perna esquerda, foi-lhe muito difícil levantar-se, tendo, para o conseguir, desarrumado o quarto ao agarrar-se aos móveis e feito barulho;
2.3. Na manhã seguinte, dia 9 de fevereiro de 2015, após explicar o sucedido, foi repreendido pelo barulho que fez durante a noite e, sem que tenha dado o seu consentimento, foi deslocado e alojado na área dos dependentes (denominada enfermaria);
2.4. A partir daí foi-lhe proibido ir à casa de banho, para urinar ou defecar, apesar de ter
autonomia para o fazer, e contra a sua vontade passou a usar fralda;
2.5. Sentindo-se muito vexado e diminuído na sua auto estima e atingiu-o na sua dignidade;
2.6. No dia 10 de fevereiro de 2015, retiraram-lhe o telemóvel e o relógio, pelo que deixou de poder contactar livremente os seus familiares e amigos e também de poder orientar-se no tempo;
2.7. A comida que lhe foi servida na área de dependentes, para além de ser em pouca
quantidade, tinha (sempre) qualidade inferior à da que lhe fora servida na área dos residentes não dependentes;
2.8. Depois de estar alojado na área dos dependentes, e sem que para isso tivesse sido
observado por médico, foi-lhe alterada a sua medicação;
2.9. E, deixou, também, de se poder movimentar livremente, ainda que apenas no espaço da dita “enfermaria”, por ser vedada a circulação autónoma dos residentes dependentes;
2.10. No dia 12 de fevereiro de 2015, após fazer um exame médico fora da instituição “Lar A...”, BBBBBB, em pranto, implorou à sua filha CCCCCC que o levasse daquele lar; pelo que, a sua referida filha, face ao sofrimento que aquele evidenciou, o retirou, de imediato, do lar, levando-o para casa.
III. Residentes na ERPI da arguida “Lar A...” na área de não dependentes:
1. DDDDDD, nascida em ../../1927:
1.1. Sofre de “língua geográfica” e de diverticulite, um distúrbio intestinal/digestivo que a obriga a dieta alimentar; e, ainda, de ´ácido úrico´ que a obriga igualmente a cuidados
alimentares, com restrição na ingestão de alguns alimentos;
1.2. Em 3 de abril de 2017, comunicou, por escrito, o plano de dieta alimentar semanal que lhe estava prescrito pela sua nutricionista e, bem assim, as sucessivas falhas no cumprimento desse plano por parte dos serviços do lar;
1.3. Contudo, por não lhe serem dados os alimentos do plano nutricional, e por em consequência da ingestão de alimentos não constantes desse plano ter sido por diversas vezes assistida no serviço de urgência hospitalar, para evitar a repetição de situações idênticas e o agravamento da sua saúde, DDDDDD ficou muitas vezes sem comer, sem que lhe tivesse sido disponibilizada qualquer refeição alternativa e conforme ao seu plano alimentar;
1.4. Após inúmeros pedidos de reunião formulados pela sua filha CCC, no dia 2 de outubro de 2017, nas instalações da arguida “Lar A...”, o arguido AA reuniu-se com a sua filha, CCC, tendo esta reiterado [comunicação e pedido que já havia feito por escrito] que DDDDDD não estava a ser convenientemente alimentada e que não estava a ser seguido o plano alimentar prescrito pela nutricionista;
1.5. O arguido AA desvalorizou e nem ele nem a arguida BB deram
qualquer instrução aos serviços, nomeadamente ao responsável pela cozinha, para ser
cumprido aquele plano alimentar, mantendo-se, assim, o seu incumprimento.
71º
Acresce que dos residentes dependentes cima referidos há ainda que concretizar relativamente a:
1- NNNN, nascida em ../../1965.
1.1. Na sequência de uma fratura das vértebras D6 e D7 deixou de conseguir andar, usando para tal uma cadeira de rodas, ficando incapaz de assegurar as atividades de vida diária;
1.2. Foi residir para o “Lar A...” no dia 26 de setembro de 2014, para um quarto
individual;
1.3. Em meados do ano de 2017, foi retirada do seu quarto individual e alojada na área de dependentes (denominada “enfermaria”)
1.4. Usa fralda e fica sentada na cadeira de rodas
.
2. CC, nascida em ../../1930.
2.1. Deu entrada na ERPI da arguida “Lar A...” no dia 1 de janeiro de 2006;
2.2. Em finais do ano de 2018, foi alojada, sem o seu consentimento, na área de dependentes (denominada “enfermaria”);
2.3. No dia 5 de janeiro de 2020, foi anotado na sua ficha, por enfermeira, a observação de uma ferida na região sacrococcígea que, no dia seguinte, já apresentava sinais inflamatórios;
2.4. No dia 12 de janeiro de 2020, após várias insistências da sua filha, DDD, face ao mau odor que CC exalava, os auxiliares e enfermeiros admitiram, perante a citada DDD, que CC tinha, de facto, uma pequena ferida no sacro;
2.5. Não foram colocados na dita úlcera apósitos para escaras, sendo que até ao dia 14 de janeiro de 2020, apenas lhe foi sendo feito penso “normal”, como se tratasse de qualquer outro ferimento que não úlcera de pressão;
2.6. E, apesar de no dia 14 de janeiro CC se queixar de muitas dores na região do sacro, e bem assim da úlcera de pressão existente nessa zona corporal se apresentar necrosada com exsudado purulento abundante, só no dia 15 de janeiro foi observada pelo médico do lar, que lhe preceituou sulfadiazine e antibiótico “ciproplaxacina 750 mg”.
2.7. Acrescendo que, não obstante a referida escara na região sagrada, CC
... continuou a ser sentada durante todo o dia numa cadeira de rodas, sem movimentação, e a ser-lhe mudada a fralda duas vezes por dia, uma de manhã e outra à noite, contribuindo tudo isso para o agravamento da úlcera de pressão;
2.8. Com o agravamento do seu estado de saúde, no dia 16 de janeiro de 2020, às 03h00, CC foi conduzida em ambulância para o serviço de urgência do Hospital 1..., sem qualquer acompanhante e com carta sem aviso prévio, na qual se referia que ´estava polipneica, febril 38ºC, com desaturação 85% e recusa alimentar´; apresentava úlcera de pressão na região do sacro, com secreção purulenta, necrosada e com abcesso, estendendo-se até ao trocânter esquerdo, e, também, desidratação extrema com hipernatrémia.
2.9. No dia 17 de janeiro de 2020 foi internada em cirurgia, sendo intervencionada no bloco operatório no dia 21 de janeiro de 2020, para desbridamento, e submetida no dia seguinte a nova intervenção para desbridamento cirúrgico de úlcera sagrada e aplicação de penso de pressão negativa;
2.10. Apesar das medidas instituídas, houve progressivo agravamento da aludida infeção e, por decorrência, do estado geral de CC, tendo esta falecido no dia ../../2020, no hospital, por septicemia
2.11. No dia 3 de Março de 2020, a pedido da filha da falecida CC, DDD, a arguida BB enviou-lhe um relatório de enfermagem, alegadamente subscrito pela “Equipa de Enfermagem” e datado de 11 de fevereiro de 2020, contendo informações não verdadeiras, nomeadamente que «no dia 5 de janeiro de 2020 (…) o Dr. MM foi avisado desta situação para avaliar a necessidade de prescrever antibioterapia», pois tal só sucedeu no dia 14 de janeiro de 2020, e que «no dia 10 de janeiro de 2020 iniciou Ciprofloxacina 750 mg 2x/dia», pois CC apenas iniciou o tratamento com antibiótico no dia 15 de janeiro de 2020;
3. PPP, nascida em ../../1932
3.1. Acamada, auto mutilou-se durante algum tempo, mordendo-se na mão direita;
3.2. Deu entrada no serviço de urgência, no dia 21 de novembro de 2019, às 02h50, para onde foi enviada pelo lar sem acompanhante e sem história clínica, apesar da sua desorientação no espaço e no tempo e a sua quase ausência de discurso, com múltiplas feridas no 1º, 2º, 3º [este com perda da última falange] e 4º dedos da mão direita, por automutilação [mordeu-se e comeu parte dos dedos], sendo feita desinfeção e sutura dos ferimentos.
72º
Os arguidos AA e BB tinham perfeito conhecimento que a arguida “Lar A...” é uma instituição particular de solidariedade social e que, por isso, é uma instituição particular sem fins lucrativos, cujo objetivo primordial é cumprir o dever moral de solidariedade entre os indivíduos e, no caso concreto, a proteção na velhice.
73º
No entanto, incluindo por razões económicas em nome e na liderança e direcção da arguida “Lar A...”, descuraram o tratamento e cuidado devidos às pessoas dependentes colocadas à guarda e cuidados da arguida “Lar A...”, e, por inerência das suas funções, também colocadas à sua guarda e cuidados,
74º
Em particular daqueles residentes dependentes que não dispunham de meios económicos e/ou de retaguarda familiar com capacidade económica para adquirirem materiais [apósitos para escaras, colchões antiescaras, fraldas] e alimentos [suplementos proteicos] necessários ao seu bem-estar e que são suscetíveis de impedir ou retardar mazelas físicas causadoras de sofrimento e que podem potenciar o risco de morte; e,
75º
Foi igualmente e além do mais pelas mesmas razões económicas, que contiveram gastos em recursos humanos, não contratando os funcionários e enfermeiros necessários para assegurarem o conforto e cuidados mínimos a pessoas incapazes para as atividades diárias de vida, e não providenciaram, assim, pelas condições para o tratamento e cuidado devidos a pessoas dependentes, colocadas à guarda e cuidados da arguida “Lar A...”;
76º
E que contiveram despesas na aquisição de equipamentos e de mobiliário
77º
Apesar de terem perfeito conhecimento de que a arguida “Lar A...” dispunha de meios económicos para adquirir equipamentos, mobiliário, materiais e alimentos necessários ao bem-estar e saúde dos residentes dependentes e para contratar os funcionários, médico e enfermeiros necessários a assegurarem a prestação dos cuidados básicos e de saúde a esses residentes dependentes.
78º
Ao assim atuarem os arguidos estavam conscientes de que isso iria necessariamente traduzir-se numa falta de cuidados na saúde, na higiene, na alimentação, na atenção, nos afetos, no entretenimento e socialização dos residentes acamados,
79º
E, consequentemente, iria agravar o estado de saúde desses residentes acamados, provocando-lhes mazelas físicas causadoras de sofrimento, isolamento e ausência de afetos causadores de intenso sofrimento psíquico,
80º
Como sucedeu.
81º
Estiveram também sempre cientes da prática de atos que atentavam contra a individualidade e contra a dignidade da pessoa humana, bem como da desumanidade e crueldade desses atos e da humilhação e sofrimento que causavam aos residentes dependentes,
82º
E, de forma livre e voluntária, nada fizeram para banir tais condutas, podendo e devendo fazê-lo.
83º
Ao atuarem da forma descrita, por si e por intermédio de terceiros que agiram sob as suas ordens e sobre quem detinham poder de orientação e disciplinar, os arguidos BB e AA, por si e em representação da arguida “Lar A...”, agiram cientes de que provocavam sofrimento, angústia e vexame nas pessoas mais vulneráveis que se encontravam ao seu cuidado, e cujo bem estar se lhes impunha defender e salvaguardar; sendo que estavam em condições de ordenar e de decidir práticas, atos e gestão diferentes, voluntaria e conscientemente não o fizeram
84º
E, aceitaram, ainda, que as suas referidas condutas pudessem contribuir de forma determinante para a colocação em perigo de vida dessas pessoas
85º
Como sucedeu.
86º
Os arguidos violaram, assim, o especial dever de cuidado que sobre eles impendia, de
vigiarem os residentes dependentes, especialmente vulneráveis em razão da idade e/ou das incapacidades físicas e doenças de que padeciam, de garantirem a sua segurança, de zelarem pelo seu bem-estar físico e psíquico, e de lhes prestarem todos os cuidados básicos,
87º
Pois, como sabiam, esse dever era o pilar das funções por eles exercidas - como presidente da direção e como diretora de serviço de uma instituição de solidariedade social destinada à proteção dos cidadãos na velhice, a arguida “Lar A...”.
88º
Os arguidos BB e AA, por si e em representação da arguida “Lar do
A...” não observaram, intencionalmente, as diretrizes basilares à existência da arguida “Lar A...”, sabendo que, ao assim atuarem, causavam sofrimento e tratamento indigno às pessoas residentes nas instalações da arguida “Lar A...”, concretamente, às mais vulneráveis e incapazes, residentes na área de dependentes da E.R.P.I. da arguida “Lar A...”,
89º
Conformando-se conscientemente com a produção desse resultado, e dos demais antes
apontados.
90º
Sabiam que todas as suas referidas condutas eram proibidas e punidas,
91º
Tendo agido, ou por ação ou por omissão, sempre de forma livre, consciente e deliberada

Mais se provou que
(Das condições pessoais, familiares, profissionais e sócio-económicas dos arguidos)
O agregado familiar de origem de AA era constituído pelos pais e cinco irmãos (é o segundo mais novo), com residência estabelecida inicialmente em .... Os pais “provinham de famílias abastadas” (sic.) e gozavam de uma situação económica desafogada. O arguido passou parte da infância aos cuidados de uma irmã em ..., onde concluiu o ensino primário, fazendo a admissão ao liceu. Entretanto, os pais mudaram-se para a zona metropolitana do Porto e o arguido reintegrou o seu agregado, fazendo o restante percurso escolar num estabelecimento de ensino privado do Porto, até concluir o antigo 5º ano.
AA conseguiu evitar o cumprimento do serviço militar e empregou-se numa fábrica de tecidos, onde estaria responsável pela publicidade. Decorridos poucos anos, o arguido decidiu emigrar para Inglaterra na companhia da namorada, com o objetivo de ganhar proficiência na língua inglesa. Nesse país terá trabalhado num hotel e frequentado formação, regressando à terra-natal ao final de um ano e meio para abrir uma empresa de exportação de tecidos (“B..., Lda.”) em sociedade com a companheira, ainda nos anos 60 do século XX. Considerando vantajoso não só exportar, mas também produzir e vender, terão adquirido nos anos seguintes 50% de três fábricas e aberto três lojas, administrando os vários negócios até ao início dos anos 90, fase em que voltaram a concentrar-se apenas na empresa de exportação. Em 1991, AA assumiu o cargo de presidente da direção do Lar A..., ficando a mulher responsável pela gestão da empresa.
Em união de facto a partir da mudança para Inglaterra, AA casou-se após regresso a Portugal, mudando-se para a morada dos autos há sensivelmente quarenta anos. O arguido não tem filhos. O casal divorciou-se “há 15/20 anos” (sic.), supostamente por mútuo acordo. pessoais AA ocupou o cargo de presidente da direção da instituição privada de solidariedade social (IPSS) ... Lar A...” entre 1991 e 2019, mantendo residência na morada dos autos, à semelhança da atualidade – trata-se de uma moradia própria de tipologia quatro inserida em zona residencial de configuração urbana não conotada com problemáticas sociais ou criminais.
O arguido manteve relação afetiva estável com a coarguida BB por cerca de 15 anos. O casal e a filha da coarguida coabitaram na morada dos autos, descrevendo dinâmicas relacionais coesas e pacíficas. Separados há alguns anos (5/6), o arguido tem na atualidade uma relação cordial com a coarguida e de proximidade afetiva com a filha desta.
AA constitui agregado unipessoal e está reformado desde idade regulamentar, auferindo atualmente uma pensão de velhice ilíquida de 1905,74 euros. As suas despesas fixas mensais prendem-se com o fornecimento de serviços domésticos (na ordem dos 350 euros), a remuneração da empregada doméstica (180 euros) e a alimentação (alegadamente na ordem dos 1000 euros, já que faz as duas refeições principais em restaurante). A situação económica foi autoavaliada como equilibrada.
O quotidiano de AA estava intimamente ligado à assunção das responsabilidades profissionais na IPSS, onde passaria a globalidade do seu tempo diurno, descrevendo total dedicação à missão e causas da instituição. A partir de 2019, com a saída da IPSS, as suas rotinas alteraram-se substancialmente, descrevendo uma vida alicerçada em atividades ociosas (e.g., ver televisão) e de convívio com uma irmã e com amigos, que constituem a sua principal rede informal de suporte. III - Impacto da situação jurídico-penal Desconhecendo-se outros confrontos com o sistema de administração da justiça penal, AA teve dificuldade em distanciar-se da matéria processual concreta, evidenciando incomodidade com a sua constituição como arguido.
O arguido verbalizou expetativa por um desfecho que lhe seja favorável, não equacionando nesta fase a possibilidade de condenação. A atual situação jurídico-penal não tem causado constrangimentos à normal condução da sua vida diária.
O arguido não tem antecedentes criminais
À data dos factos subjacentes ao processo, BB exercia funções, iniciadas em 2003, de directora de serviços na instituição “Lar A...”, com sede na Rua ..., ..., ..., com vencimento na ordem dos 3500€ e cujo conteúdo funcional reportava sobretudo e segundo a arguida, ao apoio administrativo à direcção, nomeadamente na articulação entre os elementos da direcção e as direcções técnicas de cada unidade/departamento do lar.
Ao nível pessoal, a arguida mantinha agregado familiar com a filha EEEEEE, na morada dos autos.
Manteve uma relação afectiva com AA, coarguido no processo, com coabitação, entre 2007 a 2015, segundo refere.
BB residia na morada dos autos, onde continua a viver actualmente, tratando-se de apartamento próprio e integralmente pago, de tipologia 2, inserido em contexto residencial urbano, sem associação significativa a problemáticas sociais e que oferece condições de habitabilidade e conforto, conforme referido.
BB desempenhou o cargo de directora de serviços na instituição “Lar A...” até 01.06.2020, considerando ter pautado o seu desempenho laboral por valores de exigência, determinação e integridade, características que lhe foram associadas por colaboradores da instituição que com ela trabalharam. Naquela data passou a exercer funções de secretária-geral, após despacho exarado pela direcção do estabelecimento, que veio a desempenhar até 18.01.2021, data a partir da qual passou a regime de incapacidade temporária para o trabalho por motivos de saúde do foro depressivo. Foi despedida do exercício de funções profissionais pela instituição “Lar A...” em 05.04.2021.
Actualmente o agregado familiar é composto pela arguida e pela filha, de 23 anos, estudante na Universidade ..., sendo a dinâmica familiar avaliada como equilibrada, expressando EEEEEE disponibilidade para apoio à progenitora. A arguida beneficia também de apoio por parte da sua progenitora e de amigos próximos.
BB tem habilitações académicas ao nível de licenciatura em Psicologia (área de Psicologia e Saúde), concluída em 1995 na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade .... Frequentou posteriormente, e por um período de nove meses, curso de doutoramento em Psicologia na mesma faculdade, que, contudo, não chegou a concluir, por ter então optado pela continuidade do percurso laboral que havia iniciado no departamento de recrutamento e selecção de uma empresa de recursos humanos. Em simultâneo, passou a exercer também funções de docência no Instituto 1... e no Instituto 2... (...), ambas sedeadas em ..., actividade que manteve em horário pós-laboral e que veio a cessar no decurso de 2009.
BB encontra-se desempregada desde abril de 2021 e encontra-se a receber prestação de desemprego mensal de 1200€, que se prevê cessar em maio próximo. Beneficia ainda da pensão de alimentos à filha estudante, de 225€. A arguida refere despesas fixas no valor de 200€, referentes ao pagamento de consumos domésticos, 60€ em despesas com saúde e cerca de 300€ em despesas relacionadas com a frequência universitária da filha.
As condições económicas foram avaliadas como suficientes para assumir os encargos com as necessidades de subsistência do grupo familiar até ao momento, tendo a arguida expressado sentimentos de angústia perante a proximidade do termo da prestação de desemprego, face às dificuldades com que se tem confrontado para a materialização de nova colocação laboral.
Encontra-se inscrita no Centro de Emprego e Formação Profissional do Porto desde 26.10.2022, na situação de desempregado/à procura de novo emprego.
Entretanto e desde o início do corrente ano (2024) encontra-se a desempenhar funções em período experimental na empresa C..., auferindo o salário mínimo nacional.
BB mantém um quotidiano essencialmente centrado no contexto doméstico, por razões que se prendem, também, segundo refere, com doença do foro depressivo, no âmbito do qual tem vindo a beneficiar de acompanhamento médico e psicológico pelo seu médico de família, com terapêutica medicamentosa. Dedica-se ainda a actividades de equitação, tendo um cavalo registado como sua propriedade.
O presente processo é o seu primeiro confronto com o sistema da administração da justiça penal, segundo refere, com BB a vivenciar a sua constituição como arguida com profundos sentimentos de injustiça. Expressa ainda preocupação e ansiedade face ao seu desfecho, que antecipa, contudo, como positivo, pelo que não se manifesta quanto à sua adesão a uma medida de execução na comunidade.
A arguida considera que a sua constituição como arguida teve repercussões significativas aos níveis pessoal, profissional e financeiro, pela destruição da sua imagem, repercussões essas ampliadas pela mediatização do processo nos meios de comunicação social. Assinala ainda repercussões ao nível da saúde, com acompanhamento médico especializado.
EEEEEE, filha da arguida, manifestou sentimentos de apreensão quanto à presente situação jurídico-penal da mãe e possíveis repercussões da mesma na vida familiar.
A arguida não tem antecedentes criminais.

A arguida Lar A... não tem antecedentes criminais.
No âmbito de uma acção inspectiva ocorrida no ano de 2022 realizada pela Segurança Social – proc.º com a refª Proave ...70 – foram detectadas as irregularidades melhor descritas no documento com a refª citius 34753984 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos (dada a sua extensão) que consubstanciam um incumprimento das claúsulas constantes dos acordos de cooperação celebrados entre a IPSS e o CDSS Porto.
Da demonstração de resultados e balanço do ano de 2014 a instituição apresentou uma autonomia financeira de 90,37%; um endividamento de 9,63%, uma solvabilidade de 938,91%, uma rentabilidade líquida da actividade positiva de 17,27%; sendo que 37,95% das receitas da IPSS advém de subsídios pagos pela Segurança Social
As mensalidades pagas pelos utentes em ERPI são fixadas ou de acordo com a aplicação de percentagem sobre o rendimento ‘per capita’ ou por acordo entre utente e a instituição.
Mais ainda o Lar – ERPI beneficiou entre Janeiro de 2014 e Novembro de 2015 de 7.531 donativos em dinheiro
(tudo conforme melhor descrito no relatório elaborado pela Segurança Social em resultado de inspecção efectuada ao Lar A... junto de fls. 114 a 146 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos dada a sua extensão)

Do pedido cível
92º
A mãe de ambos os demandantes, CC, falecida a ../../2020, foi utente do Lar A..., entre o ano de 2006 e 16 de Janeiro de 2020, onde entrou acompanhada do seu marido, FFFFFF, entretanto falecido,, tendo em vista assegurar um fim de vida calmo, feliz e com os cuidados de saúde necessários aos avanços da idade.
93º
A mãe dos demandantes, CC, esteve internada na enfermaria do Lar A... desde finais de 2018 até 16 de Janeiro de 2020
94º
Durante todo aquele período, a referida utente recebia visita regular dos seus filhos, em particular da demandante DDD que acompanhava mais de perto as necessidades quotidianas da mãe, visitando-a pelo menos 3 vezes por semana.
95º
Nos dias em que os filhos não visitavam a mãe durante os últimos meses, contactavam o lar, tendo sempre sido referido que a aquela estava bem e estável.
96º
Sucede que, desde o final de Novembro de 2019, os demandantes denotaram alterações comportamentais na sua mãe.
97º
Além da sua habitual falta de apetite- compensada pelos lanches que os filhos lhe preparavam em casa e pelos suplementos alimentares adquiridos semanalmente para lhe serem administrados – os demandantes começaram a denotar que a sua mãe se encontrava cada vez mais prostrada, exalando odores putrefactos e nauseabundos que não se compadeciam com os hábitos de higiene que aquela sempre teve.
98º
Estando a mãe dos demandantes internada na enfermaria da instituição, os seus filhos começaram a questionar tais alterações comportamentais junto do staff adstrito à enfermaria, tendo sido dito que aquela se alimentava muito mal e recusava alimentos cm alguma regularidade.
99º
Sendo esse o motivo pelo qual os filhos tinham a preocupação de adquirir suplementos alimentares para serem administrados à malograda CC
100º
Com o passar dos dias, odor putrefacto foi ganhando intensidade, tornando-se praticamente impossível estar próximo da malograda CC, o que levou os filhos – em particular a demandante DDD – a solicitar que a fralda da sua mãe fosse trocada, o que gerava desagrado e mau estar por parte dos funcionários interpelados para o efeito.
101º
Durante as visitas, os filhos acompanhavam a sua mãe ao quarto e iniciavam a preparação para aquela dormir, cabendo apenas aos funcionários mudar a fralda e coloca-la na cama.
102.º
Após constantes insistências da demandante DDD, os funcionários da enfermaria da arguida acabaram por mudar as fraldas com regularidade, o que acabou por ser inócuo, já que o cheiro putrefacto e nauseabundo se mantinha.
103º
No dia 12 de Janeiro do ano de 2020 e depois de questionar inúmeras vezes os funcionários da arguida, mormente afectos à enfermaria, foi dito à demandante DDD que a sua mãe teria uma pequena ferida no sacro.
104º
No dia imediatamente a seguir aquela dirigiu-se ao Lar A..., tendo seguido a rotina habitual das suas visitas, até que lhe foi solicitado que saísse do quarto para como sempre era feito, mudarem a fralda, o que a demandante recusou tendo exigido ver a ferida que havia sido mencionada.
105º
Eis senão quando a demandante DDD se deparou com pensos e gazes encharcados em líquido fétido, tendo-se apercebido que a ferida tinha já a dimensão da palma de uma mão.
106º
Chamada uma enfermeira foi improvisado um penso normal, alegando que a enfermaria não dispunha de pensos adequados a um ferimento daquela estirpe.
107º
No dia 14 de Janeiro, a demandante DDD solicitou a presença de uma enfermeira da sua confiança e com experiência em geriatria para avaliar o ferimento que lhe aplicou um penso adequado à situação e transmitiu que existia uma grande infecção facilmente detectável pelo cheiro putrefacto e tez avermelhada em redor da ferida.
108º
Apesar de toda esta sintomatologia, ainda não lhe havia sido ministrado qualquer antibiótico.
109º
Só quando confrontado o responsável clínico da instituição foi prescrito antibiótico e no dia seguinte foi com a enfermeira-chefe reavaliar a utente.
110º
Já no dia 16 de janeiro de 2020 foram os demandantes contactados pelo enfermeiro de turno alertando que a malograda CC havia sido transportada pelo INEM para o hospital, devido a temperaturas altas e ao facto de estar sem reacção
111º
A demandante DDD contactou o Lar A... no sentido de agendar uma reunião com a direcção para obter esclarecimentos sobre o sucedido e estado da sua mãe nos dias 16 de janeiro, 23 de Janeiro e 3 de Fevereiro de 2020.
112º
A reunião foi agendada para 19 de Fevereiro de 2020.
113º
Foi recusada a disponibilização e entrega aos filhos dos relatórios médicos da condição da mãe, tendo sido enviado a 23 de Fevereiro um relatório de enfermagem.
114º
Ao não proporcionarem os cuidados devidos, nomeadamente zelando pela sua saúde e higiene, os arguidos sabiam que tais condutas poderiam fragilizar a condição física e mental e, no limite, conduzir à morte dos ofendidos atendendo à sua idade avançada e a debilidade física.
115º
Ao não prestarem os cuidados devidos de higiene, enfermagem e médicos necessários, os arguidos fizeram com que a utente sofresse e agravasse as suas lesões até ao ponto em que foi internada
116º
A ferida na região sacroccígea foi causada por falta de higiene e agravada pela ausência de cuidados de saúde mais básicos.
117º
A mãe dos ofendidos sofreu durante anos, sem os cuidados de saúde necessários.
118º
O que veio a agravar-se no seu último ano de vida, após o seu internamento na ‘área de dependentes’, em finais do ano de 2018 e até à data do seu falecimento.
119º
Durante esse ano a mãe dos ofendidos apresentava mal-estar, fortes dores físicas e enfrentou condições de higiene absolutamente desumanas.
120º
Sentiu-se impotente para exigir que lhe fossem prestados os cuidados necessários, em face da sua condição diariamente mais débil.
121.º
Sentiu-se suja e numa situação indigna
122º
Teve medo, temeu pela sua saúde e vida
123º
Devido à conduta dos arguidos, para além de muitas dores físicas sentiu dores psicológicas e emocionais verdadeiramente profundas.
124º
Passou verdadeiros momentos de agonia e desespero e um sofrimento atroz
125º
Os ofendidos tinham com a mãe uma relação de enorme afecto e proximidade
126º
Eram muitíssimo fortes os elos de amor que a todos uniam.
127º
Muitíssimo forte foi, por isso, a dor dos ofendidos pelo cruel desparacimento da sua querida mãe
128º
O sentimento de impotência apodera-se dos filhos que, ainda no dia de hoje se sentem angustiados e ansiosos pelo sucedido
129º
Estão profundamente abalados, como uma ferida aberta que jamais sara, atendendo às circunstâncias da morte.

Das contestações
130º
No quadro geral da instituição Lar A... de 2020 estava prevista/consignada a seguinte constituição:
-10 enfermeiros
-35 ajudantes de acção directa e 4 ajudantes de enfermaria
-2 ajudantes de acção directa e 11 ajudantes de enfermaria com vista ao reforço no período nocturno
- 22 empregados auxiliares
131º
À data de 9 de Julho de 2019, no mapa de colaboradores da Instituição então disponível estava previsto/consignado o seguinte quadro de pessoal:
- 9 enfermeiros
- 46 ajudantes de acção directa e 15 ajudantes de enfermaria
- 27 empregados auxiliares
132º
À data de 9 de Julho de 2019 o Lar A... tinha registado a ausência de 1 ajudante por motivo de férias e a ausência de 4 ajudantes por motivo de baixa médica

Factos não provados
Não se provou que
a. Sem prejuízo e nas demais circunstâncias descritas em 12º supra dos factos provados os residentes dependentes foram sempre enviados (todos) para os serviços de urgência do hospital sem acompanhante.
b. Para além das datas e nas circunstâncias descritas em 13.º supra dos factos provados foi novamente exemplo do sucedido o envio do residente dependente LLL no dia 24 de Dezembro de 2018 (aos serviços de urgência do hospital sem acompanhamento)
c. Por instruções /ordens ora dos dois arguidos AA e BB, ora apenas da arguida BB – ambos em nome da arguida ‘Lar A...’ – os enfermeiros que prestavam serviço no lar – em particular os que exerciam funções de enfermeiro responsável – e directores técnicos reportavam tudo o que sucedia com os utentes, ou a eles respeitante, à arguida BB.
d. Sem prejuízo e nas demais circunstâncias aludidas em 17.º supra dos factos provados, os arguidos AA e BB não adotaram qualquer/nenhuma das condutas ou acções em causa/aí descritas.
e. Sem prejuízo e nas demais circunstâncias aludidas em 19.º e 20.º supra dos factos provados, os arguidos não trataram (nunca) de renovar os colchões ou as camas
f. E nunca nada fizeram a propósito do descrito de 17.º a 22.º dos factos provados
g. Sem prejuízo e a propósito do descrito em 25.º e 26º a arguida BB nunca diligenciou pelas aquisições em causa e verbalizou expressamente que era seu entendimento que a aquisição dos apósitos e nutrientes era da responsabilidade dos utentes e/ou dos seus familiares.
h. A propósito e nas circunstâncias descritas em 29º e 30º supra dos factos provados, os enfermeiros da área de dependentes reportaram á arguida BB a falta de copos para colocação de medicação preparada em unidose, solicitando-lhe a sua aquisição que, entanto e por constituir um custo económico para a arguida Lar A..., a arguida BB, em consonância com o arguido AA, nunca diligenciou.
i. A muda de fraldas nos termos descritos em 31º dos factos provados era feita por orientações dos arguidos BB, AA e da instituição arguida.
j. Nas circunstâncias e a propósito do descrito em 37.º dos factos provados os arguidos não adotaram qualquer medida.
k. Nas circunstâncias e a propósito do descrito em 40.º supra dos factos provados nunca era proporcionada qualquer actividade física.
l. Nas circunstâncias e a propósito do descrito em 41.º supra dos factos provados os arguidos contribuíram para que as pessoas residentes na área de dependentes nunca tivessem qualquer estímulo aí referido.
m. O aludido em 42.º supra dos factos provados foi determinado pela arguida BB logo que iniciou funções.
n. Para além do descrito em 43.º dos factos provados, era também do inteiro conhecimento dos arguidos BB, AA e ‘lar A...’ a violação da privacidade dos residentes dependentes, nomeadamente que eram despidos sem fecho da pota dos quartos, á vista de todos que passassem e que estavam alojados sem distanciamento mínimo entre si.
o. Para além do descrito em 44.º e 45º supra os arguidos também não podiam deixar de saber que os residentes dependentes eram despojados dos relógios, dos óculos e de telemóveis, sendo também praticados actos atentatórios da dignidade humana tal como raparem os cabelos aos residentes do sexo masculino acamados.
p. Para além do descrito em 46.º dos factos provados a arguida ‘Lar A...’ restringiu com um horário rígido o contacto dos idosos com os seus familiares e amigos e aumentou o seu isolamento e consequente desequilíbrio psicoafectivo e desintegração familiar e social.
q. Quando algum familiar ou os próprios residentes se queixara de alguma das situações aludidas nos factos provados, quer o arguido AA, quer a arguida BB os avisaram para terem cuidado senão (os residentes) “eram postos dali para fora”, criando assim medo a muitos desses residentes que caso prosseguissem com as queixas ficavam sem tecto e causando-lhes angústia e resignação para aceitarem as condições em que ali viviam, por não disporem de alternativa.
r. Nas circunstâncias descritas em 65.º supra era usado o mesmo/único recipiente(bacia) para todos os residentes dependentes quando eram parcialmente lavados.
s. Por força e em consequência do descrito de 65.º a 67.º supra dos factos provados foram vários os residentes que faleceram, como veio a suceder com as referidas MMM e GGGGG.
t. A morte de GGGGG, LLLLL, YYYY, SSS, NNN, FFFFF, NNNNN, AAAA, TTTTT, QQQQQ, WWWWW, CCCC e XXXXX foi resultado de todos ou parte dos factos e actos descritos supra nos factos provados.
u. Sem prejuízo e para além das demais circunstâncias descritas supra em 70º - I – 1.11 – quando raparam todo o cabelo a KKK em duas ocasiões causaram-lhe grande vexame e tristeza e quando a sua filha e o próprio protestaram, deixaram de lhe fazer a barba
v. Sem prejuízo e para além das circunstâncias descritas em 70.º - II – 2.6 – GGGGGG deixou de poder contactar livremente os seus familiares e amigos e também de poder orientar-se no tempo.
w. A morte de MMM foi resultado de todos ou pelo menos parte do descrito supra nos factos provados.
x. A morte de KKK foi resultado de todos ou pelo menos parte do descrito supra nos factos provados.
y. Para além das circunstâncias descritas em 71º - 1.1 e 1.2 – em meados do ano de 2017, sem o consentimento e contra a sua vontade, NNNN foi retirada do sue quarto individual e alojada na área de dependentes (denominada ‘enfermaria’) com a alegação de que estava a aumentar de pessoa e que por estar no quarto individual ela comia demais; só depois de higienizada e mudada a fralda é que tomava o pequeno almoço, o que frequentemente sucedida cerca das 11h da manhã; a fralda era mudada apenas duas vezes por dia e por isso ficava longo tempo sentada na cadeira de rodas com a fralda suja de fezes e urina; nem sempre lhe foi dada a medicação diária.
z. Para além das circunstâncias descritas em 71.º - 3 – 3.1 – Ninguém de tal se apercebeu até cerca das 02h00 do dia 21 de novembro de 2019
aa. A morte de CC foi resultado de todos ou pelo menos parte do descrito supra nos factos provados.
bb. Os arguidos de forma livre e voluntária também incentivaram algumas das descritas supra de 72º a 81º dos factos provados
cc. Agiram cientes para além do referido em 83º de que provocaram por acção em consequência directa ou indirecta das suas orientações ou ordens o sofrimento, angústia e vexame nas pessoas ao seu cuidado tal como acima descritos.
dd. Aceitaram para além e sem prejuízo do descrito em 84º que as suas referidas condutas pudessem contribuir para a morte das pessoas ao seu cuidado, bem sabendo que em resultado de tais actos e omissões os residentes vulneráveis e incapazes da ERPI do Lar A... poderiam morrer como morreram
ee. Nas demais circunstâncias descritas conjugadamente em 114.º, 115º e 116º supra dos factos provados os arguidos contribuíram com que a utente acabasse por falecer, tendo sido a referida lesão que determinou o decesso da mãe dos demandantes
ff. Nas demais circunstâncias descritas conjugadamente de 117.º a121º dos factos provados supra a mãe dos ofendidos sentiu que a morte estava a chegar e teve disso consciência, temeu pela sua vida e temeu por represálias caso disso fizesse queixa aos seus filhos.
gg. Foi, além do descrito em 127º, abrupto o desaparecimento da mãe dos ofendidos.
hh. Os ofendidos para dormir necessitam de medicação e por outro lado os demandantes-bem como alguns dos familiares mais próximos que acompanharam os terríveis episódios descritos – necessitaram de apoio psicológico e ainda assim não se sentem recuperados

Sendo a acusação pública/decisão instrutória de pronúncia que para a mesma remete e dá por reproduzida que delimita o objecto do presente processo, na selecção dos respectivos factos aí descritos considerados provados e não provados, o Tribunal Colectivo optou por manter a estrutura/ordem dos parágrafos e a linguagem/português utilizado nos seus precisos termos para não adulterar o seu conteúdo significante; ressalvadas as situações em que não foi considerado na sua integralidade todo o parágrafo e nessa medida foi necessário alterar alguma frase ou expressão de ligação entre período/s ou frases. Mormente, foi como tal desconsiderado o descrito sob os art.ºs 8.º a 11º, 15.º, 80.º por revelar considerações conclusivas e/ou de pendor jurídico a apreciar oportunamente em sede do enquadramento jurídico-penal e em função do cotejo dos factos provados e não provados.
No que concerne ao pedido cível e contestações, importa ressalvar que o que demais vem alegado em tal/tais articulado/s e que por alguma forma foi ‘desconsiderado’ ou expressamente não elencado no acervo dos factos provados e não provados traduz, no entender deste Colectivo, a apresentação de conceitos jurídicos, conclusões, conjecturas, mera repetição de circunstâncias já anteriormente atendidas por referência à acusação pública, impugnação, incluindo por mera negação, de factos e circunstâncias instrumentais mais uma vez já apreciados, considerações sobre os meios de prova atendidos/produzidos em sede de inquérito que possam ter sustentado de forma idónea ou incorrecta (conforme a perspectiva do sujeito processual) a dedução de acusação – não deixando de se referir que tais considerações se traduzem e concretizam, com o devido respeito, alguma exuberância no que ao articulado de contestação dos arguidos pessoas singulares/AA e BB que ao longo de quase 3 centenas de artigos invocam legislação diversa que analisam com considerações abstractas e conjceturas reflectidas no Lar A... e na sua dinâmica de funcionamento em especial no que aos quadros de pessoal diz respeito. Finalmente também o articulado de pedido cível se estriba em grande parte na invocação de meios de prova e nas circunstâncias instrumentais com os mesmos relacionados, para além de considerações genéricas e conclusivas sobre o teor de tais provas que vão sendo invocadas ao longo da peça processual em questão.

Motivação
Começamos por apresentar um recenseamento da prova instruída nos autos e produzida em audiência a que necessariamente o Colectivo atentou, a saber
--Pericial:
- Relatório Médico-Legal de fls. 1091 a 1099;
--Por Documentos:
- Denúncia/queixa de fls. 6 a 9, 28 a 29, 1136 a 1148, 1149 a 1150, 1172 a 1192, 1663 a 1665,
1700 a 1702,
- Auto de notícia de fls. 772, 1043 a 1044;
- Registos clínicos de fls. 30 a 33, 186 a 252, 253 a 270, 555 a 644, 778, 876 a 916, 949 a 963, 976, 1107 a 1113, 1214 a 1215, 1217 a 1221, 1222 a 1228, 1229 a 1230, 1231 a 1239, 1240 a 1249, 1250 a 1264, 1265 a 1267, 1268 a 1273, 1274 a 1279, 1280 a 1292, 1293 a 1296, 1298 a 1301, 1305, 1481 a 1543, 1677 a 1678, 1764 a 1765,
E os processos clínicos do “Lar A...” contantes dos Anexos 1 [BBBBBB], 2 [HHHHHH], 3 [KKK] e 4 [ZZZZZ];
- De fls. 49, 50, 65 a 146, 149 a 150, 154, 156, 286, 290 a 291, 314 a 318, 323 a 331, 341, 348 a 351, 353 a 355, 360 a 376, 381 a 386, 391 a 394, 395 a 422, 435, 436 a 443, 450 a 463, 464 a 466, 717, 718, 719 a 742, 748, 750, 757, 809 a 853, 865, 866, 875, 984 a 1021, 1054 a 1057,1058 a 1066, 1115 a 1119, 1194 a 1195, 1202 a 1210, 1302, 1307, 1339 a 1437, 1585 a 1586, 1596 a 1624, 1628 a 1629, 1630 a 1642, 1645 a 1646, 1647 a 1648, 1649 a 1651, 1652 a 1655, 1656,1657 a 1661, 1744, 1745 a 1751, 1782 a 1787, 1794 a 1810
- Auto de Vistoria da Unidade de Saúde Pública de ... de fls. 1071 a 1073;
- Fotografias de fls. 1665;
- E, reportagem fotográfica realizada pelos peritos médicos do INML do Porto, no dia 9 de julho de 2019;
- Do Apenso A [NUIPC ...]:
- Denúncia/queixa de fls. 3 a 12;
- Documentos de fls. 13 a 32, 76 a 79, 147, 206, 207, 208, 209, 221 a 237, 240 a 243, 323 a 331, 341, 348 a 351, 353 a 355, 360 a 376, 381 a 386, 391 a 394, 395 a 422,
- Fotografias e reportagens fotográficas de fls. 33 a 38, 81 a 82, 191 a 205,
- Do Apenso B [NUIPC 942/17.4PIPRT]:
- Auto de denúncia/queixa de fls. 3 e 7 a 11;
- Documentos de fls. 12, 15 a 19
- Registos clínicos de fls. 13 a 14,
- Do Apenso com o NUIPC ...:
- Denúncia/queixa de fls. 3 a 10;
- Documentos de fls. 11, 13 a 23, 73 a 74, 193 a 207, 220 a 232, 263 a 264, 265 a 267, 268 a 270, 277 a 283, 302 a 311, 313 a 316;
- Registos clínicos de fls. 24 a 25, 45 a 72, 75 a 154
- Fotografias de fls. 12, 26
- Do Apenso G:
- Todos os documentos que o integram [faturas e requisições internas];

Acrescem (entretanto juntos em fase de julgamento e durante a audiência):
- CRC’s actualizados de cada um dos arguidos com as referências citius 34430331 (arguida BB); 34430467 (arguido AA); 34430465 (arguida Lar A...)
- Relatórios sociais de cada um dos arguidos com as referências citius 34875305 (arguida BB); 34744562 (arguido AA
- documento entretanto junto pelo Lar A... com a refª citius 34753984

Toda esta extensão de documentos, relatórios, autos revela, no mínimo, o teor inegável e objectivo contido/descrito nos mesmos; sendo certo que nenhuma falsidade foi suscitada a tal propósito; além do que também reforça este valor probatório a fé pública dos documentos, em especial dos autos/denúncias, considerando as circunstâncias e origem dos mesmos e bem assim o rigor técnico e carácter científico das avaliações periciais efectuadas (art.º 163.º CPP). Finalmente os relatórios sociais revelam as condições pessoais, familiares e sócio-económicas de cada um dos arguidos, não tendo sido infirmados pelos mesmos e como tal tendo sido transcritos nos termos que acima se alcançam (antes até complementados pelos esclarecimentos mais actualizados como sucedeu em relação à arguida BB), com exclusão das observações mais opinativas ou conclusões nos mesmos contidas.

Dos depoimentos das testemunhas importa reter resumidamente o que pelas mesmas foi referido ao longo das várias sessões de julgamento:
AAA – é delegado de saúde, funções que exerce desde Outubro de 2018. A 1ª vez que foi ao Lar A... foi por ocasião da busca ocorrida nestes autos -9.07.2019. Foi fazer a inspecção a pedido do INML, com uma equipa multi-disciplinar. Falaram com a directora de serviços na altura, ‘uma tal BB’. Na intervenção que teve atentou nos cuidados, logística, higiene e segurança por serem os vários itens com repercussão nas pessoas/doentes que se encontravam no lar. Adianta que foram notórias várias falhas de higiene e segurança. No gabinete de medicina dentária não havia cuidados no tratamento dos resíduos médicos e clínicos. No gabinete de estética não havia a correcta e devida higienização de material. Constatou um mau estado conservação do edifício a nível geral. A cozinha tinha baratas mortas em várias localizações. Era referido que era problema que estava a ser tratado e que tinha sido chamado serviço de desparasitação. Constatou a falha de muitos itens necessários numa cozinha daquela dimensão; havia um mau estado conservação geral de todos os equipamentos; o processo de desinfeção ultravioleta para facas sequer funcionava; o pavimento estava muito sujo e foi referido que só era limpo uma vez por semana. Havia um outra cozinha com menor utilização ou sem utilização – 5.º piso. Os alimentos estavam em mau estado de conservação; não estavam por exemplo identificados e distintos por exemplo dos alimentos do pessoal. Nos congelados os alimentos apresentavam cristais de congelação. Não podia rastrear os alimentos porque praticamente nenhuns tinham etiquetas para aferir de prazos de validade. Foi informado que alimentos foram comprados frescos e depois congelados. Havia algum cuidado em separar os alimentos por qualidades, mas depois eram manuseados de forma muito próxima assim facilitando a contaminação cruzada. Se nada redigiu no relatório junto aos autos a tal propósito, seria porque não havia tábuas em madeira. Apesar de haver situações que considerou muito más, pareceu que havia possibilidade de a instituição responder e corrigir as deficiências. Por isso não chamou a ASAE. Visitou gabinetes de enfermaria mas não elaborou relatório a tal propósito porquanto tal ficou a cargo do INML. Ficou com a ideia da aparente sobrelotação de doentes/utentes; equipamentos em mau estado conservação; sem identificação dos utentes a cama. Muitas situações que reportou mantiveram-se semelhantes durante muito tempo; outras situações aparentemente melhoraram. Não se recorda se falou com directora técnica ou se até a instituição terá vários directores ou quantos.

EEE – técnica de saúde ambiental. Fez uma diligência na equipa multidisciplinar juntamento com o Dr. AAA(anterior testemunha). Recorda que as condições higiene não eram as adequadas para a instalação; tinham visto baratas mortas a cozinha.Sobre as questões vertidas no relatório, não está muito recordada. Tem a ideia de que no refeitório as mesas e cadeiras estavam muito degradadas. Instrumentos trabalho e demais utensílios e demais material obsoleto. Foi-lhes dito que o local estava a ser desparasitado mas nada mostraram de um plano de intervenção. Não sabe se estava a Drª BB presente nesta diligência. Sobre as instalações da área da enfermaria (visitaram alguns quartos mas não na totalidade), os armários eram antigos, os quartos estavam degradados; não havia evidências de roupas no seu interior; os lavatórios não estavam apetrechados sequer com detergente líquido; não existiam caixotes do lixo; os colchões eram domésticos, vulgares, sem impermeabilização; as camas estavam degradadas e havia muitas almofadas ornamentais. Não tirou as fronhas para ver almofadas. Não levantou a roupa de cama para ver os colchões. As portas estavam degradadas, sem fechos. Os arrumos de apoio tinham material de apoio e tudo muito sujo. As instalações sanitárias de uso comum estavam degradas, dispunham de estrados de madeira que não podem ser devidamente higienizados. Não se recorda em termos de humidade em concreto, havendo é certo zonas com infiltrações. Mas não sabe locais concretos. Mas tem ideia de que havia degradação geral. Última vez que foi ao lar em 2022 constatou mudanças em termos de condições higiene, tendo os colchões sido mudados; compraram equipamentos; mas continuam a existir baratas; foi apresentado plano de intervenção incluindo desparasitação; e houve um reforço de pessoal, inclusivamente médico.

IIIIII – confirma que o seu marido é JJJJJJ e já faleceu. Inicialmente referiu que não esteve/não se recorda de ter frequentado o Lar A.... Contudo, reconhece os arguidos em audiência. Mas não sabe nem se recorda de que possam ter sido antipáticos, ainda que dizendo que nunca lhe bateram. Disse também que o arguido não era simpático. Não consegue explicar por que mudou para a actual instituição onde se encontra.
Confrontada com as declarações que havia prestado não está recordada do teor das mesmas, sequer de ter apresentado alguma reclamação no Lar A... ou algo relacionado com o seu marido quando lá se encontrava.
Fls 68 – confirma assinatura que diz ser sua mas nada se lembra a tal propósito.

FF – enfermeira; trabalhou no Lar A... de 2016 a 2018 (tendo saído em Fevereiro/Março); fazia planificação, organizava os horários dos auxiliares; tratava da reposição material; inventário e relacionamento entre enfermeiros e auxiliares; controlo e preparação material e medicação estava a cargo dos enfermeiros; quem fazia o pedido eram os colegas que depois era solicitado ao médico para fazer prescrição que, por sua vez, depois era requisitado. Fazia escalas serviço e distribuía tarefas incluindo os auxiliares. Tinha que distribuir os auxiliares pelas enfermarias e pelos pisos. Na enfermaria eram utentes não autónomos; nos outros pisos eram pessoas a quem auxiliares iam prestar apoio. Enfermaria situava-se no piso 1. Havia 5 ou 6 pisos. Teria cerca de 300 e tal utentes. Na enfermaria encontravam-se cerca de 60 ou 62 e os restantes nos restantes pisos. A média era de 1 auxiliar para cada 10 utentes na enfermaria. No dia dos banhos ficavam mais pessoas. Nos demais utentes – 1 auxiliar por piso que teriam mais ou menos 10 utentes para tratar. Ao fim de semana estavam menos auxiliares. Na parte da manhã o horário era das 8h às 4h. Havia auxiliares com horários fixo das 8h às 5h. Durante a noite estavam 1 enfermeiro e 2 auxiliares para todos. Não eram suficientes para dar o apoio necessário. Banhos eram dados no turno da manhã. A cadeira elevatória era muito antiga mas estava a funcionar – não se lembra se esteve avariada. Não maca também para dar banho. Nos acamados era dado banho no leito. Os utentes tomavam duche era 1 ou 2 vezes por semana. Não tem conhecimento de utentes que não tomaram banho durante longos períodos de tempo. Quanto à higiene dos utentes era usada um bacia de plástico – havia uma bacia por quarto. Mas aquando da fiscalização foi referido à testemunha pelo senhor procurador que só havia uma bacia. A bacia do quarto era para os utentes daquele quarto e eram lavadas; não eram higienizadas. A muda fraldas era efectuada de manhã, por vezes na hora almoço e ao final tarde. Refere porém que por dia eram 5 ou 6 mudas de fralda. Quanto aos colchões – havia normais e anti-escaras. Os idosos com escaras eram virados nas mudas das fraldas. De manhã com cuidados de higiene é que havia algum cheiro a fezes e urina. Havia uma ceia entre 9h30 e 10h00; o pequeno almoço era a partir das 8h00. Para os diabéticos não havia mais reforço ou cuidados alimentação. Estava um médico no lar de segunda a sexta apenas de tarde; entrava pelas 14h00 e ficava até 17h ou 18h. Não sabe se ficava para além hora. Sabe que era o Dr. MM. Era pessoa com certa idade, já com 70 ou mais anos idade. Quando os utentes precisavam ir para o hospital era accionado Inem e assinada uma folha própria; sendo que iam apenas os utentes, sozinhos, sem acompanhamento por parte do lar. Nos demais utentes e quanto a passeios no jardim, tal respeitava ao departamento da terapia ocupacional. Os auxiliares não faziam esse serviço. Os utentes normalmente nunca iam passear ao jardim. Não sabe se tem capela; se tem, não se recorda. Vinham em determinados dias as meninas à enfermaria para terapia dos doentes. Os demais utentes dos outros pisos dirigiam-se à terapia ocupacional, a uma sala para o efeito. E normalmente, os demais iam para as salas ver televisão; ficavam uns ao lado dos outros sem distância de segurança. Havia alturas em que estava 1 pessoa na sala a fazer algumas actividades com os utentes. Considera que foi experiência agradável por um aspecto, na medida em que lida com muitas pessoas. Houve pontos positivos e negativos. Foi complicado lidar com algumas pessoas com, nas suas palavras, ‘nível de maldade jeitosa’. Questionada sobre se havia alguma directiva quanto ao número de fraldas a usar por dia, responde que não. Havia por vezes comentários desapropriados por parte dos auxiliares sobre os utentes – ‘está todo sujo’; por vezes com outro vocabulário.
Requerida leitura de declarações em sede de inquérito a testemunha refere que se calhar estava mais recordada na altura mas actualmente não tem ideia da indicação ou directiva do lar sobre limite mudas fraldas. Acabando por referir que afinal foi experiência traumatizante – mas porque esteve doente
Em esclarecimentos e instâncias da defesa:
Os utentes mais dependentes ficavam no cadeirão todo o dia; os acamados deveria ser mudados de 2 em 2 horas de posição. Os auxiliares por vezes não faziam a higiene de forma correcta. Não havia registos de muda de fraldas. Havia pessoas que eram deitadas à hora do lanche porque ficavam no cadeirão todo o dia. Não havia rotina de muda de posição dos utentes. Mudas de cama eram feitas quando lençol estava sujo; mudança em regra quando utente tomava banho – 1 vez por semana. Colchões tinham resguardos na enfermaria; nos outros pisos não sabe como eram os colchões. Material de enfermagem – tinha todo o necessário; era limpo; não era desinfectado. Quando muito usavam éter. Não tinha máquina para desinfecção. Sempre tiveram material do tipo de pensos para escaras. Tratamento das escaras era realizado pelo enfermeiro que o fazia as vezes necessárias – tinha um livro com registo na enfermaria e nas consultas. As camas tinham nomes e as portas também estavam identificadas – foi algo que a própria tratou/fez. Refere que estava 1 enfermeiro na enfermaria para 60 ou 62 doentes. Na altura dos pensos a testemunha ajudava a fazer trocas. Foi contratada pelo presidente, o AA e pela Drª BB; mas havia outras pessoas na direcção. Apesar de fazer referência a um tal Dr JJ, a testemunha esclarece que as directivas vinham sempre dos dois primeiros/aqui arguidos. Os únicos problemas eram com os auxiliares porque eram pessoas ‘complicadas’. O Dr. JJ seria o vice-presidente e houve uma altura em que fez uma supervisão na enfermaria para fazer melhoramentos de ‘qualquer coisa’. Mas não houve alteração ou melhoria apesar da tal vistoria

BBB – enfermeiro da Ordem Enfermeiros; foi relator no âmbito de algumas visitas ao Lar A.... Houve uma exposição com uma queixa dirigida à secção regional que crê que era anónima; tomou conhecimento da busca à posteriori através comunicação social
22.11.2019 – 1ª visita foi realizada com o presidente da secção regional norte da ordem dos enfermeiros; foi recebido por uma senhora BB que se intitulou como directora de serviços e foram encaminhados directamente para uma senhora enfermeira – PP. Visitaram a área da saúde pública e a área de enfermaria.
Na enfermaria – cerca de 60 pessoas; equipamentos inexistentes para problemas de acupressão; havia apenas uma cadeira de chuveiro danificada e remendada com fita adesiva; base de chuveiro tinha traves de madeira – tudo desaconselhado para controlo de infecção; não existiam caixotes do lixo; grades de cama para prevenção estavam deterioradas e suportadas com ligaduras; cadeirões com espuma exposta e não podiam ser higienizados; muito parcos e básicos os materiais quanto aos tratamentos feridas; não havia copos para medicamentos; eram usadas tampas de garrafas; falaram com 2 enfermeiras de serviço que não tinham colheres suficientes para dar terapêutica a todos; tinham que lavar as colheres; sistema de unidose não permitia identificação da pessoa; não se recorda de existir identificação das pessoas; era fácil haver troca de medicação nos utentes. Havia auxiliares –mas não se recorda quantos nem sabe se fez esse levantamento. Afinal a testemunha encontra nos seus documentos/auxiliares o que foi reportado pela enfermeira com quem falou na altura.; lembra-se que odor era sui generis e muito intenso a urina e fezes; base de chuveiro estava imunda e era rebaixada; não visualizaram colchões de alívio de pressão; muitas camas com lençóis da ULS de ... e não há relação entre as instituições; grande generalidade dos colchões eram normais, de espuma; doentes estavam acamados ou em cadeirões; existiam poucos cadeirões. Estavam ainda cerca de 20 ou 30 idosos sentados em fileiras em cadeiras de rodas numa sala de estar em frente à televisão; muito chegados uns aos outros. O que sabe da muda fraldas e alimentação foi o que lhe foi reportado por terceiros.
Fls 1139 e ss – relatório em causa

Em esclarecimentos e instâncias da defesa:
Não havia kits para tratamentos de lesões cutâneas; apósitos eram muito básicos; foi reportado que muitas vezes seriam os familiares que teriam que trazer ou comprar o material para as lesões; não recolheu informação sobre a desinfecção do material; havia frigorífico com fármacos sem controlo de temperatura; não havia documentação da continuidade de cuidados como seja a muda de fraldas; mas considerando cerca de 300 utentes e número de funcionários era humanamente impossível fazer as mudanças fraldas e posicionamento com os timings adequados. Não existia documentação de continuidade dos cuidados de enfermagem; apenas livro de ocorrências para situações mais invulgares; colchões das camas da enfermaria tinham revestimento impermeável para permitir higienização; visita aconteceu entre as 11h30 e as 14h40; não se recorda da informação sobre existência de responsável médico pela enfermaria; tem apenas indicação do médico contratualizado de 2ª a 6ªfeira
Foi com aviso que fez a visita, sobretudo por se tratar de um sector privado.
Voltaram em Julho de 2022 e em Novembro de 2022 – corpos dirigentes são diferentes e a realidade que encontraram era diferente; não havia cheiro nauseabundo; passaram a existir registos doentes com plataforma criada para o efeito; havia cuidados com avaliação dos riscos de doentes da enfermaria
Esclarece que a aquela primeira visita foi de acompanhamento ao exercício profissional – VAEP - deliberada pelo conselho directivo regional; não tem presente a exposição que foi feita mas crê que falava de más praticas de cuidados; falta higiene, etc
Não sabe se houve se houve alguma participação disciplinar relativamente a algum enfermeiro do Lar.
Não se recorda de ver colchões anti-escaras.
Não verificou todas as 60 camas

III – mãe da DDDDDD que continua no Lar; entrou há cerca de 20 anos; sofre de um problema intestinal; uma doença muito específica que carece alimentação específica – art.º 83.º acusação – ponto III.1 Foi a uma nutricionista que prescreveu uma dieta adequada com alguns alimentos que não podia comer e foi dada à instituição para haver um ajuste; deu a conhecer do plano ao presidente da instituição que aceitou e iria seguir o processo normal para ser entregue à pessoa responsável que estaria na cozinha. A maior parte das vezes o plano foi omitido e a mãe tinha refeições em que não comia. Situação da mãe agravou-se. A mãe chamava a atenção; por vezes iam buscar outro alimento, mas muito raramente porque diziam que não podiam nem tinham como ir buscar outra alimentação. Fez uma reunião a reportar o sucedido e a mãe ficou até de escrever no plano das refeições o que podia e não podia comer. Mas na maior parte das vezes ela ficava sem comer. As alterações não eram cumpridas. Exemplos de comida alternativa – simples ovo estrelado ou escalfado; mas a funcionária por vezes dizia que não havia ovos. Fez vários pedidos de reunião com o presidente e pedia por escrito e com carta registada e não era dada resposta. Presidente dizia que tudo estava a ser cumprido. Contudo a mãe até lhe telefonava a queixar-se. Fez também queixas no lar e depois chegou a fazer queixa na polícia, chegando a tirar fotografias do estado em que se encontrava o lar.
Apenso A fls. 131 a 134 – confirma teor
Fls. 191 e ss – confirma o desagrado geral com a instituição perante queixas da mãe de outros assuntos para além da alimentação; passou a ir mais vezes ao lar e tirou as fotos para sustentar queixas e reclamações.
Exposições e reclamações no livro de reclamações – fls. 87 a 95 autos principais – confirma

Em esclarecimentos e instâncias da defesa:
Ia almoçar com a mãe ao domingo e uma das vezes, só porque se levantou, ouviu a auxiliar a dizer que não autorizava a levantar-se nem as utentes quanto mais as visitas
Mãe continua no lar actualmente; quando entrou funcionava muito bem; depois piorou; agora mudou muita coisa com actual direcção – arranjo de elevadores; alguns quartos foram fechados porque não tinham condições; alimentação ligeiramente melhor ainda que não a 100%; já não há cheiros nauseabundos.
É associada; foi a todas as assembleias e acha que nenhuma correu bem; direcção era uma pessoa – o presidente que era o presidente da assembleia
Quando funcionava bem há 20 anos o presidente era o AA; problemas alimentares surgiram entre 2015 e 2018
Mãe foi autónoma até à altura do covid. Saía e fazia as suas tarefas; fazia a cama dela e cuidava de si própria
É suplente na assembleia geral

PP – enfermeira, saiu em finais de 2019 do lar; só lá esteve cerca de meio ano. Trabalha para empresa que prestava serviços para o Lar A...; eram prestadores de serviços; foi entrevistada pela enfermeira OO; depois teve ainda uma entrevista com os dois arguidos. Tinha a indicação de que se houvesse problemas deveria reportar à Drª BB e só excepcionalmente ao Sr. AA. Mas primordialmente reportava tudo à empresa a que pertence. Drª BB é que validava a aquisição do material; nem sempre era validado. Apresentação e validação era dos mínimos necessários; quando ‘aquilo que não fosse validado’, tinha que ser feita nova justificação e requisição. Reportava à empresa e falaram também com colegas do Centro de saúde que chegou a entregar material que fazia falta no lar. Foi avisada pela empresa que teria que ver o que era necessário para adquirir mais material. Sendo que o Centro Saúde entregava o que era imprescindível para os tratamentos – compressas, soro e betadine. Lar não teve pensos para escaras – como sejam apósitos já preparados. Tinha funções de coordenação da equipa. Por norma estava presente no turno da manhã para saber as possibilidades de gestão do pessoal e tarefas e para ver o que conseguiria fazer naquele dia. O jantar ocorria muito cedo; pelas 18h00. Era situação da empresa relatada que teria que ser resolvida. Acabava por guardar algum leite, papas e iogurtes para dar durante a noite a quem tinha mais necessidades e fome. Havia auxiliares que sabiam das carências e traziam comida compadecendo-se dos utentes. Sabe que eram 3 colegas que não da empresa. Na enfermaria estavam 3 enfermeiros da parte de manhã; não consegue saber quantos auxiliares estavam. Haviam um medico de 2ªa 6ª sexta, por norma no período da tarde que já tinha alguma idade por volta 70 anos – Dr. MM. As consultas dos utentes fora lar eram tratadas com a família; só muito pontualmente eram acompanhados por auxiliar do lar. Estava mencionado/reportado com a empresa a necessidade de aquisição material como sejam camas. A intenção seria colocar colchões anti-escaras e/ou de pressão alternada. Haveria um número muito redúzio de colchões pressão alternada com marcas de uso; Os familiares adquiriram alguns colchões para os utentes do lar. Pediu para sair do Lar porque condições dos utentes não eram justificáveis. Não ter um penso disponível era um dos exemplos. No período da manhã havia um cheiro acentuado a urina. Casas de banho estavam muito usadas e danificadas. Utentes com demência faziam necessidades fora locais adequados. Existiam bacias e esponjas para higiene dos utentes. Não eram bacias individuais – não havia uma para cada utente. Fez levantamento com fotos e expôs à entidade patronal que estava semanalmente no local. Chegou a trocar mail’s com um tal KKKKKK –da empresa/entidade patronal
Mail’s – fls. 280 verso a 283 – apenso E
Saiu em finais de Janeiro de 2020. Foi a entidade patronal que lhe deu indicações para assim ficarem formalizadas as necessidades em causa. Acresce o seu descontentamento geral

Em esclarecimentos e instâncias da defesa:
Indicação era de que preferencialmente iria um familiar a uma consulta ou hospital ou então o utente iria sozinho; problema era que doentes não tinham capacidade para se expressar.
Recorda-se da utente CC e filha com mesmo nome. Uma das situações era que a senhora teria uma úlcera, o que foi reportado ao médico. Uma das vezes que filha a abordou até julga que seria a um sábado revelou preocupação e queria levar alguém de forma para avaliar. Foi avaliada e foram alterados medicamentos. Pensa que teria sido registado em livro próprio. A própria não fez penso nem viu a ferida. Só ouviu falar sobre a situação. Tem ideia que inicialmente faria levante para cadeira. Na fase final não fazia levante com a úlcera. Posicionamentos eram feitos mas não nos espaços horários adequados porque não havia funcionários necessários/suficientes. Não sabe de necessidade de urgência para D. CC.
Não prestava cuidados directos; fazia apenas gestão de equipa; era responsável, não chefe.
Vontade de sair era anterior a Outubro. Em Outubro reportou que não fazia sentido continuar porque não se implementava nenhuma alteração. Sempre foi respeitada apela direcção e nunca teve quezílias.

LLLLLL – conheceu D. DDDDDD através da filha; tendo-a visitado 2 vezes no lar. Recorda-se que foi uma vez com a filha e fez uma exposição com base no que percepcionou, não com base do que a filha lhe disse. A senhora queixava-se que a comida era insuficiente e a limpeza não era muita. Verificou quando lá almoçou que comida não era suficiente nem adequada. A senhora estava vestida com a roupa dela. Não sabe se carecia de autorização especial para ir o quarto dela. D. DDDDDD tinha problema com intestino e não podia comer qualquer alimento; foi pedida uma dieta específica. Não sabe se a senhora lá continua. Não voltou desde há cerca de 6 ou 7 anos.

MMMMMM – pai foi utente do lar; é irmã da testemunha NNNNNN.O pai esteve no lar 3 ou 4 anos; não consegue precisar datas. Entretanto faleceu – art.º 83.º acusação; ponto I, 1
Fls. 186 a 270 – registos clínicos de KKK
No fim da vida esteve na enfermaria do lar. Acha que ele era bem tratado. Mas ele não gostava de lá estar.
Na enfermaria acha que tiraram tudo, incluindo o relógio. Tem ideia que o relógio desapareceu. Ele queria ter o relógio para ver as horas. Foi à administração e relógio apareceu mas voltaram a tirar para dar menos trabalho. Não conhece regulamentos. Não podiam estar muito tempo nas visitas. Pai apareceu um dia de cabelo rapado e nem o reconheceu. Ele tinha consciência e foi contra a vontade dele porque ele se queixou e não se sentia bem assim. Barba por vezes não era tratada; não lhe faziam a barba mas cortaram cabelo. Ele gostava muito de ler jornais. Tinha óculos para ler. Sabia que tinha um jornal todos os dias. Não tem conhecimento que lhe tenham tirado os óculos, nem se lembra. Quando saiu do hospital foi para a enfermaria e para ele foi muito mau. Sobre as roupas – quando estava no quarto ‘estava tudo direitinho’; na enfermaria não era a roupa dele que lhe vestiam, acha que eram as batas. Mas também chegou a vê-lo com outras roupas de outros utentes que não eram dele. Não sabe o que aconteceu às roupas pois quem tratou do funeral foi outra irmã. Da última vez que foi do lar para o hospital a médica chamou os filhos para uma reunião a dizer que o pai estava muito mal com ferida muito grave que na expressão da médica ‘mata’; estava desidratado e muito magro, deveria estar a beber líquido com espessante adequado o que não sucedia no lar porque nunca tal viu quando o visitava. O pai era diabético e nada sabe sobre a sua alimentação no lar. O pai ia sempre sozinho ao hospital sem acompanhamento; o lar avisava e depois família ia lá ter. O pai carecia de medicação específica, em especial antibiótico e não lhe era ministrada medicação, antes outra medicação. A própria foi comprar o antibiótico para o pai e esteve a própria a exigir que lhe dessem o medicamento.

NNNNNN – irmã da anterior testemunha. Confirma que o pai teve vários internamentos e idas ao hospital. Das vezes que o lar ligava informava que não tinha funcionários para acompanhar o pai nas idas ao hospital. Chegou a reclamar como pegavam assim numa pessoa para a enviar para o hospital. Das vezes que era chamada para ir ao hospital acompanhava o pai. Por vezes o pai ia ao hospital não por indicação do lar mas por indicação e sugestão do filho da irmã que é médico. Em Abril de 2017 ele caiu, na altura da Páscoa; na altura também lhe foi colocado o pace-maker. Quando o pai passou a ficar na enfermaria não gostou nada.Só comia Nestum e Cérelac e não havia mais nada ao lanche; reclamou mas nada adiantou. Não lhe faziam a barba e disseram que não havia tempo nem pessoal. A certa altura raparam o cabelo e foi a própria que disse que não gostava nada de o ver assim. Quando consciente o pai não reclamava muito de nada. Depois não tinha capacidade de reacção e já não a reconhecia preguntando-lhe quem era. O pai andava sempre de relógio e começaram a desparecer os relógios na enfermaria, não sabe se foi contra a vontade dele que lhe retiravam o relógio. Não sabe dos óculos e jornais que lhe eram levados

OOOOOO – é utente do lar com a esposa desde Maio de 2014; está alojado num apartamento (n.º 306). Conheceu um outro utente do Lar - PPPPPP - que já faleceu e que visitou várias vezes. Eram todos, os da enfermaria, no entender da testemunha, muito mal tratados. A enfermaria cheirava muito a urina. Utentes da enfermaria, e Sr. PPPPPP queixavam-se que demoravam a ir ter com eles dar assistência. Comida não era boa. O Sr. PPPPPP queixava-se da comida e por vezes coincidia com a má qualidade da comida servida à própria testemunha. Visitava o sr. PPPPPP entre 2017 e 2018. Presenciou o Sr. PPPPPP ter que vestir roupa que não era dele. As irmãs mandavam roupa boa e ele nunca vestia. A própria testemunha foi levantar roupa aos correios. Normalmente o Sr. PPPPPP estava sentado num cadeirão. Era mais para o mau do que para o bom; até as rodas estavam danificadas. Sr. PPPPPP queixava-se de estar muito tempo sentado; e também de não ser mudada a fralda. Ele ficava também comovido por ter as visitas. Não comentavam em concreto o número limite de muda de fraldas. Confirma até que por vezes levavam alguma coisa para o Sr. PPPPPP comer, ou um sumo. E era um outro senhor/visita que lhe levava uma fruta até descascada. Sr. PPPPPP tinha telemóvel para falar com a família embora tivesse alguma dificuldade em fazer as chamadas. Nunca se queixou de deixar de ter relógio ou telemóvel. Apenas se queixava de ter desparecido carregador do telemóvel.

Em esclarecimentos e instâncias da defesa:
Havia receio de reclamar porque havia receio de represálias. Era um ambiente pouco agradável e de ditadura por parte da direcção. O medo era de lhes piorar ainda mais situação em que se encontravam.
Actualmente as coisas melhoraram. Desapareceu 80% do cheiro. Comida melhorou bastante; agora há sempre 2 pratos à escolha.
Visitava o Sr. PPPPPP e permanecia 5/10 minutos, no máximo um quarto de hora

KK – médica de família; fez avaliação a uma utente do lar – ZZZZZ – confirma documento de fls. 26. Foi levada pela família ao centro de saúde porque não estavam satisfeitos com avaliação que havia sido feita antes.

QQ – enfermeira. Tem ideia de ter visto uma senhora utente do Lar – já nem sabia que era a Srª D. ZZZZZ conforme lhe foi recordado pelo Sr. Procurador. Desempenhava funções como enfermeira generalista no centro de saúde da Maia. A senhora chegou em ambulância acompanhada pela filha como utente esporádica e trazia umas feridas nas pernas em muito mau estado. Pediu colaboração de médico porque tal era o estado que carecia de intervenção médica além de enfermagem. Cfr. fotos de fls. 33 e 34 – não seria este o estado das feridas pois nesta situação não chamaria o médico. Não sabe dizer causa/origem destas úlceras. Mas lembra-se que a utente não tinha ideias sobre causa das úlceras. A filha referiu que a mãe, a certa altura, passou a ficar sempre na cama em vez de se levantar e ficar no cadeirão. Lembrou-se de levantar a roupa e viu as feridas nas pernas. A senhora até terá sido internada para fazer limpeza cirúrgica das feridas.

QQQQQQ – assistente operacional no IPO e antes trabalhou na medicina física do Hospital 1... – no ano de 2016. Uma idosa estava acompanhada da filha e tinha um cheiro nauseabundo. Foi dito que estava internada no Lar A..., teria cerca de 90 anos. A senhora iria iniciar a fisioterapia mas deu indicação que teria que ser vista na urgência atento o estado da perna que tinha um penso enorme. Não viu a ferida. Não removeu o penso.Não voltou a ver a utente.

LL – médico ortopedista; recebia e atendia utentes do Lar A..., mais no contexto de urgência. Operou uma senhora (utente ZZZZZ) com fractura da anca e no pós-operatório verificou que a senhora tinha uma úlcera; teve que ter vários cuidados de enfermagem
Relatório e ficha de fls. 226 e 231 – confirma
Fotos de fls. 234 e 236 – confirma que seria situação em causa já em fase inicial do tratamento; localização das feridas é a mesma
Úlceras de pressão são muito controladas no internamento e implicam vigilância muito apertada; sendo sempre aconselhável um colchão específico anti-escaras

RR – enfermeira do Hospital 1... desde 2004; área de reabilitação física; acompanhamento doentes pós-operatório. Recorda doente ZZZZZ. Recebem doentes referenciados em situações pós-cirúrgica; acompanhamento de convalescença: Lar A... não tem enfermeiros especialistas; vão também ao local. Presta cuidados na área da reabilitação física. Na recepção do lar está uma pessoa a indicar onde estão os doentes com necessidades. Normalmente dirige-se à enfermaria onde estão os doentes mais dependentes. Quando lá chegou a doente ZZZZZ estava na cama; não se recorda se doente estava identificada. Mas sabe que era difícil identificar os doentes até atenta a dimensão da enfermaria. Não sabe se doente tinha resguardo. Camas eram de madeira, muito antigas, com aspecto de bastante uso; não pode dizer que estavam partidas; era uma condição de uso, não sabendo se estavam ou funcionais. As idas ao Lar eram sempre muito acompanhadas; eram sempre vigiadas e funcionários diziam até ter receio de prestar certas informações. Tal não sucedida em outras instituições onde presta cuidados. Uma das vezes em que foi ao lar, a utente esteve acompanhada da filha da D. ZZZZZ – que se queixava da forma como vestiam a mãe; como a transportavam ao hospital. A doente tinha úlceras que não se sabia se eram venosas ou de acupressão. Não se recorda se D. ZZZZZ tinha colchão específico para o seu problema. Chegou a ver a ferida que era de evolução e resolução longa até pela condição física da pessoa em causa – o que era limitativo para a enfermeira prestar o serviço; até porque tem ideia de que havia feridas nas 2 pernas. Teve intervenção curta de 2 ou 3 meses mas não consegue precisar.

Em esclarecimentos e instâncias da defesa:
Desde a pandemia não teve mais doentes para reabilitação no lar. Só lá vai ver doentes com autonomia e com problemas de coagulação. Actualmente não tem a tal vigilância, não é igual.
Tem a certeza que viu as feridas e recorda de ver a doente com ligaduras nas pernas. Não viu problemas de higiene da doente.
Foi confrontada com declarações prestadas a fls. 83.

RRRRRR – médico; fazia consultas no Hospital 1...; fazia consultas a utentes do Lar A.... Nome ZZZZZ nada lhe diz à memória.
Foi confrontado com as declarações médicas de fls. 19 e 27
Fls 19 – a mãe da doente queixou-se da situação relativa à ferida que não estaria a ser tratada devidamente e então encaminhou-a para cirurgia para ser tratada
Fls 27 – ferida levou à suspensão dos tratamentos

DDD - a mãe foi utente do lar; a certa altura apresentou uma queixa crime contra o lar. O pai tinha falecido, a mãe ficou mais debilitada e foi para a enfermaria sempre com a ideia de que iria melhorar e regressar ao quarto. Mas não melhorou nada, antes pelo contrário. A mãe teve uma queda enquanto andava com andarilho. Indo para a enfermaria passou a apresentar outras queixas que não relacionadas com a queda. Fazia as visitas 2 a 3 vezes por semana. Os irmãos visitavam mais ao fim de semana porque estavam mais ocupados. Conforme as necessidades também a testemunha comparecia mais vezes. Foi-se apercebendo que nada era feito para que ela melhorasse embora falasse com as enfermeiras que lhe diziam que ela se alimentava mal e recusava a comida. A testemunha levava-lhe comida feita em casa. Aconselhavam a comprar suplementos na farmácia o que fez para lhe ser dado quando ela não se alimentava bem e recusava a alimentação. A recusa da alimentação relaciona-se com a pouca escolha e o facto de mãe enjoar a comida que lhe era apresentada. Notava que ela estava cada vez mais debilitada. Tiraram andarilho talvez por ela ter menos força e passou a estar em cadeira de rodas. Ganhou uma ferida no sacro. Chegou a trazer a mãe cá fora para passear. Na enfermaria o quarto tinha 3 acamas. As camas tinham colchões com covas. Não abria camas. Mas mal subia piso da enfermaria cheirava a urina e ‘muita coisa misturada’. Apoios da cama estavam partidos e estavam amarrados com gases. Colchão era ‘normalíssimo’ e em muito mau estado. Quando falou se precisava comprar colchão eles trocaram por outro colchão menos mau. A mãe estava muito queixosa e tinha mau odor e questionou as auxiliares sobre as fraldas. Entretanto ela pensou se seria alguma ferida porque cheiro era mais forte se a mexia ou mudava de posição. Começou a tentar perceber no corpo se não seria na zona da fralda e ficou até a altura de mudar a fralda para ver – tiraram a fralda e viu a ferida do tamanho da palma da mão, sendo que a fralda não estava suja; teve que abrir a janela senão desmaiava. Chegou a perguntar quantas as vezes que mudavam a fralda durante o dia e a resposta foi ‘sempre que era preciso’. Depois veio a saber que era uma ao acordar e uma ao deitar. A ferida tinha um penso, pediu para tirarem penso com gases ensopadas no líquido que largava da ferida. Foi mostrar a foto ao doutor que disse que nada sabia porque não lhe foi mostrada. Como passava das 17h foi falar com o médico e com a enfermeira chefe. Esta terá dito que mandou ir ver uma enfermeira – que sendo muito nova, quando viu a ferida ficou quase no mesmo estado de choque da testemunha. A testemunha WW também foi ver a mãe e a ferida. Falou com Dr. MM que lhe prometeu que no dia seguinte de manhã tratava da mãe e ia medicá-la já com antibiótico. Passado um dia, o médico iria chegar mais cedo para tratar da mãe mas ligaram-lhe a informar que a mãe tinha ido de urgência para o hospital. Pediu então para agendar reunião com direcção porque tratava normalmente destes assuntos com assistentes sociais. A tal reunião foi difícil de acontecer. Teve que insistir. Passou a enviar mail’s para ter comprovativos para além de meras chamadas telefónicas. Reunião realizou-se passado 1 mês – com o Sr. AA e depois chegou a Drª BB. Na reunião esteve presente o irmão/testemunha JJJ e um outro irmão. O Sr. AA disse-lhe que não percebia a reunião porque ‘as pessoas ficam velhas e morrem’. Haviam pedido um relatório do médico e da enfermaria. O irmão queria levar tais papéis referentes à mãe e não foi autorizado. Tinha a iniciativa e cuidados de fazer análises e exames. A mãe não tinha problemas de saúde graves à parte da idade. Quando a mãe foi para a enfermaria levou as roupas delas devidamente identificadas. Chegava lá e via as outras doentes com a roupa da mãe e ela com roupa suja e rota. Chamava a atenção aos funcionários que lhe davam banho e vestiam. Cama às vezes tinha o nome dela, outras vezes tinha outro nome e outro número de utente, porque a mudavam de cama e quarto. Chamava a atenção às enfermeiras. Acha que não via dar medicação à mãe porque ela não tomava à hora do lanche. Deixou de usar relógio por vontade dela, porque lhe fazia confusão e não via bem.
Apenso E – foto de fls. 12 – confirma que foi a foto que tirou com telemóvel

Do pedido cível:
Comprou suplementos e nem sempre lhe eram dados. Telefonava a perguntar se precisava de suplementos e diziam que davam todos os dias e quantos ainda sobravam; mas a testemunha fazia as contas e via que não davam como era informada todos os dias.
Mobiliário todo velho; cadeirões todos rotos; mãe esteve sempre em cadeira de rodas; nunca me cadeirão; as visitas das 14h às 17h. Estava durante todo o tempo da visita e nunca mudavam posicionamento da mãe. Era a instituição que fornecia as fraldas e enviava a conta. Soube por familiares de outros utentes da muda de fraldas e também profissionais de lá que o confirmaram. Referiam que eram ordens que tinham, não especificando de quem. Tinha dias que estava melhor dando ideia que tinha tomado banho; pelo cabelo, outros dias, dava ideia que não havia tomado banho. A casa de banho estava a desfazer-se, o lavatório a cair, a água a correr por baixo das portas. Havia zonas do piso que nem se podia entrar. Dava ideia de que só havia uma base de chuveiro e uma cadeira que seria de ferro, com aspecto velho e com ferrugem.
Quando se queixou à enfermeira chefe da ferida da mãe ela disse que não sabia da existência da mesma – enfermeira PP. Tem ideia de que via 2 enfermeiras a dar medicação e era com elas com quem ia ter para entregar os suplementos.
A mãe começou a ficar muito prostrada e nem queria falar; fazia cara de dor quando era movimentada; quando lhe perguntavam algo ela nem respondia. Ainda o pai e mãe conscientes perguntava se eles não reclamavam de certas situações e eles respondiam que não podiam senão ainda fazem pior e tinham receio. Se algo fosse reportado ao Presidente a resposta do mesmo seria algo do género que ‘a porta da rua era a serventia da casa’.
A tal reunião terminou com o Presidente a chamar arrogantes e mal criados a si e irmão. Irmão avisou que ia fazer queixa crime no Ministério Público.
Alimentação na hora do lanche – chá ou leite com pão e para os mais debilitados era Nestum ou Cérelac.
Quando falou ferida da mãe perguntou se era necessário colchão anti-escaras encomendou logo de seguida mas a mãe dormiu apenas na noite em que foi para o hospital de urgência.
No hospital falaram que mãe estava muito fragilizada e desidratada; ferida não se conseguia curar até pela falta de higiene. Ficou internada 1 semana. Foi operada várias vezes sempre para retirar mais ferida.
Não consegue esquecer morte da mãe embora sabendo que iria morrer dada a idade avançada. Entrou em depressão e não consegue deixar ainda hoje a medicação para conseguir fazer dia a dia normal.

Em esclarecimentos e instâncias de defesa:
Não sabe se estava no contrato de prestação de serviços de quem era responsabilidade no fornecimento/aquisição de utensílios como cadeiras, colchões. Mas sempre foram os filhos a comprar tal material

JJJ – irmão da anterior testemunha. A partir do momento em que a mãe foi para enfermaria ficou calada e prostrada. Tentava animá-la e perguntar o que se passava e a mãe até dizia que era melhor não falar. Acabou por se ‘descair’ a dizer que após hora visita havia maus tratos aos utentes. Perguntou se foi agredida ou alguma situação mas ela fugia ao tema de conversa. Tentava perceber se ela dizia a verdade ou não. Via os auxiliares a passar e dizerem olá, altura em que a mãe até tremia. Tentava puxar pela mãe que dizia sempre que não era nada.Achava que algo não estava bem. Esteve em reunião com administração. Melhor esclarecendo, teve 2 reuniões. Uma primeira reunião foi com o então vice-presidente – ele dizia que não conseguia perceber porque não se davam condições melhores porque a instituição tinha dinheiro – na altura o pai estava vivo e acamado. Queixou-se de só terem 2 enfermeiros e até para darem banho. Viu alguém tomar banho de mangueira na altura em que o pai ainda era vivo. Quando visitava a mãe, a certa altura, custava-lhe porque cheirava mal. A enfermaria cheirava mal a fezes e urina. Viu a mãe com roupa rota e que não era de certeza pertença dela. Na (segunda) reunião a propósito da mãe a testemunha pediu relatório da enfermaria para saber o que havia de fazer. O Sr. AA passou-lhe um papel para a mão que a testemunha não percebeu e pediu para ficar com um relatório ou fotocópia, o que lhe foi negado apesar da insistência,incluindo do outro irmão. Alteraram a voz, todos, o Sr. AA levanta-se e diz que reunião estava terminada. Avisou que iria fazer queixa e avançar para tribunal. Drª BB ainda ficou a tentar apaziguar os ânimos, referindo que nada iria ser resolvido porque a mãe já tinha morrido.
Esposa da testemunha é enfermeira e fez estágio no lar.
Doc. Fls. 23 – nada lhe diz à memória de ter sido exibido na tal reunião
Esclarece que documento que lhe foi exibido era manuscrito, com canetas várias cores

Do pedido cível:
No período da visita em que estava com mãe ninguém vinha cuidar e mudar posicionamento da mãe; era até o próprio a fazê-lo
Mobiliário era velho, com ferrugem; num dos quartos em que a mãe esteve até tinha na cama o nome de outra pessoa; o que era frequente
Na fase terminal da mãe, quase não falava, muito prostrada; percebia que não estava bem e em sofrimento; com cheiro nauseabundo.
Nunca foi acompanhada para o hospital; ia com uma carta para o hospital.
Estava consciente, mesmo nessa altura, porque olhava para os filhos.
Pouco consegue dizer sobre a morte da mãe e o que o afectou.
Sempre podiam ter avisado para tomarem medidas porque eles/filhos sempre trataram do que era necessário.
Enfermeira chegou a dizer que não havia pensos. Questionaram pessoas porque não lhe disseram para tomar medidas e não obtinha respostas.
Sonhava com o sucedido e nunca mais vai sarar.
Na (primeira) reunião com Dr. JJ – mostrou fotos com degradação de camas e doentes incluindo com fezes ressequidas. Tal senhor terá ido à enfermaria para chamar à atenção para terem mais cuidados. Tal terá sucedido por volta de 2018
Mãe terá estado cerca de 10 meses/1 ano na enfermaria.
Chegaram a ponderar mudar a mãe mas ela não queria porque poderia ir para local pior

SS – é nora da Srª D. ZZZZZ; descreve a presença utentes na enfermaria que ficavam ao esquecimento; cuidados muito aquém do que precisavam; camas indevidamente identificados. Utentes tinham medo de ir para a enfermaria; horário rígido para visitas; quartos sem privacidade; sujidade a olhos vistos; sala de convívio com utentes encostados uns aos outros; não havia cama elevatória; colchões imundos; grades amarradas. Sogra estava sentada na cadeira desde manhã até à noite. Foi a família que comprou a cadeira de rodas para a sogra; chegou a vê-la na cama logo às cinco da tarde. Nunca viu uma cama ‘de jeito’. Cama da sogra não estava identificada – falaram e disseram que sabiam e que iriam mudar a situação. Em termos higiene estava mal cuidada; roupas não eram as dela; cheiro era nauseabundo e destacava-se mal se entrava na enfermaria – cheiro a fezes e urina. Enquanto se movia ainda se cuidava; depois de dependente começou a piorar. Na cadeira de rodas ela queixava-se e não se percebia bem o que era. Foi pelo cheiro da sogra que perceberam que algo não estava bem. Cunhada comentou com ela a situação da lesão. Por ser familiar pediu à enfermeira WW para ver a sogra. No hospital é que viu como ela estava, pois trabalha no Hospital 1.... Tinha uma ferida grande, num mísero estado. Tinha um penso normal, uma compressa. No estado em que estava não era de todo recente.
Fls 66 – quando foi para o hospital não estava a fazer antibiótico do que resulta teor deste registo.

Em esclarecimentos e instâncias da defesa:
Nas grades das camas havia comida agarrada; lençóis estavam muito mal cuidados; roupa muito velha; manípulos da cama não funcionavam
Não havia sabonete nem papel para limpar as mãos; mobiliário e equipamentos estavam muito degradados.
Só viu a escara quando foi para o hospital. Colegas disseram que a sogra estava numa fase deplorável que já era normal um utente lar A... ser assim enviado sem acompanhamento e em estados semelhantes
Sogra estava muito debilitada; tinha muita dor pois até tinha osso à mostra; foi ao bloco 2 vezes; estava consciente; tinha que fazer analgésico muito forte.
Via 2 enfermeiras quando visitava a sogra

TT – enfermeira; exerceu funções no Lar A... entre Agosto 2019 e Janeiro de 2020; a entidade patronal era uma empresa de prestação de serviços; exerceu funções nos vários serviços quer na enfermaria, nos dependentes, quer nos demais serviços; trabalhava por turnos; na enfermaria de manhã e durante a tarde havia 2 enfermeiros; à noite ficava apenas 1 enfermeiro. Na enfermaria havia muitos quartos, refere 30 pessoas; perante a indicação de que seriam afinal 60 ou 70, referiu a testemunha ser possível. Havia muitos utentes com grau elevado de dependência e não era possível dar resposta a todos A falta de pessoal era do conhecimento geral. A nível de higiene do espaço considerava adequada. Já falhavam os cuidados de higiene aos utentes porquanto os auxiliares não eram suficientes. Pensa que não havia identificação das camas dos utentes. Acabava por conhecer bem os utentes para dar a medicação. A medicação vinha preparada de uma farmácia com dosagem. Acha que havia copos numerados com identificação dos utentes. Chegou a ver medicação também em tampas de garrafas – mais em relação a comprimidos efervescentes cuja identificação dos utentes tinha numa listagem. Pensa que as camas tinham resguardos de protecção. Eram descartáveis. Havia muita falta de material a nível de cuidados como pensos. Falavam com as famílias e se as mesmas não adquiriram falavam com médico ou então recorriam aos centros de saúde. Lembra-se que havia uma utente algo desorientada que chegou a vê-la imobilizada, para evitar risco de queda e ela não tinha contenção química para a manter calma. Não sabe quem determinou que fosse amarrada ou quem o fez. Segundo as boas práticas o doente deve começar com medicação. O colega que fez isso foi por não ter alternativa pois não pode decidir dar qualquer medicação enquanto enfermeiro. As camas eram bastante antigas assim como os colchões; não eram os mais adequados. Existiam colchões anti-escaras mas em pequena quantidade. Alguns familiares adquiriam para alguns utentes. O Lar teria muito poucos em caso de necessidade. Por vezes familiares levavam alguns lanches; não refeições principais. Na higiene faltavam pormenores como por exemplo limpeza de unhas. A roupa era dos utentes eu os familiares levavam. Tem ideia de que iria lá uma barbeira cortar o cabelo dos utentes do sexo masculino. Nada se apercebeu sobre objectos pessoais dos utentes como sejam relógios. Chamavam médico do lar, que entrava ao serviço pelas 16h00, quando tinham algumas preocupações.

Em esclarecimentos e instâncias da defesa:
Quanto a fraldas até acha que conseguiam mudar cm frequência adequada – 2 vezes por turno pelo menos. Durante a noite faziam 2 posicionamentos do doente.

MM – é médico e deixou de exercer funções no Lar na altura em que apareceu o covid. Nos últimos anos estava sozinho. Quando entrou para o Lar A... estavam 3 médicos ao serviço. Dr. SSSSSS também lá exerceu funções. Faleceu e passou a exercer funções sozinho. Não tinha contrato; era prestador de serviços. Trabalhava a recibo verde. Trabalhava das 14h às 17h, de 2ª a 6ª. Prescrevia medicação; Fazia consultas programadas - 4 ou 5. A enfermeira que media tensões aos doentes encaminhava-lhe alguns doentes; No consultório tinha também ambulatório para fazer pensos. Depois ia para a enfermaria para ver os utentes que careciam de cuidados. Havia doentes acamados e sem serem acamados. Havia utentes que eram acompanhados por médicos de família e até particulares. Os utentes já com medicação prescrita por outro médico, normalmente não alterava; apenas se fosse algum ‘disparate’ a medicação prescrita. Aos sábados, domingos e feriados não havia médico. Quando estava de férias não havia médico que o substituísse. Gozava os 22 dias úteis de féria e de forma geral repartia as férias para não serem todos os dias seguidos. Não tinha qualquer reunião para dar instruções. Mas estava disponível por contacto telefónico. Mas era muito raro que fosse contactado nos fins de semana ou feriados. Nas férias nunca havia contacto. Na enfermaria havia cerca de 50 utentes. Colocou o problema à direcção que considerava que não era suficiente estar apenas a testemunha a prestar serviços. Não sabe quais as funções da Drª BB. Serviços vieram a piorar com o decurso do tempo. Não obteve qualquer resposta por parte da direcção. Disse em concreto que precisava pelo menos mais 1 médico. Não se recorda de concretas situações de utentes com úlceras de compressão. Quando estava presente fazia uma carta para acompanhar o utente que tivesse se deslocar aos serviços de urgência. Contudo, não sabe se os doentes, quando eram transferidos, levavam o documento que emitia; e também não sabe se utentes iam acompanhados de alguma auxiliar.

TTTTTT – médica no Hospital 1... – serviços urgência, enfermaria, serviço externo e bloco operatório. Não está recordada de qualquer caso em particular de utentes do Lar A....
Confirma que já viu situações como da foto de fls 26 que lhe foi exibida
Recorda muito vagamente ter havido uma situação da utente que era sogra da enfermeira SS

EEE – era auxiliar no Lar A... mas no infantário entre 2004 e 2018 ou 2019. Entretanto já se reformou. Escalas eram elaboradas anualmente e eram aprovadas pela Drª BB. Tinha acesso contudo à zona do lar dos utentes. A partir de 2005/2006 foram sendo impostas condicionantes de tal acesso com a entrada da Drª BB em funções as condições degradaram-se – era a directora de serviço a quem era devida obediência. Chegou a fazer espectáculos como cantora junto dos utentes. Fazia-o gratuitamente e até acompanhada por exemplo do poeta UUUUUU. Os utentes passavam o tempo como a testemunha não queria passar – sentados; iam ao bar. E nada mais. A determinada altura deixou de ser permitido frequentar a capela – por volta de 2010. Na hora do almoço havia os desabafos dos velhinhos que por vezes reportava ao Sr. HH. Os utentes nas cadeiras de rodas deixaram de vir cá fora ao jardim apanhar ar. Os mais autónomos teriam autorização para vir ao jardim. Reporta esta alteração à entrada da Drª BB. O elevador da instituição estava obsoleto e deixava de funcionar. O elevador maior para as cadeiras de rodas avariava muitas vezes também. Presenciou o desespero do Presidente porque a empresa demorava a vir fazer as reparações dos elevadores. Chegou a haver um centro de equitação. Os utentes podiam e deviam frequentar o centro mas nunca lá viu nenhum utente. Via apenas Drª BB, a filha e o cavaleiro de nome KKKKKK; por vezes iam lá também os meninos do infantário. A própria estava proibida de frequentar o centro por indicação da Drª BB. Contudo chegou a levar os meninos do infantário a frequentar o lar. Chegou a fazer algumas reuniões com o Presidente fazendo exposições. O que estava ao alcance do presidente ele realizava.
Confrontada com teor de Fls 1585 e 1586, refere ser uma exposição ao Ministério Público com assuntos que também reportou à direcção.

Em esclarecimentos e instâncias da defesa:
Quem geria era o presidente; a Drª BB tinha funções de directora técnica
Houve processo despedimento e já em tribunal foi feito acordo
Frequentava o lar pela hora do almoço; não ia ao lar no horário das visitas; fazia-o todos os dias;
Quando foi contratada para o Lar A..., a Drª BB exercia funções há muito pouco tempo, há cerca de 1 mês ou 2.

GG – assistente social entre 1993 até setembro de 2022 no lar. Tinha a categoria de directora técnica. Mas exercia funções de assistência social. Tinha a seu cargo o processo de admissão de utente e acompanhamento na área social do utente. Acompanhava a formalização de todo o processo. Por norma só lidava com os utentes na área social. Fazia deslocações aos quartos dos utentes, acompanhava se necessário a cozinha ou refeitórios. Para os quartos dos residentes por norma e durante muito tempo eram as pessoas que traziam o seu mobiliário para terem autonomia e autoestima. Quem não tinha, tentavam encontrar mobiliário da instituição de acordo com a pessoa. Numa primeira fase o lar apenas aceitava e recebia utentes associados; posteriormente e por imposição da segurança social alargaram a abrangência dos utentes. Havia quartos em condições e quartos em degradação que eram sinalizados e quando havia oportunidade eram re-estruturados. Reportava à direcção e a direcção quando entendia também pedia relatórios. Função da Drª BB – directora de serviços a quem reportava situações de utentes ou que lhe colocassem directamente. Residentes tinham sala de terapia ocupacional que tinha uma técnica de animação; a própria também fazia animação. Tinham ainda uma auxiliar de acção directa com curso de animadora sócio-cultural. As assistentes sociais também faziam animação em determinadas áreas. Tudo isso era feito no período da manhã. Pequeno almoço - 9H; almoço - 12H30; lanche – 16h e jantar- 19h30 e depois a ceia. Havia dias em que as pessoas se queixavam das refeições. Havia familiares que levavam comida, mais para satisfazer gostos dos utentes. Em ERPI chegaram a ter 230 utentes e depois foi diminuindo número de utentes. Entre jantar e pequeno almoço havia ceia- mas não estava lá para confirmar; estava prescrito. Colhões na área de dependentes eram adequados à população. Alguns que não estavam no melhor estado e seriam para substituir – é a ideia que tem. Camas não estavam numeradas. Na porta estava indicado a identificação de quem estava no quarto. Resguardos eram facultados pela instituição.
As laterais das protecções das camas por vezes avariavam. Chegou a ver utentes com ligaduras. Era feita uma protecção para quem tinha comportamentos menos correctos. Tinham protecção nos pulsos com ligaduras e amarrados com cintos de protecção e faixas adequadas. Por vezes acontecia vestirem utentes com roupas de outras pessoas. Instituição tinha várias roupas, até de utentes que tinham falecido. Na enfermaria não era permitido terem pertences pessoais como por exemplo relógios. Havia telemóvel de serviço para facultar aos utentes. De manhã havia higiene e animação. Quanto às fraldas – havia norma de 3 por dia e caso se justificasse seriam mudadas mais fraldas.No final do mês era entregue relatório à própria com registos das fraldas utilizadas. Eram os familiares que compravam e forneciam suplementos. Eram os enfermeiros que a informavam para contactar os familiares. Utentes diabéticos eram sinalizados. Faziam medicação.Deixou de frequentar a enfermaria quando veio embora.
No período das higienes havia cheiros, assim como, após, à noite.

UU – enfermeira entre 2010 e início de 2017 no Lar A... que era a entidade patronal. Fazia meio horário – 20 horas por mês. Fazia avaliação dos utentes; iam ao refeitório para tal efeito. Na área dos dependentes trabalhava essencialmente de tarde – eram 2 enfermeiros;. 1 na área dos dependentes e outro de apoio aos pisos no gabinete e que administrava a medicação nos refeitórios, ao lanche e jantar. No turno da noite era só 1 enfermeiro de apoio a tudo. Preparavam toda a terapêutica para dia seguinte. Trocavam fraldas. Iam aos pisos porque doentes, mesmo autónomos, precisavam de terapêutica. Viam as refeições do jantar e lanches. Jantar era por volta das 18h00. Entre jantar e pequeno almoço tem ideia que era dada refeição mas sem certeza. Sabiam quem eram os utentes diabéticos. Não se recorda se era dada alguma refeição específica aos diabéticos. Havia iogurtes que não sabe como chegavam à enfermaria. Se precisavam de algo solicitavam ao Sr. VVVVVV. Só algo muito importante é que reportavam ao presidente. Acha que a Drª BB fazia parte da direcção e dava apoio ao presidente. Havia dependentes com dieta específica: por exemplo com dificuldades em deglutir; com sonda naso-gástrica. Não se lembra de algo especificamente prescrito por nutricionista. Não sabe quantas mudas de fraldas ocorriam. De noite eram trocadas fraldas a todos os dependentes pela enfermeira . Reportavam ‘a quem de direito’ as camas que não estavam em condições. Camas eram antigas, de manivela. Estavam ‘perras’. As grades, na maioria, estavam a funcionar. Via algumas camas com grades amarradas pontualmente com ligaduras. Não se recorda se eram até usadas meias. Utentes tinham roupas pessoais. Por vezes usavam roupas que lá existiam porque não eram visitadas por familiares. Utentes desorientados, dado o risco de queda eram imobilizados mas com conhecimento médico e porque não funcionava a medicação. A medicação tinha caixas com identificação do doente e a respectiva medicação. E tinham folha com definição do plano medicação. Nunca sentiu risco de trocas de medicação. Alguns idosos traziam já úlceras de pressão e vinham sinalizados. Eram as auxiliares que faziam mudanças posição e só raramente pediam ajuda aos enfermeiros. Quando entrava no turno da tarde, os doentes que estavam sentados nas cadeiras aí permaneciam. Alguns, no cadeirão, conseguiam recostar-se em posição diferente.Tinham tudo registado em livro de passagem de turno. Nunca tiveram problemas de falta de material. Pediam ao tal VVVVVV quando sentiam alguma carência. Não se lembra bem se por vezes eram até os familiares a fornecer material. No turno da noite fazia falta mais alguém a nível de enfermagem. Tinham um médico na parte da manhã e da parte da tarde outro médico.

Em esclarecimentos e instâncias da defesa:
Nomes dos utentes não estavam na porta do quarto. Sabiam de cor

VV – de 2013 a 2017 exerceu funções contratada directamente pelo Lar A... como prestadora de serviços. Tinha horário parcial. Mas fazia turnos de outros colegas. Acabava por ter trabalho em horário ‘full time’. Havia uma enfermaria grande com mais de 30 ou 40 utentes. Quartos estavam quase sempre todos ocupados cada um com 3 utentes. 1 enfermeiro para enfermaria e 1 para a saúde pública, para os utentes autónomos. Durante a noite havia apenas com 1 enfermeiro. Era insuficiente. Não sabe se referiu tal situação directamente à Drª BB. Mas era queixa recorrente. Todos os dias, sempre de manhã, era feita a troca de penso aos acamados com úlceras de pressão. Primeiro as auxiliares davam banho. Eram os familiares que traziam o material. Queixavam-se do acondicionamento do material; muitas vezes não era devidamente esterilizado. Reportava a um tal VVVVVV tais queixas. Familiares não tinham muito essa noção. Dois médicos davam apoio - Dr. MM e Dr. SSSSSS. Médicos contactavam e iam visitar os doentes. Em caso necessidade de urgência era feita carta de transferência com relatório dos problemas e medicação que era feita; tinham contacto de uma ambulância; tem conhecimento que por vezes ia uma auxiliar a acompanhar o doente; quanto aos utentes autónomos, não sabe se iam sozinhos. Familiares viam muitos utentes e por vezes tinham que dar eles próprios o lanche. Eram poucos funcionários para os utentes, No máximo havia atrasos. Notava que as noites eram piores por causa das fraldas e higienização pois havia pouco pessoal. Fralda era mudada pelas 18h e só havia uma ronda de muda durante a noite. Durante o dia os banhos começavam cedo e acabavam muito tarde. Por vezes até acabavam banho muito tarde e sem muda de fralda. Sabe que se apontava número de fraldas se passavam de um determinado limite. Havia confusão com as roupas. Havia roupa própria e roupa do lar.

Em esclarecimentos e instâncias da defesa:
Teve litigio com lar A...
Havia ceia pelas 22h00

WW – enfermeira no Hospital 2..., no Porto; tem especialidade em reabilitação e trabalha em lar de idosos. Conheceu a D. CC no dia em que a contactou quando lhe foi pedido pela nora e pelo filho. Foi-lhe pedido para observar a senhora – tinha mau cheiro e uma ferida; abriu penso, viu estado ferida com cheiro fétido e purulenta; refez o penso; mau cheiro é do foco infecioso que reporta ao passar muito tempo na mesma posição; protocolo é mudar pessoa de duas em duas horas mas depende do estado da pele e do doente. A D. CC estava na cama e não tinha autonomia para se virar sozinha; estava na lateral quando a viu e tinha sido feito o penso naquele dia em que a observou. Recomendou um penso todos os dias ou até várias vezes ao dia porque estava com muito líquido e recomendou falar com o médico pois seria necessário antibiótico. Deu tais recomendações ao filho da senhora. O Lar A... tinha conhecimento de que ia lá naquele dia porque tinha sido pedida autorização. Soube mais tarde que a D.CC foi ao hospital. Acha que a senhora tinha um penso normal. Não se recorda se colchão era normal ou antiescaras. Senhora nem falava, ou pouco falava apesar de estimulada. Cama tinha grades de protecção. E soube depois também que senhora faleceu.

Instâncias do pedido cível:
A senhora estava de fralda e a estava limpa. Estava em cama articulada.
Escaras – causa mais comum é a pressão por estar sempre na mesma posição

XX – enfermeira no Lar A... de 2017 a 2019. Exercia funções nos residentes e na enfermaria. Dava medicação; fazia tratamento a feridas e alimentava doentes com sondas. À noite estava só 1 enfermeiro. Não sabe precisar número de doentes mas enfermaria estava cheia. Pediam colaboração ao colega enfermeiro que estava no lado dos residentes, por isso considera que havia insuficiência. Inicialmente a enfermeira FF era a responsável e depois passou a ser a enfermeira KK. Teve algumas reuniões com os responsáveis do lar – Drª BB e o presidente. Drª BB era directora geral. Foi falado com a enfermeira chefe porque reportaram necessidade de mais pessoal. Só havia ceia para os diabéticos – iogurtes; não havia para os demais; não conseguiam tratar todas feridas, tinham que pedir ajuda. Na reunião ficou acordado tentar melhorar. Uma familiar da utente D. UU trazia refeição para ceia. Para tratamento das feridas nem sempre tinha material mais adequado. Não sabe se teve que ser pedido apoio ao Centro de Saúde .... Quando muito poderia ter ser doente encaminhado para o hospital. Mas não sabe se tal chegou a acontecer. Sabe que à noite os doentes eram mudados 3 vezes (fraldas) e posicionados – enfermeiros ajudavam as auxiliares. Pequeno almoço era dado por volta 9h00/9h30 e as higienes começavam pelas 8h00. Pensa que todos os utentes tomavam banho. Doentes não acamados eram colocados numa sala de convívio; ficavam em cadeiras de rodas e em cadeirões. Cadeiras de rodas – umas dos utentes/adquiridas pelos familiares e outras dos serviços. Não sabe das condições dos cadeirões, já não se lembra. Depois do almoço os doentes eram deitados pelos auxiliares, talvez a partir das 14h00. Na enfermaria nenhum doente tinha roupa pessoal, acha que era roupa da instituição. Não se recorda de queixas dos utentes em relação à roupa. Havia alguns auxiliares que faziam a barba aos utentes. Havia um cabeleiro que ia de vez em quando cortar os cabelos. Quando cortavam cabelo cortavam curto mas não sabe se era máquina zero; não sabe se era de acordo com os gostos dos utentes. Recorda-se apenas de uma utente com cinto abdominal por causa do risco de queda mas era do conhecimento da família. Nunca deixou ninguém imobilizado no turno dela. Na enfermaria quando os utentes ficavam mais desorientados eram-lhe retirados os objectos pessoais e guardados no cofre, incluindo os telemóveis e depois eram entregues à família. Fora do horário das visitas havia um telefone na enfermaria para contactar o familiar. Se lhe pedissem para ligar a testemunha ligava para o familiar. Alimentação era confecionada na cozinha do lar. Às vezes a alimentação era inadequada – por exemplo idosos a comerem feijoadas. Havia cuidados com doentes com disfasia - havia comida cremosa. No mais, não havia outros cuidados especiais.

II – auxiliar de serviços gerais; ajudante de acção directa no Lar A... de 2007 a 2022 – era auxiliar de geriatria. Fazia higienes e dava alimentação. Não tinha curso específico nem formação específica. Também trabalhou na enfermaria. Entrava 8h00 e trabalhava até 14h00 – dava pequeno almoço, fazia higiene e almoço. Acamados que estavam dependentes iam ao chuveiro em cadeira adequada para banhos; mas também faziam higiene no leito com bacia em plástico – havia uma bacia em cada armário; acha que havia uma bacia para cada utente. Cadeira do banho já se notava que tinha muito uso. Não via que a cadeira fosse higienizada entre os banhos. Havia cheiros a urina e fezes. Acha que se mantinha à hora das visitas. Via sempre lá as colegas da limpeza do espaço. Quanto às fraldas, eram mudadas de manhã, dependendo se utente estaria sujo ou não, depois do almoço e dependendo, quando se iam deitar e depois a meio da noite. Não sabe se havia limite de número de fraldas para mudar por utente. Auxiliares não eram suficientes para fazer face às necessidades. De manhã variava o número de auxiliares – seriam 6 na enfermaria nas rotinas; houve altura em que estava 1 auxiliar na alimentação. Quando entrou ao serviço eram 3 utentes por quarto; depois passaram a ser 2. Cada utente tinha o seu armário com as suas roupas. Por vezes acontecia mais ao fim de semana, não vestirem o utente com roupa própria e vestiam roupa do lar. Não tinham tempo para dar atenção aos utentes; começavam num quarto e seguiam a tratar de todos até ao ultimo quarto sem poder perder tempo. Se tivesse mais gente talvez conseguisse mudar mais vezes as fraldas; embora se alguém ficasse sujo, arranjasse tempo para ir mudar. Não conseguiam dar banhos a todos os utentes, todos os dias. Era só uma vez por semana. Os cadeirões estavam algo estragados; via-se a espuma. Jantar era dado a partir das 18h. Houve período em que não havia ceia ou reforço e depois passou a haver mas não sabe precisar em que altura. Eram dados iogurtes na ceia e depois passou a ser uma caneca com leite e ou chá e bolachas.

Em sede de defesa:
Saiu na sequência de despedimento colectivo
Quanto a cheiros a fezes e urina não sabe a razão – durante mudança fraldas colocavam no saco do lixo e depois era levado para outro local. Drª BB era directora técnica; ia por vezes à enfermaria. Conheceu o Dr. JJ que também começou a frequentar a enfermeira; sabia que era da direcção; deixou depois de frequentar a enfermaria e mais tarde regressou como presidente.
Sobre a questão das fraldas e do cheiro, ninguém ficava sem mudar a fralda se precisasse.

YY – enfermeira do Lar A... entre 2017 e 2018 contratada como prestadora de serviços a recibos verdes. Cumpria um horário mensal, fazendo parte dos turnos/escalas. Também trabalhou na enfermaria. Havia alguma falha de material – mais do dia a dia como sendo compressas ou toalhitas de uso diário ou esponjas; ou seja, não havia muita fartura. Na passagem de turno assinalavam as pessoas com necessidade de mais cuidados; diabéticos estavam assinalados; acha não havia identificação dos utentes nos quartos. Para cada utente a identificação da medicação era feita de forma muito ‘rural’. Não tinham carro com medicação. Tinham caixa do utente com identificação. Já era mais complicado quanto a unidoses de cada doente. Tinham tabuleiro grande com medicação dos doentes identificados, o que era propício a trocas. Quanto a falta de material, reportavam a enfermeira responsável. Material de pensos, por mais que houvesse falha, nunca reportou à família; quanto à medicação, quando muito avisou que estaria a acabar para familiar trazer. Quanto a material e quando muito se não houvesse, tentava usar um sucedâneo. Nunca acompanhou utente ao serviço urgência. Preenchiam folha para acompanhar o doente com descrição das patologias e antecedentes. Da sua parte fazia sempre tal folha.

Em sede de defesa:
Necessidade de ir ao hospital em urgência não era muito recorrente


Nas consultas regulares os utentes iam com familiares

FFF – ...
Conhece os arguidos porque foi funcionário Lar A... entre 1991 e 2020.
Entrou para os serviços administrativos; trabalhou no bar, na cafetaria e depois entrou para a enfermaria, onde passou os últimos 12 a 15 anos – aí fazia acompanhamento dos utentes aos hospitais e nas horas livres fazia serviços de apoio, dava refeições aos utentes e acabou por fazer higienes e dar banhos aos utentes por sua iniciativa e via o que era preciso fazer. A enfermaria tinha 66 doentes; eram 23 quartos, cada um com 3 pessoas; a enfermaria estavam sempre cheia. Estavam 4 auxiliares para os banhos e mais 4 ou 5 para fazerem o resto do serviço. Por cada turno eram cerca de 10 ou 12 auxiliares, dos quais cerca de 3 também prestavam serviço no resto do lar. Por dia davam cerca de 22 banhos; não davam banhos a todos os utentes, todos os dias. Nos dias em que não tinham banho, era-lhes feita a higiene. Ainda assim era um serviço muito apertado. Quanto às mudas de fraldas, tinham que cumprir, fazendo nas suas palavras ‘trinta por uma linha’. Não tinha tempo para fazer os posicionamentos. Mudavam a fralda de manhã aos utentes.
Conheceu a D. CC, que passou muitas vezes por ela, pois estava nos banhos. A senhora estava numa cadeira de rodas. Um dia a filha disse-lhe que cheirava mal e que a queria ver depois do lanche – levou-a para o quarto, despiu-a, tirou a fralda e tinha uma úlcera de pressão. Veio uma enfermeira na altura. chamar a atenção que não podia fazer aquilo. E a filha pediu para levarem a mãe para o hospital. Nos últimos tempos a senhora estava prostrada. Não se queixava. Não sabe se era cumprido o posicionamento. Não sabe se tinha colchão anti-escaras. Quando a filha viu a úlcera ficou chocada e preocupada por ter a mãe na cadeira de rodas, sentada a fazer pressão na úlcera. Faziam a higiene aos utentes com uma bacia comum como o faziam com a D. CC. Não se recorda se a filha se queixou da D. CC usar roupa velha que não era dela. Sabe que a D. CC foi para hospital e faleceu cerca de 1 semana depois. Acha que a Direcção sabia das condições da enfermaria; às vezes apareciam lá.

A instâncias do Ministério Público ao abrigo do disposto no art.º 340. CPP como requerido:
D. CC era levantada de manhã para higiene ou banho e depois ficava na cadeira de rodas.
Não acompanhou a D. CC ao hospital
Não tinham acesso aos números dos familiares para informar se utentes tinham que ir ao hospital.
Nas vezes em que acompanhou utentes ao hospital ou consultas quase sempre eram enviadas cartas com indicação do estado e medicação que tomavam.
Se houvesse alguém que precisasse de banho tinham que se esforçar para o fazer; já chegou a dar banho à tarde a utentes.
Houve altura em que utentes ficaram mais do que uma semana sem tomar banho – houve problema com caldeiras e tinham que aquecer panelas de água.
D. BB era directora de serviços – de vez em quando ia à enfermaria.
Cada vez que davam banhos tinham que higienizar a casa de banho.
Usavam mais ou menos 3 fraldas por dia. Se fosse necessário mais, mudava mais vezes, ainda que pudessem chamar a atenção.
Cada funcionário/auxiliar tinha a sua bacia para lavar os utentes. Depois de cada utente lavavam a bacia com água e sabão.
Comida era fraca. Mas estes utentes não se queixam. Uma vez recusou-se dar uma maçã que estava a fermentar. Chamaram a enfermeira e chefe de cozinha – constataram que havia mais sobremesas nessa situação misturadas.
Comida era sempre a mesma – farinha de pau ou açorda
A própria testemunha comia outra comida.
Diabéticos estavam sinalizados. Tinham alimentação que vinha preparada para os doentes.
Acha que os utentes podiam ter telemóvel e relógio.
O próprio chegou a fazer barbas a pedido do barbeiro porque estava a fazer outros serviços e não conseguia ir à enfermaria.
Soube de um caso em que raparam o cabelo ao utente e os familiares não gostaram mas o utente não falou nem se queixou pois não falava muito.
Quando o entrou a Drª BB o serviço piorou e pouco fez para mudar e melhorar.
Levavam os utentes ao jardim a passear antes e depois das funções da Drª BB.
Sabe que Centro ... foi criado pela Drª BB.
Havia muitas queixas sobre as roupas que desapareciam dos utentes – era a colega que se queixava muito que era a ‘roupeira’ sobre o serviço.

A instâncias de defesa:
Não sabia se havia contratos e que fraldas eram adquiridas pelos familiares

OO - é enfermeira – faz parte da empresa que recrutava os enfermeiros para as instituições; dando apoio, fazem a ‘ponte’ para a instituição com a qual contactam, nomeadamente os aqui arguidos. Conheceu a enfermaria do Lar A.... Não conheceu a utente CC. Não teve conhecimento da sua situação.

WWWWWW – exerceu funções Lar A... entre Novembro de 2014 e Julho de 2018. Exerceu funções na enfermaria. Cuidados de higiene eram prestados todos os dias no leito e só uma vez por semana no chuveiro; a cadeira do chuveiro estava em mau estado; o vestuário era perdido ou trocado e era uma das grandes queixas. Nunca notou que houvesse falta de alimentação na enfermaria. As queixas eram mais relacionadas com gostos sobre a comida. Não houve queixas de não ter havido, de todo, banho ou higiene. Fraldas eram sempre trocadas após cuidados higiene e antes almoço; depois do almoço, sempre que necessário; de tarde pelas 16h00 e depois para a noite, dependia das rotinas. Fraldas eram pagas pelos utentes. Por vezes demorava a mudar fralda porque havia muitos utentes. Usaram sempre a cadeira dos banhos mesmo em mau estado. Diabéticos tinham reforço com iogurte que era fornecido pela cozinha. Por vezes utentes precisavam de suplementos que eram fornecidos pelos familiares e por indicação médica. Camas tinham resguardo trocado regularmente. Se houve situação com falta de auxiliares e utentes ficaram sem tomar banho ? - não sabe precisar durante quanto tempo. Recorda que tentaram gerir os banhos perante tal falta. Falavam com Dr. VVVVVV a reportarem os problemas quotidianos, como a falta de material.

GGG – foi auxiliar de enfermaria no lar entre 1985 e 2016 quando foi despedido; fez a formação quando entrou ao serviço na própria enfermaria. Quando entrou, tudo funcionava muito bem e a alimentação era boa. A enfermaria que era responsável tinha todos os cuidados. Com os anos as condições foram-se degradando – quando entrou a Drª BB. Faltava material para trabalho como seja material de higiene. De manhã com a higiene, de tarde e à noite – eram 3 fraldas. Se utentes estavam sujos, havia colegas que mudavam a fralda, outros não mudavam. Não tem conhecimento de limitações do número de fraldas. Diariamente faziam a higiene. E depois faziam a higiene/banhos em determinados quartos. Eram 2 auxiliares para 21 doentes. Eram 63 utentes na enfermagem. Lavavam apenas a bacia com sabão e água e avançavam para outro doente. Havia vária queixas. Depois de tomar o pequeno almoço iam para cadeiras de rodas ou cadeiras ou sofás e por vezes ficavam lá sentados todo o dia, até com faixas para não se levantarem e não caírem. Mesmo doentes com úlceras de pressão. Comidas ‘moles’ eram as que eram dadas com mais frequência, tipo papas. Mas havia doentes que comiam comida normal. Pequeno almoço era racionado, se quisessem mais não podia ser dado. Havia baratas e ratos na copa da enfermaria. De vez e quando aparecia uma equipa para tentar resolver mas o problema continuava. Quando saiu do Lar as camas e colchões estavam bastante degradados. Antes da Drª BB os doentes tinham mais liberdade e até iam passear. Depois da Drª BB isso acabou, nem se podia ir para a zona da quinta. Havia uma responsável para entreter os utentes que estava lá todos os dias, excepto o fim de semana; outros utentes viam televisão. Havia uma certa revolta, mas pessoas tinham medo de represálias. Drª BB era a directora da instituição. O Presidente da direcção afirmava que o que o Drª BB decidia ‘assinava por baixo’.

HHH – era ajudante técnica na enfermaria do Lar A... durante 8 anos e durante 11 anos exerceu funções ;tinha formação específica em geriatria; saiu do Lar desavinda com os responsável. Poderia cuidar de 10 a 12 utentes. Tinham plano de trabalho. Tanto podia ir cuidar dos acamados como semi-acamados. Trabalhava mais lentamente do que os colegas que só queriam despachar e ela entendia que tinha que cuidar com tempo e cuidado porque eram seres humanos. Houve fiscalizações da segurança social quanto ao número de pessoa nos quadros;mas ficava sempre tudo na mesma, nada era alterado. Que se lembre, teve 2 reuniões com os funcionários enfermaria, Drª BB e Presidente da direcção. Diziam que precisavam de mais pessoal. Ao fim de semana ainda trabalhavam mais do que ao fim de semana. Mas tanto para Drª BB, como para Presidente, era sempre ‘muita gente’ e nada se fazia. Drª BB era muito exigente. Não se recorda quem era o chefe dos auxiliares. A maior parte do pessoal que lá estava não tinha curso ou formação em geriatria. Aos fins de semana chegava a cuidar de 20 a 21 utentes porque havia menos pessoal. Tinham que conseguir fazer a higiene. Havia utentes com roupa deles e que lhes vestia. Havia utentes sem roupa e a testemunha usava a roupa disponível que entendia que estava em condições. Havia colegas que tinham o mesmo cuidado que a própria. Outros colegas vestiam o que viesse à mão e havia reclamações. Utentes que estavam no cadeirão, pelas 15h iam deitar-se. Os das cadeiras de rodas ficavam lá sentados e só depois do turno das 16h0 eram deitados e jantavam na cama. Os utentes das cadeiras sentavam-se a ali ficavam porque não havia tempo para os mudar. Copa não tinha condições de higiene, normalmente tinha baratas.De vez e quando vinha uma equipa de desinfestação. Também acompanhava utentes aos hospitais e muitas vezes o fez. Nunca os deixava. Não havia escala de serviço para os acompanhamentos. O chefe determinava quem acompanhava o utente. No tempo da testemunha nunca houve ninguém que fosse sozinho para ao hospital. Utentes contactavam com familiares. Normalmente também ligavam para telefone fixo para saberem como se encontravam. Com a Drª BB a situação piorou porque mandaram pessoal embora e já era pouco. Cada vez tinham mais trabalho. Mas como as coisas apareciam feitas, ‘ia-se andando’ e não havia queixas dos utentes. Havia colegas que tinham medo de falar. Quando via que as coisas não estavam bem, a própria falava, reportava ao chefe mas não era atendida. Escrevia sempre o que entendia num livro próprio. Não sabe se eram transmitidas as queixas a quem de direito.

ZZ – enfermeira; exerceu funções no Lar A... entre 2018 a 2020 quer na enfermaria, quer nos pisos. Recorda-se da utente CC porque quando regressou de férias ouviu da parte de familiares que tinha sido internada devido a uma ferida; nem esteve com a utente.

XXXXXX – a sua mãe, VVVVV foi utente Lar A... na enfermaria desde que foi admitida; já estava numa situação de dependente. Assinou o contrato de prestação de serviços. Tinha Alzheimer. Faleceu no Hospital, vítima de covid. Foi até o hospital que comunicou que tinha a mãe tinha sido internada, não o Lar. Veio então a falecer. Visitava a mãe todas as semanas das 14h às 18h, normalmente ao sábado ou domingo; por vezes levava a mãe para passar o fim de semana a casa. Muitas das vezes pelas 16h até já estava na cama. Em relação à alimentação pelo que via não tem queixas. Até porque ela estava bem nutrida. Quando deu entrada no hospital estava completamente desidratada e tem a impressão que estava a passar fome – foi a enfermeira que lhe disse. A higiene deixava a desejar. Alturas havia em que estava em condições, mas a maior parte das vezes não – chamava a atenção que tinham que cortar as unhas, o cabelo estava oleoso;a roupa suja; queixou-se muitas vezes também da roupa pessoal que ela não usava. Não percebeu se teve alguma úlcera de pressão. Quando estava na sala a mãe estava em cadeira de rodas na instituição. Devido à doença ela precisava de fisioterapia, precisava de andar. Pediu a uma assistente fisioterapia o que lhe foi negado porque havia muitos utentes com outros problemas e não era possível. Sugeriu levar fisioterapeuta ao lar o que foi negado porque não aceitavam terceiros estranhos na instituição. A mãe passou a fazer fisioterapia fora da instituição. A mãe chegou a ter mais do que uma infecção urinária. Consultas eram prestadas pelo médico do lar. Quando detetaram a infecção, disseram que iam fazer medicação e dias depois ainda não tinha sido dada ordem, pois a mãe estava ainda pior. Acabou por ter que ser a própria testemunha a ir comprar à farmácia.

Defesa
YYYYYY exerceu funções no Lar A... entre 2008 e 2022; saiu na sequência de um despedimento colectivo.
Entrou para sector da limpeza; foi pedido para dar apoio à cozinha; passou a chefiar a cozinha e a limpeza; deu apoio à limpeza da enfermaria. Preparava os carros de limpeza para as colegas, dava os mapas de trabalho, coordenava para que sectores se deviam dirigir; fazia os ajustes em função das faltas. Lar A... era um sítio limpo. As funcionárias cumpriam com as obrigações. Faziam regularmente limpezas mais gerais – ‘barrelas’. Havia baratas na cozinha. Tinham empresa de desparasitação que era chamada sempre que necessário. Era chamada sempre que necessário para além das vindas regulares. Alimentação era tratada por uma empresa; uma nutricionista fazia as ementas. A cozinha era um local limpo. As funcionárias comiam a mesma comida dos utentes; a única diferença era nos temperos. Infelizmente até ia muita comida para o lixo. No mais, era uma questão de gosto. A própria se não gostava, comia mais sopa ou um pão. Mas havia carinho na confecção da comida para os idosos. Tinham inspecções em termos de higiene e manutenção e mandavam o relatório para a direcção com as falhas. Enquanto encarregada, se precisasse de alguma coisa fazia pedidos e pesquisas com indicações de orçamentos e nunca a direcção recusou comprar nada. Preocupava-se em não haver falta de pessoal para a limpeza da enfermaria. Para a equipa a limpeza da enfermaria era fundamental haver sempre disponibilidade. Das 8h às 10h já há utentes com higiene feita e nessa altura era feita a higiene das casas de banho. Todas as casas de banho eram limpas pelo menos 3 vezes por dia.Há um cheiro mais característico de pessoas acamadas, com fraldas e com escaras. O cheiro que fosse sentido na enfermaria não era por falta de higienização. Sobre as roupas dos utentes, havia uma pessoa responsável que era a ‘roupeira’ e que tratava de levar e trazer a roupa da lavandaria; havia também utentes que não tinham roupa e era usada a roupa que o lar tinha. Drª GG era a directora técnica da área da enfermaria. Não se tratavam mal os idosos. As funcionárias gostavam e estavam habituadas a lidar com os utentes. Na altura do covid as funcionárias eram a família dos utentes. Nunca recebeu qualquer instrução pelo presidente da direcção ou a directora de serviços deu indicações para não tratar bem alguém; não comprar algum material; marginalizar alguém. Lar A... tinha 3 médicos; depois faleceu um, até que ficou só o Dr. MM. Havia enfermeiros suficientes; eram dispensados cuidados de fisioterapia; recebiam a medicação. Havia 2 funcionárias permanentes para passar o dia e fazer actividades com os utentes como seja pintar, cantar. Em dias de festas,os utentes de enfermaria também iam para as festas. Havia missas regulares e eram levados os que queriam ir e estavam por exemplo em cadeiras de rodas. No dia do idoso também havia missa e uma festa. O lar tem um coro de utentes. Coordenou também na enfermaria a limpeza, incluindo quartos. As limpezas e tarefas como reposição do papel higiénico era sempre registado em folhas próprias.

Nunca percepcionou risco de vida ou maus tratos aos idosos.
Em 2008 já lá estava a ITAU.
Quando era necessária comida especial para sondas era tudo feito conforme solicitado pelas enfermeiras.
As baratas surgiam mais quando começava o Verão.
Nunca se apercebeu de nenhum enfermeiro a maltratar algum utente.
Já viu fezes nas paredes de pessoas com algumas patologias que faziam as necessidades no chão e com as mãos atiravam fezes para as paredes.
Chefiou a limpeza na enfermaria num período de tempo curto que não sabe precisar mas terá sido cerca de 1 ano mas não sabe em que ano. Camas não eram novas. Quando as grades não davam segurança ao utente porque eles as abanavam havia que pedir mudança à manutenção. Chegou a ver doentes amarrados o que na altura a incomodava mas agora percebe as razões porque a mãe está nessa situação. Nunca se apercebeu de doentes que ficaram por higienizar. Nunca viu poltronas com espuma à mostra, tentavam colocar resguardos. Pediram substituiçao das cadeiras dos banhos.

ZZZZZZ – fisioterapeuta – Setembro de 2007 a Setembro de 2022 exerceu funções no Lar A.... Havia solicitação por parte do médico ou enfermeiros – faziam avaliação e o utente iniciava a fisioterapia, o que funcionava de segunda a sexta; de manhã e de tarde. O ano de 2007 coincidiu com renovação da ala de fisioterapia. Terminou 1 mês antes no ano de 2007 o estágio e estavam lá 2 fisioterapeutas que depois foram embora. Foi então convidada para ir para o serviço com um colega. A renovação traduziu-se em novas instalações – 3 cabines individuais novas, com aparelhos novos. Havia utentes com prioridades como fracturas e avc.Todos os utentes do lar A... tinham direito a 40 sessões de tratamento por ano que por vezes eram ultrapassadas.
D. VVVVV tinha demência e requeria muita atenção da testemunha. Houve solicitação de fisioterapia. A testemunha estava sobrecarregada de trabalho e teria que ficar em lista de espera. Recebeu contacto da D. BB a referir queixa da parte da D. VVVVV e para conseguir ‘encaixar’ a utente na fisioterapia. Reorganizou a agenda conforme determinação superior. Falou com a filha que lhe disse que tinha já tratado exteriormente de fisioterapia para mãe.
Se um utente se queixasse directamente a ela, encaminhava para o médico. O médico é que dava as indicações de fisioterapia.
Foi a Drª BB que recebeu e aceitou as indicações e regras estabelecidas pela testemunha quando para lá foi trabalhar.

Conheceu e está recordada da utente ZZZZZ, sendo que na altura esteve de licença de maternidade- ninguém esteve a substitui-la. Entrou de baixa em Agosto de 2015; seguiu-se a licença de maternidade em Setembro e depois entrou de férias; entrou/voltou ao serviço em Fevereiro de 2016 e não tem conhecimento de que ninguém a tenha substituído nos serviços de fisioterapia.

AAAAAAA – farmacêutico - Farmácia D... - fornecedor Lar A... desde 1992; ainda são fornecedores actualmente – de medicamentos e consumíveis. Até 2018 forneciam a pedido e por utente; deslocaram-se várias vezes por dia;pagamentos eram fixados a 60 dias. A partir de 2018 passaram a ser fornecimentos a PIM – preparação individualizada de medicamentos; fazem a preparação dos medicamentos para cada pessoa/utente do que toma regularmente e em sos; fazem a entrega semanalmente na 6ª ou excepcionalmente no sábado. Entregas são individualizadas e não há como confundir a medicação de cada doente. Quando começaram este sistema eram pioneiros pois só havia 2 farmácias a fazê-lo. Construíram até uns carrinhos com saídas de medicamentos para cada cama/doente com legenda específica devidamente individualizado e por utente.

BBBBBBB – encarregado geral de manutenção e armazém entre 2019 e 2022, altura em que veio embora, na sequência do despedimento colectivo.
Tratava de tudo o que era armazenamento da instituição – desde fraldas, resguardos, material de manutenção, eletricista, construção, etc. Estava tudo organizado por sectores e cada sector tinha o seu responsável. Quando havia necessidade de algum bem ou material para a enfermaria era-lhe pedido e nunca houve nenhuma restrição em algum pedido de bens; sempre assegurou o bom aprovisionamento de tal material e bem assim as reparações, por exemplo de camas. Nunca houve restrições para se arranjar menos material ou serem feitas menos reparações. Nunca teve nenhum problema. Despachava directamente com o presidente da direcção. Colchões eram azuis, equiparados às instituições hospitalares. Nunca houve falta de material. Não tem conhecimento de os familiares terem que comprar colchões anti-escaras.


CCCCCCC – médica; pais eram sócios do lar A...; trabalha no inem; é internista de profissão; faz emergência pré-hospitalar. Na altura do covid não havia acompanhamento de familiares ao doente transportado ao hospital; familiares que não estão presentes no lar quando se decide do envio de doentes para hospital. Frequentava o lar A... porquanto esteve lá uma senhora que trabalhou em casa dos pais e ajudou a criar a testemunha – desde 2008 até 2021 quando faleceu. Chegou a ver esporadicamente doentes com contenção, acamados, para não comprometerem por exemplo sondas e medicação; também para evitar riscos de cair de se magoarem, de ter que se repetir tratamento por vezes doloroso. Nunca visitou utentes totalmente dependentes. Mas é frequente doentes dependentes terem que ser contidos para não haver danos a si próprios. Por vezes enquanto se ajusta a medicação para serem acalmados são também contidos. Escaras são uma fragilidade cutânea relacionada com a idade avançada e por vezes magreza, internamento e aleitamento prolongado. Depois de surgirem é difícil conter e fazer um tratamento definitivo da escara. Muitas vezes até doentes fazem escaras nos hospitais e depois seguem para lares ainda com escaras. Tempos de mudança de posição – pelo menos de 6 e 6 horas. Mas depende do tipo de escaras.

DDDDDDD – psicólogo e consultor; exerceu funções de direcção no lar A... que terminou em 2021; é filho de EEE – art.º 74.º,n.º 9 da acusação
Era do conhecimento da testemunha e com a aprovação ter a sua mãe amarrada pelos pulsos. Foi até a conselho do hospital 3.... Não considerava que a mãe estivesse a ser maltratada. Teve um surto psicótico. No segundo surto psicótico teve que ir para o Hospital 1.... Teve sempre que ser contida.
Alguma vez a direcção do lar teve intenção de não fornecer todos os meios para o funcionamento normal.
Visitava a mãe; nunca sentiu que mãe estivesse a ser descurada. Por vezes considera que os cuidadores tinham que ser mais acutilantes e mais caústicos para que ela obedecesse e pudesse até por exemplo comer. Não eram de todo maus tratos.
Em algumas situações chegou a haver reacção e processos disciplinares. Ou seja,sempre que havia alguma situação menos correcta a resposta era rápida.
A nível de cantinas e cozinhas foram sendo feitos investimentos que totalizaram meio milhão de euros.
Do que se apercebia via os cuidados e apreço para com os utentes.
Teve conhecimento da visita de uma equipa multidisciplinar e que visitaram a mãe, com descrição para além contenção dos membros de outra condição em termos de higiene – por exemplo urina nas fraldas e unhas grandes. Mas nunca se apercebeu de tais situações. Nem nunca lhe foi reportado algum problema de pele como escaras que tivessem surgido à mãe.

EEEEEEE – directora técnica em residência sénior;foi funcionária no lar A... de 2005 a 2022
Também exerceu funções como directora técnica no lar A... – era responsável pelo bom funcionamento da unidade em questão – centro de dia. Também era animadora sócio-cultural em todo o lar incluindo os residentes e dependentes.
Era elaborado um projecto de intervenção em função das necessidades e dificuldades dos utentes, adequado a cada espaço; era elaborado um plano de actividades apresentado à direcção para aprovação e aplicação. Havia actividades temáticas; dias festivos e actividades de desenvolvimento. Residentes dependentes tinham necessidades mais específicas. Fazia planos e tinha intervenção na execução de cada plano. Coordenava tudo com a ajudante de ocupação. As actividades eram diárias – sempre uma actividade de manhã e uma de tarde. De manhã eram exercícios de mobilidade ou expressão corporal. Depois havia música e expressões dramáticas, jogos de improviso para trabalhar a parte cognitiva. Havia também expressão plástica e expunham os trabalhos realizados pelos utentes. Pessoas não estava nuns cadeirões sem atenção todo o dia. De manhã as actividades ocorriam a partir das 10h30/11h e da parte da tarde, das 14h até hora lanche – 15h30/16h. Depois do lanche juntavam utentes que se deitavam mais tarde para fazerem alguns jogos até se deitarem. Actividades coincidiam com as visitas dos familiares.

FFFFFFF – reformado; foi funcionário do Lar A...; responsável pelo departamento pessoal recursos humanos de Agosto de 1977 a Junho de 2022
Fazia processamento salarial; admissão; rescisões contratos; elaboração de contratos
Verificava se eram cumpridos os ratios de pessoal – elaborava mensalmente os mapas de pessoal com acompanhamento jurídico dos dados e com a direcção que fazia questão que fossem cumpridos os ratios minimamente exigidos ou mesmo acima. Ratio de pessoal era discutida com frequência com segurança social e com a intervenção a testemunha em contactos frequentes com a segurança social ante as várias exigências desta entidade.
Faziam sempre face a baixas ou rescisões e por isso tinham sempre excedente de 2, 3 o mais funcionários para fazerem tal.
Segurança social inspecionava regularmente o lar a tal propósito.
Áreas de funcionários do lar tinham directores técnicos respectivos.
Tratava com os directores os ratios de pessoal de cada departamento ou área.
Se teve alguma vez conhecimento de relatórios da segurança social relacionados com falta de médicos/enfermeiros (?)-Tinham no mínimo 9 enfermeiros no lar; Ajudantes acção directa – no mínimo 30 a 32

GGGGGGG – cuidadora de idosos,exerceu funções no lar A... de 1998 até Agosto deste ano; inicialmente, através de uma empresa e depois foi contratada directamente pelos familiares dos utentes do lar. Nos primeiros tempos cuidava e fazia companhia durante o dia com a uma só utente. Mas como a testemunha havia mais pessoas contratadas o lar – quando para lá foi era cerca de 15 e chegaram a ser mais. Também poderia ocorrer na enfermaria tal acompnhamento.
Acompanhou doentes nos quartos mas não nenhum dos constantes que estavam na enfermaria em 2019.

A arguida BB (que optou por prestar declarações a final da produção de prova) referiu em suma que:
Era directora de serviços desde 2003 a 2021 – função essencialmente administrativa de acessória e apoio à Direcção. Não tinha contacto nem na admissão nem na gestão técnica de qualquer valência; só foi directora técnica de todas as valências apenas até 2011 por imposição da segurança social – centro dia, erpi, infância e apoio domiciliário. A partir dai apenas fazia a ligação entre direcção e directores técnicos; não era sua função determinar nada como por exemplo o limite de mudança de fraldas; se doentes estavam ou não contidos; confiavam nos profissionais de saúde que tinham tais funções. Fazia propostas e participava na elaboração de regulamentos e estatutos; intervinha na ligação ao gabinete jurídico e à tutela. Foi elencado tudo em julgamento de forma muita deturpada; é natural que a instituição tinha falhas e foram visíveis neste tribunal; mas havia cuidado para resolver essas falhas.
Contudo, não podia ser tudo cuidado da mesma forma e ao mesmo tempo – exemplo das camas que admite que estavam velhas – havia plano de recuperação e substituição; área de residentes dependentes foi toda renovada ainda na direcção da própria.
Idosos tinham muitas actividades; analisou os planos que eram implementados
Tudo o que foi dito, foi por pessoas com questões e inimizades com a instituição e por isso fizeram a descrição com as queixas que tinham
Poderia atender pessoas e funcionários em representação da direcção quando não havia outra disponibilidade e transmitia à direcção o que lhe era reportado. Estava em constante trabalho com a direcção e estava presente nas reuniões da direcção: O lar era uma casa de muto investimento; manutenção constante, reparações constantes.
Quando dizem que era aquela senhora que mandava referindo-se à própria – não funcionava assim; não tinha poder sequer de decisão; fazia quando muito o recrutamento e selecção das pessoas que apresentava à direcção para ser decidido; participava em processos disciplinares que a direcção instaurava; limitava-se a cumprir ordens.
Quando eram admitidos doentes eram apenas apresentados à direcção – uma mera formalidade.
Visitava os departamentos da casa para perceber se era reportada alguma coisa; mas não lhe competia nada mais do que isso.
Acompanhou a busca domiciliária porque a directora técnica não estava presente e estava de férias; não esteve presente em toda a visita porque englobava várias equipas em vários sectores; apercebeu-se em tal visita do lavatório que gerou uma infiltração e que até reportou para ser logo depois foi reparado;
Já não mantém relação com o arguido; apenas relação de amizade
Continua desempregada
Em esclarecimentos:
Não está recordada que tenha sido necessário fazer higienização e limpeza para continuar a busca por causa dos maus cheiros
Remodelação geral começou no final de 2019 e terminou em 2020 e abrangeu toda área – substituição de colchões; paredes todas retocadas e pintadas; novos equipamentos para banhos, oxímetros e material médico
Lar A... era permanentemente fiscalizado e escrutinado – conclusões dos relatórios eram debatidos na direcção que aperfeiçoavam o que era possível;
Soube dos vários pareceres e relatórios entre 2016 a 2019
Ratio de profissionais, não tanto em quantidade, mas de categorias e houve reclassificação de muitas pessoas
Chegaram a ultrapassar até os ratios de pessoal
Quando o director do serviço de pessoal alertava para alguma falha, aí sim a própria tratava de contratar mais pessoal.
No dia da busca – o mapa de pessoal tinha ratio exigida legalmente; não sabe qual a taxa concreta de absentismo nessa dia
Regulamentos internos da instituição foram alterados várias vezes em função das necessidades.
Assistia nas reuniões da direcção mas não participava nas decisões/deliberações; apontava o que era elencado como problema a resolver.
Direcção era composta por 7 elementos que estavam a par do que se passava no Lar; havia reunião de direcção; debatiam-se as questões e no dia a dia quem geria o quotidiano era o presidente e mais dois elementos – vice-presidente e Dr DDDDDDD estavam mais presentes e tratavam do expediente do dia a dia.
Havia investimento constante mas casa era muito grande; era uma casa sempre em obras; a direcção gostava de melhorar; havia preocupação fundamental com o bem estar das pessoas; havia festas, passeios; actividades, missas
Nunca houve restrição para nenhum utente ou para acompanhamento por família ou por dama de companhia.
Fraldas eram adquiridas e pagas pelo utente ou familiares; logo não havia nenhuma limitação de uso.
A própria elaborou regulamento em que ficou escrito que as fraldas tinham que ser no mínimo trocadas 3 x dia e sempre que fosse necessário.
Últimos colchões adquiridos e de que sabe e se lembra eram, como habitual, do género hospitalares tripartidos e de espuma, iguais a unidades de saúde e hospitalares; instituição tinha alguns colchões anti-escaras mas por norma eram adquiridos por familiares.
Medicamentos eram adquiridos pelos utentes e pelos familiares; direcção teve iniciativa de avançar para o sistema unidose para tornar mais segura a distribuição dos medicamentos e num sistema inovador que até mais nenhum lar tinha. A farmácia D... estava presente todos os dias na instituição.
Horários das visitas já existiam quando chegou à instituição; mas havia uma flexibilidade muito grande para familiares que não podiam estar com os idosos – bastava que fizessem pedido à direcção.
Relatórios de contas do Lar A... são públicos e era uma casa com disponibilidade económica. Esta direcção deixou cerca de 7 milhões de euros na instituição: Nunca sentiu nem contribuiu para nenhuma política de poupança antes pelo contrário
Elevadores que foram substituídos até porque eram antigos; substituir elevadores numa casa cheia de movimento era complicado.

Em abstracto e genericamente, tal como faz notar Germano Marques da Silva, a livre valoração da prova não deve «ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão» (Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, 2008, p. 151).
E tal como também salienta Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, p. 140), há que assumir que na convicção desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis, como seja a credibilidade que se concede a um certo meio de prova.
Neste contexto, a actividade do juiz, como julgador, não é naturalmente a de mero espectador de depoimentos, antes devendo fazer incidir sobre os mesmos um olhar crítico em que se atenda à multiplicidade de factores com que se defronte em julgamento.

Mas antes ainda dessa apreciação mais crítica ou incisiva importa desde já tecer algumas considerações sobre os depoimentos das testemunhas/profissionais de saúde – mais precisamente médicos e enfermeiros, e em especial estes últimos, ante a questão que foi suscitada e a preocupação da defesa em assegurar que todos os enfermeiros inquiridos prestaram o depoimento em razão das funções que exercem ou exerceram e que lhes permitiu obter o conhecimento dos factos sobre os quais depuseram em audiência- específica questão que afinal de cada depoimento foi sendo sempre colocada e respondida afirmativamente. Como acima se alcança reportamo-nos aos depoimentos dos médicos: KK, LL, MM e NN; e, com maior incidência, aos depoimentos dos enfermeiros OO, FF, PP, QQ, RR, SS, TT. UU, VV, WW, XX, YY e ZZ.
Pois bem, é consabido que estes profissionais estão obrigados ao dever do sigilo profissional sobre o que tomem conhecimento no exercício da sua profissão (tal como previsto no art.º 106º do estatuto da Ordem dos Enfermeiros, aprovado pelo DL 104/98, de 21.04 e tal como previsto no art.º 30º do regulamento de deontologia médica 707/2016, de 21.07 e no art.º 13º do Estatuo da Ordem dos médicos aprovado pelo DL 282/77 de 5.07.1977) estando em causa a reserva de vida intimidade da vida privada (dos doentes ou pacientes ou mais precisamente, no caso sub-judice, os residentes do Lar A...) e confidencialidade das informações ou dados pessoais da condição e estado de saúde dos cidadãos tal como decorre desde logo da Constituição da República Portuguesa – vide art.º 26.º
Foram aquelas testemunhas arroladas e até já antes inquiridas em fase de inquérito por serem determinantes para a descoberta da verdade material e sem perder de vista a natureza e gravidade dos crimes por que vieram a ser acusados e pronunciados os aqui arguidos. E tal a sua imprescindibilidade que em complemento ou até previamente foram juntas inúmeras informações médicas, registos/informações da condição física/fisiológica, descrições em boletins clínicos dos doentes/residentes do Lar A... e ofendidos nos autos. Tal ‘exposição’ de tais informações pessoais foi considerada relevante e imprescindível no apuramento em inquérito dos factos/indícios e, aqui em audiência, no sustento dos factos e circunstâncias instrumentais que preenchem a previsão em abstrata do/s crime/s de maus tratos em apreciação e resultou, para além da iniciativa do Ministério Público enquanto investigador, da própria iniciativa dos visados ou seus familiares, acompanhando por vezes as denúncias, queixas e informações suplementares que trouxeram aos autos. Acresce que e atrevemo-nos a dizer, curiosamente, nenhum dos profissionais de saúde invocou qualquer entrave ou se recusou a prestar depoimento quando inquiridos em audiência, mesmo sendo claros, repte-se, em referir que sabiam dos factos sobre os quais depuseram no exercício das suas funções. Todos sendo naturalmente conhecedores das normas deontológicas que regem o desempenho das suas funções – de médico e enfermeiro – e nunca nenhuma destas testemunhas revelou qualquer ‘cautela’ ou receio ou demonstrou intenção de (legitimamente ) se escusar a depor - no caso com o apoio do preceituado no art.º 135.º CPP. Assim como entendeu este Tribunal que não estava em causa a necessidade de uma expressa advertência a tal propósito. Repetimos, o âmbito e abrangência do segredo profissional médico e dos enfermeiros é do conhecimento de cada um dos profissionais indicados e inquiridos seja em fase de inquérito, seja em fase de julgamento. Salientamos até a ‘preocupação’ da Ordem dos Enfermeiros que antes do julgamento/produção de prova veio espontaneamente aos autos ‘avisar’ o Tribunal do ‘risco’ ou ‘perigo’ de violação do Código Deontológico – vide requerimento com a refª citius 34628035 a que se seguiu o despacho constante dos autos com a refª citius 445083373. Sendo que tais profissionais podiam e deviam solicitar aconselhamento ético e deontológico, caso entendessem estar a ser confrontados com uma situação de quebra de sigilo, tendo optado livre e espontaneamente por prestar os depoimentos. Em todo o caso, atentando nos concretos depoimentos prestados, ainda que exista um nexo de causalidade entre a actividade que exercem e os factos sobre os quais depuseram e que passaram a conhecer por isso mesmo, não foram as testemunhas inquiridas sobre (outros) factos (verdadeiramente) sigilosos, antes e apenas sobre factos e circunstâncias do conhecimento e visíveis ou disponíveis a outras testemunhas. Muitas das vezes estavam em causa até factos instrumentais em relação aos factos descritos na acusação publica/pronúncia, sobre os quais foram inquiridos. Em suma, os enfermeiros e médicos inquiridos limitaram-se a confirmar alguns registos/documentos (da sua autoria) com os quais foram confrontados; a descrever com toda a objectividade e rigor, por vezes acompanhado de uma explicação mais técnica ou científica das situações/factos/circunstâncias disponíveis, visíveis e que até foram constatadas por outras testemunhas que diremos cidadãos comuns. Mais ainda e com bastante mais relevo para o objecto destes autos, sobretudo os senhores enfermeiros, descreveram o funcionamento do Lar A..., as funções que lá exerciam, as dinâmicas que constaram a propósito das lides e quotidiano dos residentes, em especial na enfermaria, as falhas que constaram, as preocupações que até revelaram a propósito de tais falhas – de pessoal, de material, dos cuidados que prestaram e ficaram por prestar aos utentes/doentes etc. E ainda que possa dizer-se que algumas destas testemunhas se referiram a determinados doentes/residentes em concreto - em especial da senhora ZZZZZ e da senhora CC – como foi o caso das testemunhas PP, QQ, RR, SS, WW, ZZ, tais senhoras enfermeiras fizeram-no no contexto e com as observações acima expendidas; sendo ainda mais vagos e genéricos os depoimentos dos médicos KK, LL e NN ao confirmarem determinados documentos/relatórios com os quais foram confrontados ou referirem até que estavam vagamente recordados das pessoas/doentes em questão.
Do que se conclui nenhum entrave processual existe que eventual e consequentemente inquine de uma qualquer nulidade a valoração dos depoimentos em causa.

Ainda numa apreciação que diremos mais global, não deixamos de considerar pertinente consignar algumas observações sobre os ‘conjuntos’ de depoimentos que claramente se foram ‘formando’ no decurso da audiência, contudo humanamente compreensível e diremos até quase que previsível. Ou seja, são mais emotivos os depoimentos das testemunhas familiares dos residentes do Lar A..., pois que os laços de sangue naturalmente enfatizam tudo quanto de negativo foi pelos mesmos percepcionado sempre que visitavam os seus entes queridos – o que de todo quer dizer que tenham efabulado descrições, factos ou pormenores que acima vem descritos. De uma outra perspectiva e em relação aos actuais ou antigos funcionários ou prestadores de serviços do Lar A..., também o Colectivo se apercebeu de uma certa divisão entre as testemunhas que estavam por alguma forma desavindas com a instituição e os seus responsáveis em particular – como sejam FFF, GGG, HHH, EEE - e as demais testemunhas que adiantamos, tentaram evidenciar o empenho de todos quanto exercem funções do Lar A... num quadro de um funcionamento e condições que descreveram e classificaram como boas, muito boas ou de excelência- reportamo-nos às testemunhas FFFFFFF, EEEEEEE, YYYYYY, ZZZZZZ, AAAAAAA, BBBBBBB e DDDDDDD.
Também a final a arguida BB optou por prestar declarações tentando eximir as suas responsabilidades com as justificações que acima se sumariaram. Contudo desde já adiantamos ter sido frontalmente contrariada em especial pelos depoimentos das testemunhas AAA, FF, BBB, CCC, PP, DDD, EEE, GG, UU, XX, FFF, GGG e HHH.
Tentando apreciar o que vinha descrito ao longo da acusação pública e subsequente decisão instrutória de pronúncia, com a indicação do sustento probatório que firmou a convicção do Colectivo no sentido acima proposto (ressalvando que não pode pretender-se a excessivamente minuciosa demonstração ponto por ponto, frase por frase, artigo por artigo do que resultou ou não demonstrado em sede de produção de prova em audiência de discussão e julgamento) formou-se a convicção do Tribunal nos termos que infra passamos a expender.
Sobre a natureza da instituição aqui arguida, modo de funcionamento, serviços que presta, estruturação do pessoal e funções atribuídas/desempenhada, ateve-se este Colectivo a suportes documentais e ao seu conteúdo aí objectivamente plasmado, tendo sido essenciais e relevantes o teor dos documentos de fls. 451 e ss; 720 e ss, 1645 e ss; 1630 e ss (com reflexo no sustento e demonstração do descrito supra sob os art.º 1.º a 7º dos factos provados)
Sendo diversa a questão a tratar oportunamente em sede de enquadramento jurídico e aplicação do direito aos factos, as funções dos aqui arguidos pessoas singulares (AA e BB) e a forma do cometimento dos crimes que lhes foram imputados – o que decorre essencialmente do descrito sob os art.º 14.º a 16º; 22º a 27º, 32.º, 35º, 36º, 47.º, 48º e 49º e ainda 72º a 91, tudo, dos factos tidos por demonstrados em julgamento. Ainda que tal nos remeta de novo para a defesa e declarações a tal propósito prestadas pela arguida que supra tivemos oportunidade de referir.
A propósito do número de pessoal médico de enfermagem e do quadro de funcionários/auxiliares referido e dado por assente supra no essencial sob os art.º 8º a 11 e ainda mais adiante, 130.º e 131.º, tal resultou do conteúdo plasmado nos relatórios da Ordem dos Enfermeiros – fls. 1407 e ss; mapas de quadros de pessoal - de fls. 1342 e ss e 1054 e ss; tudo com a reforço dos depoimentos das testemunhas em especial PP, TT, VV e do médico Dr. MM. O que tudo redunda no que vem descrito sob o art.º 11º dos factos provados com o reforço do teor dos documentos de fls. 141 e de fls. 114 e ss dos autos também acima elencados.
Sobre a condição médica e sintomatologia apresentada por alguns residentes dependentes nos termos descritos em 18º, o Tribunal ateve-se (diremos que necessariamente e sem questionar o que aí vem objectiva, rigorosa, técnica e cientificamente vertido) a documentos e registos/fichas clínicas de fls 235 (KKK), 778 e 950 (LLL); 1113 (MMM); 1226 (NNN); 1298 (OOO); 1677 (PPP). E se dúvidas ainda se suscitassem, para além destes concretos doentes identificados na acusação e pronúncia, reforçam a nossa convicção outros episódios, situações e doentes com documentação junta aos autos, como sejam SSS – fls. 1276; NNNNN – fls. 1271 e WWWWW – fls. 1235. Sendo que se dirá não se ter encontrado prova para as situações que vinham também descritas quanto ao residente/doente KKK a propósito do dia 16 de Outubro de 2016, nem de LLL no dia 24 de Dezembro de 2018.
Quanto à degradação do espaço do Lar A..., do estado em que se encontrava o diverso equipamento, os défices de material de tratamento, as condições de aplicação e fornecimento de medicação e suplementos alimentares – tudo conforme descrito ao longo dos art.º 17º e ss supra dos factos tidos por demonstrados - resultou tal da descrição ínsita no relatório da segurança social de fls. 141 e ss com o reforço que evidenciou todo o sobredito acervo de factos e circunstâncias do que vem plasmado nos relatórios de fls. 1139 a 1147; de fls. 1407 a 1415 e de fls. 1708 a 1740. Todos estes relatórios, em resultados de intervenções e inspeções a nível de enfermagem (feito por enfermeiros) e controlo das instalações, sobretudo, estes, mais recentes, de 22.11.2019 e 18.07.2019 remetem-nos para uma descrição bem elucidativa do estado e condição da instituição e como tal se reflectia no funcionamento e serviços prestados aos seus residentes. Veja-se ainda em reforço desta nossa convicção o teor dos documentos/imagens de fls. 232, 233, 1616-1624; para além do estado até de alguns dos objectos como o retratam fls. 1071, 1072 e 1073 vº.Se dúvidas ainda subsistissem, foram inquiridas testemunhas intervenientes em tais acções/visitas inspectivas. Como sejam EEE e BBB que revelaram estar recordados no essencial da sua intervenção e que de forma escorreita, objectiva e circunstanciada, sem qualquer comprometimento depuseram, indo ao encontro das questões que lhe foram sendo colocadas, confirmando convictamente o que em consequência ficou dado por demonstrado nos articulados que acima delimitamos Relevante foi também em especial o depoimento da testemunha PP na consciencialização das carências e problemas em causa e no reporte dado à instituição e seus responsáveis (vide teor de fls. 1785). Sendo que em nada contende nem infirma esta nossa convicção a circunstância de algumas deficiências terem sido corrigidas parcialmente como resulta do teor de fls. 1425 e bem assim mais recentemente do relatório da Segurança Social que o Lar A... junto com a refª citius 34753984
Porquanto foi tema abordado de forma pormenorizada e diremos que quase que exaustivamente dedicamos então agora nesta sede alguma atenção à problemática das fraldas (até porque são consabidas as consequências do seu uso inadequado, mudas e timings ou cadências e das mesmas, em especial em pessoas idosas e com fragilidades físicas e condição de saúde debilitadas – como in concretu se veio a debater em audiência) – com a consequente descrição vertida sob a alíena i. supra. Assim e segundo convicção do Colectivo não ficou demonstrada a integralidade do que vinha alegado a tal propósito directa e reflexamente ao longo do articulado na acusação pública/pronúncia, porquanto a tal propósito tomaram direcções diversas os depoimentos prestados. Senão vejamos as divergências e referências das seguintes testemunhas: UU deu a entender não haver problemas com tal falta de fraldas; VV só muito brevemente fez referência ao registo de mudas de fraldas se ultrapassado certo limite, sem lograr concretizar ou melhor explicar tal situação; EEE referiu inexistir directiva para limitar o número de fraldas utilizados por doente; HHHHHHH referiu que os doentes eram mudados 3 vezes durante a noite; IIIIIII fez referência à muda de fraldas sempre que se revelasse necessário; II referiu desconhecer existência de limites a mudas/número de fraldas utilizadas; WW a propósito de uma residente em concreto (a Srª D. CC) até confirmou que se encontrava ainda que naquele momento, com a fralda limpa.
Sobre a privacidade e desrespeito da dignidade dos doentes/residentes do lar diremos que foi algo parca a prova, ficando aquém do descrito nos art.º 51.º e ss da acusação pública/pronúncia. Resultou apenas demonstrado com clareza e certeza que as roupas eram trocadas aos doentes, vestidos com roupas de outros ou por vezes mais velhas e usadas - como o relataram as visitas e familiares dos doentes, como o referiram também FFF e FF; sendo que no mais nos restou ater ao descrito objectivamente no relatório/resultado da busca efectuada a 9.07.2019, mormente com o reflexo no descrito em 43º e 45º dos factos provados.
Quanto à ênfase colocada no papel dos arguidos/pessoas singulares, no conhecimento que tiverem das dinâmicas no Lar em especial no departamento denominado de enfermaria, em relação aos idosos/residentes/dependentes e porquanto sobre tal até se debruçou a arguida BB, importa frisar que ao longo das várias sessões de produção de prova ficou o Tribunal com a clara convicção de que eram os arguidos os responsáveis e a cara visível’ do Lar-ERPI; era aos mesmos que eram reportados os problemas, feitas as queixas, pedidas reuniões – tudo conforme vem descrito e dado por demonstrado nos art.º 14º a 16º; 22º a 27º; 32º; 35º e 36º; 47º; 48.º e 49:ª e com as necessárias conclusões em sede de imputação subjectiva dos factos aos mesmos descrita ao longo dos art.º 72º a 91º. Sustentamos esta nossa motivação na valoração positiva dos depoimentos das testemunhas que acima já tivemos oportunidade e elencar aquando da referência às declarações da arguida BB e que agora aqui trazemos de novo à colação para enfatizar, repetindo que era invariavelmente aos aqui arguidos e em especial à arguida BB que eram reportados os problemas, feitas queixas, pedidas reuniões, solicitadas mudanças, sendo também os arguidos que receberem e trataram da contração de algumas dessas mesmas testemunhas.
Sobre as condições proporcionadas pelo Lar, o estado dos espaços ocupados e ao serviço dos residentes as condições em que os utentes se encontravam (para além dos registos médicos/fichas clínicas inicialmente elencadas), o aspecto e condições do material diverso utilizado, somos forçosamente remetidos para as reportagens fotografias juntas aos autos e que inicialmente tivemos oportunidade de elencar. E, nesta sede o Colectivo quase que ‘se remete ao silêncio’ na exposição dos motivos que fundamentam a indicação destas provas para formar a sua convicção pois que mais do que nunca as imagens (algumas, atrevemo-nos a dizer chocantes) ‘valem mais do que mil palavras’. Sendo ainda assim determinantes os depoimentos das testemunhas que foram intervenientes nas buscas/vistorias/inspecções realizadas que trouxeram relatos objectivos do que constaram, e mesmo que não recordados de tudo ou alguns pormenores, não deixaram de confirmar o expediente lavrado em conformidade e com que foram confrontados – reportamo-nos aos depoimentos das testemunhas AAA, EEE e BBB em relação aos quais não vislumbramos quaisquer motivos para duvidar da sua isenção, depondo todos em razão das funções que exercem/exerceram.
E quanto aos utentes/residentes a que individualmente a acusação/pronúncia se refere – art.º 13º, 52º, 53º, 62º, 63º, 69º, 70º, 71º dos factos dados por provados – não pode desde logo o Colectivo negar ou contrariar as evidências descritas na extensão de todos os registos/ficheiros clínicos respectivos. Numa perspectiva mais global, atendeu-se ainda ao relatório do INML, junto de fls 1079 e ss, tendo sido enviado posteriormente o registo em falta já em fase de julgamento, junto com a refª citius 35320957 Tivemos até já oportunidade de acima fazer uma alusão mais discriminadas a propósito do que vem referido no art.º 13 tido por assente. Mas também as fotos são elucidativas e a título de exemplo remetemos para as impressionantes fotos de fls 1665; fls 12 do apenso E; fls 233 e 235 do apenso A. E um dos visados/ofendidos – o Sr. BBBBBB - entretanto falecido prestou declarações lidas na sessão de julgamento de 14.11.2023, não se tendo vislumbrado motivos para não atender e valorar as mesmas, prestadas e redigidas de forma simples e escorreita, como tal convincentes e elucidativas no seu essencial. Idêntico raciocínio e conclusão se extrai, ‘mutatis, mutandis’ quanto à leitura das declarações da utente DDDDDD.
Já quando tentamos inquirir presencialmente uma ex-residente/utente do Lar A... deparamo-nos com algumas dificuldades porquanto a idade avançada da senhora não lhe permitiu trazer a julgamento um qualquer registo ou percepção do que possa ter presenciado, não revelando ter memória, sequer precisa de tal a propósito da forma como possa ter sido tratada ou em especial o seu marido falecido, outrora também utente do Lar A... que contudo justificou que então, de certo em melhores condições de saúde e de consciência e memória, tivesse apresentado a exposição/queixa de fls. 68 cuja assinatura reconheceu já de forma indubitável. Pelo que o teor de fls. 68 não deixa de ser atendido pelo Tribunal para reforçar ainda que de forma mais genérica a dinâmica do funcionamento ou mau funcionamento do Lar.
Para não sermos demasiado fastidiosos mas porque importa referir que foram vistos e analisados tais registos/fichas/relatórios clínicos/médicos, agora numa vertente que diremos pela negativa: na realidade e desde logo ante a falta de realização de qualquer autópsia aos residentes/utentes do Lar que vieram a falecer desconhece-se e não pode o Colectivo, apenas com base nos sobreditos elementos informadores clínicos e nas indicações, em alguns casos, das condições/debilidades ou doenças de que padeciam os residentes quando falecerem, concluir que a sua morte decorreu necessariamente da condição física em que encontravam, condição essa e estado de saúde respectivo causado ou originado nos maus cuidados ou falta deles, prestados pelo Lar A... onde se encontravam. Seria até temerário, com base nas premissas e circunstâncias apuradas, aferir semelhante conclusão. E daí o descrito sob as alíneas s, t, w, x, aa, ee, ff e gg.Na realidade e do conhecimento comum e isso podemos adiantar que as pessoas idosas e sobretudo quando acamadas por vezes estão muito mais debilitadas, situações em que podem perder apetite, por vezes estão sujeitas a infecções, doenças e sobretudo mais propensas a desenvolver por exemplo e sobretudo as conhecidas úlceras de pressão com todas as complicações que lhe são inerentes e uma vez mais o agravamento da sua condição física e propensão a infecções (ressalvando o que infra ainda se dirá a este propósito pois que não tem que ser este fatídico quadro a regra vivenciada por todos os idosos qual sina ou destino invariável). Isso mesmo foi constatado e de tais males padeciam muitos dos utentes/residentes da Lar; sendo certo que infelizmente a vida é temporalmente limitada e finita e o desfecho morte é inevitável – como ficou consignado nos artºs 63º, 69º, 70º. e 71º dos factos provados.Parca foi ademais a prova, senão mesmo inexistente, que permitisse encontrar indubitavelmente um nexo causal entre tal desfecho, nas circunstância se condições em que ocorreu e as condutas apuradas/imputadas aos aqui arguidos.
Usando agora a ideia e expressão a que tão frequentemente foi feita alusão ao longo do julgamento de que nem sempre tudo corria bem – pois de facto assim se constatou e tal ideia ou expressão rapidamente se tornou num eufemismo por defeito e aquém da realidade.Realidade essa de que os arguidos sempre foram sabendo e tomando consciência, seja pelas exposições e reclamações dos familiares dos utentes/residentes (como acima se foi referindo a propósito dos que aqui vieram testemunhar –mormente III, DDD, JJJ, EEE, GG, GGG, HHH), seja dos funcionários e em particular dos enfermeiros do Lar (como também facilmente se constata dos respectivos depoimentos – mormente FF, PP, UU, VV, XX), seja ainda em função de intervenções que diremos mais formais, porquanto por força da intervenção da Segurança Social e na sequência de denúncias apresentadas a esta entidade – vide fls. 114-146 e fls 812-853.
A propósito da condição/estado em que se encontravam os utentes ou alguns dos residentes, em função do descrito e dado por assente ao longo do art.º 69º supra, sem sermos fastidiosos ou exaustivos, indicamos que além do mais (do muito mais disponível nos autos e do raciocínio que temos vindo a expender) atentou o Colectivo ao teor de fls. 1293-1297 quanto a LLLLL; fls. 1229 quanto a YYYY; fls. 1276-1286 quanto a SSS; fls. 1224-1228 quanto a NNN; 1261-1264 quanto a FFFFF; fls. 1271-1275 quanto a NNNNN; 1288-1292 quanto a JJJJJJJ; 1217-1228 quanto a AAAA; fls. 1235-1243 quanto a WWWWW; fls. 1244-1260 quanto a CCCC; fls. 1265-1270 quanto a XXXXX.
Mantendo este mesmo registo e sobre os residentes em ERPI, tal como descrito e provado ao longo do art.º 70º da fundamentação, indicamos quanto a KKK: fls 186-256; 208-218; 222; 1088 com o reforço dos depoimentos das testemunhas MMMMMM e NNNNNN; quanto a MMM: foi a mesma observada na busca que teve lugar a 9.07.2019 – fls. 1096; e fls. 1107-1113; quanto a ZZZZZ: fls. 94/verso, fotos de fls. 234 a 236, fls. 69 (apenso A), reclamações/exposições de fls. 73 e 102, depoimento das testemunhas KK e QQQQQQ; quanto a BBBBBB já atrás nos referimos às suas declarações para memória futura que foram lidas e valorizadas; quanto a DDDDDD também já antes nos referimos às declarações que prestou, mais se atentando no teor de fls.131-134 (apenso A), fls. 16-19 (apenso B), acrescendo o teor dos depoimentos das testemunhas CCC e LLLLLL que se afiguraram isentos, circunstanciados e como tal convincentes.
E sobre o descrito e provado ao longo do 71.º atentamos ao teor dos registos de fls. 262 e ss quanto a NNNN (sendo que inexiste qualquer outra prova para além de tal informação médica/objectiva e que incidisse em particular sobre o que vinha descrito nos pontos 1.3 a 1.6 do art.º 86º da acusação que como tal foram considerados não provados); fls. 46 -72 do apenso E quanto a CC, com o reforço de depoimentos esclarecedores de DDD, JJJ, WW; fls. 1677 e 1678, bem como fotos que antecedem tão chocantes quanto esclarecedoras (sendo que sobre tal utente apenas dispõe o Colectivo uma queixa anónima).
Dir-se-á e questionou-se o Colectivo se afinal ainda poderia duvidar do ‘quadro’ e funcionamento tal como traçado e descrito pelas testemunhas que já acima tivemos oportunidade de agrupar entre os senhores enfermeiros e médicos que prestaram serviço no Lar A... ou lá se dirigiram ou atenderam os seus utentes, os familiares e visitas desses mesmos utentes e os ex-funcionários/prestadores de serviços de um lado, considerando que, do lado oposto, aqueloutro conjunto de depoimentos (que entendemos dividir/separar) veio a julgamento, conforme foi dito e alegado literalmente ‘dourar a pílula’ (?!...) A resposta resultou negativa e desfavorável aos arguidos pois que a forma circunstanciada como os demais depuseram foi deveras e suficientemente convincente, ficando afastada no entender do Tribunal uma qualquer ideia de um exagero, de uma intenção colectiva de prejudicar os arguidos e a instituição qual ‘caça às bruxas’ (permita-se-nos uma vez mais o recurso a uma expressão popular). E em reforço desta nossa ideia que se foi formando e reforçando ao longo do julgamento se dirá que foram muitas as queixas/denúncias e reclamações, afinal de todo inusitadas, exageradas antes revelando genuínas e justificadas preocupações – de que são exemplos o teor de fls. 1172, 1173, 1202, 1207, 1208, 1209, 1210, 1585, 1586. Que dizer então dos tais depoimentos em prol e defesa da quase ‘excelência’ do Lar A... ? No mínimo exagerados e não convincentes, desfasados da realidade ou quem sabe atidos ao passado a outros tempos ou a breves momentos ou circunstâncias ou episódios positivos que de todo retratam e de forma alguma invalidam o que demais e mais negativo se apurou. Pelo que tais depoimentos foram desvalorizados como bem está de se entender. Aliás alguns antes até de tal apreciação conclusiva afiguraram-se por vezes surpreendentes pela forma como reflexamente tenderiam a desvalorizar determinadas realidades factuais que foram antes evidenciadas pela demais prova objectiva, circunstanciada, clara, científica até – de certo que influenciados ou com uma visão turbada pela proximidade profissional da instituição. Por exemplo: os depoimentos de AAAAAAA (a propósito do tal moderno sistema de fornecimento de medicação ?!...), DDDDDDD (um filho de uma utente que não se apercebeu das condições da mãe como acima apurado e descrito?!...), EEEEEEE e YYYYYY (quanto às dinâmicas de funcionamento do lar ?!...).
Em relação ao articulado em sede de pedido civil (art.ºs 92º a 129º supra) e tomando por base o inegável quadro clínico da utente CC com o suporte documental dos ficheiros/registos clínicos acima já elencados (todos constantes do apenso E), alguns dos quais acima indicados de forma mais individualizada e incisiva, permitem aferir e concluir da condição de sofrimento físico e psicológico no termos alegados e dados por demonstrados, desde logo com o apoio do que ditam as regas da normalidade da vida e do dito ‘homem médio comum’ numa situação de fragilidade aos mais variados níveis como a apurada. Mais ainda quem melhor para nos transmitir o registo de vida, os sentimentos e angústias vivenciados naquele período final dos que os familiares mais próximos e que apesar dessa proximidade e laços de sangue lograram convencer o Colectivo do que transmitiram em audiência. Apesar da emotividade envolvida as testemunhas não evidenciaram exageros ou alterações à verdade dada por demonstrada – reportamo-nos aos filhos da falecida CC e JJJ. Reforçaram de forma circunstanciada o acervo dos factos dados por assentes os depoimentos das testemunhas QQQQQQ, KKKKKKK, FFF e de forma incisiva os depoimentos das testemunhas VV, WW porquanto lidaram e contactaram directamente com a utente e precisamente por força da situação/estado em que se encontrava.
Citamos Cavaleiro Ferreira in Curso de Processo Penal II, p.298: «a livre convicção é uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais, exteriores ao julgador, em vez de se encontrar ligada por normas prefixadas e abstractas sobre a apreciação da prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia e às máximas da experiência» - e esta foi a convicção do Tribunal. A convicção possível, cingida ao acervo de factos tal como acima organizado. É certo que ligeiramente mais reduzido em relação ao objecto do processo tal como proposto e deliitado pela consideração ou desconsideração da prova nos termos que explicámos a propósito do demais acervo de factos considerados não provados da forma que entendemos consequente e consentânea com tal raciocínio e sempre em última instância, repete-se, em favor do/s arguido/s.»
*

2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
2.3.1- Violação do princípio ne bis in idem.
Entendem os recorrentes pessoas físicas que a sentença recorrida é inexistente por violação do princípio ne bis in idem consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que os comportamentos imputados aos arguidos nestes autos são rigorosamente os mesmos comportamentos que lhes foram imputados no Processo n.º ..., no âmbito do qual foi proferida decisão final (absolutória) no dia 01.03.2024 (ou seja, em data anterior à decisão aqui recorrida, proferida a 19.03.2024), pelo Juiz 1 do Juízo Local Criminal de ....
Vejamos.
O artigo 29º, n.º 5 da Constituição ao estipular que «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.», estabeleceu o princípio ne bis in idem, ou seja a proibição da perseguição penal múltipla[1].
Esta garantia de segurança individual contra a perseguição múltipla tem duas vertentes, uma de natureza material (ninguém pode ser castigado várias vezes pelo mesmo facto) e outra de sentido processual (proibição de sujeição a julgamento pelo ‘mesmo crime’ em processos sucessivos).
No caso dos autos está em causa o ne bis in idem processual, a questão de se saber se nos presentes autos está em causa o ‘mesmo crime’ que foi submetido a julgamento no processo ....
Os recorrentes entendem que sim, uma vez que os comportamentos imputados são os mesmos, ocorridos durante o mesmo período apenas diferindo as vítimas (uma vítima no processo ... e sessenta e sete outras vítimas nos presentes autos), enquanto que o Ministério Público defende que não, uma vez que os ofendidos são diferentes.
Entendemos não assistir razão aos recorrentes. No julgamento dos presentes autos e no do processo ... não está em causa o ‘mesmo crime’, mas sim a imputação de 68 diferentes crimes de maus tratos, em situação de concurso efetivo. Com efeito, tratando-se de um tipo de ilícito que protege bens de caráter eminentemente pessoal, a pluralidade de vítimas – e, consequentemente, a pluralidade de resultados típicos – deve considerar-se sinal seguro da pluralidade de sentidos do ilícito e conduzir à existência de um concurso efetivo[2]. E mesmo no caso dos crimes de omissão, designadamente para os crimes de omissão impura, se estiverem em causa bens eminentemente pessoais, a pluralidade de eventos típicos, mesmo que se trate de casos de concurso homogéneo, indiciam a pluralidade de sentidos do ilícito global e, por conseguinte, a existência de concurso efetivo[3].
Havendo concurso efetivo de crimes, não se poderá então falar do ‘mesmo crime’ para os efeitos do artigo 29º, n.º 5 da Constituição.
Aliás, bem vistas as coisas, a cada crime imputado corresponde um processo e um julgamento, procedendo-se à conexão dos processos (ou posteriormente à sua separação) nos vários casos e termos descritos nos artigos 24º e seguintes do CPP, sendo que uma das razões de conexão é a de quando o mesmo agente tiver cometido vários crimes através da mesma ação ou omissão.
Mas uma coisa é a possibilidade de conexão de processos respeitantes a vários crimes, outra bem diferente é concluir que um agente que tenha cometido vários crimes através da mesma ação ou omissão tem de ser julgado por todos no mesmo processo, sob pena de estando distribuídos por diversos processos (v.g. por força de demora ou rapidez na investigação, interesse atendível na separação, desconhecimento do processo) o julgamento de um deles consumir os dos outros por força do ne bis in idem.
O princípio ne bis in idem ao proibir o julgamento mais do que uma vez pela prática do mesmo crime liga-se ao caso julgado e ao objeto do processo.
O objeto do processo, visto a uma primeira aproximação, mais não é do que a matéria ou assunto de que o processo trata, ou seja, o crime - conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais (artigo 1º-a do CPP) - imputado, constituído pelos factos e normas alegados na acusação e a pretensão nela formulada[4].
Numa aproximação mais profunda, «o objeto do processo será antes um recorte, um pedaço de vida, um conjunto de factos em conexão natural (…) analisados em toda a sua possível relevância jurídica, ou seja, à luz de todos os juízos jurídicos pertinentes. O objeto do processo será assim uma questão-de-facto integrada por todas as possíveis questões-de-direito que possa suscitar[5].
No nosso sistema processual penal a acusação (ou pronúncia) define e fixa o objeto do processo e, por aí, os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado. O objeto do processo deve manter-se o mesmo desde que é fixado até ao trânsito em julgado da decisão, devendo ser conhecido e julgado na sua totalidade e mesmo quando não tenha sido conhecido e julgado na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido (artigos 1º-f, 283º-3, 284º-1, 285º-4, 287º, 303º-3e4, 308-2, 309-1, 311-2b, 339-4, 359 e 379º-1 do CPP e 29º- 5 CRP)[6].
Ora, o objeto do processo ... é o recorte, o pedaço de vida o conjunto de factos em conexão natural analisados em toda a sua relevância jurídica[7], relativos aos tratos sofridos por DD enquanto utente do Lar A... no tempo em que aí esteve e aos comportamentos imputados aos arguidos relativamente a esses tratos.
Já em relação aos presentes autos, o objeto do processo - dos sessenta e sete processos nele conexionados – é constituído pelos recortes, os pedaços de vida o conjunto de factos em conexão natural analisados em toda a sua relevância jurídica, relativos aos tratos imputados como sofridos por cada uma das sessenta e sete pessoas identificadas como utentes do Lar A... no tempo em que aí estiveram e aos comportamentos imputados aos arguidos relativamente a esses tratos.
Se, com efeito, há uma base de facto, um pedaço de vida referente ao comportamento omissivo dos arguidos, ao espaço e ao tempo dos factos que se pode aceitar como parcialmente comum em ambos os processos, a verdade é que aquelas concretas vítimas, as pessoas cuja integridade pessoal se encontra protegida pela incriminação são diversas, mantendo a sua individualidade. Esta individualidade de cada vítima, própria da dignidade da pessoa humana, impede o seu tratamento coletivizado, grupal, coisificado. E aqui está a diferença relevante: sendo diversas as vítimas, dada a individualidade inerente à dignidade da pessoa humana, diverso é o pedaço de vida em análise e outro é o objeto de cada um dos processos.
Os crimes imputados são diversos: sessenta e oito, um por cada vítima. Cada um deles implica uma questão-de-facto integrada por todas as questões-de-direito que possa suscitar. Por vicissitudes processuais, um deles manteve-se organizado num só processo, os outros sessenta e sete acabaram por ser juntos nos presentes autos. Mas não perderam a sua individualidade. O facto de serem julgados todos no mesmo julgamento ou separadamente nos termos em que o foram (sessenta e sete num e um outro) não afeta aquela individualidade. Assim, não se tratando do mesmo crime ou dos mesmos crimes não há «bis in idem», não há repetição de julgamento e o facto de um dos crimes ter sido julgado primeiro não impede que os outros sessenta e sete crimes imputados sejam ainda julgados.
Assim, por não se verificar qualquer violação do princípio «ne bis in idem» consagrado no artigo 29º, n.º 5 da CRP, improcede a pretensão de declaração de inexistência da decisão recorrida ou de absolvição dos arguidos.

2.3.2- Valoração de prova proibida.
Em resumo, alegam os recorrentes, pessoas físicas, que a decisão da matéria de facto se alicerçou em três elementos probatórios essenciais: (i) a “perícia médico-legal” de fls. 1091 a 1099, (ii) os registos clínicos e (iii) os depoimentos de médicos e enfermeiros. Sucede que, na visão dos recorrentes, todos esses meios de prova foram feitos à revelia das regras aplicáveis, pelo que nos termos do disposto nos artigos 125º e 126º, n.º 3 do Código de Processo Penal constituem métodos proibidos de prova, não podendo ser valorados. Concluem estes recorrentes que tendo sido a decisão de condenação dos arguidos suportada nos referidos meios de prova impõe-se a absolvição dos arguidos ou o reenvio dos autos, nos termos do disposto no artigo 426º, n.º 1, do Código de Processo Penal ou, se assim não se entender, a anulação da decisão recorrida, que deverá ser repetida com a exclusão da referida prova. Arguem ainda a inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, da interpretação do disposto nos artigos 125º e 135º, n.º 1, do Código de Processo Penal no sentido de ser admissível e valorável prova obtida com violação de segredo profissional médico.
Vejamos.
Como é comummente aceite[8], o processo penal prossegue três finalidades essenciais: a realização da justiça e descoberta da verdade material; a proteção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas; e o restabelecimento da paz jurídica posta em causa com a prática do crime[9]. Dada a antinomia existente entre estas finalidades, é necessário operar a concordância prática[10] entre as mesmas, procurando minimizar as perdas para cada uma delas e respeitando o limite da dignidade da pessoa humana, o que se faz conjugando os princípios constitucionais e normas vigentes na ordem jurídica.
Destinando-se o processo penal à aplicação do direito penal substantivo, a aplicação das consequências jurídicas deste depende da existência ou verificação dos factos que as desencadeiam. A atividade probatória que se destina a convencer da existência ou não dos factos penalmente relevantes é regulamentada pelo processo penal. Com efeito e desde logo, de acordo com o artigo 124º do CPP, constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.
No artigo 125º do Código de Processo Penal, onde se dispõe que «São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei», encontram-se consagrados os princípios da legalidade e liberdade da prova, resultando que são admitidos não só os meios de prova tipificados como também todos os que não forem proibidos, mesmo sendo atípicos[11].
São provas proibidas por lei, nos termos do artigo 32º. n.º 8 da Constituição, todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
Quanto aos métodos proibidos de prova, dispõe o artigo 126º, nº1 do CPP, «São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.» No n.º 2 especifica-se que são ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos; perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação; utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei; ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto; promessa de vantagem legalmente inadmissível. E no n.º 3 deste artigo prevê-se que «3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.»
Como se retira das ressalvas constantes dos números 2 e 3 do artigo 126º do CPP, há algum espaço para a harmonização e concordância prática das atrás referidas finalidades do processo penal, fazendo uso do disposto no artigo 18º da CRP, onde se dispõe no seu n.º 2 que «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos», e no seu n.º 3 que «As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.» Ora, deste artigo 18º da CRP resulta que os direitos fundamentais e liberdades públicas podem ser comprimidos, desde que se respeite o princípio da legalidade, da intervenção mínima e da proporcionalidade.
Resta assinalar nesta parte que por força do disposto nos artigos 32º, n.º 8 da CRP e artigos 126º, n.º 1 e 3 e artigo 118º, n.º 1 do CPP, o desrespeito pelo princípio da legalidade da prova tem como consequência a nulidade das provas obtidas através de métodos proibidos, não podendo as mesmas ser utilizadas, acrescendo a proibição da valoração da prova obtida através de métodos de prova proibidos[12].
No nosso processo penal faz-se a distinção entre meios de obtenção de prova e meios de prova, sendo através dos meios de obtenção de prova que são obtidos os meios de prova a partir dos quais se forma a convicção das autoridades judiciárias[13].
O CPP prevê como meios de obtenção de prova os exames, as revistas, as buscas, as apreensões e as escutas telefónicas (artigos 171º a 190º) e como meios de prova a prova testemunhal, as declarações do arguido, as declarações do assistente, as declarações das partes civis, a prova por acareação, a prova por reconhecimento, a reconstituição do facto, a prova pericial e a prova documental (artigos 128º a 170º).
Visto o direito aplicável e descendo ao caso dos autos começando pela questão do relatório da perícia médico-legal de fls. 1091 a 1099, realizado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e que os recorrentes entendem tratar-se de prova proibida ou método proibido de prova, invocando para tanto o princípio da legalidade da prova, consagrado no artigo 125º do Código de Processo Penal e o artigo 126º, n.º 3, do Código de Processo Penal, pois que a prova “pericial”, obtida mediante exames médico legais que não foram determinados por autoridade judiciária, se reconduz a uma prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento dos respetivos titulares e por isso nula, não podendo ser utilizada.
Não têm qualquer razão os recorrentes nesta parte. Com efeito e como já foi referido pelo Juiz de Instrução na Decisão Instrutória proferida nos autos (Ref. 435736833) verifica-se que o despacho de busca autoriza “a realização de uma busca (à qual não estaremos presentes por inconveniência para o regular andamento do demais Serviço do Tribunal) à parte das instalações d’«O Lar A...», sita na Rua ..., em ..., ..., aonde se encontrem os idosos acamados, incluindo ainda o respectivo secretariado, serviços clínicos e zonas de higiene pessoal, a fim de serem examinados os referidos espaços, bem como os próprios idosos (neste caso com o consentimento destes, se capazes de o prestarem) e de serem apreendidos os objectos, bens e/ou documentos que sejam encontrados relacionados com a prática do crime sob investigação e/ou que possam servir de prova.
Ora, lido o despacho que autoriza a busca, proferido pelo Juiz de Instrução, poderá dizer-se que não é o melhor ou o mais pormenorizado e completo dos despachos de busca, exame do local e das pessoas (vítimas) relevantes para a investigação, deixando logo a desejar quanto aos artigos relevantes do CPP, ficando-se, tal como a promoção que o antecedeu, pela referência dos artigos relativos à busca (174º, 176º, 177º e 178º), mas não referindo os dos exames (171º a 173º), mas a verdade é que a autorização foi dada pelo Juiz de Instrução e em consequência o INML procedeu ao exame ao local e às pessoas e elaborou o relatório pericial que consta dos autos.
Acresce que é preciso ter em conta que está e estava em causa na altura da busca e exames a investigação de dezenas de crimes de maus tratos do artigo 152º-A/1 a) do Código Penal, ilícito esse que se integra no conceito de ‘Criminalidade violenta' da alínea j) do artigo 1º do CPP. Por outro lado, está fora de dúvida a necessidade dos exames ordenados para o apuramento da verdade dos factos e realização da justiça. Acresce que os exames foram determinados por despacho fundamentado proferido por juiz. Finalmente, o exame e a diligência ordenada têm suporte legal, entre outros, nos artigos 171º a 173º do CPP.
Concluindo, o despacho que determinou os exames em causa nos autos operou de forma proporcionada a concordância prática entre as finalidades da realização da justiça e de descoberta da verdade material e a de proteção dos direitos fundamentais das pessoas, pelo que não se mostram violados quaisquer direitos fundamentais do arguido, nomeadamente o direito a um processo justo e equitativo ou qualquer outro direito fundamental.
Tudo visto, por a diligência ordenada e realizada nos presentes autos se mostrar legal, proporcionada, necessária e adequada, não enferma de qualquer nulidade o despacho que ordenou os exames nem constitui prova proibida a prova resultante dos exames realizados e do relatório pericial apresentado.
Passemos agora à questão dos depoimentos de médicos e enfermeiros, os quais na visão dos recorrentes configuram «um método proibido de prova, que não pode ser utilizada, nos termos do disposto no artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, porquanto foram os depoimentos de 17 testemunhas (4 médicos e 13 enfermeiros) obtidos com violação do segredo profissional sendo por isso ilegal e reconduzida a prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento dos respetivos titulares.»
O Estatuto da Ordem dos Médicos impõe o segredo profissional como um dos deveres dos médicos, cuja violação pode conduzir à aplicação de uma pena disciplinar. O Estatuto da Ordem dos Enfermeiros prevê o direito de sigilo e o direito à intimidade. Na base destas imposições de segredo está a não revelação de segredos conhecidos no exercício da profissão, com vista a proteger a esfera de segredo e privacidade do paciente, bem como a salvaguarda das relações de confiança sobre que assenta o exercício de certas profissões indispensáveis à vida comunitária.
A importância do segredo profissional para a proteção da privacidade, é revelada pela criminalização da sua violação pelo artigo 195º do Código Penal.
Mas uma coisa é a importância do bem jurídico privacidade e a sua proteção através do segredo profissional, outra é a sua absolutização com a proibição cega e total de depoimentos de quem está sujeito à proibição de revelação de segredos conhecidos no exercício da profissão, relegando para um plano menor ou insignificante o bem jurídico realização da justiça.
A análise de uma proibição, de um tipo de ilícito, não se basta com uma simples análise do bem jurídico protegido - neste caso, a privacidade-, antes exigindo a consideração dos interesses e bens jurídicos em conflito com o protegido nesse concreto tipo de ilícito: o «tipo vale pelo que incrimina e, nessa medida, protege; como vale outrossim pelo que não incrimina e, nessa medida, igualmente protege»[14].
Com efeito e para além do consentimento da pessoa a quem os factos cobertos pelo segredo respeitam, pode justificar o facto qualquer das dirimentes gerais da ilicitude[15], em especial as autorizações legais, mas sem esquecer a dirimente específica da prossecução de interesses legítimos.
À necessidade de concretização da concordância prática entre as finalidades da realização da justiça e de descoberta da verdade material e a de proteção do direito fundamental à privacidade - a relação entre o dever de segredo e o dever de cooperação com a justiça - respondeu o legislador com o artigo 135º do CPP, estabelecendo um critério material para a quebra do segredo profissional e prestação válida de testemunho: «o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.»[16]
Com esta norma, o legislador afastou as teses da prevalência total e excludente de um interesse sobre o outro, do dever de segredo sobre o dever de colaboração com a justiça penal ou vice-versa, devendo ser feita uma ponderação de interesses entre a dimensão repressiva da justiça penal e a violação do segredo, tudo dependendo da gravidade dos crimes a perseguir.
Assim, no artigo 135º admite-se a justificação da violação do segredo desde que esteja em causa a perseguição dos crimes mais graves, dos que provocam maior alarme social.
É com base nesse critério objetivo para a quebra do segredo que a testemunha deve tomar a decisão de depor ou invocar a escusa com base no segredo profissional. A testemunha só poderá depor nos casos em que, pela particular a gravidade do crime em causa, seria legítima a imposição da quebra do segredo[17]. Caso a testemunha chamada a depor não se prevalecer da escusa, o seu depoimento é válido e eficaz, podendo ser valorado[18].
No caso dos autos, dada a já referida criminalidade violenta em causa e o alarme social que este tipo de ilícitos contra idosos suscita, os médicos e enfermeiros ouvidos como testemunhas, ao tomarem a decisão de depor, não invocando a escusa com base no segredo profissional, agiram de forma justificada, pois entre o dever de segredo e o dever de colaboração com a justiça na perseguição de crimes graves como os maus tratos contra idosos investigados nos autos, a ponderação de interesses justa e adequada é em favor do dever de colaboração com a justiça e contra a manutenção do dever de segredo profissional.
Assim, os referidos profissionais ao tomarem a decisão de não invocar a escusa operaram de forma proporcionada a concordância prática entre as finalidades da realização da justiça e de descoberta da verdade material e a de proteção da privacidade através do segredo profissional, pelo que ao serem valorados nos presentes autos os depoimentos dos médicos e enfermeiros não se violaram quaisquer direitos fundamentais dos arguidos, nomeadamente o direito a um processo justo e equitativo ou qualquer outro direito fundamental.
Tudo visto, contrariamente ao pretendido pelos recorrentes, os depoimentos prestados pelos referidos médicos e enfermeiros nos presentes autos não constituem prova proibida que não pode ser utilizada, nos termos do disposto no artigo 126.º, n.º 3, do CPP.
Atentemos agora na questão dos registos clínicos juntos aos autos das pessoas idosas, os quais na visão dos recorrentes configuram «um método proibido de prova, nos termos do disposto no artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, porquanto foram os “registos clínicos” obtidos com violação do segredo profissional e, para além disso, através de um ato processual fulminado pela nulidade insanável prevista 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal ‒ por violação do disposto os artigos 17.º e 268.º, alínea c), do Código de Processo Penal ‒, que afeta a admissibilidade da prova, reconduzida, assim, a uma prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento dos respetivos titulares e por isso nula, não podendo ser utilizada.»
Dispõe o artigo 182º, n.º 1 do CPP que as pessoas indicadas nos artigos 135.º a 137.º (sujeitas a segredo) apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objetos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado.
Quanto a esta matéria dos registos clínicos, valem as considerações já feitas a propósito do segredo profissional quanto aos bens jurídicos em causa, a sua proteção através do segredo profissional e à necessidade de concretização da concordância prática entre as finalidades da realização da justiça e de descoberta da verdade material e a de proteção do direito fundamental à privacidade.
A essas considerações caberá ainda acrescentar a causa de justificação prevista no artigo 192.º, n.º 2 do Código Penal para o crime de devassa da vida privada, excluindo a punibilidade da divulgação de factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa, quando for praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante.
Trata-se de conferir eficácia justificativa à prossecução de interesses legítimos, a qual, não obstante, reclama o respeito pelas exigências da idoneidade, proporcionalidade e necessidade[19].
Nos autos, o Ministério Público durante o inquérito solicitou às Unidades de Saúde, designadamente à Unidade de Saúde ..., o envio dos registos clínicos referentes às vítimas de maus tratos, tendo essas Unidades remetido os registos solicitados. Ora, não tendo sido invocada a recusa de segredo profissional, de funcionário ou de Estado e sendo aplicável o critério objetivo do princípio da prevalência do interesse preponderante do artigo 135º do CPP, afigura-se que com a junção aos autos dos registos clínicos, medida adequada a realizar de forma idónea, proporcional e adequada um interesse legítimo (administração da justiça), não se violaram quaisquer direitos fundamentais dos arguidos, nomeadamente o direito a um processo justo e equitativo ou qualquer outro direito fundamental.
Tudo visto, contrariamente ao pretendido pelos recorrentes, os registos clínicos juntos aos autos não constituem prova proibida que não pode ser utilizada, nos termos do disposto no artigo 126.º, n.º 3, do CPP.
Por outro lado, não se verifica, contrariamente ao invocado pelos recorrentes, violação do disposto nos artigos 17º e 268º, al. c) do CPP ou a nulidade do artigo 119º, al. e) do CPP. Desde logo porque não houve lugar a qualquer apreensão em consultório médico. Depois, porque sendo o Ministério Público o titular da fase de inquérito a ele cabia a solicitação para os autos dos referidos registos clínicos, não se exigindo a intervenção o Juiz de Instrução. E também não se vislumbra qualquer violação do disposto nos artigos 32º, n.º 8 e 29º, n.º 4 e 8 da CRP.
2.3.3- Vícios da decisão - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova - artigo 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do CPP.
Os recorrentes AA e BB invocam expressamente no recurso conjunto os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova - artigo 410º, n.º 2, als. a) e c) do CPP. artigo 410º, n.º 2, al do CPP- e fazem uma menção à existência de uma contradição entre os factos provados 73, 75 e 76 relativamente ao 77, o que constitui uma alusão à alínea b) do citado número. Seja com for, os vícios do artigo 410º, n.º 2 do CPP são do conhecimento oficioso do tribunal, como se fixou no Ac. do STJ n.º 7/95[20], de 19.10.1995, DRE 28.12.1995.
Vejamos.
De acordo com o artigo 410º, n.º 2 do CPP, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
O vício que estiver em causa, tal como resulta da norma, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos à decisão.
Comecemos pela insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma. O tribunal não dá nem como provado nem como não provado algum facto necessário para justificar a posição tomada.
Este vício não se confunde quando face a uma sentença condenatória se conclui pela mera insuficiência dos factos provados para preencher o tipo incriminador ou a variante do seu preenchimento, pois que neste caso do que se trata é de que a decisão deveria ser absolutória ou então, se condenatória, por outro tipo de ilícito ou forma de preenchimento do tipo de ilícito. Trata-se então de um erro de qualificação jurídica, de aplicação do direito aos factos e não de uma insuficiência de factos para atingir uma decisão segura de direito sobre a causa.
Mas é precisamente nesta confusão que os recorrentes incorrem, ao referirem que foram condenados pela prática, em coautoria, do crime de maus-tratos, previsto e punível pelo disposto no artigo 152.º- A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, mas dos factos provados pelo Tribunal «não consta qualquer um que descreva e, por isso, de que resulte, a existência de um acordo/plano delituoso estabelecido entre os arguidos». Face a tal invocada inexistência de factos que permitam concluir pela coautoria, entendem os recorrentes que tendo sido sob esta modalidade de (com)participação criminosa que se conformou o objeto do processo, não sendo agora possível alterá-lo, constata-se a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, impondo-se por isso a absolvição dos arguidos (cuja forma de atuação ficou por se provar).
Como atrás referimos, os recorrentes confundem a eventual errada aplicação do direito aos factos, designadamente em termos de forma de autoria do crime, com a insuficiência da matéria de facto para a decisão, a qual não se verifica nos autos.
Da leitura da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo deu como provados e não provados todos os factos que constituíam o objeto do processo e relevantes para a decisão justa da causa.
Assim, concluímos não se verificar insuficiência da matéria de facto para a decisão.
Quanto à questão da qualificação jurídica dos factos, mais à frente nos pronunciaremos.
Passemos ao vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Existirá contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão quando, por exemplo, um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Lidos os pontos 73,75, 76 e 77 da matéria de facto de facto, mencionados pelos recorrentes como sofrendo de contradição, cabe dizer que não vislumbramos qualquer contradição ou incompatibilidade entre o facto de os arguidos terem agido por razões económicas/contenção de despesas e o facto de a arguida “Lar A...” dispor de meios económicos para adquirir bens e equipamentos e contratar o pessoal necessário a assegurar a prestação de cuidados básicos e de saúde. Trata-se tão só de uma opção de gestão.
Lendo a sentença não vemos que um mesmo facto com interesse para a decisão da causa tenha sido julgado como provado e não provado, ou que se tenham dado como provados factos incompatíveis entre si, ou que a fundamentação devesse conduzir a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Tudo visto e lida a sentença recorrida, não vemos que o tribunal tenha incorrido no vício da contradição insanável do artigo 410 nº2 alínea b) do CPP.
Atentemos agora no erro notório na apreciação da prova.
Este vício, previsto no artigo. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, ocorre quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, dando como provado o que não pode ter acontecido e aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de pela simples leitura da decisão não passar o erro despercebido ao cidadão comum.
Este vício não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, em que se afirma que teriam sido dados como provados factos sem prova para tal, ou em que se considera que a prova produzida deveria ter levado a conclusão oposta.
Argumentam os referidos recorrentes que a afirmação (do Tribunal) de que os arguidos descuraram do tratamento e cuidado devidos às pessoas, não contrataram pessoal em número suficiente nem adquiriram os equipamentos necessários, tudo por razões económicas não encontra suporte em qualquer facto revelado por qualquer suporte probatório. Que são vários os elementos que impedem aquele juízo (depoimento da testemunha FF, enfermeira, Relatório Social da arguida ... Lar A... e declarações da arguida BB), pelo que se verifica o vício do erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
Como parece ser evidente, estes recorrentes confundem o vício da decisão com a impugnação da matéria de facto por erro de julgamento prevista no artigo 412º, n.º 3 do CPP, com a chamada ‘impugnação ampla’ da matéria de facto. Aliás e desde já se afirma, relativamente a esta forma de impugnação, que ainda que se pretendesse a ela recorrer, a verdade é que não tinham sido cumpridos os ónus de especificação das provas que impunham decisão diversa, como impõe o artigo 412º, n.º 3 e 4 do CPP, designadamente os concretos pontos do relatório e as concretas passagens do depoimento que impunham solução diversa, o que impossibilita o conhecimento da dita impugnação.
Ora, da simples leitura da decisão, não descobrimos nos factos provados que tenha resultado provado algum facto que não possa ter acontecido, designadamente os factos provados nos pontos 73, 75, 76 e 77 referentes às razões económicas/contenção de gastos, ou que a prova tenha sido valorada contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados. Com efeito, o tribunal enunciou os meios de prova que serviram para a formação a sua convicção e procedeu à análise crítica dos mesmos, tudo de forma razoável e compreensível. Assim improcede a arguição do vício do erro notório e com ela a pretensão de eliminação dos artigos 73º, 75º e 76º dos factos provados.
Concluindo, no caso dos autos, do texto da decisão recorrida não resulta nenhum dos vícios da previsão do artigo 410.º, 2 do Código de Processo Penal, o que aqui se declara.
2.3.4- Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento.
A recorrente ... Lar A...’ impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto no que a si respeita, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal por Erro na apreciação da prova, concluindo do seguinte modo:
«12)No elenco dos factos provados e identificados a (.), que por uma questão de economia processual se remete, deverão os mesmos ser alterados no sentido de retirar a menção ao interesse e intervenção da ora recorrente na assunção e prática dos aludidos factos e decisões aí identificadas, porquanto as condutas e omissões praticadas só podem obrigar e responsabilizar os arguidos AA e BB como interesses próprios, porquanto foram assumidos sem que o Lar A... tenha manifestado a sua vontade própria pelo órgão eleito que legitima, e legalmente, poderia manifestar essa vontade.»
Para tanto argumentou, entre o mais, que o tribunal recorrido não teve em devida atenção todos os elementos de prova carreados para os autos, não percecionou os devidos termos de funcionamento da instituição e formas e termos para as tomadas de decisão que deram origem aos factos em julgamento e que as decisões não foram nunca assumidas por qualquer corpo gerente da instituição nem nunca foram levadas ao efetivo conhecimento do órgão colegial – a Direção; que o arguido AA, enquanto Presidente, não detinha, internamente, qualquer poder pelo qual lhe seja assim concedido um poder executivo exclusivo, o direito de mandar; e que quem, no exercício da sua posição de liderança, abusa das suas funções sociais, o facto não deve ser considerado como praticado em nome e no interesse da sociedade, mas em nome próprio.
Nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431.º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Por outro lado, dispõe o artigo 412.º, n.º 3 que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.
E, no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Resulta deste artigo que o recorrente tem vários ónus a cumprir em ordem a que o tribunal superior aprecie a impugnação ‘ampla’ da matéria de facto.
Assim, na impugnação da matéria de facto o recorrente tem de individualizar (não bastando uma alusão genérica) os concretos pontos de facto factos que impugna e indicar as provas concretas que em seu entender impõem julgamento diverso daquele também concreto ponto de facto, relacionando estas com aqueles. Ou seja, tem o ónus de proceder à especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado. Depois, tem o ónus da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, devendo indicar o conteúdo específico do meio de prova e a razão pela qual essa prova impõe decisão diversa, relacionando tal conteúdo com o facto que considere mal julgado. Sendo que se em relação às provas concretas estas se se referirem à prova gravada não pode deixar de individualizar e localizar concretamente as passagens onde ficaram as gravações das declarações prestadas que se referem ao ponto impugnado.
A recorrente não cumpriu com o ónus de especificar os concretos pontos de facto que considerou incorretamente julgados, limitando-se a dizer nas conclusões do recurso que «No elenco dos factos provados e identificados a (.), que por uma questão de economia processual se remete, deverão os mesmos ser alterados no sentido de retirar a menção ao interesse e intervenção da ora recorrente na assunção e prática dos aludidos factos e decisões aí identificadas,… ».
Aliás, este incumprimento do ónus de especificação dos factos impugnados já vinha da motivação do recurso, pois que bem lida esta parte, o que se verifica é que a recorrente após parecer que vai especificar a matéria de facto a impugnar, relacionando-a com a prova a apontar, acaba por não o fazer, limitando-se a indicar a matéria de facto provada quase na sua totalidade (cfr. págs 6 a 31 do recurso), com dezenas e dezenas de factos que constituem puras descrições de acontecimentos onde não se descrevem ou mencionam os referidos ‘interesse’ e ‘intervenção’ da recorrente. Acresce que na motivação depois de indicar as tais dezenas de factos e de discutir provas sem as relacionar direta e especificadamente com cada um dos factos ou cada grupo de tais dezenas de factos, acaba por terminar (págs. 59-60 do recurso) com uma referência genérica como a já atrás referida de «Nestes termos, No elenco dos factos provados e já aqui supra identificados, que por uma questão de economia processual se remete, deverão os mesmos ser alterados no sentido de retirar a menção ao interesse e intervenção da ora recorrente na assunção e prática dos aludidos factos e decisões aí identificadas, porquanto as condutas e omissões praticadas só podem obrigar e responsabilizar os arguidos AA e BB como interesses próprios, porquanto foram assumidos sem que o Lar A... tenha manifestado a sua vontade própria pelo órgão eleito que legitima, e legalmente, poderia manifestar essa vontade.»
Ora, não é pedindo ao tribunal de recurso que genericamente vá às dezenas de factos provados e que onde constar a ‘menção ao interesse e intervenção da ora recorrente na assunção e prática dos aludidos factos e decisões aí identificadas’ se retire tal menção, que se impugna a decisão sobre a matéria de facto. Tem de se especificar ponto por ponto o facto impugnado, o facto que se considera incorretamente julgado e não apontar a quase totalidade dos factos e pedir ao tribunal para encontrar quais se encontram incorretamente julgados de acordo com as provas indicadas pelo recorrente. E além disso relativamente a cada facto ou grupo de factos tem de se especificar que prova ou provas impõem decisão diversa. O Tribunal não deve substituir-se aos recorrentes no cumprimento dos ónus recursivos.
Como a recorrente não cumpriu com os ónus impostos pelo artigo 412º, mostra-se inviável a reapreciação da matéria de facto nos termos da ‘impugnação ampla’ por erro de julgamento.
É, pois, manifestamente improcedente, nesta parte, o recurso da recorrente, devendo manter-se inalterada a matéria de facto assente na primeira instância.
2.3.5- Preenchimento do tipo de ilícito e pretensão absolvição.
Em suma, entendem, por um lado, os recorrentes - pessoas físicas - que não se mostram preenchidos os elementos do crime de maus tratos, previsto e punível pelo disposto no artigo 152º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, pelo que deve a decisão recorrida ser revogada, com a consequente absolvição dos arguidos, e, por outro, entende a recorrente ... Lar A...’ que as decisões não foram assumidas por qualquer corpo gerente da instituição, não detendo o arguido AA, enquanto Presidente, por si só poderes para vincular os restantes membros da Direção, pelo que as omissões praticadas só podem obrigar e responsabilizar os arguidos AA e BB e não a arguida Lar A....
Mostrando-se fixados os factos provados, procedamos então à sua qualificação jurídica e vejamos se estão ou não preenchidos os elementos do tipo de ilícito de maus tratos do artigo 152ºA, nº 1, alínea a), do Código Penal, pelo qual cada um dos arguidos foi condenado.
Dispõe o artigo 152º-A, n.º 1, alínea a) sobre o crime de maus tratos que quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O bem jurídico protegido com esta incriminação é complexo, partindo da integridade pessoal, abrange a saúde, a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual, a honra, e pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos[21].
O tipo objetivo exige que o agente do crime tenha ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e lhe inflija maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente.
Assim, as condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies: maus tratos físicos, ou seja, ofensas corporais simples, maus tratos psicológicos, isto é, humilhações, privações da liberdade, ameaças, insultos, microviolência física ou psíquica como empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços, insultos, críticas e comentários destrutivos ou vexatórios, sujeição a situações de humilhação, isolamento, ameaças, privações injustificadas de alimentos, de medicamentos ou de cuidados higiénicos, privações da liberdade, etc.
De cada vez que nessas condições de proximidade existencial em que o agente do crime tenha ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação pessoa menor ou particularmente indefesa, se mostre preenchido um tipo incriminador do Código Penal relacionado com a saúde e integridade pessoal, nomeadamente as ofensas à integridade física, injúrias, sequestro ou ameaças, forçosamente preenchido estará também o tipo de maus tratos.
Quanto ao elemento subjetivo, exige-se o dolo em qualquer das suas modalidades.
Quanto ao cometimento do tipo de ilícito por omissão, haverá de se considerar que o tipo tanto pode ser realizado através da prática de uma ação proibida, como através da omissão de um comportamento juridicamente exigido[22].
É o que resulta do artigo 10º do Código Penal, ao estabelecer que quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo como a omissão da ação adequada a evitá-lo, estando neste caso a punição dependente dum dever jurídico que pessoalmente obrigue o omitente a evitar esse resultado. Assim, a omissão só é punível quando sobre o agente recaia um dever de evitar ativa ou positivamente a verificação o resultado típico, quando sobre ele recaia um dever de garantia ou dever de garante e desde que o omitente esteja em condições de poder levar a cabo a ação devida ou necessária a evitar o resultado.
Assim, o tipo de ilícito dos maus tratos fica preenchido por omissão quando por força da ausência da ação devida ou esperada se cria ou potencia um risco de verificação do resultado típico[23].
O dever jurídico de garante da não ocorrência do resultado antijurídico pode resultar diretamente da lei, de um contrato, de situações de criação de perigo e/ou relações familiares íntimas de solidariedade e confiança que importem a aceitação de facto de deveres cuja execução importe ingerência/apoio entre o omitente e o titular do bem jurídico que suporte o dever de agir, numa posição de proteção ou de uma posição de controlo[24].
A arguida “Lar A...”, sendo, tal como resultou provado, uma instituição que tem como principal atividade o alojamento e assistência a pessoas idosas, mediante a proteção dos cidadãos na velhice e dispondo para o efeito de uma estrutura residencial para pessoas idosas, tem sobre si o dever jurídico de impedir que os seus utentes sofram maus tratos.
Conforme resultou provado, de acordo com o Regulamento para Residentes, a arguida “Lar A...” estipulou, entre o mais, que «são direitos dos Residentes: a) Obter a satisfação das suas necessidades básicas, físicas, psíquicas e sociais; b) Ser respeitado na sua individualidade e privacidade» [Norma XXIV ponto Um].
Aliás como reforço desta posição de garante temos a Portaria 67/2012, de 21.3 que, além do mais, define as condições de organização, funcionamento e instalação das estruturas residenciais para pessoas idosas, como também os objetivos das ERPI (a) Proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática biopsicossocial das pessoas idosas; b) Contribuir para a estimulação de um processo de envelhecimento ativo; c) Criar condições que permitam preservar e incentivar a relação intrafamiliar; d) Potenciar a integração social. ) e os serviços e atividades que devem se prestados (v.g., alimentação, cuidados de higiene pessoal; tratamento de roupa; higiene dos espaços; atividades de animação sociocultural, lúdico-recreativas e ocupacionais, apoio no desempenho das atividades da vida diária; cuidados de enfermagem, bem como o acesso a cuidados de saúde, administração de fármacos, quando prescritos.)
Tal dever jurídico de impedir que os utentes do ‘Lar A...’ sofressem maus tratos estende-se aos arguidos pessoas singulares AA e BB, atentas as funções que lhes cabiam, conforme resultou provado, respetivamente, de presidente da direção da arguida “Lar A...” e de diretora de serviços da instituição arguida, de em nome e interesse desta, desenvolver as tarefas e praticar os atos de gestão necessários à proteção e segurança de todos os idosos residentes no “Lar A...”, em particular, pela sua vulnerabilidade, daqueles que não pudessem viver autonomamente, ou seja, dos dependentes para as suas atividades de vida diária, e vigiar e controlar os atos de todos os funcionários e prestadores de serviços da arguida “Lar A...”, com vista à efetiva proteção daquelas pessoas, colocadas aos seus cuidados e guarda.
Quanto à ausência da ação devida ou esperada e da criação ou potenciação de um risco de verificação do resultado típico, em primeiro lugar, e em resumo, constatamos dos factos provados que o quadro de pessoal era insuficiente para executar as tarefas necessárias (cfr. pontos 8 a 16 dos factos provados), e que nesse contexto, os arguidos sabiam que com o referido quadro de pessoal: não era possível providenciar e proceder ao reposicionamento sistemático dos utentes acamados, sabido, como sabiam, que as pessoas acamadas, em especial as idosas, devem ter o seu posicionamento trocado de três em três horas, para evitar feridas de pressão; que, por isso, por falta desse cuidado básico, os acamados iriam necessariamente desenvolver escaras; que era impossível proceder à devida higienização dos utentes da área dos dependentes e, bem assim, à necessária limpeza dos quartos e das casas de banho da área dos residentes dependentes, pelo que, amiúde, as roupas sujas ou fraldas com urina e fezes permaneceram durante horas nos quartos e nas zonas de passagem; não era possível disponibilizar funcionários para acompanharem os residentes dependentes em passeios ao ar livre, no espaço de jardim anexo ao lar; não era possível alimentar em tempo útil, em particular de manhã, os residentes dependentes e dar-lhes os alimentos com o tempo e com as cautelas exigíveis para alimentação de idosos, com vista a evitar o engasgamento do alimentado e de, por força disso, potenciar o risco de pneumonias por aspiração; se tornava necessário, a partir das 16h00, encaminhar os residentes não acamados para as respetivas camas e aí os manter até à manhã seguinte; motivava também o envio dos residentes dependentes para os serviços de urgência hospital – do Hospital 1... e Hospital 2... – sem acompanhante. Acresce que também resultou provado que todas essas situações foram repetidamente reportadas à arguida BB, por força das suas funções de diretora de serviços, bem como ao arguido AA, na sua qualidade de presidente de direção da arguida “Lar A...”, e que, apesar disso, os arguidos nada fizeram, podendo fazê-lo, e desse modo permitiram que todas essas situações continuassem.
Em segundo lugar temos que relativamente à degradação do espaço e do mobiliário (pontos 17 a 23), resultou provado que os arguidos AA e BB vendo tal realidade (camas articuladas inadequadas, inexistência de cadeira de banho elevatória ou estrados para as bases de duche; falta de limpeza dos espaços, falta de higiene pessoal dos residentes dependentes e a degradação das camas e dos colchões) na área dos residentes dependentes – a denominada “enfermaria” – não adotaram, como se lhes impunha, todas as condutas ou ações para a sua reparação ou para adquirirem novos equipamentos e mobiliário, podendo fazê-lo, e sabendo que, por essa forma, iriam provocar dor e sofrimento aos residentes dependentes.
Depois (31 a 36), temos a questão da muda das fraldas que não era feita sempre que era necessária, mas em regra, em fases pré-determinadas, duas/três vezes por dia, de manhã, à tarde (excecionalmente) e à noite, bem como a da inadequação dos horários de alimentação dos residentes da área dos dependentes, concretamente, para o longo período de jejum a que estes eram sujeitos, uma vez que jantavam às 18h00 e só comiam de novo na manhã seguinte, ao pequeno-almoço, sendo que os arguidos não cuidaram de ajustar os horários de alimentação dos residentes dependentes, ou sequer de introduzirem uma pequena refeição entre o jantar e o pequeno almoço.
Acresce ainda que (pontos 37 – 42) que os arguidos BB, AA e “Lar A...”, em nome e no interesse da qual atuaram, não adotaram as medidas necessárias para que as pessoas residentes na área de dependentes, usufruíssem de atividades para ocupação dos tempos livres, leitura de jornais, deslocações para atividades religiosas. Permaneciam durante todo o dia ou sentados na mesma cadeira ou deitados na cama, e, quando sentados, eram colocados em fileiras, lado a lado, num amontoado, não beneficiando de atividade física ou tempo ao ar livre. Na maioria dos quartos não havia resguardo de privacidade (biombo) e os residentes dependentes eram por vezes vestidos com a roupa de outras pessoas e os residentes do sexo masculino por vezes não eram barbeados. Aliás, no dia da busca, 9.07.2019, constatou-se que na área de residentes dependentes (‘enfermaria’) na qual se encontravam 63 pessoas, havia um intenso cheiro a urina, camas com ferrugem, camas com colchões rasgados, colchões exalando intenso cheiro a urina. E nesse mesmo dia foi observada a falta de cuidados de higiene pessoal e na desinfeção de material (pontos 64 68).
Quanto à ausência da ação devida ou esperada e da criação ou potenciação de um risco de verificação do resultado típico, do que se acabou de expor já se pode retirar um número elevado de comportamentos devidos por quem tinha o dever de garante pelos idosos residentes na ERPI do Lar A... e que não foram tomados.
Com efeito, cabia aos arguidos nessa sua posição de garante providenciar para que fosse contratado pessoal em número suficiente para executar as tarefas necessárias (reposicionamento, higienização, passeios, alimentação, etc…), proceder à aquisição de mobiliário e equipamento adequado, orientar e vigiar a muda das fraldas que não era feita sempre que era necessária, adequar os horários de alimentação dos residentes da área dos dependentes, fazer cumprir os planos nutricionais, fazer com que os residentes não fossem sem acompanhante à urgências do hospital, orientar e vigiar as atividades para ocupação dos tempos livres, de atividade física ou tempo ao ar livre, zelar pela privacidade e dignidade dos utentes, não permitindo que estes fossem vestidos com a roupa de outras pessoas. Só que não agiram, verificando-se a ausência da ação esperada e devida.
Na decisão recorrida entendeu-se na parte da qualificação jurídica dos factos que foram vítimas de maus tratos 18 dos residentes e dependentes da área da enfermaria, os quais enumera. Nessa enumeração constatamos que há um nome que se encontra repetido (NNNNN), mas da leitura dos factos provados, conseguimos facilmente compreender que se repetiu tal nome, por lapso, quando se queria referir CCCC, conforme se pode comprovar com facilidade do teor dos factos provados, 52, 53 e 69. Tratando-se de mero lapso importa proceder à sua correção ao abrigo do artigo 380º do CPP, o que se faz desde já, considerando-se a referência repetida feita na enumeração como sendo para CCCC.
Feita esta correção, e olhando aos factos provados, designadamente aos pontos 13, 63, 69, 70 e 71, verificamos que, como se refere na decisão recorrida, os 18 idosos enumerados sofreram maus tratos.
Com efeito e resumidamente, além do mais, resultou provado, relativamente às pessoas que se encontravam a residir na área de dependentes, que: 1-TTTTT apresentava úlcera de pressão na região sagrada de grau e solução de continuidade com crosta na face anterior da perna esquerda e uma zona de maceração do maléolo lateral da perna direita. 2-MMMMM tinha aspeto emagrecido, com unhas compridas e com sujidade, e com hiperemia conjuntival, placas esbranquiçadas na língua e úlcera de pressão de grau II. 3-NNNNN estava emagrecida, despida e apenas com uma toalha colocada sobre o peito, com unhas compridas e sujas, com o mamilo da mama esquerda invertido e aspeto inflamatório e com úlcera na região sagrada de grau II e com sinais de infeção; deu data de entrada no serviço de urgência do Hospital, em 6 de agosto de 2019, para onde foi enviada pelo lar sem acompanhante, apesar do seu quadro demencial; NNNNN apresentava-se muito emagrecida e com muita desidratação, com urina com cheiro fétido e com desconforto respiratório evidente. 4- TTT, estava com fralda suja de urina e fezes e ainda sem tomar o pequeno almoço às 10h30. 5-Maria RRRRR apresentava úlcera de pressão trocantérica à direita em cicatrização e, apesar disso, sem cama com colchão antiescara. 6- EEE, estava acamada e presa à cama pelos pulsos, com fralda exalando intenso cheiro a urina, com unhas compridas, com úlcera de pressão de grau na face lateral do terço médio da perna direita. 7- LLLLL apresentava aspeto muito emagrecido, sendo-lhe diagnosticada pneumonia de aspiração. 8-SSS, à data de entrada no serviço de urgência do Hospital, em 7 de novembro de 2019, para onde foi enviado pelo lar sem acompanhante, apesar do seu quadro demencial, SSS apresentava aspeto emagrecido e sinais de desidratação, e várias úlceras de pressão. 9- NNN, deu entrada no serviço de urgência do Hospital em 17 de agosto de 2019, para onde foi enviado pelo lar sem acompanhante e sem carta, apesar do seu quadro demencial; NNN apresentava aspeto emagrecido e sinais de desidratação, sendo-lhe diagnosticada infeção respiratória com possível contributo de aspiração. 10- JJJJJJJ deu entrada no serviço de urgência do Hospital, em 7 de agosto de 2019, apresentava sinais de desidratação e úlceras de pressão, na região sagrada, nos calcâneos e na grade costal esquerda, sendo-lhe diagnosticada infeção urinária e infeção com EPC. 11- CCCC, à data de entrada no serviço de urgência do Hospital, em 14 de outubro de 2019, apresentava úlceras de pressão na região sagrada e calcâneos, sendo a causa de morte sepsis com origem nessas úlceras e infeção respiratória. 12- WWWWW, deu entrada no serviço de urgência do Hospital, em 21 de outubro de 2019, para onde foi enviada pelo lar sem acompanhante e sem história clínica, apesar do seu quadro de desorientação, WWWWW apresentava aspeto emagrecido, caquético, e múltiplas úlceras de pressão, exsudativas e com cheiro fétido, a de maior dimensão na região sagrada e também nos dois membros inferiores, com os dedos dos pés a evoluírem para necrose. 13- KKK, foi-lhe rapado o cabelo, desenvolveu úlceras de pressão, sendo diabético não cumpriram com o plano nutricional, deu entrada na urgência do Hospital em 16.08.2017, sem acompanhante apesar de quadro cognitivo desorientado. 14- MMM, em 17 de junho de 2019, foi transportada do Lar A... para o Hospital 1..., por prostração com três dias de evolução e tosse com expetoração, ficando internada; apresentava-se desidratada e com infeção do trato urinário, bem como com úlceras de pressão na região lombar sagrada e nos calcâneos; feito exame deu resultado positivo para EPC. Não teve acompanhamento à urgência do Hospital no 29 de junho de 2019. 15-ZZZZZ, no dia 27 de janeiro de 2016, apresentava úlcera com placa de necrose no calcâneo direito e úlcera de pressão na face posterior da perna direita. 16- BBBBBB, sem que tenha dado o seu consentimento, foi deslocado e alojado na área dos dependentes (denominada enfermaria); a partir daí foi-lhe proibido ir à casa de banho, para urinar ou defecar, apesar de ter autonomia para o fazer, e contra a sua vontade passou a usar fralda; retiraram-lhe o telemóvel e o relógio, pelo que deixou de poder contactar livremente os seus familiares e amigos e também de poder orientar-se no tempo. 17-DDDDDD, tinha um plano alimentar prescrito pela sua nutricionista, contudo, por não lhe serem dados os alimentos do plano nutricional, e por em consequência da ingestão de alimentos não constantes desse plano ter sido por diversas vezes assistida no serviço de urgência hospitalar, para evitar a repetição de situações idênticas e o agravamento da sua saúde, DDDDDD ficou muitas vezes sem comer, sem que lhe tivesse sido disponibilizada qualquer refeição alternativa e conforme ao seu plano alimentar. 18- CC, com dores na região do sacro, úlcera de pressão existente nessa zona corporal se apresentar necrosada com exsudado purulento abundante, não obstante a referida escara na região sagrada, CC continuou a ser sentada durante todo o dia numa cadeira de rodas, sem movimentação, e a ser-lhe mudada a fralda duas vezes por dia, uma de manhã e outra à noite, contribuindo tudo isso para o agravamento da úlcera de pressão.
Ora, tudo isso são maus tratos físicos ou psíquicos que os 18 residentes sofreram, sendo que todos eles são pessoas particularmente indefesas, pela idade avançada ou doenças de que sofriam, encontrando-se na área de residentes dependentes e muitos acamados.
Com efeito, as úlceras de pressão; a magreza; as unhas compridas e com sujidade; o estar despida e apenas com uma toalha colocada sobre o peito; a ida ao serviço de urgência do Hospital sem acompanhante; a desidratação; as fraldas sujas de urina e fezes e exalando cheiro; o não tomar o pequeno almoço em tempo razoável; o rapar o cabelo; o não cumprimento de plano nutricional; a proibição de ir à casa de banho, apesar de o residente ter autonomia para o fazer, e contra a sua vontade passar a usar fralda; a retirada do telemóvel e relógio; o ser sentada durante todo o dia numa cadeira de rodas, sem movimentação, e a ser-lhe mudada a fralda duas vezes por dia, uma de manhã e outra à noite, contribuindo tudo isso para o agravamento da úlcera de pressão; tudo isso constitui o resultado esperado do risco criado e potenciado pela ausência da ação devida, dos comportamentos devidos por quem tinha o dever de garante pelos idosos residentes na ERPI do Lar A... e que não foram tomados.
Tivessem os arguidos pessoas físicas cumprido com os deveres lhes eram impostos pelos cargos que exerciam e que atrás referimos e os maus tratos sofridos pelos 18 idosos não teriam ocorrido.
O elemento subjetivo do tipo de ilícito - o dolo - também se encontra presente, resultando dos artigos 72º a 91º, tendo em resumo resultado provado que os arguidos pessoas físicas atuaram de forma livre e consciente sabendo que a sua atuação iria necessariamente traduzir-se numa falta de cuidados na saúde, na higiene, na alimentação, na atenção, nos afetos, no entretenimento e socialização dos residentes acamados e consequentemente, iria agravar o estado de saúde desses residentes acamados, provocando-lhes mazelas físicas causadoras de sofrimento, conformando-se conscientemente com a produção desses resultados, e sabiam que todas as suas referidas condutas eram proibidas e punidas.
Assim, os arguidos pessoas físicas preencheram todos os elementos - objetivo e subjetivo – do tipo de ilícito de maus-tratos que lhes era imputado.
Cada um deles teve a possibilidade fática de intervenção no acontecimento e, não obstante o dever de garante que sobre si recaía, não interveio. Cada um dos arguidos pessoas físicas é, nos termos do artigo 26º do Código Penal punível como autor, pois que «É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.» A doutrina costuma distinguir entre autoria imediata, mediata, coautoria e até, eventualmente, autoria paralela. Para se afirmar a figura da coautoria é necessária a existência de um acordo, facto que não resultou provado nos autos, ficando apenas a figura base - a autoria -, trata-se de um minus terminológico, pois que face ao artigo 26º do Código Penal, com ou sem o acordo, ambos os arguidos são puníveis como autores.
Quanto à questão da unidade e pluralidade de infrações, uma vez que o tipo de ilícito dos maus-tratos protege bens eminentemente pessoais, a pluralidade de vítimas (dezoito) implica uma pluralidade de sentidos de ilícito, mesmo tendo em conta que se trata do cometimento por omissão[25]. Assim, a situação é de concurso efetivo, nos termos do artigo 30º do Código Penal.
Vejamos agora a responsabilidade da arguida «Lar A...».
Nos termos do artigo 11º, n.º 2 estabelece-se a responsabilidade criminal das pessoas coletivas por um catálogo de crimes, incluindo o do artigo 152.º-A, cometidos: «a) Em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem.»
São dois os pressupostos da responsabilização criminal da pessoa coletiva, um de natureza formal: - que o agente do crime ocupe uma posição de liderança. Outro de natureza material: - que os crimes sejam cometidos em seu nome e no interesse coletivo.
Ora, descendo aos factos provados (1 e 2) e vendo as funções que cabiam a ambos os arguidos pessoas físicas, um, o AA, presidente da direção da arguida ... Lar A...”, representando-a todos os seus atos, de gestão, direção e decisão; e a arguida BB, diretora de serviços, cabendo-lhe organizar e dirigir as atividades da instituição “Lar A...”; supervisionar a articulação dos serviços, entre eles a ERPI (estrutura residencial para idosos), o apoio domiciliário e o centro de dia, bem como a articulação entre esses serviços e a Direção do Lar; coordenar esses serviços, apurar os problemas, existentes e formular propostas da sua solução, apresentando à Direção as correspondentes propostas de melhoria e correção de procedimentos; funcionar como elemento de transmissão das ordens e diretivas junto dos diversos serviços, supervisionando o seu cumprimento e reportando-o à Direção; planear a utilização dos recursos humanos, equipamentos, materiais, instalações e capitais; e, colaborar na fixação da política financeira e verificação dos custos, concluímos que ambos assumiam posições de liderança na arguida «lar A...», nos termos do n.º 4 do artigo 11º do CP.
Por outro lado, os crimes de maus-tratos cometidos por omissão pelos arguidos pessoas físicas foram em nome e no interesse coletivo da arguida, pois que foram cometidos por quem agia em seu nome e no exercício da atividade a que se dedicava a arguida «Lar A...» - alojamento e assistência a pessoas idosas.
Finalmente, não vemos dos factos provados que os arguidos pessoas físicas tenham agido contra ordens ou instruções expressas de quem de direito. Exerciam cada um as suas respetivas funções ao serviço da arguida, exerciam-nas mal, é certo, como resulta do que acima já deixámos escrito, omitindo comportamentos que lhes eram impostos pelos cargos que exerciam, mas tal não é sinónimo de que tenham agido contra ordens ou instruções expressas de quem de direito, nem tal se verifica ou retira dos factos.
Deve, pois, a arguida «Lar A...» ser responsabilizada criminalmente pelos dezoito crimes cometidos.
Assim, ressalvando a questão da coautoria que é tão só autoria, tratando-se de um ‘minus’ qualificativo ou meramente terminológico, face ao artigo 26º do Código Penal, e portanto sem relevância para a qualificação jurídica, não merece censura a decisão proferida na primeira instância ao considerar que os arguidos AA e BB cometeram cada um deles em concurso efetivo dezoito crimes de maus tratos do artigo 152ºA, nº 1, alínea a), do Código Penal, e que a arguida ... Lar A...’, instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para pessoas idosas (ERPI) é responsável pela prática em concurso efetivo de dezoito crimes de maus tratos do artigo 152ºA, nº 1, alínea a), do Código Penal, conjugado ainda com o art.º 11.º, n.º2, al a) e n.º 4 do Código Penal.
Uma vez que improcedem os recursos na pretensão de absolvição penal, a parte civil da decisão recorrida mantém-se incólume, continuando presente o ilícito civil e os demais pressupostos do dever de indemnizar tal como decidido.
2.3.6- Determinação da medida da pena – redução da pena principal e substituição.
Os arguidos AA e BB, aqui recorrentes, impugnam também, quanto à matéria de direito, a medida das referidas 18 penas parcelares de 2 anos e 4 meses de prisão, por cada uma das vítimas e a pena única de 6 anos e 6 meses de prisão. Em resumo, argumentam que na decorrência da qualificação jurídica dos factos pelos quais foram condenados, deveriam beneficiar da atenuação especial prevista no artigo 10.º, n.º 3, do Código Penal, aproximando-se assim do mínimo legal, e eventualmente beneficiarem da suspensão da sua execução.
A arguida ‘Lar A...’, em suma, entende que deverá a medida da pena ser especialmente atenuada nos termos dos artigos 90.º-A, nº4 e 72.º e 73.º, todos do Código Penal.
Vejamos.
Face aos factos provados na decisão recorrida, atentemos no direito.
A determinação da pena (em sentido amplo) comporta três operações distintas: a determinação da moldura da pena (pena aplicável); a determinação concreta da pena (pena aplicada); e a escolha da pena, operação eventual que pode ocorrer logo na determinação da pena aplicável no caso de estar prevista no tipo legal de crime a pena de multa alternativa[26] ou posteriormente depois de fixada a pena principal, sendo que até pode ocorrer duas vezes, desde logo na escolha da pena principal (opção pela prisão) e depois na opção pela pena de substituição da principal (opção pela multa de substituição).
Nos termos do artigo 40º, nº 1 do Código Penal a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Por sua vez, dispõe o nº 2 do mesmo artigo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Prevenção e culpa são, portanto, os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena, refletindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e, portanto, o limite máximo da pena.
A medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto, ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – prevenção geral positiva ou de integração – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.
Quanto à medida concreta da pena, cabe referir que esta apura-se de acordo com o preceituado no artigo 71º, ou seja:
“... em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, atendendo “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele”.
Resulta deste preceito que são as exigências de prevenção geral que hão de definir a chamada moldura da prevenção, em que o limite máximo da pena corresponderá à medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar e o limite inferior será aquele que define o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa aquela sua função tutelar.
Dentro dessa moldura da prevenção geral, cabe à prevenção especial determinar a medida concreta.
Essa determinação em função da satisfação das exigências de prevenção obriga à valoração de circunstâncias atinentes ao facto (modo de execução, grau de ilicitude, gravidade das suas consequências, grau de violação dos deveres impostos ao agente, conduta do agente anterior e posterior ao facto, etc.) e alheias ao facto, mas relativas à personalidade do agente (manifestada no facto), nomeadamente as suas condições económicas e sociais, a sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado, etc.
Vejamos então.
Para a determinação das medidas das penas considerou-se o seguinte na decisão recorrida:
«Da determinação da/s medida/s da/s pena/s
O crime de maus tratos em apreço é punido a pena de prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos de prisão.
Nos termos do art.º 40.º, n.º1 C.Penal, é função da pena salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes e, na medida do possível, assegurar a reintegração do agente na sociedade, consagrando a prevenção geral e a prevenção especial como fundamentos legitimadores da aplicação das penas; sendo que em caso algum a pena a fixar pode ultrapassar a medida da culpa – vide n.º2 do indicado art.º 40.º. Assim, em matéria da escolha e da chamada dosimetria das penas o indicado normativo convoca neste processo a obediência aos princípios da necessidade, da proporcionalidade e, reflexamente, a proibição do excesso tal como consagrados no art.º 18.º CRP.
Concretizando de uma outra forma, à luz do disposto no art.71º. C.P., na determinação da medida concreta da pena ter-se-ão em conta, dentro dos limites abstractos definidos na lei, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o arguido; fixando-se o limite máximo de acordo com a culpa, o limite mínimo de acordo com as exigências de prevenção geral; e, a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso convenham.
No sobredito normativo pode, então, ler-se:
“1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”
Dentro desta moldura de prevenção geral actuam as exigências de prevenção especial sentidas no caso, tendo como função a socialização do agente e a sua reintegração social.
Citando Fernanda Palma in ‘As alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995:Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva’ – Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1998, AAFDL «A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva).A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».
No caso concreto constatamos que o grau de violação dos deveres impostos aos arguidos é indiscutivelmente marcante, atenta a situação de especial vulnerabilidade de cada uma das vítimas e as respectivas relações contratuais ao abrigo das quais o lar A..., através dos arguidos pessoas singulares que o representam assumiram a obrigação de prestar todos os cuidados necessários à satisfação das necessidades básicas, à preservação e manutenção da dignidade inerente à condição humana dos residentes/utentes do lar, atentando às especiais necessidades decorrentes da sua condição física e idade avançada.
Tentar justificar e enquadrar o sucedido é, perdoe-se-nos a simplicidade, tentar justificar o injustificável e até no mínimo desconcertante quando se tentou fazer crer em julgamento que simplesmente nem tudo corria bem ou que tudo até corria lindamente (?!).
Quem (como os arguidos AA e BB) gere, ‘está à frente’, organiza, dirige, supervisiona, coordena, toma decisões de um negócio de prestação de serviços de assistência e cuidados de saúde e outros a pessoas idosas (como o Lar A...) tem que criar todas as condições logísticas, físicas, equipamentos adequados, recursos materiais e humanos, com recrutamento de técnicos especializados para poder assim ser prestado um serviço com um mínimo de qualidade – o que de todo sucedeu como acima se constatou.
Na vertente dos ofendidos se dirá que já lhes bastava a velhice, a doença, as fragilidades associadas à idade e até por vezes a solidão com que têm que lidar diariamente e ainda assim foram expostos a maus tratos e tratamentos que se revelaram degradantes por quem era afinal responsável por cuidar e prestar-lhes assistência. O que revela uma grave desconsideração pelas necessidades essenciais das vítimas vetadas a um grande desrespeito, humilhação e sofrimento considerando o estado emagrecido, a evidenciada falta de higiene, as infecções/condição de doença e sintomas que apresentavam, as feridas/úlceras que evidenciavam (como veio a apurar-se de forma discriminada em relação a cada um dos utentes/ofendidos). Tudo com os inerentes reflexos numa ilicitude de condutas já acima da mediania, sendo certo que, repete-se e salienta-se, essas mesmas 18 condutas foram praticadas não de forma instantânea mas de forma protelada no tempo para chegar a tais resultados.
Em termos de prevenção geral são muito fortes, senão mesmo enormes e consabidas as respectivas exigências pelo alarme social que estes crimes provocam e dada a sua proliferação, sendo tal evidenciado desde logo pelas notícias da comunicação social – veja-se até a atenção que mereceu o caso sub-judice acompanhado bem de perto pelos ‘media’.
Os danos provocados por estes crimes são invariavelmente irreversíveis.
Relembramos nesta sede de forma mais detalhada o que foi referido em julgamento e em especial a alusão em sede de alegações finais – a APAV recebeu mais de 10.000 queixas por crimes e violência contra idosos entre 2013 e 2020. Ainda de acordo com tais informações estatísticas a que não podemos ficar alheios, dos 10.307 processos, 1814 ocorreram/foram abertos em 2020, o número mais elevado num único ano desde 2013; sendo que no ano de 2019 foram abertos 1615 processos.
E se de facto há dias de celebração ‘para tudo e mais alguma coisa’, convém reter e relembrar o dia 1 de Outubro em que se celebra o dia do idoso, proclamado na Resolução da Assembleia Geral da ONU 45/106, de 14.12.1990 – é que vamos todos envelhecer (!).
Com carácter abonatório atentamos que os arguidos não têm antecedentes criminais (embora seja o dever de todo e qualquer cidadão de se comportar de acordo com a Lei e o Direito); sendo que estão inseridos social e familiarmente como o demonstram os respectivos relatórios sociais que acima tivemos oportunidade de transcrever e para onde nos remetemos evitando nova citação sempre fastidiosa. Além do mais os arguidos estão já afastados das funções que exerciam no Lar A..., tão-pouco exercendo funções semelhantes numa qualquer outra instituição, o que faz diminuir as específicas exigências de prevenção especial de reincidência deste tipo de crime.
Sopesados estes factores e as evidenciadas exigências de prevenção, conclui-se que as penas parcelares devem situar-se todas na mesma e exacta medida, sem distinção em relação a cada um dos arguidos, pois que não se apurou um maior ou menor contributo de cada um na ocorrência de cada um dos crimes e produção dos resultados, pese embora as funções diversas que exerceram; e também sem distinção em relação a cada um dos ofendidos ofendidos pois que ainda que tivessem apresentado condições, estados físicos concretos diversos a sua condição de sofrimento psíquico e físico aparente ser equiparável e idêntica, se possível ‘medir’ ou equiparar a dor e desconsideração a que se encontrava vetada cada uma das vítimas por força dos maus tratos a que foram sujeitos. De tudo se reputando por justa/s e proporcional/proporcionais a/s pena parcelar/es de 2 anos e 4 meses de prisão quanto a cada um dos (18 ) crimes pelos quais os arguidos vão condenados.
Quanto à arguida Lar A...
A imputação dos mesmos 18 crimes a esta entidade/pessoa colectiva assenta, como acima se viu, na culpa das pessoas físicas/singulares atrás também definida e dada a sua ‘identificação funcional’ com esta instituição (art.º 11.º C.Penal).
Considerando a moldura prevista para o crime em apreço que prevê apenas a pena de prisão, somos remetidos para a imposição de uma pena nos termos definidos no art.º.90.º B C.Penal
Ainda que sendo basicamente as mesmas as considerações a propósito das concretas exigências de prevenção e mantendo o raciocínio que expendemos a tal propósito e que trazemos à colação, dando por reproduzido com as devidas adaptações, cumpre trazer nesta sede umas breves observações que apesar de ligeiramente diferenciadoras, redundam quando conjuntamente ponderadas num mesmo resultado.
Senão vejamos
Por um lado, a circunstância de o Lar A... continuar a prestar serviços e a exercer a actividade de assistência a idosos evidencia uma maior cautela e inerentes exigências de prevenção especial para acautelar a reincidência nos comportamentos como os apurados com claras e evidentes nefastas consequências em mais idosos - comparativamente com a situação dos arguidos/pessoas singulares que agora já não exercem funções tal como descritas em 1.º, 2.º dos factos provados, estando afastadas das actividades inerentes aos cuidados de pessoais idosas.
Por outro lado, não ficamos alheios à mudança de gestão e direcção do Lar A... que proactivamente tem vindo a diligenciar por alterações na ERPI, incluindo na sequência de mais uma inspecção levada a cabo pela Segurança Social.
Finalmente também à instituição não são conhecidos antecedentes criminais.
Assim sendo, pensamos ser justo e lograr legitimamente assegurar as concretas exigências sociais de prevenção a idêntica e equiparada pena parcelar de 2 anos e 4 meses de prisão em relação a cada um dos 18 ofendidos que ‘in concretu’ se transmuta em 280 dias de multa.
Impõe o artigo 77.°, nos seus n.°s 1 e 2, do Código Penal, que a punição do concurso obedeça às regras seguintes:
1. “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
2. “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
3. “Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza mantêm-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”.
4. “As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis”
A pena única conjunta será concretamente determinada de acordo com os critérios gerais do art.º 71.º do Cód. Penal e com os critérios especiais do art.º 77.º, n.º 2 do Cód. Penal, a saber, o conjunto dos factos e a personalidade do agente.
In casu deparamo-nos com as seguintes molduras:
- em relação aos arguidos / pessoas singulares – 2 anos e 4 meses de prisão, como limite mínimo e 25 anos de prisão, como limite máximo (porquanto a soma das penas parcelares importa em 40 anos de prisão)
- em relação a arguida / pessoa colectiva - 280 dias de multa como limite mínimo e 900 dias como limite máximo (porquanto a soma das penas parcelares importa em 5.040 dias de multa)
Com o sistema da pena única sanciona-se o arguido não pelo somatório dos factos praticados, mas pela imagem global do comportamento delituoso do agente – cfr. Acórdão do STJ de 16/12/20101 que ainda mantém plena actualidade.
Ao nível da apreciação global dos factos, há que atentar na circunstância de os mesmos terem sido praticados num passado ainda muito recente. Atento o modo de execução dos crimes supra descritos cuja gravidade já tivemos oportunidade de salientar e aqui trazemos de novo à colação, considerou-se que a censura a dirigir à globalidade da/s conduta/s se situava já algo acima da mediania.
Atentou-se na/s circunstância/s de os factos cometidos terem originado danosidade aos ofendidos e a que de todo podemos ficar alheios, porquanto como já o referimos, grande parte de tais danos são irreversíveis.
Entendeu-se que as necessidades de prevenção especial eram relevantes, atendendo à pluralidade de crimes cometidos e inclusivamente à dinâmica do ocorrido que se protelou no tempo pois que os resultados danosos apurados não foram de todo instantâneos.
Entende-se que as necessidades de prevenção geral eram e são ainda hoje muito elevadas, exigindo uma reacção firme do sistema de justiça penal, atenta a frequência deste tipo de criminalidade e a intranquilidade e alarme ou mesmo choque social que a mesma causa na comunidade.
Pelo que a censura a dirigir a tais comportamentos como os apurados em julgamento deve ser vincada porquanto estão em causa em última linha valores fundamentais de coesão social, de solidariedade, de respeito dignificação da condição dos mais velhos.
Assim e sem nunca perder de vista o número total de pessoas mal tratadas no Lar A... mas não deixando de atentar ao grau de inserção social, económica, familiar dos arguidos, entende-se ser de fixar a pena única mais próxima do limite mínimo e abaixo mesmo do um terço do limite máximo, reputando-se por justa a pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Quanto ao Lar A... e ponderando a sua implementação na comunidade, a continuidade da prestação de serviços com o acolhimento de idosos em ERPI, reputa-se por justa a pena única de 600 (seiscentos) dias multa
Em relação à taxa diária cumpre conjugar os limites decorrentes do art.º 47.º e 90.º-B, n.º5 C.Penal com a concreta situação económica e financeira do Lar A....Sendo certo que o legal representante do Lar, quando presente em audiência não prestou declarações, dispõe o Colectivo das informações concretas recolhidas através da acção inspectiva cujo teor e relatório consta de fls. 114 a 146 e que acima (em parte) transcrevemos e sendo certo que na mais recente acção inspectiva Proave ...70 a que supra também fizemos alusão, não houve semelhante concretização de dados informadores antes sendo tecidas considerações e apresentadas algumas apreciações críticas em sede de auditoria financeira, a propósito da prestação de contas, das existências, da tesouraria, etc (tudo sem apuramento de números ou valores específicos ou concretizados).
Tudo conjugado e sem perder de vista as características económicas da comarca em que se insere esta entidade colectiva, reputamos por razoável e proporcional a fixação de uma taxa diária de € 850,00 (oitocentos e cinquenta euros) perfazendo a multa um total de € 510.000,00 (quinhentos e dez mil euros)»

Como podemos ver da transcrição da decisão recorrida, o Tribunal na primeira das operações da determinação da pena partiu da moldura abstrata fixada no tipo incriminador do Artigo 152.º-A do Código Penal: pena de prisão de um a cinco anos. Os recorrentes entendem que deveria ter partido duma moldura especialmente atenuada por força do disposto nos artigos 10º, n.º 3 e 90º-A, n.º 4 do Código Penal.
Dispõe o artigo 10º, n.º 3 do Código Penal que nos crimes cometidos por omissão «a pena pode ser especialmente atenuada».
Esta expressa previsão pelo legislador no n.º 3 da possibilidade de atenuação especial de pena não está na norma por acaso, mas encontra-se político-criminalmente fundada no facto de o crime omissivo impróprio, apesar de equiparado tipicamente ao crime de ação, surgir em regra como dotado de uma menor dignidade punitiva que o delito de ação correspondente, resultante de um conteúdo menos grave de ilicitude e de culpa. Se foi esta a razão pela qual o legislador consagrou esta atenuação especial facultativa no artigo 10º, n.º3 do CP, há até quem na doutrina defenda que a atenuação deveria ser obrigatória para todos os delitos de omissão[27].
Não sendo a atenuação especial prevista no artigo 10º n.º3 do CP obrigatória, dependendo ainda de uma valoração autónoma do julgador, como se retira do artigo 72º do CP[28], a verdade é que a ilicitude do facto e a culpa do agente, por comparação com o crime cometido por ação, se mostram naturalmente diminuídas, como é reconhecido pela doutrina. Assim e tomando em conta as circunstâncias em que os arguidos cometerem os crimes por omissão, bem como as circunstâncias pessoais de cada um deles, sem antecedentes criminais, o arguido já com 82 anos de idade, a arguida desempregada, após despedimento do Lar A..., e com problemas de saúde, ambos integrados familiarmente, afastados das funções que exerciam nessa instituição, afigura-se que a moldura abstrata da pena de que se irá partir deve ser especialmente atenuada, nos termos dos artigos 10º, n.º3, 72º e 73º do Código Penal.
Relativamente à arguida ... Lar A...’, entendemos que deverá também beneficiar da atenuação especial da pena, nos termos dos citados artigos e também por remissão do artigo 90º-A, n.º 4 do CP, uma vez que além de o crime ser omissivo impuro a mudança de gestão e direção do Lar A... tem vindo a diligenciar por alterações na EPRI.
Temos assim que para os arguidos pessoas físicas a moldura abstrata da pena é de um mês a três anos e quatro meses.
Partindo então desta moldura abstrata e afirmando que concordamos em geral com as considerações feitas pelo Tribunal recorrido e acima transcritas, designadamente quanto à ilicitude de condutas, dentro do crime omissivo, já acima da mediania, bem como às fortes exigências de prevenção geral dada a frequência com que estes crimes contra os idosos vêm sendo cometidos. Relativamente às exigências de prevenção especial, tal como se refere na decisão recorrida, os arguidos não têm antecedentes criminais, estão inseridos social e familiarmente e estão afastados das funções que exerciam no Lar A..., não exercendo funções semelhantes numa qualquer outra instituição, o que faz diminuir as específicas exigências de prevenção especial de reincidência deste tipo de crime. Tal como o Tribunal recorrido também não vemos razão para não fixar as penas parcelares todas na mesma medida, sem distinção em relação a cada um dos arguidos, pois que não se apurou um maior ou menor contributo de cada um na ocorrência de cada um dos crimes e produção dos resultados, pese embora as funções diversas que exerceram; e também sem distinção em relação a cada um dos ofendidos pois que ainda que tivessem apresentado condições, estados físicos concretos diversos a sua condição de sofrimento psíquico e físico pode considerar-se equiparável.
Tudo visto, consideramos que, para cumprir as exigências de prevenção geral positiva e de prevenção especial de ressocialização, são adequadas e proporcionais as penas parcelares de 1 ano e 4 meses prisão quanto a cada um dos 18 crimes pelos quais os arguidos AA e BB vão condenados.
Relativamente à arguida Lar A..., a moldura abstrata da pena já especialmente atenuada, tendo em conta o disposto no artigo 90º-B, n.º 2 do CP, é de 10 a 400 dias.
As exigências de prevenção do crime são elevadas, mas por outro lado, também não podemos que como se refere na decisão recorrida, é de ter em conta a circunstância de o Lar A... continuar a prestar serviços e a exercer a atividade de assistência a idosos evidenciando uma maior cautela e por outro lado a mudança de gestão e direção do Lar A... que tem vindo a diligenciar por alterações na ERPI, incluindo na sequência de mais uma inspeção levada a cabo pela Segurança Social. À instituição não são conhecidos antecedentes criminais.
Assim sendo, afigura-se adequado e proporcionado fixar a pena parcelar de 120 dias de multa em relação a cada um dos 18 ofendidos.
Cumpre agora determinar a pena única.
Para a determinação da pena única aplicável cabe considerar como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (cf. artigo 77º, n.º 2 do Código Penal). Para a fixação da medida concreta da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (cfr. artigo 77º, n.º 1, segunda parte). Sendo as penas aplicadas de prisão e de multa, a sua diferente natureza mantém-se na pena única (artigo 77º, n.º 3 do CPP).
Apurada a moldura penal do concurso, cabe ao tribunal proceder à determinação, dentro dos limites da mesma, da medida concreta da pena conjunta do concurso, o que fará em função das exigências gerais de culpa e de prevenção (artigo 71º do Código Penal), bem como, nos termos do artigo 77º, n.º 1, segunda parte do Código Penal, tendo em consideração, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Assim, na fixação da pena única importa considerar o conjunto dos factos cometidos enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, como se de um ilícito global se tratasse, averiguando da ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza, a gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente demonstrada nos factos, com vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo sempre presentes as exigências de prevenção geral e especial, designadamente o reforço da confiança da comunidade na validade das normas violadas bem como o efeito ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele .
A moldura penal do cúmulo para cada um dos arguidos pessoas singulares é de pena de prisão de 1 anos e 4 meses de prisão a 24 anos de prisão.
Os dezoito crimes de maus-tratos que integram o concurso são numa visão global um ilícito com gravidade, pelo que as necessidades de prevenção geral positiva, no sentido do reforço do sentimento da comunidade na validade das normas violadas, se fazem sentir com relevo. Os arguidos revelaram nos factos uma personalidade indiferente ao outro e à solidariedade devida, neste caso juridicamente devida, às pessoas idosas e vulneráveis que estavam no Lar. Não obstante, ambos os arguidos têm a seu favor a ausência de antecedentes criminais, a integração familiar e social, o arguido ainda a idade avançada e a arguida BB a doença e ambos o facto de se encontrarem afastados do exercício de funções no Lar A... ou noutro qualquer.
Tudo visto, afigura-se suficiente e adequada a satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial do caso a fixação da pena única para cada um dos arguidos pessoas físicas em cinco anos de prisão.
Vista a pena única fixada coloca-se a questão da substituição da pena de prisão.
Resulta dos artigos 70º, 50º, n.º 1, 58º, n.º 1, 60º, n.º 2 e, também, do artigo 45º, todos do Código Penal, que o legislador estabeleceu um critério geral de escolha da pena: o tribunal dá preferência à pena não privativa da liberdade, sempre que, verificados os respetivos pressupostos formais de aplicação, ela realize de forma adequada e suficientes as finalidades da punição – finalidades de prevenção geral positiva e especial de socialização.
A suspensão da execução da pena de prisão prevista no artigo 50º do Código Penal tem como pressuposto formal da sua aplicação que a medida da pena imposta ao agente não seja superior a cinco anos de prisão e como pressuposto material a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daquele, em que o tribunal conclua que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as respetivas circunstâncias, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Face aos fatores já enunciados, relativamente aos arguidos AA e BB, ausência de antecedentes criminais, inserção familiar, o ser octogenário, a doença da arguida, o facto de estarem afastados das funções, tudo junto fará aumentar a eficácia da ameaça da pena de prisão no comportamento futuro dos arguidos. Acresce e com alguma importância que se poderá juntar como condição a suspensão a de execução da pena à condição de não exercer quaisquer funções em Lares de Idosos ou instituições destinadas ao apoio a idosos durante o período da suspensão.
Considerando todos estes fatores, afigura-se que, em termos de prevenção especial, as exigências preventivas relativamente a ambos os arguidos se mostram adequada e suficientemente satisfeitas com suspensão da execução da pena de prisão por um período de cinco anos.
Quanto às exigências de prevenção geral positiva, relativas à manutenção e reforço da confiança da comunidade nas normas colocadas em crise pelo comportamento criminoso dos arguidos, também não vemos que as mesmas se oponham à suspensão da execução da pena de prisão pelo longo prazo de cinco anos, sujeitos à referida condição, o que tudo junto servirá para reforçar a dita confiança da comunidade nas normas.
Assim e ao abrigo do disposto nos artigos 40º, 50º, 70º e 71º do Código Penal, a pena de prisão aplicada a cada um dos arguidos deverá ser suspensa na sua execução pelo período de cinco anos sob a condição de não exercer funções em Lares de Idosos ou instituições destinadas ao apoio a idosos
Quanto à pena única a aplicar à arguida ‘Lar A...’, considerando as normas aplicáveis ao cúmulo jurídico atrás referidas, a moldura penal é de 120 dias a 900 dias, afigura-se adequado e proporcionado ao ilícito global cometido a fixação da pena única em 300 dias de multa. Quanto á taxa diária da multa, tendo em conta o disposto nos artigos 47º e 90º-B do CP, fixa-se entre €100 e €10 000, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos com os trabalhadores. Ora, dos elementos colhidos na decisão recorrida, embora um pouco antigos, referentes à autonomia financeira, endividamento, solvabilidade, rentabilidade, origem das receitas, mensalidades pagas pelos utentes da ERPI, donativos que recebe, tendo em conta ainda a dimensão do lar, número de utentes e trabalhadores, fazendo uma estimativa, afigura-se que a taxa diária de 300 € se mostra adequada.
*

3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento aos recursos dos arguidos e, em consequência:
1- Condenam cada um dos arguidos AA e BB pela prática em concurso efetivo de 18 (dezoito) crimes de maus tratos p. e p., cada um deles, pelo artigo 152ºA, nº 1, alínea a), do Código Penal, conjugado ainda com o art.º 11º, n.º 7 do Código Penal nas respetivas 18 (dezoito) penas parcelares de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, ao abrigo do disposto no art.º 30.º e 77.º do Código Penal, condenam cada um dos arguidos nas respetivas penas únicas de 5 anos de prisão, cuja execução se suspende pelo mesmo período com a condição de não exercer quaisquer funções em Lares de Idosos ou instituições destinadas ao apoio a idosos durante o período da suspensão.
2-Condenam a arguida O Lar A..., instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para pessoas idosas (ERPI) pela prática em concurso efetivo de 18 (dezoito) crimes de maus tratos p. e p., cada um deles, pelo artigo 152ºA, nº 1, alínea a), do Código Penal, conjugado ainda com o art.º 11º, n.º 2, al a) e n.º 4 do Código Penal nas respetivas 18 penas parcelares de 120 (cento e vinte) dias de multa.
Em cúmulo jurídico, condenam a mesma arguida na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 300,00 (trezentos euros), perfazendo a multa um total de € 90.000 (noventa mil euros).
3- No mais, mantêm a sentença recorrida.
*

Custas: sem custas.

Notifique.





Porto, 27 de novembro de 2024
William Themudo Gilman
Liliana Páris Dias
José Piedade

______________________
[1] Cfr. sobre este princípio, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 2ª ed. 2017, Vol I, p. 106-107.
[2] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2007, p. 1008.
[3] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2007, p. 1010-1011.
[4] Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 2ª ed. 2017, Vol I, p. 367-368.
[5] Mário Tenreiro, Considerações sobre o objeto do processo penal, Separata da ROA, Dez 1987, p. 1024.
[6] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1981, Vol I, p. 144; Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 93-94 e 218; Mário Tenreiro, Considerações sobre o objeto do processo penal, Separata da ROA, dezembro 1987, p. 1000 e segs.
[7] Mário Tenreiro, Considerações sobre o objeto do processo penal, Separata da ROA, Dez 1987, p. 1024.
[8] Cfr. para uma exposição semelhante desta matéria, o Ac. TRP de 08.05.2019, proc. 156/16.0JAAVR-B.P1 (William Themudo Gilman), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6f2c4b6a1d4fcab68025841c0036b0e6?OpenDocument .
[9] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ªed., 2023, p. 18-20.
[10] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, O Novo Código de Processo Penal, acessível em Direito Processual Penal, Textos AAFDL, 1992, p. 113-114.
[11] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, 5ª ed., p. 167-168.
[12] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ªed., 2023, p. 198-201.
[13] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ªed., 2023, p. 138-139.
[14] Cfr. Manuel da Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal, 1991, p. 23; Helena Moniz, Privacidade e Comunicação Intrafamiliar de Informação Genética, RPCC 14, 2004, p. 225.
[15] Cfr. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, p. 792.
[16] Cfr. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, p. 795.
[17] Cfr. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, p. 796.
[18] Cfr. António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, anotação 43 ao artigo 135º, p. 173.
[19] Cfr. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, p. 738.
[20]Consultável em https://files.dre.pt/1s/19953/12/298a00/82118213.pdf , ou em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/892dcf77a366868a8025742f005086d2?OpenDocument&Highlight=0,046580
[21] Cfr. Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 332; e os Acs. TRL de 23.02.2022, proc. 1549/19.7T9SNT.L1-3(Cristina Almeida e Sousa), in https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/d1ba655d5ec630b980258806004e1710?OpenDocument ; TRP de 18.10.2023, proc. 820/21.9T9AVR.P1 (Liliana Páris Dias), in http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5dc12a3597a0089080258a6a0050aaff?OpenDocument ; TRP de 11.09.2024, proc.  4493/20.1T9MTS.P1 (Pedro Vaz Pato), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/08bda07f8560e51f80258baa004c7982?OpenDocument .
[22] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª ed., 2007, p. 905, 920.
[23] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª ed., 2007, p. 927-928;
[24] Cfr. os já citados Acs. TRL de 23.02.2022, proc. 1549/19.7T9SNT.L1-3(Cristina Almeida e Sousa), in https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/d1ba655d5ec630b980258806004e1710?OpenDocument ; TRP de 18.10.2023, proc. 820/21.9T9AVR.P1 (Liliana Páris Dias), in http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5dc12a3597a0089080258a6a0050aaff?OpenDocument ; TRP de 11.09.2024, proc.  4493/20.1T9MTS.P1 (Pedro Vaz Pato), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/08bda07f8560e51f80258baa004c7982?OpenDocument .
.
[25] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª ed., 2007, p. 1008-1010.
[26] Cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2022, 2ª edição, p.49.
[27] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª ed., 2007, p. 925-926.
[28] Cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2022, 2ª edição, p.85.