NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
ACUSAÇÃO
IRREGULARIDADE
Sumário

O juiz, no despacho a que alude o artigo 311 do Código de Processo Penal de 1998, pode conhecer da irregularidade traduzida na notificação da acusação a arguido preso por via postal em vez da sua requisição ao director do respectivo estabelecimento prisional, nos termos do artigo 123 n.2 do mesmo código, fazendo regressar o processo à fase de inquérito, a fim de ser suprido o vício.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No processo comum n.º .../01.3GNPRT do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Amarante foi proferido despacho judicial de saneamento do processo em que a Ex.ma Juíza, nos termos do art.º 311.º, n.º 1, do CPP, julgou verificada a questão prévia da omissão de notificação da acusação ao arguido e, em consequência, deu sem efeito a distribuição e determinou a remessa dos autos ao Ministério Público, em ordem à realização das diligências tidas por convenientes, para a reparação daquela omissão, tida como irregularidade de acentuada relevância, por afectar as garantias de defesa do arguido e obstar ao prosseguimento normal da lide.

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Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso, extraindo da correspondente motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1.ª Para os efeitos do artigo 196.º, n.º 2, a indicação do domicílio pelos arguidos no acto em que são submetidos a Termo de Identidade e Residência, produz todos os seus efeitos legalmente previstos, nomeadamente o da sua notificação da acusação por via postal simples, prevista no artigo 113.º, n.º 1, alínea c), ex vi, sucessivamente, dos artigos 277.º, n.º 4, e 283.º, n.º 5, todos eles do Código de Processo Penal.

2.ª A regra especial do artigo 114.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, aplicar-se-á apenas à notificação dos arguidos presos à ordem do próprio processo, não submetidos a Termo de Identidade e Residência.

3.ª Não constitui irregularidade a notificação do arguido por via postal simples, de acordo e em cumprimento estrito de normas legais.

4.ª Na douta decisão de que se recorre, interpretou-se erradamente os artigos 196.º, n.º 2, 113.º, n.º 1, alínea c), e 114.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que deviam sê-lo no sentido proposto.

5.ª Ainda que a forma de notificação constituísse uma irregularidade, a ordem de reparação não pode ser dada ao Ministério Público, nem o processo pode retomar a uma fase anterior para aquele efeito.

6.ª A M.ma Senhora Juiz a quo interpretou e aplicou conjugada e erroneamente os artigos 123.º, n.º 2, e 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nos expostos termos.

Nestes e nos melhores termos de Direito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser a douta decisão recorrida revogada e mandada substituir por outra que se pronuncie sobre o despacho de acusação e designe dia, hora e local para julgamento.
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Não houve resposta à motivação do recurso.
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Foi proferido despacho tabelar de sustentação.
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Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, referindo-se ao facto de o arguido se encontrar preso e ter sido notificado nos termos do art.º 113.º e não do art.º 114.º, n.º 1, do CPP – tendo visto, de uma passada, ser-lhe retirado o direito de construir a sua defesa – pronunciou-se no sentido de que a omissão da notificação ao arguido, nos termos do art.º 114.º, n.º 1, do CPP, da acusação do M.º P.º contra ele deduzida, constitui uma irregularidade que pode ser conhecida pelo juiz (art.º 123.º do CPP).
O Ex.mo P.G.A. manifestou ainda o entendimento que tal irregularidade “respeita ao inquérito”, cabendo ao M.º P.º proceder às diligências legalmente necessárias para a respectiva reparação (art.os 53.º, 2, b) e 263.º, n.º 1, do CPP), devendo os autos ser remetidos ao M.º P.º para suprir o lapso da omissão de notificação .
Nestes termos, foi de parecer que o recurso não deve merecer provimento.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não houve resposta.
Constatando-se a falta de certidão do despacho que o admitiu o recurso, foi solicitada à 1.ª instância certidão dessa peça processual, entretanto junta a fls. 20-22.
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Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
As questões suscitadas no âmbito deste recurso, face às conclusões que demarcam o seu objecto, são as de saber :
1) se a notificação da acusação deduzida contra arguido preso (mesmo à ordem de outro processo), por via postal simples nos termos do art.º 113.º, n.º 1, al. c) e não nos termos do art.º 114.º, n.º 1 do CPP, constitui irregularidade (conclusões 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª);
2) a verificar-se tal irregularidade, se dela pode conhecer o juiz no despacho de saneamento do processo (art.º 311.º do CPP), dando sem efeito a distribuição e determinando a remessa dos autos ao Ministério Público para a suprir (conclusões 5.ª e 6.ª).
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Das peças processuais certificadas que instruem o presente recurso, de interesse para a decisão, resulta o seguinte:
1. No proc.º.../2001, INQ.º n.º .../01-M, o arguido Joaquim... subscreveu o Termo de Identidade e Residência de fls. 8, [fls. 35 do processo principal] no qual se manuscreveu no espaço relativo à residência: ...- ... - Amarante e no espaço relativo a outro domicílio manuscreveu-se: actualmente no Est.º Prisional de Vila Real.
2. Na certidão negativa de fls. 9 [fls. 72 do processo principal] dá-se fé que, em 17/06/2002, não foi possível notificar o recluso Joaquim... do conteúdo do ofício precatório n.º 972, do Tribunal Judicial de Amarante, processo n.º .../01/M, em virtude do referido recluso ter sido transferido para o E.P. de Paços de Ferreira, definitivamente.
3. A fls. 10 [fls. 93 do processo principal] verifica-se que foi endereçada para Joaquim..., Estabelecimento Prisional, 5000 Vila Real a Notificação-Citação Via Postal Simples, remetida pelo Tribunal Judicial de Amarante Processo .../01.3GNPRT/S, com declaração do distribuidor postal, em 07-01-03, mencionando ter depositado no receptáculo Postal domiciliário da morada acima descrita a Notificação-Citação a ela referente.
4. A fls. 11-12 [fls. 99-100 do processo principal], na sequência de conclusão: em 18-02-2003, a Ex.ma Juíza exarou o seguinte despacho:
Compulsados os autos, constata-se que, para notificar o arguido da acusação, foi utilizada a via postal simples, remetida para o Estabelecimento Prisional de Vila Real (cfr. fls. 93).
Como se sabe, o despacho de acusação deve ser notificado, não só ao defensor, como ao próprio arguido (art. 113.º-9 do CPP).
De acordo com as disposições combinadas dos arts. 196º-3 e 283º-6 do CPP, e por força das alterações que nesse diploma foram introduzidas recentemente pelo D. L. n.º 320-C/2000, de 15-12, para notificar o arguido da acusação é bastante a via postal simples quando, tendo ele prestado validamente termo de identidade e residência, nele ou em requerimento posterior indique a sua residência no processo, à autoridade policial ou judiciária competente.
Trata-se, na verdade, de um dos casos em que, excepcionalmente, a lei permite a notificação por via postal simples (cfr. art. 113º-1, al. c), do CPP). Nos restantes casos, o arguido tem de ser notificado da acusação mediante contacto pessoal ou via postal registada (art. 283.º- 6 do CPP).
Todavia, a notificação de pessoa que se encontrar presa está sujeita a um regime especial de notificação - deve ser requisitada ao director do estabelecimento prisional respectivo e efectuada na pessoa do notificando por funcionário para o efeito designado - art. 114º/1 do C.P.P..
Porém, constata-se que, não só não foi observado aquele regime especial de notificação, como, além do mais, foi o PD remetido para um estabelecimento prisional onde o arguido não se encontrava, pois que, desde 28-05-2002 havia sido transferido para o Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira.
Na verdade, é certo que do TIR prestado a fls. 35, resulta que, na altura, o arguido se encontrava detido no estabelecimento Estabelecimento Prisional de Vila Real.
Todavia, compulsados os autos, do teor da certidão negativa de fls. 72, resulta que o arguido foi definitivamente transferido para Paços de Ferreira.
Verifica-se inobservância das disposições da lei do processo penal. Na falta de previsão expressa de nulidade, essa inobservância traduz irregularidade processual. Irregularidade, note-se, de acentuada relevância, porque afecta as garantias de defesa do arguido e obsta ao prosseguimento normal do processo (nos termos do art. 311º-1 do CPP). É que esse vício é capaz de inquinar, não só acto em causa (a notificação da acusação), mas também os passos subsequentes do processo, desde logo porque e susceptível de impedir o arguido, na tramitação normal dos autos, de requerer, querendo, a abertura da instrução.
Compreende-se, por isso, que seja de conhecimento oficioso, nos termos do art. 123.º 2 do CPP. Na verdade, como se decidiu no Ac. da R. L. de 8-11-2000, [In C.J. XXVI, 5.º, pág.138-140] a omissão de notificação ao arguido da acusação do MP, ou porque não se fez essa diligência, ou porque não se esgotaram os meios legais previstos para a obter, constitui uma irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente pelo juiz.
Tendo em conta, no entanto, que tal irregularidade respeita ao inquérito, e atenta as atribuições funcionais que a lei estabelece para essa fase processual, nos termos do art. 53º- 2, al. b), e 263º-1 do CPP, é ao M.º P.º que compete proceder às diligências legalmente necessárias para a respectiva reparação.
Face ao exposto, nos termos do art. 311º-1 do CPP, julgo verificada a questão prévia da omissão de notificação da acusação ao arguido e, em consequência, dou sem efeito a distribuição e determino a remessa dos autos ao MP, em ordem à realização das diligências tidas por convenientes, para a reparação daquela.
Notifique.
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Apreciação do recurso.
É contra esta decisão que o Ex.mo Magistrado do Ministério Público se insurge, argumentando, em primeira linha, que a notificação da acusação ao arguido no estabelecimento prisional de Vila Real, por via postal simples, não constitui irregularidade, e, subsidiariamente, a verificar-se uma irregularidade, a M.ma Juíza não podia dar ordem ao Ministério Público para a reparar nem o processo podia voltar a uma fase anterior para tal efeito.
Da análise dos elementos dos autos a que acima fizemos referência e da fundamentação de facto e de direito do despacho recorrido que acabamos de transcrever, entendemos que não assiste razão ao Ex.mo Magistrado Recorrente, quer em relação à primeira questão quer em relação à segunda, como passamos a justificar.
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1. Relativamente à primeira questão, bastará referir que, tratando-se da notificação de um arguido preso, sempre seria de aplicar o preceituado no n.º 1 do art.º 114.º, do CPP que determina que a notificação de pessoa que se encontrar presa é requisitada ao director do estabelecimento prisional respectivo e efectuada na pessoa do notificando por funcionário para o efeito designado. Esta norma aplica-se à notificação de qualquer pessoa que se encontre presa, independentemente da qualidade de arguido em processo que lhe diga directa ou indirectamente respeito, e aplica-se também a outras pessoas que tenham de intervir no processo, v.g., como testemunha, assistente, ou parte civil.
Assim, a notificação da acusação ao arguido Joaquim... nunca poderia ser por via postal para o estabelecimento prisional de Vila Real mas requisitada [art.º 111.º, n.º 3, al. a) do CPP] ao director desse estabelecimento prisional e efectuada por intermédio de funcionário designado para o efeito (n.º 1 do cit. art.º 114.º).
Carece de fundamento, e nem parece razoável, defender-se que “a regra especial do art.º 114.º, n.º 1 do CPP, “aplicar-se-á apenas à notificação dos arguidos presos à ordem do próprio processo, não submetidos a Termo de Identidade e Residência”, como vem alegado na 3.ª conclusão, como se o estabelecimento prisional fosse um domicílio ou residência alternativa do arguido, com as consequências legais emergentes daquele Termo. Acresce que, no processo em causa, a considerar-se o estabelecimento prisional de Vila Real como outro domicílio do arguido, até já havia informação da mudança definitiva do arguido para o estabelecimento prisional de Paços de Ferreira (cf. fls. 9).
Donde, mais se evidencia a irregularidade cometida, não podendo argumentar-se a sua inexistência através de um pretenso formalismo legal pelo facto de se ter expedido o aviso postal simples para o estabelecimento prisional de Vila Real e no Termo de Identidade e Residência de fls. 8 além da residência indicada pelo arguido em... - ... - Amarante, se ter preenchido o espaço destinado a outro domicílio com a informação: actualmente no Est.º Prisional de Vila Real, ignorando-se, no entanto, a mudança definitiva do arguido para o estabelecimento prisional de Paços de Ferreira, constante do processo, como se incumbisse ao arguido a obrigação de comunicar ao tribunal o novo domicílio no estabelecimento prisional de Paços de Ferreira, devendo sofrer as consequências legais [al. d) com referência à al. b), do art.º 196.º do CPP] de não ter comunicado a mudança de residência!
Decorre do exposto que no caso em apreço, a notificação da acusação ao arguido por via postal simples nos termos do art.º 113.º, n.º 1, al. c), em vez da notificação mediante requisição ao director do respectivo estabelecimento prisional nos termos do art.º 114.º, n.º 1, ambos do CPP, configura uma irregularidade e de acentuada relevância por coarctar as garantias de defesa do arguido, como se realçou no despacho recorrido, e como também referiu o Ex.mo P.G.A. no seu douto parecer, ao afirmar que “o arguido viu, de uma passada, ser-lhe retirado o direito de construir a sua defesa, pois o acto de que ia ser notificado era o da notificação que contra ele havia sido deduzida acusação.”
Improcede, assim, a primeira questão suscitada pelo Ex.mo Recorrente.
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2. Quanto à segunda questão, que é a de saber se no despacho de saneamento do processo a que se reporta o art.º 311.º do CPP, a Ex.ma Juíza podia conhecer de tal irregularidade e podia remeter o processo à fase de inquérito para a suprir, entendemos que o Ex.mo Recorrente também carece de razão.
Com efeito, o artigo 123.º n.º 2, do CPP dispõe que pode ordenar--se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.
Por sua vez, sobre o saneamento do processo, o art.º 311.º do CPP, estatui no seu n.º 1, que recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia--se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
Ora, no caso vertente, foi precisamente o que aconteceu. A Ex.ma Juíza, antes de se pronunciar sobre a acusação, compulsados os autos, pronunciou-se sobre a questão prévia da irregularidade da notificação da acusação ao arguido preso em estabelecimento prisional - que não feita de acordo com o estipulado no art.º 114.º, n.º 1, do CPP nem foi feita para o estabelecimento prisional onde o arguido se encontrava - e, porque se tratava de um acto de inquérito (cf. art.os 53.º, n.º 2, al. b) e 263.º, n.º 1, do CPP) e não tinham sido ainda esgotados os meios de notificação do arguido da acusa contra ele deduzida, face à informação da mudança de estabelecimento prisional constante do inquérito, bem como à residência indicada pelo arguido no TIR de fls. 8, caso estivesse em liberdade, nada mais normal do que ordenar-se a remessa dos autos ao Ministério Público para suprir a irregularidade ocorrida na fase de inquérito e logo detectada quando o processo foi apresentado em juízo, irregularidade que, como resulta da fundamentação do despacho recorrido, foi considerada - e bem - de acentuada relevância para as garantias de defesa do arguido e para o prosseguimento normal do processo, visto que o arguido tinha até a faculdade de requerer a abertura de instrução (art.º 287.º, n.º 1, al. a) do CPP), podendo nem sequer vir a ser submetido a julgamento.
A remessa dos autos ao Ministério Público, in casu, no não pode ser encarada, como uma ordem dada para reparação da irregularidade mas como um trâmite resultante da correcta aplicação das regras do processo penal quanto ao saneamento do processo, sem se olvidar que ao Ministério Público compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática. [Cf. art.º 219.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e Estatuto do Ministério Público - art.º 1.º da Lei n.º 47/86, de 15/10, com as alterações sucessivamente introduzidas até à Lei n.º 60/98, de 27/08]
Assim, no que respeita à segunda questão, entendemos que a decisão impugnada, contrariamente ao alegado pelo Ex.mo Recorrente, não violou o preceituado nos art.os 311.º, n.º 1, e 123.º n.º 2, do CPP, razão, por que improcede totalmente a sua argumentação.
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Decisão:
Pelo exposto, acordam os juizes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, manter a douta decisão recorrida.
Não há lugar a tributação.
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Porto, 10 de Dezembro de 2003
Agostinho Tavares de Freitas
José João Teixeira Coelho Vieira
Maria da Conceição Simão Gomes