ACIDENTE DE VIAÇÃO
MUDANÇA DE DIREÇÃO PARA A ESQUERDA
PRIORIDADE DE PASSAGEM
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
CAUSALIDADE
CULPA
Sumário

I – O condutor que, antes de efetuar manobra de mudança de direção à esquerda, passa a circular na hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito que circule em sentido contrário ao seu, colocou-se em local onde não se podia contar com a sua presença, assim violando, de forma grave, o princípio da confiança que rege a circulação estradal.
II – Consequentemente, o outro veículo interveniente no acidente, apesar da obrigação de cedência de passagem a veículos que se apresentem pela direita, não é responsável pelo acidente, uma vez que o embate ocorreu antes do local por onde deveria ter passado o veículo que se apresentava pela direita, onde não se podia contar com a sua presença.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Apelação nº 188/24.5YRPRT.C1

Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros – Arbitragem – Proc. n.º A/2023/736/EP

         Recorrente AA

            Recorrida A..., Sucursal em Portugal

        

         Juiz Desembargador Relator: Anabela Marques Ferreira

         Juízes Desembargadores Adjuntos:  António Domingos Pires Robalo

Sílvia Pires

Sumário (da responsabilidade do Relator – artº 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

(…).

Acordam os juízes que nestes autos integram o coletivo da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:



I – Relatório

Nos autos de arbitragem que correram termos no Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros – Arbitragem, em que é Recorrente AA e em que é Recorrida A..., Sucursal em Portugal, foi proferida a seguinte decisão:

Nesta conformidade e na parcial procedência da reclamação, condena-se a reclamada [A..., Sucursal em Portugal] a pagar à reclamante [AA] a quantia de €673,13, correspondente a 25% dos danos indemnizáveis sofridos pela reclamante, incluindo o valor do IVA da reparação do RE, mas quanto a este apenas desde que comprovado o respetivo pagamento através da respetiva fatura / recibo.

         O Recorrente AA interpôs recurso dessa decisão, concluindo, nas suas alegações, que:

         (…).

         A Recorrida A..., Sucursal em Portugal respondeu ao recurso, concluindo, nas suas contra-alegações, que:

(…).

Colhidos os vistos legais, prestados contributos e sugestões pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos e realizada conferência, cumpre decidir.



II – Objeto do processo


Da conjugação do disposto nos artºs 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 1 e 639º, todos do Código de Processo Civil, resulta que são as conclusões do recurso que delimitam os termos do recurso (sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 608º, nº 2, ex vi artº 663º, nº2, ambos do mesmo diploma legal). Assim:

Questões a decidir:
1. Da alteração da decisão da matéria de facto
2. Da responsabilidade na produção do acidente



III – Fundamentação


A) De facto

       A.1) Factos julgados provados na decisão recorrida:

NOTA PRÉVA: A factualidade dada como provada tem manifestos lapsos de escrita, que urge corrigir, o que se verifica, por um lado, da sua simples leitura, uma vez que a descrição literal efetuada é fisicamente impossível.

Por outro lado, porque está em desacordo com as fotografias juntas aos autos, para as quais se remete na fundamentação da decisão de facto.

Finalmente, porque só a factualidade corrigida, como infra se consignará, é congruente com a fundamentação de Direito da decisão, na parte em que nos diz De acordo com a factualidade provada, constata-se que a condutora do RE não respeitou o disposto nos art.s 3.º, n.º 2, 11.º, n.º 2, e sobretudo 29.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1, todos do Código da Estrada, ao não ceder a prioridade à condutora do NX que dispunha de prioridade no entroncamento junto do qual se deu o sinistro (por se apresentar pela direita e não haver qualquer sinalização de perda de prioridade ou de STOP).

Por seu turno, a condutora do NX não respeitou o disposto nos art.s 3.º, n.º 2, 11.º, n.º 2, e sobretudo 13.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, ao circular na via destinada ao sentido oposto àquele pelo qual transitava.

Ou seja, só a factualidade corrigida está em conformidade com as fotografias e com a conclusão de que a condutora do NX (que se apresentava à direita do RE) ,  ao pretender virar à esquerda, entrou na hemi-faixa contrária àquela em que seguia, acabando embater, a frente esquerda do NX com a lateral direita do RE.

Assim:

1. No dia 21/11/2022, pelas 9h, no entroncamento entre da Rua ...A e a Rua ...B (em ...), ocorreu um sinistro entre os ligeiros de passageiros com a matrícula ..-..-RE, propriedade da reclamante e conduzido pela sua esposa BB e com a matrícula ..-NX-.., cuja responsabilidade civil se encontrava transferida para a reclamada através da apólice n.º ...90, conduzida por CC.

2. A Rua ...A e a Rua ...B possuem dois sentidos de trânsito, cada um com deles com uma via de circulação.

3. O RE circulava na Rua ...B, pretendendo seguir por essa mesma via.

4. O NX provinha da Rua ...A, pretendendo aceder à Rua ...B (para passar a circular no mesmo sentido oposto ao que circulava o do RE).

5. Para esse efeito, o NX deveria realizar uma manobra de mudança de direção à esquerda.

6. No entroncamento no qual ocorreu o acidente não possui qualquer sinalização de perda de prioridade e ou de STOP, em qualquer das Ruas que nele confluem.

7. Considerando o sentido de marcha do RE, a Rua ...A situa-se à direita da Rua ...B.

8. O NX iniciou a manobra de mudança de direção à esquerda, invadindo a via da esquerda da Rua ...A.

9. O embate dá-se entre a frente esquerda direita do NX RE e a lateral traseira direita (zona da porta) do RE NX.

10. A reclamada atribuiu 75% de responsabilidade pela eclosão do sinistro à condutora do RE, conforme comunicação remetida em 29/12/2022.

11. A reparação do RE foi orçada em €2.382,50.

       A.2) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto:

Concluiu o Recorrente que Impõe-se que a “fundamentação de facto” da douta decisão arbitral “a quo” seja totalmente reformulada conforme os tópicos essenciais expostos em análise.

Respondeu a Recorrida que O Recorrente, em total desrespeito do artº 640º do C. P. Civil, não especifica nem os pontos de facto, nem os concretos meios probatórios, em que se baseia. Nem tão pouco, o Recorrente indica as passagens da gravação em que se fundamenta.

Vejamos.

Bem analisadas as alegações de recurso, verificamos que, na verdade, no que toca à dinâmica do acidente, o Recorrente não a põe em causa, discordando sim da subsunção dos factos ao Direito, efetuada pelo Tribunal Arbitral.

Apenas no que toca às consequências da paralisação do seu veículo haverá discordância quanto aos factos (e quanto à aplicação do Direito também).

Contudo, o Recorrente não concluiu formulando qualquer pedido a esse respeito, apenas tendo requerido a procedência do recurso, absolvendo assim o Recorrente do 75% de responsabilidade que lhe foi imputada em sede de decisão arbitral; ou seja, não pediu a alteração da sentença arbitral na parte em que esta apenas contabiliza 31 dias de privação de uso do veículo (sem, contudo, contabilizar a totalidade dos dias, nem consignar sequer qualquer facto a este respeito na decisão da matéria de facto).

Deste modo, esta impugnação dos factos não tem qualquer interesse, por irrelevante para o objeto do recurso.

Porém, mesmo que assim não fosse, sempre haveria de ter em conta o disposto no artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. (sublinhado nosso)

Ora, não foi cumprido o aqui preceituado, uma vez que o Recorrente apenas disse que o facto de o Reclamante/Recorrente ter ficado cerca de 95 dias sem a viatura automóvel foi atestado pela testemunha DD, bem como pela esposa do Reclamante, sem indicar as os concretos momentos da gravação correspondente[1].

Deste modo, detenhamo-nos nos factos supra descritos, devidamente corrigidos.



B) De Direito


O Tribunal arbitral atribuiu 75% da responsabilidade na produção do acidente à condutora do veículo do Recorrente. Contudo, este entende que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada, sendo a condutora do NX a única responsável pelo acidente.

In casu, apurou-se que, no dia 21/11/2022, pelas 9h, no entroncamento entre da Rua ...A e a Rua ...B (em ...), ocorreu um sinistro entre os ligeiros de passageiros com a matrícula ..-..-RE, propriedade da reclamante e conduzido pela sua esposa BB e com a matrícula ..-NX-.., cuja responsabilidade civil se encontrava transferida para a reclamada através da apólice n.º ...90, conduzida por CC.

A Rua ...A e a Rua ...B possuem dois sentidos de trânsito, cada um com deles com uma via de circulação.

O RE circulava na Rua ...B, pretendendo seguir por essa mesma via.

O NX provinha da Rua ...A, pretendendo aceder à Rua ...B (para passar a circular no sentido oposto ao que circulava o RE). Para esse efeito, o NX deveria realizar uma manobra de mudança de direção à esquerda.

No entroncamento no qual ocorreu o acidente não possui qualquer sinalização de perda de prioridade e ou de STOP, em qualquer das ruas que nele confluem.

Considerando o sentido de marcha do RE, a Rua ...A situa-se à direita da Rua ...B.

O NX iniciou a manobra de mudança de direção à esquerda, invadindo a via da esquerda da Rua ...A.

O embate dá-se entre a frente esquerda do NX e a lateral direita (zona da porta) do RE.

A reparação do RE foi orçada em €2.382,50.

Estamos aqui uma responsabilidade civil aquiliana ou extracontratual, remetendo-nos assim para os princípios gerais da responsabilidade civil, consagrados no artigo 483º, nº 1, do Código Civil[2], isto é, haverá em primeira mão que apurar se houve, por parte das condutoras, a prática de um ato ilícito, praticado com dolo ou com negligência, um dano e nexo de causalidade entre o ato ilícito praticado e o dano sofrido.

Tratando-se de acidente de viação, pode ainda haver responsabilidade pelo risco ou responsabilidade presumida.

Como nos diz o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2014, proferido no processo nº 284/07.3TCGMR.G3.S1, com sumário disponível on-line em “A culpa nos acidentes de viação na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça - Concorrência de culpa e risco - Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça Assessoria Cível”:

I - Em matéria de responsabilidade civil emergente de acidentes de viação causados por veículos automóveis, a ocorrência de uma colisão entre dois veículos automóveis pode enquadrar-se num de três tipos de situações geradoras de responsabilidade civil e da consequente obrigação de indemnizar: (i) situação de responsabilidade a título de culpa efectiva de algum ou de ambos os condutores dos veículos intervenientes na colisão (art. 483.º, n.º 1, do CC); (ii) situação de responsabilidade a título de culpa presumida do condutor de veículo por conta de outrem, a que alude o n.º 3 do art. 503.º do CC; e (iii) situação de responsabilidade pelo risco inerente à condução de veículos (arts. 503.º, n.º 1, e 506.º, n.º 1, do CC), nos casos em que se não consegue provar a culpa efectiva de algum dos condutores dos veículos intervenientes, e nenhum dos condutores está onerado pela presunção de culpa consagrada no n.º 3 do art. 503.º e o acidente não tiver sido provocado por culpa do lesado, ou por facto de terceiro, ou por causa de força maior estranha ao funcionamento dos veículos (art. 505.º do CC). (sublinhado nosso)

Mas detenhamo-nos por ora na responsabilidade a título de culpa efetiva.

As normas supostamente violadas pelas condutoras são as referidas na decisão recorrida, todas previstas no Código da Estrada.
Assim, dispõem os artºs 3º, nº 2, 11º, nº 2, 13º, nº 1, 18º, nº 2, 29º, nº 1 e 30º, nº 1, todos do Código da Estrada, referidos na decisão recorrida, que:

Artigo 3.º
Liberdade de trânsito

2 - As pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis.



Artigo 11.º
Condução de veículos e animais



2 - Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.
Artigo 13.º
Posição de marcha

1 - A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.
Artigo 18.º
Distância entre veículos

2 - O condutor de um veículo em marcha deve manter distância lateral suficiente para evitar acidentes entre o seu veículo e os veículos que transitam na mesma faixa de rodagem, no mesmo sentido ou em sentido oposto.
Artigo 29.º
Princípio geral

1 - O condutor sobre o qual recaia o dever de ceder a passagem deve abrandar a marcha, se necessário parar, ou, em caso de cruzamento de veículos, recuar, por forma a permitir a passagem de outro veículo, sem alteração da velocidade ou direção deste.
Artigo 30.º
Regra geral

1 - Nos cruzamentos e entroncamentos o condutor deve ceder a passagem aos veículos que se lhe apresentem pela direita.

         Tendo em conta a factualidade descrita, a única norma, das supra descritas, que se pode ter pode considerar ter sido violada pela condutora do RE, terá sido aquela que consagra a obrigação de ceder passagem a veículos que se apresentem pela direita.

Assim entendeu também o Sr. Árbitro, imputando-lhe a responsabilidade na produção do acidente na proporção de 75%, sendo os demais 25% da responsabilidade da condutora do NX, por circular na faixa de rodagem destinada aos veículos que circulassem em sentido contrário ao seu.

Nada se apurou quanto à violação das outras normas pela condutora do RE, nomeadamente quanto aos factos de circular em excesso de velocidade ou muito próxima da berma, como as normas referidas parecem querer indicar.

         Contudo, a dúvida que surge de imediato é a de saber se a referida condutora poderia contar com a presença do NX na faixa de rodagem destinada ao trânsito que seguia no sentido contrário ao seu, sendo que nada se apurou no sentido de que a condutora do RE tivesse visto ou sequer pudesse ver o NX.

         Pelo contrário, a condutora do NX violou a norma que obrigava a circular do lado direito da via, passando a circular do lado esquerdo, onde ninguém podia contar com a sua presença.

         Não se tratou sequer de cortar o eixo da via da Rua ...B, como comummente se vê fazer, para encurtar a manobra de mudança de direção; não, a condutora do NX passou a circular na faixa destinada ao trânsito que seguisse em sentido contrário, ainda quando se encontrava na Rua ...A.

         Portanto, a condutora do RE foi surpreendida pela presença do NX onde ele nunca poderia estar. Já o NX, tendo o embate ocorrido na confluência da Rua ...B com a primeira metade da Rua ...A, estava ainda em local onde o embate nunca ocorreria, caso o NX circulasse, como devia, na metade da via destinada ao trânsito que circulava no sentido em que seguia.

         Concluímos, assim, pela não violação da obrigação de cedência de passagem a veículos que se apresentem pela direita, uma vez que o embate ocorreu antes do local por onde deveria ter passado o veículo que se apresentava pela direita, onde não se podia contar com a sua presença, assim violando este, de forma grave, o princípio da confiança[3] que rege a circulação estradal.

         Neste sentido, ver acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de Maio de 2006, proferido no processo nº 3486/06-6, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz:

         1 – A regra da prioridade não é incondicional e nem tal direito se afigura como absoluto, não estando o condutor que goza de prioridade de passagem dispensado de tomar as indispensáveis precauções exigidas pelas circunstâncias concretas da circulação, em ordem a evitar a produção de um acidente.

2 – Segundo o princípio da confiança, resulta que condutor algum tem que contar com a inopinada e imprudente manobra de outro, que corta abruptamente a faixa da estrada em que o veículo por aquele tripulado circulava, seguindo na sua mão de trânsito, invadindo-a e impedindo a sua livre circulação. (sublinhado nosso)

Já a condutora do NX desrespeitou o disposto no artº 44º, do Código da Estrada, não executando a manobra de mudança de direção pela forma que a lei lhe impõe:

Mudança de direção para a esquerda

1 - O condutor que pretenda mudar de direção para a esquerda deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afeta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e efetuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação.

2 - Se tanto na via que vai abandonar como naquela em que vai entrar o trânsito se processa nos dois sentidos, o condutor deve efetuar a manobra de modo a dar a esquerda ao centro de intersecção das duas vias.

Pelo contrário, antes da manobra de mudança de direção à esquerda, a referida violou a obrigação de conduzir do lado direito da faixa de rodagem, prevista no artº 13º, nº 1, do Código da Estrada, passando a circular no passou a circular na via destinada ao trânsito que circulasse no sentido contrário ao seu, o que consubstancia a prática de uma contraordenação grave, cfr. artº 145º, nº 1, al. a), do Código da Estrada.

Deste modo, a condutora do NX foi a única responsável pela produção do acidente em análise, por culpa efetiva, não sendo caso de se recorrer às normas responsabilidade pelo risco

Já no que toca à responsabilidade presumida, diz-se na decisão recorrida que:

Para efeitos de imputação de responsabilidades, importaria determinar em que medida as infrações de cada uma das condutoras contribuiu para a produção do sinistro.

Mais precisamente, a imputação de responsabilidade à condutora do NX pressuporia que a reclamante e condutora do RE demonstrasse que o acidente não se teria produzido acaso o NX circulasse na sua via de trânsito e não, como sucedeu, no sentido oposto: ora, tal prova não foi efetuada.

De tal fragmento de decisão parece retirar-se que o Tribunal Arbitral terá considerado a existência de culpa presumida da condutora do RE, nos termos do disposto no artº 503º, nº 3, do Código Civil. Porém, a condutora era a esposa do proprietário, pelo que não a podemos considerar uma comissária do Recorrente, relação que teria de ser provada, o que não aconteceu.

Neste sentido, ver acórdão do Tribunal da Reção do Porto de 8 de Outubro de 2002, disponível em ECLI

I - Só se pode dizer que alguém agiu com culpa quando é imputável e perante o caso concreto, podia e devia ter agido de outro modo, só assim sendo possível formular um juízo de culpa.

II - A culpa do lesado afasta a obrigação de indemnizar, mas a prova dos factos constitutivos da culpa, por modificativos ou extintivos do direito do lesado, cabe ao réu, nos termos do artigo 342 n.2 do Código Civil.

III - O artigo 503 n.3 do Código Civil, estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, isto é, do comissário, presunção valida mesmo entre ele e os titulares do direito à indemnização.

IV - O condutor de um veículo deve ser considerado comissário quando tenha sido encarregado de uma comissão, traduzindo-se esta na realização de actos de carácter material ou jurídico e se integram numa tarefa ou função confiada a uma pessoa diversa do interessado.

V - Uma comissão implica uma relação de dependência entre o comitente e o comissário; este age mediante ordens ou instruções daquele.

VI - Não se tendo provado que o condutor do veículo agia por conta do proprietário e mediante ordens ou instruções deste não se pode concluir que o condutor era comissário e, assim, a presunção de culpa do n.3 do artigo 503 tem necessariamente de se afastar. (sublinhado nosso)

Mas, mesmo que assim não fosse, sempre entenderíamos estar afastada a culpa presumida, uma vez que, como concluímos acima, o acidente ocorreu por culpa da condutora do NX.

         No que toca às consequências de se atribuir exclusiva responsabilidade na produção do acidente à condutora do NX, nada mais há a atribuir ao Recorrente do que a totalidade do dano indemnizável, tal como fixado na decisão recorrida, ou seja, €2.692,50.

Como acima se disse, no que toca às consequências da paralisação do seu veículo, o Recorrente não concluiu formulando qualquer pedido a esse respeito, apenas tendo requerido a procedência do recurso, absolvendo assim o Recorrente do 75% de responsabilidade que lhe foi imputada em sede de decisão arbitral; ou seja, não pediu a alteração da sentença arbitral na parte em que esta apenas contabiliza 31 dias de privação de uso do veículo (sem, contudo, contabilizar a totalidade dos dias, nem consignar sequer qualquer facto a este respeito na decisão da matéria de facto).

Como nos diz António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 134 e 135:

Independentemente do âmbito definido pelo recorrente no requerimento de interposição, é-lhe ainda legítimo restringir o objeto do recurso nas alegações ou, mais corretamente, nas respetivas conclusões, indicando qual a decisão (ou parte da decisão) visada pela impugnação. Em resultado do que consta do art. 639.º, n.º 1, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação. Salvo quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que ainda não se encontrem cobertas pelo caso julgado, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem. (sublinhado nosso)

Deste modo, cumpre julgar procedente o recurso, condenando a Recorrida no pagamento ao Recorrente da quantia de € 2.692,50.



IV – Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, condenando a Recorrida no pagamento ao Recorrente da quantia de € 2.692,50 (dois mil seiscentos e noventa e dois euros e cinquenta cêntimos).

Custas pela Recorrida – artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.

         Coimbra, 26 de Novembro de 2024

         Com assinatura digital:

         Anabela Marques Ferreira

         António Domingos Pires Robalo

            Sílvia Pires (com voto de vencida)

*
Vencida, pois confirmaria a decisão recorrida.
 O facto da condutora do veículo de matrícula NX conduzir pela faixa da esquerda na Rua ...A não assume, na minha perspetiva, uma vez que não resulta dos factos provados o preciso local da via onde ocorreu o embate entre os dois veículos, relevância que lhe confira a força de ser exclusivamente causal do acidente. A violação dos deveres de atenção e cuidado que se impunham à condutora do RE, bem como a da cedência da prioridade de passagem a quem se apresentasse à sua direita apresenta-se, na ponderação com a resultante da violação na regra pela outra condutora, com uma causalidade muito mais direta e relevante, justificativa da repartição de culpas efetuada na sentença em apreço.
*
(Sílvia Maria Pereira Pires)


[1] A este propósito, diz-nos António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, 7ª edição, Almedina, 2022, pág. 199: 4. A comparação que necessariamente tem que ser feita com o disposto no art. 639.º, n.º 3 e, além disso, a observação dos antecedentes legislativos levam-me a concluir que não existe, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento. Resultado que é comprovado pelo teor do art. 652.º, n.º 1, al. a), na medida em que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento "das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do art. 639. (sublinhado nosso)
[2] Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
[3] “1. O princípio da confiança assenta no princípio da auto-responsabilidade de todos, postulando que quem age “de acordo com a norma de cuidado objectivo, deve poder confiar que o mesmo sucederá com os outros” , ou seja deve inserir-se na análise da medida do cuidado exigível – partindo-se da ideia geral de que os outros obrigados, igualmente, a um dever de cuidado, em princípio, cumprirão o seu próprio dever de cuidado.”, cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29/01/2008, proferido no processo nº 2275/07-1, disponível em www.dgsi.pt.