REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DECISÃO
ESCRITURA PÚBLICA DE ADOÇÃO
Sumário

I - O art.º 978º do CPC usa o termo mais abrangente de “decisão”, por forma que nele caibam outros “pronunciamentos” que não integrem o conceito estrito português de “sentença”.
II - Sendo essencialmente concebido para decisões proferidas por Tribunais (a letra do preceito assim o diz), no processo especial de revisão-confirmação de sentenças estrangeiras podem ser consideradas outras entidades para além dos Tribunais. Posto é que, a essas entidades tenham sido atribuídos poderes decisórios sobre direitos privados, no sentido de terem sido investidas em poderes de autoridade.
III - Para se apurar se uma escritura pública constitui ou não uma decisão para efeitos do art.º 978º do CPC, há que atender que as escrituras podem ser constitutivas ou simplesmente declaratórias (cf. pontos 4.1., 4.2. do AUJ nº 10/2022), conforme haja ou não uma decisão do notário/tabelião, no sentido de alteração/mudança na ordem jurídica existente ou, simplesmente, se ele se limita a “atestar, constatar ou certificar as declarações emitidas pelos interessados”.
IV - Se a escritura se limita a dar “fé-pública” das declarações prestadas pelos outorgantes, o tabelião nada decidiu sobre a conformação jurídica e material da situação de facto, sobre a verificação dos requisitos legais que os outorgantes lhe estavam a reportar, pelo que não integra uma “decisão”.

Texto Integral

Revisão/confirmação sentença nº 255/24.5YRPRT




ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO




I- Resenha do processado

1. AA, portadora do passaporte emitido pela República Federativa do Brasil nº ...99, válido até 03/04/2026, NIF ...75, residente na rua ..., ..., ..., intentou a presente ação de revisão de sentença estrangeira contra BB e esposa, CC, residentes na Avenida ..., ..., ..., pretendendo ver revista e confirmada a escritura pública de adoção da Requerente AA pelos Requeridos.
Alegou que, tendo nascido a ../../1972 em ..., ..., Brasil, e sendo filha biológica de DD e de EE, desde tenra idade foi criada e educada pelos Requeridos, que velaram pela sua saúde, bem-estar e educação, tendo-se desenvolvido entre eles forte ligação emocional e afetiva. Já maior de idade, em novembro de 1990, foi lavrada escritura pública destinada a formalizar a adoção da Requerente pelos Requeridos pelo que, a partir dessa data e até hoje, a Requerente passou a figurar como filha dos Requeridos em toda a documentação oficial. Pretende, pois, ver tal vínculo de adoção ser reconhecido em Portugal.
2. Citados os Requeridos, não foi deduzida oposição.
O processo foi facultado às partes e ao Exm.º Magistrado do Ministério Público (Mº Pº) para alegações.
A Requerente considerou verificados os pressupostos necessários à procedência do pedido.
O Mº Pº suscitou a incompetência material deste Tribunal da Relação, pugnando pela absolvição da instância.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



II - FUNDAMENTAÇÃO

3. Sobre a competência material deste Tribunal
O Mº Pº invocou incompetência deste Tribunal da Relação do Porto em razão da matéria por considerar que, tratando-se duma adoção internacional, a revisão da mesma compete à Autoridade Central para a adoção Internacional que, em Portugal, é o Instituto de Segurança Social, IP (ISS): art.º 96º al. a) do CPC e art.º 1º nº 2 al. b), 2º al. a), 64º nº 3 e 90º nº 2, todos do Regime Jurídico do Processo de Adoção (RJPA) aprovado pela Lei nº 143/2015, de 08 de setembro.
Começaremos por referir que, tendo em conta as definições contempladas no art.º 2º do RJPA não é aqui de considerar estarmos perante uma “adoção internacional” pois que esta é aí definida como “processo de adoção, no âmbito do qual ocorre a transferência de uma criança do seu país de residência habitual para o país da residência habitual dos adotantes, com vista ou na sequência da sua adoção”.
Ou seja, se bem interpretamos, aí contempla-se o âmbito do processo destinado ao decretamento e efetivação duma adoção [[1]]. No presente caso, a adoção já está concretizada e, por esta ação, pretende-se apenas a revisão duma adoção já decretada noutro país, com vista a obter o seu reconhecimento na ordem pública portuguesa.
Por outro lado, decorre da conjugação das alíneas a) e d) desse art.º 2º do RJPA que só falamos de “adoção” quando estamos perante crianças, entendendo-se por tal as pessoas menores de 18 anos e que não se encontrem emancipadas.
No caso, a Requerente é de maioridade (nascida em ../../1972), e já o era quando foi outorgada a escritura pública de adoção (12/11/1990).
Quando assim é, ou seja, nas situações em que não estão verificados os pressupostos para se considerar estarmos perante uma adoção internacional, designadamente por a adotanda ser pessoa de maioridade, «(…) não é o art.º 90.º/2 do RJPA convocável para definir quem é competente para o reconhecimento da sentença de adoção em causa (ou seja, para o reconhecimento de tal sentença de adoção, não é competente a Autoridade Central, prevista no RJPA), sendo-lhe aplicável o sistema tradicional de controlo prévio de revisão e confirmação das decisões estrangeiras por parte dos órgãos jurisdicionais, ou seja, o processo especial previsto no art.º 978.º e ss. do CPC.» [[2]]
Concluindo, improcede a exceção dilatória suscitada pelo Mº Pº.

4. O tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria, hierarquia e território.
Inexistem nulidades absolutas.
Dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, as partes são legítimas.
Sem outras nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer.

5. Os factos que relevam (colhidos das certidões juntas aos autos):
· AA nasceu no dia ../../1972, em ..., Estado ..., República Federativa do Brasil, sendo filha biológica de DD e EE.
· No dia 12 de novembro de 1990, foi lavrada escritura pública, constante de fls. 159 e 159, verso, do Livro 00436N, do 5º Tabelionato de Notas, da cidade ..., Estado ..., República Federativa do Brasil, perante o Oficial/ Tabelião do referido Cartório, na qual participaram a Requerente e os Requeridos e na qual estes declararam adotar aquela, que declarou aceitar a adoção.

6. Apreciando o pedido de revisão/confirmação
Como se sabe, os atos praticados por autoridades estrangeiras só produzem efeitos nos respetivos países. Para produzirem efeitos noutro país necessitam de um procedimento de reconhecimento. Em Portugal, esse procedimento é o processo especial de revisão/confirmação de sentenças estrangeiras.
O processo especial de revisão/confirmação de sentenças estrangeiras visa, portanto, que decisões estrangeiras produzam efeitos na nossa ordem jurídica, que se lhe confira o denominado exequatur [[3]].
De acordo com o nº 1 do art.º 978º do Código de Processo Civil (CPC), “(…), nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada”. (sublinhado nosso)
Já o art.º 978º usa o termo mais abrangente de “decisão”, por forma que nele caibam outros “pronunciamentos” que não integrem o conceito estrito português de “sentença”.
«Nos diversos preceitos que regulam este processo especial de revisão, na identificação do seu objeto, tanto se utiliza o termo “decisão” como “sentença”. Esta distinção evidencia, desde logo, que o âmbito objetivo do processo especial não se limita exclusivamente às típicas “sentenças” emanadas dos tribunais, nos moldes consagrados no nosso ordenamento jurídico. (…) Ou seja, a menção a “tribunal estrangeiro” abarca também qualquer autoridade à qual o Estado de origem tenha cometido o poder jurisdicional.» [[4]]
Seja como for, independentemente de se puderem considerar outras entidades para além dos Tribunais, cremos ser de entender que o processo especial de revisão-confirmação de sentenças estrangeiras se reporta essencialmente a decisões proferidas por Tribunais (a letra do preceito assim o diz).
No entanto, não se podendo escamotear a evidência do fenómeno de desjudicialização [[5]] que grassa um pouco por todo o mundo — como acontece também entre nós, por exemplo com as Conservatórias de Registo Civil (entidade de natureza administrativa), às quais foi legalmente atribuída competência para o decretamento dos divórcios por mútuo acordo —, concordamos que, por analogia, se possam considerar outras entidades para além dos Tribunais.
Posto é que, a essas entidades tenham sido atribuídos poderes decisórios sobre direitos privados, no sentido de terem sido investidas em poderes de autoridade.
Olhando o caso em concreto, efetivamente o Código Civil do Brasil de 1916 permitia a adoção por meio de escritura pública, a cargo dos tabeliões.
Para além do problema da competência/poderes da entidade que elaborou a escritura, importa apurar se estamos efetivamente perante uma decisão (no sentido de “resolver”, “optar” entre uma de várias soluções possíveis).
Não se duvidará que, de per si, um notário/tabelião (entidade de natureza administrativa em muitos sistemas jurídicos, designadamente no Brasil), pese embora a atribuição de fé pública aos atos por si praticados, não tem natureza jurisdicional.
Sobre o conceito de decisão, é de chamar à colação o recente acórdão uniformizador de jurisprudência (AUJ) nº 10/2022, de 24 de novembro [[6]], que uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos: «A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja suscetível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil.»
Não obstante aí se tenha tratado de uma relação jurídica de “união estável”, e aqui de uma de “adoção”, entendemos que a fundamentação desse AUJ deverá relevar aqui no que toca ao conceito de “decisão”.
Para assim decidir, o AUJ abordou o conceito de “decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro” para efeitos do art.º 978º do CPC e concluiu que o «conceito de decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, deve interpretar-se no sentido de designar "tão somente a decisão revestida de força de “caso julgado” que recaia sobre “direitos privados”, isto é, sobre matéria civil e comercial".
Aí também se analisou a necessidade de atender que as escrituras públicas podem ser constitutivas ou simplesmente declaratórias (cf. pontos 4.1., 4.2. do AUJ), conforme haja ou não uma decisão do notário/tabelião, no sentido de alteração/mudança na ordem jurídica existente ou, simplesmente, se ele se limita a “atestar, constatar ou certificar as declarações emitidas pelos interessados”.
Ora, a escritura pública aqui em causa foi meramente declaratória. Na verdade, aí se diz: «(…) compareceram partes entre si justas e contratadas, a saber: de um lado, com outorgantes adotantes, o Sr. (…); e de outro lado, como outorgada adotada a Srta (…). E, perante as mesmas testemunhas, pelas partes, falando cada um por sua vez, foi dito o seguinte: (…) os outorgantes adotantes vinham adotar, como efetivamente adotam, a outorgada adotada AA (…) tudo em conformidade com o disposto no artigo 368, do Código Civil Brasileiro e legislação complementar. Pela outorgada adotada, (…) foi dito que era verdade todo o acime exposto e que aceitava essa escritura em todos os seus termos, tal como está redigida. E de como assim o disseram, do que dou fé, lavrei este instrumento, que lhe sendo lida em voz alta, acharam conforme, outorgam e assinam (…).»
Resulta claramente deste texto que o Sr. Tabelião não ponderou/apreciou os requisitos legais a observar para constituição da adoção, designadamente no tocante à pessoa dos adotantes (art.º 368º e 369º do CC brasileiro de 1916) e à existência ou não de filhos biológicos (art.º 377º do mesmo diploma).
A escritura pública aqui em questão limita-se a dar “fé-pública” das declarações de vontade prestadas pelos outorgantes. O tabelião nada decidiu sobre a conformação jurídica e material da situação de facto, sobre a verificação dos requisitos legais que os outorgantes lhe estavam a reportar.
Rui Manuel Moura Ramos também distinguiu este aspeto como essencial na anotação que fez ao acórdão do STJ de 10/12/2019 (estava em causa também uma escritura pública de união estável) [[7]], nos seguintes termos:
«Simplesmente, o acto público em questão (uma escritura pública) não homologa a declaração dos cidadãos privados, nem traduz, como o assinala numa fórmula mais assertiva uma outra decisão judicial já referida, qualquer caução administrativa dada àquela declaração «pela ordem jurídica em que foi produzido». Limita-se, ao invés, a dar fé pública a esta declaração, certificando a sua emissão pelos interessados, mas não já a correspondência dessa declaração com a realidade.
Trata-se, pois, de um acto autêntico, no sentido de que é exarado por oficial público, maxime por notário, ou, nas palavras da nossa lei civil, de um «documento exarado, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública».» (…)
«Diferentemente, no caso dos autos, não existe qualquer acto de hetero-determinação, uma vez que, no acto que pratica, a entidade que lavrou a escritura pública se limita a recolher as declarações dos companheiros, dando-lhes fé pública e não emitindo, por sua parte, qualquer declaração ou determinação.» (…)
A escritura pública visa assim objectivos a um tempo probatórios e de regulação, mas não envolve qualquer elemento de hetero-determinação (…)»
Concluindo, a escritura pública aqui em causa não constitui uma “decisão” para efeitos do art.º 978º do CPC.




7. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO

8. Pelo que fica exposto, efetuada a revisão, nega-se reconhecimento e confirmação à escritura pública outorgada em 12 de novembro de 1990, constante de fls. 159 e 159, verso, do Livro 00436N, do 5º Tabelionato de Notas, da cidade ..., Estado ..., República Federativa do Brasil, perante o Tabelião do referido Cartório, na qual participaram a Requerente AA, e os Requeridos BB e esposa, CC, na qual estes declararam adotar aquela, que declarou aceitar a adoção.

Custas a cargo da Requerente, face ao decaimento.





Porto, 21 de novembro de 2024

Isabel Silva, a 1.ª Adjunta que por vencimento elaborou o Acórdão

Aristides Rodrigues de Almeida, 2º Adjunto

António Carneiro da Silva, o Relator cujo projeto ficou vencido e que discorda da decisão que fez vencimento nos termos da seguinte declaração:
[VOTO DE VENCIDO: «Com todo o respeito pela posição que fez vencimento, discordo da decisão de não reconhecimento do acto pelo qual, a 12 de Novembro de 1990, perante oficial público da República Federativa do Brasil, entre autora e réus se estabeleceu o vínculo jurídico da adopção.
Desacordo que resumidamente decorre das seguintes reflexões.
Em primeiro lugar, e começando por concordar com a posição aqui maioritária, não se me oferece dúvida que, por princípio, o procedimento regulado nos artigos 978º e ss do Código dirige-se, não a negócios jurídicos ou a actos jurídicos voluntários, mas a decisões judiciais proferidas por tribunais estrangeiros sobre relações jurídicas de direito privado – como, desde logo, decorre da letra do nº 1 do artigo 978º do Código de Processo Civil; mas, também, da exigência do trânsito em julgado da decisão a rever [alínea b) do artigo 980º do Código de Processo Civil], expressão habitualmente utilizada para indicar a definitividade do resultado da actividade judicial; e, ainda, dos diversos conceitos próprios de um procedimento judicial referidos nas diversas alíneas do artigo 980º e nas alíneas a), c) e g) do artigo 696º [estas aqui relevantes face ao disposto no artigo 983º do CPC], ambos do Código de Processo Civil [sentença; exclusiva competência dos tribunais; litispendência; caso julgado; tribunal estrangeiro; citação para a acção; tribunal de origem; etc, etc].
Ou seja, o reconhecimento e confirmação em primeira linha dirigem-se à hétero definição do direito, definitiva e executória, no âmbito de relações jurídicas privadas, levada a cabo por órgãos integrados na ordem judicial de um Estado estrangeiro, independentemente do nome que este dê a esses órgãos e ordem.
Mas não haverá dúvida que, para além dos actos e negócios jurídicos estritamente voluntários produtores de efeitos na ordem jurídica e das decisões judiciais com os seus naturalmente inerentes efeitos jurídicos, facilmente uma terceira categoria será pensável, integrada pelos actos definidores do direito, no âmbito de relação jurídicas privadas, tomados por outras autoridades estaduais.
A este propósito curioso é constatar que já desde o Código de Processo Civil de 1961 consta de lei expressa [cfr artigo 1094º do CPC/1961, norma intocada pelas reformas de 1967 e 1995, e que apenas foi alterada pela Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro, que aprovou a nova Lei da Arbitragem Voluntária, passando esta a regular nos seus artigos 55º e ss um específico procedimento a este propósito], afastando qualquer dúvida sobre a matéria, a possibilidade de revisão e confirmação de decisões proferidas no estrangeiro na sequência de arbitragem voluntária, caso que parece notoriamente extravasar o estrito âmbito de revisão das decisões judiciais, embora, segundo a melhor doutrina, mantendo-nos no plano jurisdicional [sobre a natureza da arbitragem voluntária (mero contrato pelo qual as partes conferem mandato aos árbitros ou verdadeiro órgão jurisdicional ?), veja-se o decidido pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 230/86, de 08 de Julho, publicado no Diário da República, I série, nº 210, de 12 de Setembro de 1986].
Mas, fruto da proliferação de soluções de conflitos alternativas aos mecanismos tradicionais que acompanhou o mundo moderno na sua crescente procura de rapidez e eficácia, no ordenamento jurídico português podemos encontrar diversos casos de actos que, não emanando de órgãos judiciais nem sequer jurisdicionais, trazem evidentes modificações a relações jurídicas privadas e na sua base possuem notoriamente algo mais que a simples vontade dos titulares ou interessados nessas relações jurídicas, e ainda que em certos casos tais actos surjam em espaços de consenso, em medida menor [casos flagrantes reconduzir-se-ão à decisão de executoriedade proferida no âmbito dos procedimentos de injunção, nacional e europeia, sem oposição, bem como à partilha de herança por inventário notarial] ou maior [caso da possibilidade de divórcio por mútuo consentimento decidido pelo conservador do registo civil].
Ora, também nestes casos assistimos a uma hétero definição do conteúdo de relação jurídico-privada susceptível de se tornar definitiva e executória, pelo que mal se compreenderia que, estando em causa acto semelhante proferido por entidade estrangeira, não fosse susceptível de revisão e confirmação para produção dos seus efeitos em Portugal.
Num outro plano, vemos que, em Portugal, numa sentença homologatória de transacção proferida no âmbito do processo comum declarativo, a força da regulação que daí decorre essencialmente assenta no acordo das partes, limitando-se a decisão judicial a aferir da legitimidade substantiva dos intervenientes para assumir a concreta vinculação acordada, e da adequação desta ao ordenamento jurídico vigente – mas também nesta situação não vemos que possa haver qualquer dúvida que, tratando-se de decisão homologatória proferida por tribunal estrangeiro, seja susceptível de revisão e confirmação para valer em Portugal.
E é procurando encontrar uma solução equilibrada em todo este conjunto de hipóteses que o nosso Supremo Tribunal de Justiça tem sistematicamente defendido que o segmento “decisão sobre direitos privados” constante do corpo do artigo 978º do Código de Processo Civil deve entender-se de modo amplo, «de modo a abranger decisões proferidas quer por autoridades judiciais quer por autoridades administrativas», nele se incluindo, designadamente, a escritura pública através da qual na República Federativa do Brasil é possível realizar o divórcio consensual entre os cônjuges [esta tem sido a pacífica orientação do nosso Supremo Tribunal de Justiça na matéria – cfr, a este propósito, e por todos, o decidido pelo STJ nos seus acórdãos de 25 de Junho de 2013, processo nº 623/12.5YRLSB.S1, e de 07 de Julho de 2022, processo nº 2201/21.9YRLSB-A.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.jstj.pt/].
O que parece ser a única solução razoável possível se tivermos em conta que «reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado requerido, Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem, Estado a quo), ou pelo menos alguns desses efeitos», em ordem a «assegurar a continuidade e estabilidade das situações da vida jurídica internacional, a fim de que os direitos adquiridos e as expectativas dos interessados não sejam ofendidos» [Prof. Ferrer Correia, in “Lições de Direito Internacional Privado”, tomo I, Almedina, 2000, página 454] – ou, nas palavras quase centenárias do Prof. Alberto dos Reis, «o estado a que chegou, entre as nações civilizadas, a vida jurídica internacional», exige que a regulamentação desta área se se afaste o «princípio da desconfiança para com as jurisdições dos outros Estados, princípio contrário às normas e às exigências da comunidade internacional» [“Processos Especiais – volume II (obra póstuma), reimpressão, Coimbra Editora, 1982, páginas 141 e 142].
Mas, obviamente, não podemos esquecer que o nosso Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão uniformizador nº 10/2022, de 24 de Novembro, fixou jurisprudência no sentido de considerar que a escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados, por isso não sendo susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos artigos 978º e seguintes do Código de Processo Civil.
Tendo presente esta hipótese e aquela outra em que o divórcio entre os cônjuges resulta de acto consensual celebrado por escritura pública, estando em causa actos não jurisdicionais através dos quais os seus intervenientes estabelecem regulação relativa a uma relação jurídico-privatística, mas valorados de forma oposta pelo nosso supremo tribunal, obviamente cabe perguntar onde fixar a linha de fronteira que determina o ponto a partir do qual se exige a revisão e confirmação pelos tribunais portugueses.
O acórdão uniformizador adianta-nos a resposta – «O conceito de decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, deve interpretar-se no sentido de designar "tão somente a decisão revestida de força de 'caso julgado' que recaia sobre 'direitos privados', isto é, sobre matéria civil e comercial».
Em consequência, «face ao conceito de decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, do art. 978.º do Código de Processo Civil, deverá averiguar-se: I- se a escritura pública (…) contém uma decisão; II- se a escritura pública (…) contém uma decisão revestida de força de caso julgado».
Ora, parece claro que a definição de tais elementos exige a interpretação do conteúdo do acto vertido no acto não judicial nem jurisdicional cuja revisão é pretendida [no caso, uma escritura pública], no contexto do conjunto de normas que no ordenamento jurídico em que o acto foi produzido fixaram a sua validade, a sua eficácia e os seus efeitos – em paralelo, aliás, com a regra do direito internacional privado que impõe a interpretação do sentido da lei estrangeira no contexto do sistema a que pertence [artigo 23º do Código Civil].
Recordemos o teor literal da escritura pública em causa, no que para agora releva: «pela presente escritura, e nos melhores termos de direito, os outorgantes adotantes vinham adotar, como efectivamente adotam, a outorgada dotada (…). Pela outorgada adotada, perante as mesmas testemunhas foi dito que era verdade todo o acima exposto e que aceitava essa escritura em todos os seus termos, tal como está redigida. E de como assim o disseram, do que dou fé, lavrei esse instrumento (…)».
Não oferece dúvida que na base do acto se encontra a manifestação de vontade das partes, aqui autora e réus, no estabelecimento do vínculo da adopção.
Mas a intervenção do oficial público, sancionando a sua regularidade, mostra-se determinante ao válido e eficaz estabelecimento do vínculo – designadamente, tal como sucede com uma sentença homologatória de transacção no âmbito de um procedimento judicial, verificando a legitimidade substantiva dos intervenientes face ao acto e a adequação do conteúdo deste ao ordenamento jurídico.
Em Novembro de 1990, data da escritura pública que nos ocupa, vigorava já a Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de Outubro 1998 [texto disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm], que, no § 5 do seu artigo 227º, deixava para a lei comum a regulação do regime jurídico da adopção, mas impondo que a constituição do vínculo sempre estaria dependente da chancela estadual [A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei (…)].
Por essa altura sobre a matéria regia ainda o Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, aprovado pela Lei nº 3071, de 01 de Janeiro de 1916 [disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm], que admitia a adopção de maiores de idade [artigo 373º - O adotado, quando menor ou interdito, poderá desligar-se da adoção no ano imediato ao ano em que cessar a interdição ou a menoridade (sublinhado nosso)], e no seu artigo 375º expressamente previa a formalização da adopção por escritura pública, formalidade notoriamente ad substantiam [cfr ponto I. do corpo do artigo 134º do Código Civil Brasileiro de 1916], dotando o acto de fé pública e fazendo prova plena do mesmo [§ 1º do artigo 134º, sempre do Código Civil Brasileiro de 1916].
Por isso, face à lei vigente no momento da sua outorga, parece claro que a homologação pelo tabelião do acto de vontade manifestado por autora e réus constituía pressuposto constitutivo e gerador do vínculo jurídico da relação jurídica de adopção, independentemente de obviamente ter origem no acordo das partes.
Tal conclusão mostra-se claramente reforçada pela evolução legislativa posterior, designadamente a aprovação da Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002, que instituiu o novo Código Civil Brasileiro, actualmente em vigor [disponível em https://www.jusbrasil.com.br/legislacao/91577/codigo-civil-lei-10406-02#adocao], entrado em vigor 1 ano após, que, no seu artigo 2035º, subordina a apreciação da validade dos actos e negócios jurídicos à lei vigente na data da sua prática, mas determina a aplicação imediata dos preceitos da lei nova aos efeitos dos actos e negócios praticados em momento anterior.
Por isso, se nos afigura indiscutível, nos termos acima expostos, que, face à lei em 1990 vigente na República Federativa do Brasil, o acto praticado pelo tabelião do 5º Tabelionato de Notas, da cidade ..., Estado ..., foi determinante à constituição de uma específica relação de natureza jurídico-privada, saber se o mesmo deve ser considerado equiparável a uma decisão revestida de força de caso julgado representa questão a analisar face aos efeitos jurídicos que o novo Código Civil Brasileiro passou a reconhecer às escrituras públicas de adopção celebradas em data pretérita.
Ora, a lei nova, no seu artigo 1619º, continuou a expressamente prever a possibilidade de adopção de maiores de idade, determinando a aplicação a essa hipótese, com as devidas adaptações, das regras fixadas na Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990 [vulgarmente apelidada de ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente], que entrou em vigor em 14 de Outubro de 1990 [artigo 266º desta Lei nº 8.069], ou seja, já vigente no momento da outorga da escritura pública que nos ocupa.
E desse regime jurídico resulta, com relevo para a situação que nos ocupa, que a adopção é por princípio irrevogável, e atribui a condição de filho ao adoptado, com os mesmos direitos e deveres, desligando-o dos vínculos jurídicos com os pais biológicos e outros parentes [§ 1º do artigo 39º e artigo 41º, ambos da Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990].
Como diferença notória face à regra legal pretérita, a lei brasileira exige hoje a prolação de uma sentença judicial como requisito constitutivo da relação jurídica de adopção [seja quanto o adoptado é menor de idade (artigo 47º da Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990), seja quanto é maior (artigo 1619º do Código Civil)], pelo que, conclui-se, às escrituras públicas de adopção validamente celebradas antes de 2003, face à norma transitória fixada no artigo 2035º do novo Código Civil Brasileiro, devem ser reconhecidos os mesmos efeitos jurídicos que hoje decorrem da prolação de decisão judicial constitutiva do vínculo da adopção.
Ou seja, e se bem se interpreta, a escritura pública por autora e réus outorgada em Novembro de 1990 passou a possuir efeitos jurídicos equiparáveis a uma sentença judicial, desde logo para o ordenamento jurídico do país onde foi celebrada.
E se o essencial, na questão que nos ocupa, será discernir os efeitos a ligar a determinado acto constitutivo de direitos provados, por forma a não ofender os direitos e legítimas expectativas dos titulares da relação jurídica a que esse acto se refere, simplesmente não se vê motivo relevante que impeça a conclusão de, no caso, estarmos perante decisão estrangeira susceptível de revisão nos termos dos artigo 978º do Código de Processo Civil, por forma a ser executada, designadamente, através da inscrição no registo civil dos seus efeitos.
Pensa-se valerem aqui, plenamente, as considerações explanadas na declaração de voto exarada pela Exmª. Conselheira Ana Paula Bolarot no âmbito do acórdão uniformizador nº 10/2022, de 24 de Novembro - «Se é certo que uma escritura não é uma sentença, não menos certo será que uma interpretação actualista e universal da lei impõe que no processo especial de revisão de sentença estrangeira se deva atribuir um sentido amplo ao termo decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, considerando abrangidos quer as decisões dos tribunais, quer as decisões de entidades administrativas, caso a lei do país de origem atribua relevância jurídica à referida entidade (…), desde que essa decisão se mostre conforme aos requisitos formais previstos pelo artigo 980º do CPCivil, sendo este o sentido maioritário da jurisprudência mais recente produzida por este Supremo Tribunal de Justiça».
A conjugação destes elementos conduzem-me a divergir frontalmente do entendimento que no caso logrou vencimento, pelo que consideraria «decisão», para o que nos ocupa, o acto a 12 de Novembro de 1990 lavrado por escritura pública constante de fls 159 e 159, verso, do Livro 00436N, pelo tabelião do 5º Tabelionato de Notas da cidade ..., Estado ..., República Federativa do Brasil.
E, porque considero ainda notório que a possibilidade de adopção de maior de idade «não possui a virtualidade de infringir regras e princípios basilares e fundamentais de um Estado de Direito no seu relacionamento com a ordem pública internacional» [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Maio de 2015, processo nº 657/13.2YRLSB.S1, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/657-2015-90103775], independentemente de em Portugal não ser admissível [cfr nº 2 do artigo 1980 do Código Civil], julgaria procedente a acção e concederia a confirmação e a revisão.»].

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[[1]] Entendendo-se por “processo de adoção”, o conjunto de procedimentos de natureza administrativa e judicial, integrando designadamente atos de preparação e atos avaliativos, tendo em vista a prolação da decisão judicial constitutiva do vínculo da adoção, a qual ocorre na sequência de uma decisão de adotabilidade ou de avaliação favorável da pretensão de adoção de filho do cônjuge.
[[2]] Acórdão do STJ de 15/02/2023, processo nº 76/22.0YREVR.S1, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[[3]] Palavra latina que significa "execute-se".
[[4]] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 2ª edição, Almedina, pág. 445-446, anotação ao art.º 978º.
[[5]] Decorrente de vários fatores do funcionamento do sistema de Justiça, foi-se assistindo a um processo de desjudicialização do direito, retirando do âmbito dos Tribunais certas questões que costumavam ser da sua competência exclusiva, bem como a possibilidade de determinadas relações jurídicas serem decididas através de outros instrumentos que não o clássico processo judicial, os denominados “meios alternativos de resolução de conflitos” (mediação, arbitragem, etc.).
[[6]] Proferido no processo nº 151/21.8YRPRT.S1-A e publicado no Diário da República de 24/11/2022-11-24.
[[7]] In “Lex Familiae”, Ano 18, nº 35 (2021), disponível em file:///F:/RELA%C3%87%C3%83O%20PORTO/SESS%C3%83O/Mura%20Ramos_%20Revis%C3%A3o%20senten%C3%A7a%20estrangeira%20escritura%20uni%C3%A3o%20facto%20brasil_%20%20Rev_35_LexFamiliae.pdf, pág. 117 a 119.