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VEÍCULO APREENDIDO
QUEDA DE ÁRVORE
TEMPORAL
DANOS NO VEÍCULO
RESPONSABILIDADE DO ESTADO
Sumário
(da responsabilidade da Relatora) I - A queda da árvore existente no parque da PSP onde o veículo apreendido se encontrava na sequência de um temporal que atingiu a região de Lisboa (com muito vento, por vezes forte) não consubstancia facto ilícito imputável ao Recorrido, não integrando, por conseguinte, a previsão artigo 483º, nº 1, do C. Civil.
Texto Integral
Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
L., Sucursal em Portugal, identificada nos autos, instaurou acção declarativa com processo comum contra o Estado Português pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 29.379,53 euros, acrescida de juros de mora à taxa legal.
Para tanto invocou ser proprietária do veículo automóvel 01-13-...., apreendido no âmbito de inquérito crime desde 5.7.2016 até 12.11.2019, alegando que durante esse período o veículo sofreu, em virtude de queda de árvore e por ter estado parado ao ar livre sem qualquer manutenção, os danos cuja ressarcimento reclama.
Mais reclamou uma indemnização pela privação do uso do veículo, que era utilizado regularmente em deslocações de serviço.
O Réu contestou, impugnando a factualidade invocada pela Autora e invocando a prescrição do direito pela mesma invocado, concluindo pela improcedência do pedido.
Foi proferida sentença julgando a acção improcedente absolvendo o Réu do pedido.
Inconformada com a decisão a Autora veio interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem: 1— O Estado/depositário tem de cumprir as normas decorrentes do art.º 1187º do CC. O reconhecimento do dever de indemnizar, pelo Estado/depositário, não exige qualificação pela antijuridicidade, basta-se com o dano efetivo e o nexo de causalidade; 2 — A apreensão lícita e legítima do bem privado não afasta, diminui ou extingue a obrigação do Estado de cumprir com seriedade e diligência os seus deveres de guarda e conservação do bem; 3 — Os factos assentes nos pontos 10 a 17 e 21 são suficientes para gerar a responsabilidade civil do Estado enquanto depositário do veículo apreendido; 4 — Fosse qual fosse o estado de conservação do veículo à data da apreensão, O certo é que entrou pelos seus meios no parque da PSP, de onde só saiu de reboque por não circular. O comportamento assumido pelo Estado/depositário (de total negligência e omissão) quanto à guarda e conservação do veículo seria sempre adequado quer à produção de novos danos, quer ao agravamento de outros danos que já pudessem existir (o agravamento de danos anteriores, propiciado pelo comportamento do Estado, é indemnizável); 5 — A contribuição para a produção e/ou agravação de danos não foi da Recorrente mas sim do Estado que, por sua iniciativa e decisão, manteve o veículo parqueado, durante três anos, em local inapropriado, a céu aberto, sujeito à degradação provocada pelo sol e pela chuva; debaixo de uma árvore (que lhe competia vigiar e conservar) que veio a cair-lhe em cima (o Estado não tem culpa da tempestade, mas tem culpa por não manter a árvore devidamente podada e por não resguardar o veículo numa área coberta); sem qualquer conservação, manutenção ou limpeza, permitindo que a água das chuvas se infiltrasse no veículo, destruindo os interiores e os componentes eletrónicos; 6 — Estão, pelo menos, assentes os danos descritos no ponto 21, que o decisor aceita que não existiam antes da apreensão nem, para estes, houve contribuição da Recorrente, pelo que estão preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar; 7 - A norma aplicável não é a decorrente no nº 1, do art.º 570º do CC, mas antes a conjugação das vertidas nos art.º 1187º e 483º do CC, aplicadas aos factos constantes nos pontos 10 a 17 e 21º da matéria assente. Termos em que deve conceder-se provimento ao presente recurso, com as legais consequências.
O Recorrido respondeu, pugnando pela improcedência do recurso interposto pela contraparte, apresentando as seguintes conclusões:
1. O A. interpor recurso da sentença, alegando em suma, que o Estado/depositário tem de cumprir as normas decorrentes do artigo 1187º do CC e que o reconhecimento do dever de indemnizar, pelo Estado/depositário, não exige qualificação pela antijuridicidade, basta-se com o dano efectivo e o nexo de causalidade. E, no presente caso não tem aplicação o n.º Ido artigo 570º do CC, mas as disposições conjugadas dos artigos 1187º e 483º do CC., aplicadas aos factos constantes nos pontos 10 a 17 e 21º da matéria assente".
2. Considerou o Tribunal a quo, no ponto 21º dos factos provados "Aquando da restituição para além das anomalias existentes aquando da apreensão, o veículo apresentava: a) a pintura baça em virtude da exposição às intempéries; b) os quatro pneus estavam ressequidos pela exposição ao sol; c) danos na lateral traseira esquerda junto à roda decorrente da queda da árvore";
3. E ainda que "em 13.03.2017 na sequência de um temporal que atingiu a região de Lisboa (com muito vento, por vezes forte) ocorreu a queda de uma árvore aparentemente saudável no parque da 62ª Esquadra da PSP — Queluz".
4. A prova dos factos referentes ao dano na parte lateral do veículo na sequência da queda de uma árvore resultaram da ponderação da prova documental - participação da PSP de 24/03/2017 — e depoimento da testemunha AA, agente da PSP, concluindo-se que, em consequência de um temporal, com vento forte, uma das árvores, com cerca de 15 metros, abateu-se sobre veículos que se encontravam no parque da PSP, entre eles o do Autor, e que a árvore aparentava estar saudável, à semelhança de outras duas de grande porte que se situam igualmente no parque da PSP.
5. A testemunha BB, agente da PSP, confirmou o auto de exame e avaliação efectuado aquando a apreensão, referindo que, na data em que foi apreendido, o veículo aparentava estar parado há algum tempo ("com aspecto de abandonado"), os pneus estavam em mau estado referindo que estavam "quadrados/balizados" e que o painel assinalava várias anomalias mecânicas, factos que lhe foram confirmados pelo proprietário (representante legal da A.).
6. Refere o A. que o Estado é obrigado a cumprir as normas decorrentes do artigo 1187º, do CC, ou seja, a apreensão licita e legitima do bem privado não afasta, diminui ou extingue a obrigação do Estado de cumprir, com seriedade e diligência, os seus deveres de depositário quanto à guarda e conservação, por forma a evitar danos ou a evitar o agravamento de danos já existentes, ou a sua simples deterioração, faz emergir o dever de indemnizar do Estado.
7. Refere o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 19-06-2020, P. 00629/14.0BEBRG, relator Helena Ribeiro, disponível inwww.dgsi.pt "O dever de indemnizar que impende sobre o Estado em virtude do incumprimento das obrigações legais de guardar uma viatura apreendida no âmbito de um processo crime, emergem do instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, que condiciona esse dever de indemnizar à verificação dos seguintes pressupostos: (i) facto, (ii) ilicitude, (iii) culpa, (iv) dano e, (v) existência de um nexo causal entre o facto e o dano".
8. Quanto aos danos provocados no veículo na sequência da queda da árvore existente no Parque de Estacionamento da Polícia onde o veículo esteve guardado durante a apreensão, ficou provado que, em 13/03/2017, ocorreu um temporal na região de Lisboa, na sequência do qual a referida árvore, aparentemente saudável, caiu e causou danos no veículo propriedade do A.
9. A árvore encontrava-se no interior do parque de estacionamento da PSP, donde presumiu-se que lhe pertencia, provou-se ainda que a mesma era aparentemente saudável (facto 22º);
10. Assim, o R. fez prova (afastando assim a presunção de culpa, nos termos do artigo 493º do CC) que o aspecto da árvore era aparentemente saudável, não sendo de prever que viesse a cair.
11. Pelo que, nesta parte, não merece qualquer reparo a decisão do Tribunal a quo, ao decidir "não resta senão absolvê-lo do pedido indemnizatório dos danos causados na sequência da queda da árvore (parte lateral traseira junto à roda do veiculo) porquanto o incidente se enquadra naquela «alea», isto é, naquele imponderável que o cidadão lesado deverá suportar enquanto risco próprio do viver neste mundo perigoso".
12. Com se refere no Acórdão acima citado: "3.9. Acontece que nos presentes autos não estamos, conforme referido, no âmbito da responsabilidade contratual mas no domínio da responsabilidade aquiliana em que não existe norma equivalente à do art.º 799.º, n.º 2 do CC, o que significa que é sobre o depositante, no caso o apelante, que impende o ónus da prova de todos os pressupostos de cuja verificação o art.º 483.º, n.º 1 do CC faz depender a constituição do Estado Português enquanto depositário, no dever de indemnizar, ou seja, é sobre o mesmo que impende o ónus da alegação e da prova dos factos constitutivos do facto, da ilicitude, da culpa, do dano e do nexo de causalidade entre o facto e o dano".
13. A nosso ver o A. não logrou fazer prova dos factos constitutivos do facto, da ilicitude, da culpa, do dano e do nexo de causalidade entre o facto e o dano.
14. Com efeito, os factos dados por provados são insuficientes à prova que houve violação do dever de zelo e vigilância por parte do Estado Português na guarda do automóvel, propriedade do A.
15. Aquando a apreensão, a viatura apresentava danos na carroçaria, pintura, farolins, pneus, pára-choques, capô, porta traseira direita e riscos nas laterais da carroçaria (cf. 29. a 41. dos factos provados), e, ao ser restituída, apresentava ainda os danos elencados em 21. dos factos provados.
16. Ora, não poderá ser assacado ao R. Estado a responsabilidade por infiltração de água para o interior do veículo, a qual não podia deixar de ocorrer face o mau isolamento de portas, capô ligeiramente levantado e farolim partido que se verificavam aquando a apreensão (ou seja, locais por onde entrou água, antes e após se encontrar à guarda do Estado);
17. Bem como não poderia se assacado ao Estado, nem disso fez prova do A., que a pintura da carroçaria estava baça por exposição ao sol e do ressequimento dos pneus, porquanto referiu a testemunha BB, que levou a cabo a apreensão, a viatura estava parqueada à porta de casa do gerente da A., e que este lhe disse que não a utilizava por ter problemas mecânico, referindo ainda a testemunha que a mesma tinha "aspecto de estar abandonada" e os pneus estavam "balizados/quadrados", ou seja, em mau estado, donde concluímos que o local onde se encontrava estacionada antes e após a sua apreensão foi exactamente o mesmo, ou seja, na via pública, ao relento e sujeita aos fenómenos atmosféricos, bem como os pneus aquando a apreensão não se encontravam em condições de circulação em segurança, concluindo-se, pois, que o R. Estado teve o mesmo zelo e cuidado que o seu proprietário.
18. Concluindo, assim, o Tribunal a quo "ora, não foram os funcionários do Réu, isto é, a autoridade policial quem causou tais danos na viatura".
II – OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões formuladas pelo Recorrente na motivação do recurso em apreciação, estando vedado a este Tribunal conhecer de questões aí não contempladas, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se impõe (artigos 635º, nº 2, 639º, nº 1 e nº 2, 663º, nº2 e 608º, nº 2, do C.P.C.)
Deste modo, e considerando as conclusões do recurso interposto, a questão que cumpre apreciar é de saber se relativamente aos danos descritos no ponto 21 dos Factos Provados estão preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte do Recorrido.
II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
a)
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1. A Autora foi arguida no processo crime que com o n.º 2739/12.9T3SNT correu termos na Comarca de Lisboa Oeste, Sintra _ DIAP – 1.ª Secção, o qual, após dedução de acusação pelo Ministério Público, veio a terminar por despacho de não pronúncia, proferido pelo JIC da Amadora, já transitado em julgado, proferido em 08.07.2019.
2. No âmbito do inquérito, por iniciativa do Ministério Público titular do mesmo, foram emitidos mandados em 07.06.2016, para busca e apreensão a realizar no local da representação da Autora, bem como no veículo matrícula 01-13-...., marca Mercedes, modelo E 320CDi, o qual é propriedade da Autora.
3. A busca foi realizada no dia 05.07.2016 tendo resultado na apreensão (entre outros artigos e bens) do citado veículo automóvel, propriedade da Autora.
4. Após a concretização das apreensões a restituição do automóvel foi indeferida por despacho do Ministério Público, datado de 13.07.2016.
5. O veículo só viria a ser restituído à Autora em 12.11.2019.
6. Na decisão de não pronúncia o JIC determinava que, após trânsito se determinaria o destino dos objectos apreendidos.
7. Por despacho de 17.10.2019 foi pelo JIC ordenada a restituição dos bens apreendidos (entre os quais o veículo 01-13-....).
8. O veículo esteve apreendido à ordem do processo entre 05.07.2016 e 12.11.2019 (data em que foi efectivamente entregue pela PSP de Queluz), tendo sido removido do lugar, onde a Autora o guardava para passar a estar depositado no parque de viaturas da 62.ª Esquadra da PSP, em Queluz.
9. O lugar onde a Autora guardava o veículo apreendido, era a via pública, ao ar livre.
10. Trata-se de um parque descoberto, vedado com rede de malha metálica, no qual os veículos aí parqueados não têm protecção ou resguardo contra os fenómenos atmosféricos, nomeadamente contra os efeitos da chuva e do sol.
11. Durante o período da apreensão a Autora não acedeu ao veículo.
12. A entidade apreensora, durante aquele período de tempo, não efectuou qualquer tarefa de manutenção, conservação ou limpeza do veículo,
13. limitando-se a mantê-lo parado num parque vedado, a céu aberto, totalmente exposto aos efeitos desgastantes da chuva e do sol,
14. Durante o período da apreensão, enquanto o veículo estava entregue ao cuidado e à guarda da entidade apreensora, no dia 13.03.2017, uma árvore existente no parque da PSP caiu sobre o veículo da Autora provocando-lhe danos junto à roda traseira, do lado esquerdo.
15. No acto de restituição do veículo, o motor (mesmo com recurso a outra bateria) não entrou em funcionamento, pelo que o veículo não circulava.
16. Para o retirar do parque foi necessário contratar um serviço de reboque, entre o parque de Queluz e a oficina para onde a Autora removeu o veículo, sita em Loures, tendo, neste serviço, gasto €40,00.
17. Uma vez na oficina, a Autora contratou a firma SGS Portugal, S.A. através dos seus técnicos ser feita uma peritagem ao veículo a fim de apurar o seu estado de conservação e danos existentes, tendo gasto, neste serviço, €184,50, conforme factura.
18. O IUC de 2016 do veículo de matrícula 01-13-.... devido no mês de matrícula de Novembro no valor de 166,05 foi pago.
19. O IUC de 2017 do veículo de matrícula 01-13-.... devido no mês de matrícula de Novembro no valor de 168,77 foi pago.
20. O IUC de 2018 do veículo de matrícula 01-13-.... devido no mês de matrícula de Novembro no valor de 169,17 foi pago.
21. Aquando da restituição para além das anomalias existentes aquando da apreensão, o veículo apresentava:
a. A pintura baça em virtude da exposição às intempéries.
b. Os quatro pneus estavam ressequidos pela exposição ao sol.
c. Danos na lateral traseira esquerda junto à roda decorrente da queda da árvore.
22. Em 13.03.2017 na sequência de um temporal que atingiu a região de Lisboa (com muito vento, por vezes forte) ocorreu a queda de uma árvore aparentemente saudável no parque da 62.ª Esquadra da PSP-Queluz,
23. Que provocou danos junto à roda traseira do lado esquerdo da viatura de matrícula 01-13-.....
24. Em 05.04.2017 tais factos foram comunicados pela PSP ao processo com o NUIPC 2739/12.9T3SNT, à ordem do qual o veículo se encontrava apreendido.
25. Em 07.04.2017 foi determinado pelo Ministério Público que fosse comunicado o ocorrido ao proprietário do veículo.
26. Em 09.05.2017 o legal representante da Autor, António Pereira Branco, apresentou requerimento nos autos, relativo à referida queda da árvore sobre o seu veículo escrevendo o seguinte:
«A entidade apreensora é responsável pela guarda e conservação dos objectos apreendidos.
A final, no caso dos veículos virem a ser restituídos, tal deverá correr no exacto estado em que estavam quando foram apreendidos».
27. Destes factos foi instaurado na PSP em 24.07.2017, processo administrativo NUP 2017LSB00120ADM, o qual se deu por finalizado, em 26.01.2018, sem que fosse apurado o valor dos danos causados no veículo da autora, por se desconhecer se o mesmo havia sido declarado perdido a favor do Estado ou se aguardava entrega ao respectivo proprietário.
28. O veículo automóvel Mercedes Benz, E320 CDI, com a matrícula 01-13-.... foi apreendido a 05.07.2016 pela Esquadra de Investigação Criminal da Divisão de Sintra da PSP, no cumprimento de mandado de busca e apreensão emitido pela Autoridade Judiciária competente, no âmbito do NUIPC 2739/12.9T3SNT.
29. A viatura em causa deu entrada no parque da 62.ª Esquadra da PSP, tendo sido efectuada reportagem fotográfica, que registou o estado de conservação da mesma naquele exacto momento.
30. Antes mesmo do transporte da viatura para o parque da 62.ª Esquadra da PSP foi efectuado registo fotográfico da mesma no local onde esta se encontrava, aquando da apreensão, para elaboração do Auto e Exame e Avaliação que consta no referido processo crime.
31. O referido veículo foi sujeito a exame e avaliação provisória em 05.07.2016 e aquando da apreensão, apresentava riscos e amolgadelas de embates vários.
32. O veículo apresentava danos no farol dianteiro esquerdo;
33. O Capot ligeiramente levantado na zona posterior ao farol esquerdo;
34. O Pára-choques dianteiro com vários riscos e marcas de embates.
35. O Guarda-lamas dianteiro esquerdo amolgado.
36. O Pára-choques traseiro amolgado em ambos os lados.
37. O Farolim traseiro direito danificado.
38. O Painel traseiro também com marca de embate.
39. A Porta traseira direita com marcas de embate.
40. Os pneus em mau estado de conservação apresentando mau rodado.
41. Além destes danos, a viatura já apresentava outros causados por desconhecidos entre Abril e Junho de 2015, vários riscos na carroçaria, designadamente nas laterais da viatura, que originaram a formalização de uma queixa em 18.09.2015 pelo legal representante da Autora, António Pereira Branco, à qual foi atribuído o NUIPC 1017/15.6PHLRS.
42. A apreensão da viatura visou assegurar a recolha de elementos de prova necessários à investigação que corria termos e ante a existência de indícios de que o mesmo tinha sido utilizado na prática de crimes de material de jogo, e fraude fiscal.
43. A apreensão foi comunicada pela PSP à ANCP (Agência Nacional de Compras Públicas, E.P.E.) e à ESPAP (Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública, I.P.) em 21.09.2016, sendo que numa avaliação preliminar à viatura efectuada pela ESPAP foi-lhe atribuída a classificação de 2 (dois) valores, numa escala de 1 a 5, em que 1 é medíocre e 5 corresponde a muito bom.
44. A apreensão do veículo matrícula 01-13-.... foi igualmente notificado ao Gabinete de Administração de Bens (GAB) pela 1.ª Secção do DIAP de Sintra em 05.08.2016, tendo este gabinete procedido à avaliação da viatura em 10.08.2017 que tendo em conta a cotação do veículo e a valorização dos danos, avaliou a viatura em € 2337,49.
45. Em virtude do baixo valor atribuído ao veículo, inferior a 50 unidades de conta, este não coube no âmbito da administração do GAB.
46. A viatura Mercedes Benz, E 320 CDI, com a matrícula 01-13-.... de 03.03.2000, registada em nome da Autora em 13.07.2012 foi importada da Alemanha tendo sido matriculada em Portugal a 08.11.2002.
47. Os danos no vidro da porta direita traseira, denominado por vidro ventilador, foram causados pelo próprio António Pereira Branco (representante da Autor) que partiu o vidro no dia 12.11.2019 aquando da recolha da viatura no parque da PSP.
48. Enquanto a viatura esteve apreendida, a Autora nunca se deslocou ao Parque da 62.ª Esquadra com intenção de proceder a qualquer acto de manutenção da mesma.
49. Estima-se que o valor de reparação do veículo com substituição das peças e componentes danificados seria de € 11 082,22.
50. Em Novembro de 2019 o valor venal do veículo seria cerca €8500,00.
b)
O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
51. No momento da apreensão o veículo encontrava-se em circulação, com inspecção feita, servindo como o veículo de serviço do legal representante da Autora.
52. O veículo foi apreendido à Autora em normal estado de conservação, a circular, com inspecção feita.
53. Antes da apreensão o veículo era usado diariamente em todas as deslocações de serviço do seu legal representante, sendo o único veículo que a autora adquiriu e mantinha registado em seu nome.
54. Durante a apreensão a Autora tenha pretendido ter acesso ao veículo apreendido para, no Parque da 62.ª Esquadra, proceder à manutenção do veículo, designadamente pôr o veículo em funcionamento, lavar, lubrificar ou resguardá-lo.
55. O valor comercial do veículo nas condições em que se encontrava era de cerca de €10 000,00.
56. O iuc de 2019 referente ao veículo de matrícula 01-13-.... no valor de €171,04 tenha sido pago.
57. A causa de o motor não funcionar e, por isso, de o veículo não circular era o contacto da água das chuvas com os módulos electrónicos (fusíveis e unidades JPG), os quais apresentavam verdete visível nas suas conexões, o que os inutilizou;
58. Os faróis e farolins estavam inutilizados pela entrada de água, apresentando verdete.
59. Os fechos das portas apresentavam sinais de corrosão devido à água.
60. O vidro da porta direita traseira encontrava-se partido.
61. Traseira direita estava amolgada.
62. A frente esquerda apresentava o farol partido e o guarda-lamas amolgado.
63. No interior, os estofos em pele estavam apodrecidos pela entrada de água das chuvas e pela exposição ao sol e ao calor durante três anos.
64. A autora foi ilibada de toda e qualquer responsabilidade que, por via daquele processo, lhe poderia ser assacada, bem como de toda e qualquer responsabilidade que poderia justificar a apreensão de bens da sua propriedade e da sua subsequente perda.
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Insurge-se a Recorrente contra a decisão recorrida sustentando que relativamente aos danos descritos no ponto 21 dos Factos Provados estão preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte do Recorrido.
Para tanto defende a Recorrente a aplicabilidade ao caso em análise das disposições conjugadas dos artigos 1187º e 483º do C.Civil .
A fonte da obrigação de indemnizar que a Recorrente imputa ao Recorrido é assim algo contraditoriamente em simultâneo a responsabilidade contratual, fundada no incumprimento de contrato de depósito, e a responsabilidade civil pela prática de facto ilícito prevista no artigo 483º, nº 1, do Código Civil, fazendo neste caso corresponder a ilicitude à omissão pelo Réu dos deveres de cuidado no armazenamento e conservação do veículo apreendido.
A responsabilidade civil extra-contratual "resulta da violação de um dever ou vínculo jurídico geral (...) isto é, de um daqueles deveres gerais de abstenção impostos a todas as pessoas e que correspondem a direitos absolutos", enquanto que a responsabilidade contratual decorre da violação de direitos de crédito ou de obrigações. (Almeida Costa, "Noções Fundamentais de Direito Civil", 4ª ed., págs.103 e 104)
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos pelo que o incumprimento das obrigações neles assumidas determina a constituição “ de uma nova obrigação, a obrigação de indemnização, que tem como fonte a responsabilidade obrigacional”, a qual tem “ pressupostos semelhantes ao da responsabilidade contratual, sendo que o facto ilícito corresponde neste caso não à violação de um dever genérico de respeito, mas antes a violação de uma obrigação, através de não execução pelo devedor da prestação a que estava obrigado.” (Menezes Leitão – Direito das Obrigações, Vol. II, págs. 251).
Ora, conforme decidiu o Acórdão da Relação de Guimarães de 12 / 1 / 2012, " a responsabilidade civil por facto ilícito (...) seja contratual, seja extra contratual depende da verificação do facto, da ilicitude do facto, do nexo de imputação do facto ao agente que co-envolve a imputabilidade e a culpa, do dano e do nexo entre o facto e o dano." (Relator Manuel Bargado, disponível nas bases de dados do Ministério da Justiça).
Com efeito, a única diferença é que no âmbito da responsabilidade contratual demonstrados os demais requisitos acima apontados a culpa do devedor se presume, competindo a este último a alegação e prova dos factos que demonstrem que o incumprimento não decorre de culpa sua.
O artigo 1185º do C. Civil define depósito como o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida, estatuindo o artigo 1187º do C.Civil que recai sobre o depositário a obrigação de guardar a coisa .
No entanto sendo certo que entre Recorrente e Recorrido não foi celebrado qualquer contrato de depósito fica desde logo afastada a responsabilidade contratual do último.
Com efeito “entre o Estado Português e o apelante não existe nenhuma relação contratual nos termos da qual a primeira se tivesse obrigado a guardar o veículo automóvel com a obrigação de o restituir “. (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 19.6.2020, rel. Helena Ribeiro, disponível em www.dgsi.pt)
Conforme decidido pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 19.6.2020, “ o dever de indemnizar que impende sobre o Estado em virtude de incumprimento das obrigações legais de guardar uma viatura apreendida no âmbito de um processo crime, emergem do instituto da responsabilidade civil extra-contratual por factos ilícitos, que condiciona esse dever de indemnização à verificação dos seguintes pressupostos: ( i ) facto, ( ii ) ilicitude ; ( iii ) culpa, ( iv ) dano e, ( v ) existência de nexo causal entre o facto e o dano “. (rel. Helena Ribeiro, disponível em www.dgsi.pt)
A responsabilidade civil pela prática de facto ilícito está prevista no artigo 483º, nº 1, do Código Civil, o qual dispõe que aquele que, com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Deste modo, a existência de obrigação de indemnização fundada em responsabilidade por factos ilícitos tem como pressupostos cumulativamente:
- a prática do facto pelo agente, entendido este como “ uma conduta que lhe possa ser imputável em virtude de estar sob o controle da sua vontade”, e que “pode revestir duas formas: a acção (art.º 483º) e a omissão (art. 486º)” (in Luís Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. I, 6ª ed., págs. 287 e 288);
- a ilicitude deste, traduzido na violação do direito de outrem ou de disposição legal destinada a proteger o interesse alheio;
- a imputação do facto a título de dolo ou mera culpa;
- a ocorrência de dano;
- e a verificação de nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Resultou provado que o veículo propriedade da Autora esteve apreendido à ordem do processo crime entre 05.07.2016 e 12.11.2019, ficando parqueado no parque de viaturas da 62.ª Esquadra da PSP, em Queluz, um parque descoberto, vedado com rede de malha metálica, no qual os veículos aí parqueados não têm protecção ou resguardo contra os fenómenos atmosféricos, bem como que esta entidade durante aquele período de tempo, não efectuou qualquer tarefa de manutenção, conservação ou limpeza do veículo,
Resultou ainda provado que no dia 13.03.2017, uma árvore existente no parque da PSP caiu sobre o veículo da Autora provocando-lhe danos junto à roda traseira, do lado esquerdo.
Por último provou-se que quando foi restituído à Recorrente o veículo apresentava a pintura baça em virtude da exposição às intempéries, os quatro pneus estavam ressequidos pela exposição ao sol e danos na lateral traseira esquerda junto à roda decorrentes da queda da árvore.
Daqui decorre de forma evidente que o Recorrido não omitiu os deveres de cuidado na guarda do veículo apreendido.
Pelo contrário, o Recorrido providenciou pelo parqueamento do veículo em lugar vedado ao público, garantindo desta forma a manutenção do bem apreendido em condições normais de conservação, tendo em conta o estado que o mesmo apresentava quando foi apreendido, a saber, riscos e amolgadelas de embates vários, danos no farol dianteiro esquerdo, o capot ligeiramente levantado na zona posterior ao farol esquerdo, o pára-choques dianteiro com vários riscos e marcas de embates, o guarda-lamas dianteiro esquerdo amolgado, o pára-choques traseiro amolgado em ambos os lados, o farolim traseiro direito danificado, o painel traseiro também com marca de embate, a porta traseira direita com marcas de embate, os pneus em mau estado de conservação apresentando mau rodado e vários riscos na carroçaria, designadamente nas laterais da viatura.
Efectivamente nada impunha a manutenção do veículo apreendido em lugar fechado ou que tivesse cobertura / resguardo do sol ou dos fenómenos climatéricos, direito que não é assegurado legal ou constitucionalmente a nenhum proprietário de veículo automóvel.
Tão pouco a circunstância do Recorrido não ter realizado tarefas de limpeza/conservação do veículo apreendido, que aliás não foram especificadas, e cujo nexo de causalidade relativamente ao estado do veículo quando foi restituído à Recorrente, i.e. a pintura baça em virtude da exposição às intempéries, os quatro pneus ressequidos pela exposição ao sol e danos na lateral traseira esquerda junto à roda decorrentes da queda da árvore, não foi demonstrado pela Autora, permite responsabilizar o Réu nos termos preconizados pelo artigo 483º, nº 1, do C. Civil .
Por último a queda da árvore existente no parque da PSP onde o veículo apreendido se encontrava na sequência de um temporal que atingiu a região de Lisboa (com muito vento, por vezes forte) não consubstancia facto ilícito imputável ao Recorrido, não integrando, por conseguinte, a previsão artigo 483º, nº 1, do C. Civil.
Não estão assim preenchidos no caso em análise os requisitos de que artigo 483º, nº 1, do Código Civil, faz depender a verificação da obrigação de indemnizar com fundamento em responsabilidade civil pela prática de factos ilícitos.
Deste modo não há lugar à aplicação da previsão do artigo 570º, nº 1, do Código Civil, norma que pressupõe a existência da obrigação de indemnizar, afastada nestes autos.
Improcede assim o recurso interposto.
V – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmam a sentença recorrida,
Custas do recurso pela Recorrente (artigo 527º, do C.P.C.).
Lisboa, 21/11/2014
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Maria Teresa Lopes Catrola
Cristina da Conceição Pires Lourenço