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CONTRATO DE SEGURO
DEVER DE COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
PRIMADO DO DIREITO COMUNITÁRIO
Sumário
«1. Nos termos do artigo 91.º do Regulamento do Processo do Tribunal de Justiça, os acórdãos desse Tribunal, incluindo os proferidos em resposta a reenvio prejudicial, têm força obrigatória desde o dia da sua prolação nos Estados-membros, aplicando-se retroativamente desde o momento da entrada em vigor da norma interpretada. 2. Esta força obrigatória vincula não só o tribunal nacional que procedeu ao reenvio no processo em que o fez, mas a interpretação do direito europeu por ele efetuada passa a vincular os Estados Membros e todos os tribunais nacionais desses Estados na aplicação futura da legislação objeto de reenvio a casos materialmente idênticos, refletindo o princípio do primado do direito da União Europeia, o qual a nossa Constituição acolhe no seu artigo 8.º, n.º 4. 3. Deve entender-se ser aplicável ao contrato de seguro, para além do seu regime jurídico próprio, a Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (DL n.º 446/85, de 25 de outubro), encontrando-se a seguradora vinculada aos deveres de comunicação e de informação consagrados em tal regime. 4. Cabendo o ónus da prova do cumprimento desses deveres à seguradora, é sobre ela que recai o risco da falta de prova (artigo 5.º, n.º 3, do DL n.º 446/85), pelo que a cláusula em litígio tem de se dar como excluída do contrato nos termos do artigo 8.º als a) e b), do DL 446/85.
Texto Integral
Acordam os Juízes que compõem a 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório A…., SA, ré nestes autos, interpôs o presente recurso de apelação da sentença proferida pelo Tribunal a quo, que terminou com o seguinte dispositivo: “Na integral procedência da acção que a herança jacente aberta por óbito de …., representada pelo cabeça de casal …., intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra ….., Companhia de Seguros …., S.A. decide-se condenar o réu a pagar ao Banco …., SA, a importância de 111.936,39 € (cento e onze mil novecentos e trinta e seis euros e trinta e nove cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento. Custas pela ré – art.º 527º do nCPC”.
A recorrente apresenta as seguintes Conclusões: “1.1. Nos presentes autos foi proferida decisão que julgou a presente demanda totalmente procedente condenando-se a R. Seguradora a “… pagar ao Banco …., S.A., a importância de 111.936,39 € (cento e onze mil novecentos e trinta e seis euros e trinta e nove cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento.”, contudo, a R. seguradora não pode concordar com aquela condenação, porquanto a solução encontrada pelo Tribunal a quo nunca poderia ser a presente, quer à luz da lei e do ordenamento juridico português aplicável, quer à luz da prova produzida. Mas vejamos, 2. Importa primeiramente corrigir os parágrafos 10.º do relatório e 12.º da fundamentação de direito da sentença recorrida, na medida em que nos presentes autos apenas foi citada como Ré a Seguradora …., S.A. e não o Banco …. S.A., tendo o contrato de seguro sido celebrado entre esta Ré o Banco, mas não o contrato de financiamento que apenas foi celebrado entre o Banco e o de cujus …., assim: (A) No parágrafo 10.º deverá retirar-se a referência ao Banco – “Citada a Ré Banco … …”; e (B) No parágrafo 12.º presume-se haver uma confusão entre as partes que celebraram um e outro contrato e as suas qualidades no mesmo, assim sugere-se como redação: “… o contrato de seguro em apreço estava associado a um contrato de financiamento que havia sido celebrado entre o de cujus e o tomador do seguro Banco …., S.A.. No contrato de seguro ao qual aderiu o de cujus, Banco surge como beneficiário irrevogável, na qualidade de credor hipotecário.” No mais, 3. Em face da prova produzida o Tribunal a quo deveria ter julgado provado que “O segurado/mutuário foi efetivamente informado das condições atinentes à exclusão da cobertura do contrato de seguro que estava a firmar com a ré, em particular atinente ao sinistro “Suicídio” e abrangência temporal da mesma.” e ainda que “Clausula essa que lhe foi explicada na data em que o segurado/mutuário subscreveu o seguro junto do Banco …., S.A.” Com efeito, 4. Encontra-se junto aos autos boletim de adesão ao contrato de seguro de grupo, no qual a pessoa segura, ou de cujus, declara expressamente (por duas vezes) que antes da subscrição e da celebração do contrato de seguro lhe haviam sido prestados todos os esclarecimentos e informações referentes ao referido contrato, tendo inclusivamente sido entregue exemplar das condições contratuais. 5. O referido documento (boletim de adesão junto com a contestação) não foi impugnado pela Autora no que refere ao seu teor, às declarações ali prestadas, à veracidade ou genuinidade da assinatura aposta, termos em que o seu teor e conteúdo – em particular as declarações prestadas pelo de cujus se têm por válidas e eficazes. 6. O mesmo é dizer que o valor probatório daquele documento não foi beliscado e as declarações ali prestadas pela pessoa segura de …., em como foi informado das condições atinentes ao contrato de seguro de grupo de vida ao qual aderia, têm por se válidas e eficazes. 7. Entender de outra forma, seria menorizar o teor de documento, deveres de boa-fé que recaíam sobre a pessoa segura, e o valor e consequências factuais e jurídicas da assinatura feita de forma livre, o que não se pode admitir conforme defendeu o Tribunal da Relação do Porto no douto Aresto de 27.04.2021, referente ao processo n.º 328/17.0T8ALB. 8. Note-se ainda que da prova testemunhal produzida resultou que ….. era particularmente cuidadoso, não sendo espectável que assinasse contratos de cruz (!) – cf. depoimento de …., gravado com a referência [Diligencia_2501-21.8T8VNG_2024-01-24_10-03-29] [minutos 00:11:10 e 00:12:06], e o depoimento de ….., gravado com a referência [Diligencia_2501- 21.8T8VNG_2024-01-24_10-22-20] [minutos 00:04:36; 00:08:00 e 00:09:08]. 9. Também foi produzida prova sobre os procedimentos adotados para a contratação destes seguros: pretendendo aderir ao contrato de seguro de vida de grupo celebrado entre o Banco e a Seguradora, o proponente dirige-se ao Balcão do Banco, que imprime a proposta de seguro, a qual contém o boletim de adesão e as condições contratuais anexas – estas últimas são explicadas e lidas ao proponente, que estando de acordo com as mesmas, preenche as informações requeridas no boletim de adesão e o assina, entregando-o no Balcão do Banco e guardando para si as condições contratuais - depoimentos das testemunhas …. [Diligencia_2501-21.8T8VNG_2024-01-24_13-57-36] [a minutos 00:09:39 e 00:14:33], e …. [Diligencia_2501-21.8T8VNG_2024-01-24_14-20-33] [a minutos 00:13:40 e seguintes, 00:16:16, e 00:16:25]. Sendo certo que, 10. É do senso e conhecimento comum do cidadão médio que qualquer contrato de seguro prevê necessariamente exclusões contratuais à sua cobertura, sob pena de abarcar todo e qualquer risco incluindo – por exemplo o dolosamente causado ou o criminalmente punido. É igualmente conhecido que o suicídio se encontra por regra excluído das coberturas de morte dos seguros de vida. 11. Veja-se inclusivamente que o de cujus celebrou outros contratos de seguro nos quais se previa aquela mesma exclusão, que era e não podia deixar de ser do seu conhecimento – cf. decisão proferida pelo Tribunal da Comarca do Porto no âmbito do processo n.º 5290/21.2T8PRT, confirmada pelo Tribunal da Relação de Porto, conforme decisões que se juntam e cuja certidão se encontra aguardar emissão. [A junção destas decisões apenas foi agora possível, por serem, até ao momento, do desconhecimento da Ré, que não é parte naquele processo, e ser a decisão proferida ali mais recentemente (o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, datado de 21.05.2024), posterior à sentença proferida nos presentes autos (05.06.2024). Sendo certo que só em virtude do julgamento proferido pelo Tribunal a quo se verificou ser necessária a junção desta documentação, o que se requer ao abrigo do disposto no artigo 651.º, n.º 1 do CPC.] 12. Termos em que, em face da prova produzida acima elencada, sempre deveria ter o Tribunal a quo que ter julgado provados os factos tidos como não provados transcritos, concluindo que a pessoa segura sabia – não podendo desconhecer – porque tal declarou, que a cobertura de morte (à semelhança das demais contratadas) previa várias exclusões, de entre as quais figurava o suicídio, pelo que caberá ao Tribunal ad quem alterar nos termos ora recorridos a decisão. 13. Tendo a pessoa segura conhecimento da cláusula de exclusão de suicídio, não se verificou qualquer incumprimento dos deveres de informação, pelo que sempre terá o Tribunal ad quem que revogar a decisão recorrida, absolvendo a Ré Seguradora de todo o pedido. Mas ainda que assim não fosse, 14. Não é controverso nos presentes autos que o contrato de seguro de vida em discussão e que é causa de pedir é um contrato de seguro de grupo celebrado entre a Ré Seguradora e o Banco …., S.A., no qual este último figura como tomador – ao qual a pessoa segura …. se propôs aderir como forma de assegurar o contrato de mútuo que este último havia celebrado com aquele Banco. 15. Ao abrigo do disposto no artigo 78.º, n.º 1 e 3 do Regime Juridico do Contrato de Seguro, os deveres de informação (pré-contratual), no caso dos seguros de grupo, impedem sobre o Tomador (!), in casu o Banco, termos em que o seu incumprimento apenas pode ser imputado a este último e não à aqui Ré e ora Recorrente, na qualidade de mera seguradora – cf. artigo 79.º do mesmo diploma legal. 16. A propósito vejam-se os inúmeros arestos que traduzem a jurisprudência pacífica sobre o tema – referindo-se a título de exemplo os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça datados de 13.01.2011 e 18.02.2021, respetivamente processos n.º 1443/04.6TBGDM e n.º 418/19.5T8FLG e os do Tribunal da Relação de Coimbra datados de 12.07.2017 e 15.06.2020, respetivamente processos n.º64/14.0TBLMG e 5360/19.7T8CBR. 17. Termos em que, com o devido respeito, a decisão proferida pelo Tribunal a quo viola o disposto nos artigos 78.º, n.º 1 e 3 e 79.º do RJCS, pelo que cabe ao Tribunal ad quem revoga-la, absolvendo a Ré Seguradora de todos os pedidos formulados contra si, com todas as devidas e legais consequências para a Autora, mormente a título de custas de parte e de processo. Termos em que o presente recurso deverá ser julgado procedente, por provado Só assim se fazendo Justiça!
A recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso apresentado sem que, todavia, tenha apresentado conclusões recursivas.
Nas alegações e conclusões de recurso (conclusão 2) a recorrente requer a correção:
- do parágrafo 10.º do relatório da sentença ora recorrida, devendo retirar-se a menção ao Banco – “Citada a Ré ….”,
- do parágrafo 12.º da fundamentação de direito da sentença recorrida – porquanto o contrato de financiamento foi celebrado unicamente entre o Banco e a pessoa de …., e o contrato de seguro de vida de grupo havia de facto sido celebrado entre a Ré Seguradora e o Banco na qualidade de tomador de seguro que surge como beneficiário irrevogável. Sugere para este parágrafo a seguinte redação: “… o contrato de seguro em apreço estava associado a um contrato de financiamento que havia sido celebrado entre o de cujus e o tomador do seguro Banco …., S.A.. No contrato de seguro ao qual aderiu o de cujus, Banco surge como beneficiário irrevogável, na qualidade de credor hipotecário.”
No despacho em que admitiu o recurso o Exmº Juiz a quo pronunciou-se quanto ao pedido de retificação nos seguintes termos: “Ao abrigo do disposto no art.º 614º/1/2 do nCPC proceda-se à rectificação requerida passando a constar nos pontos indicados no requerimento em apreço: ‘’…. – Companhia de Seguros, S.A..’’, anotando-se à margem as alterações”.
Admitido o recurso e colhidos os vistos cumpre decidir.
II. Âmbito do recurso
Como resulta do disposto nos artigos 5, 635/3 e 639/1 e 3 do CPC (e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores) para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pela recorrente.
Deste modo no caso concreto as questões a apreciar consistem:
- Na reapreciação da matéria de facto;
- Em caso de procedência da impugnação, sua influência na apreciação do mérito.
- A alegada “questão nova”, sua caraterização e influência no mérito da causa.
Previamente a estas questões, o tribunal pronunciar-se-á sobre a junção dos documentos apresentados com as alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
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Questão prévia
- Da junção de documentos com as alegações.
Nas alegações apresentadas a recorrente junta dois documentos, a saber:
a) Uma sentença datada de 4 de novembro de 2023 proferida pelo Juízo Central Cível do Porto- Juiz …- no âmbito do processo …../21.2T8PRT, em que era autora a Herança aberta por óbito de …. e ré “A….– Companhia de Seguros…., S.A”, que, julgando verificada a circunstância de exclusão da cobertura do seguro em apreço, concluiu pela irresponsabilidade da ré Seguradora e julgou a ação improcedente e absolveu a ré do pedido.
b) O Acordão datado de 21 de maio de 2024 do Tribunal da Relação do Porto processo …./21.2T8PRT.P1), e relativo ao recurso interposto da sentença referida em a), que negou provimento ao recurso e confirmou o decidido na sentença recorrida.
A recorrida nas contra-alegações, pelos fundamentos que aí elenca, conclui que a junção das decisões referidas não é admissível à luz do disposto no artigo 651/1 do CPC, pois não se destina (nem é apta) à prova de qualquer facto alegado no presente processo, nem se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Apreciando.
Dispõe o artigo 651/1 do CPC que as “partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.
A junção de documentos em sede de recurso, como afirmam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa in Código de Processo Civil Anotado, Volume I Parte Geral e Processo de Declaração, 2.ª edição, 2020, página 813, “só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja interpretação ou aplicação as partes não contavam”.
Nos autos nada disso sucede: a decisão não é surpreendente, mas minimamente expectável, e da sua própria fundamentação não resulta sequer que a junção de tal documentação tivesse alterado o que quer que fosse- a sentença e o acórdão agora juntos referem-se a um outro contrato de seguro, titulada por outra apólice, que nada tem a ver com o dos autos-, sendo que, a ora recorrente, tinha de ter feito mais para sustentar a sua posição processual, alegando (e provando) os pressupostos que lhe permitissem juntar documentos nesta fase de recurso, carecendo de sentido qualquer segunda oportunidade, em sede de alegações, para complementar probatoriamente as suas eventuais insuficiências anteriores. Quer a sentença – datada de 4 de novembro de 2023- quer o Acordão- datado de 21 de maio de 2024- são anteriores à sentença proferida nestes autos (5 de junho de 2024).
Não foi para este tipo de situação que a previsão legal do artigo 425.º (e do 651.º, n.º 1) foi criada.
Com esta fundamentação, não se admitem os documentos apresentados pela recorrente nas suas alegações de recurso.
Não sendo possível determinar o seu desentranhamento por constituírem um “bloco” único com o articulado das alegações, deverão ser os mesmos ser considerados não escritos e sem qualquer valor.
III. Fundamentação de Facto
Na sentença proferida considerou-se a seguinte factualidade: “III - Fundamentação de facto i. Factos provados com base em confissão e prova documental 1 – Em 25 de Julho de 2008, …. e o “Banco….” acordaram nos termos de contrato que denominaram de mútuo, em que o primeiro figurou como mutuário e o R. como mutuante, nos termos do qual este emprestou aquele a quantia de 140.000,00€, conforme consta do documento junto com a petição inicial sob o nº 2 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 2 – O acordo acima referido, de auto construção de habitação própria permanente, foi precedido de aprovação negocial, conforme consta de carta enviada pelo Banco …., datada de 10 de Julho de 2008, ao mutuário, onde constam as características do contrato e juntamente com este uma ficha de informação normalizada da qual consta no seu ponto 14.: “Seguros Obrigatórios: a) É obrigatória a celebração de contrato de seguro de vida cobrindo o risco de morte e invalidez absoluta e definitiva por acidente e/ou doença, ou outras coberturas, consoante o que tiver acordado com o Banco, no montante mínimo do empréstimo, sendo no mínimo de 100% para o primeiro titular constando o Banco …., S.A. como credor hipotecário privilegiado, devendo entregar documento comprovativo do mesmo, sendo o prémio mensal indicativo de 41.02Eurs.”. 3 - No contrato de mútuo celebrado vindo de referir, consta da cláusula 12.ª, n.º 2, a seguinte nomenclatura: “O Mutuário declara ter conhecimento que constituí sua obrigação subscrever apólice de seguro de vida que tenha a IC (Banco ….), como beneficiário, cobrindo, os riscos de morte e invalidez absoluta e definitiva ou outros riscos, por acidente e/ou doença, consoante o que tiver acordado com o IC, e até ao limite do capital mutuado e nas demais condições constantes do presente contrato”. 4 – Sem prévia negociação do clausulado com o mutuário, foi associado ao contrato de empréstimo o contrato de seguro de grupo de vida titulado pela apólice nº 15…., certificado 33…., tendo como coberturas contratadas a Morte e Invalidez Absoluta e Definitiva (doc. 1 junto com a contestação) na sequência do Banco ter contratado directamente com a ré (seguradora), o seguro, tendo em vista a adesão a esse contrato de seguro, daqueles a quem fosse concedido o crédito à habitação. 5 - O referido contrato encontrava-se associado a um empréstimo de auto-construção, em que o capital ia sendo entregue por tranches, sendo o 1º capital disponibilizado ao cliente, pelo Banco, de € 50 000, 00 e, posteriormente, o capital restante até perfazer os € 140 000,00 previstos inicialmente e para o qual o risco foi aceite. 6 - Tal contrato de seguro de grupo teve como beneficiário o “Banco …., S.A.” (cf. fls. 54 verso). 7 - …. faleceu em dia indeterminado do mês de Fevereiro de 2018, por suicídio, (doc. de fls. 14). 8 – Na data do falecimento do mutuário encontrava-se em dívida ao mutuante a quantia de 111.936,39€. 9 – Na sequência da morte do segurado, …., seu pai, …., na qualidade de cabeça de casal da autora, comunicou à ré e ao Banco …., SA o decesso, conforme consta do documento junto com a petição inicial sob o nº8, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 10 - A r é (seguradora) enviou uma carta datada de 02/10/2018 (documento nº 9 junto com a petição inicial), em que comunica a impossibilidade de efectuar qualquer pagamento do capital referente à apólice, uma vez que após avaliação efectuada à documentação enviada, pelo médico conselheiro, verificaram que o sinistro se encontrava excluído contratualmente. ii. Facto não provado O segurado/mutuário foi efectivamente informado das condições atinentes à exclusão da cobertura do contrato de seguro que estava a firmar com a ré, em particular da atinente ao sinistro ‘’Suicídio’’ e abrangência temporal da mesma. Cláusula essa que lhe foi explicada na data em que o segurado/mutuário subscreveu o seguro junto do Banco …., SA”.
IV. Fundamentação de Direito
4.1. Admissibilidade do recurso da impugnação da matéria de facto
O actual Código de Processo Civil introduziu um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, sujeitando a sua admissão aos requisitos previstos pelo art.º 640º do Código de Processo Civil.
Embora tal reapreciação tenha alcançado contornos mais abrangentes, não pretendeu o Legislador que se procedesse, no Tribunal Superior, a um novo Julgamento, com a repetição da prova já produzida nem com o mesmo limitar de alguma forma o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção acerca de cada facto controvertido.
Apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o Tribunal de recurso não pode já recorrer.
Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada convicção, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Posto isto, para que o Tribunal Superior assim se possa pronunciar sobre a prova produzida e reapreciar e decidir sobre a matéria de facto, sem que tal acarrete na verdade todo um novo julgamento e repetição da prova produzida, impõe-se à parte que assim pretende recorrer que cumpra determinados requisitos, previstos no citado art.º 640º do Código de Processo Civil.
Lidas a motivação e as conclusões de recurso, verifica-se que a recorrente cumpriu com o ónus que se lhe impunha, nomeadamente, indicou os concretos pontos de facto não provados cuja alteração para “provados” pretende e especificou relativamente a esses factos quais os meios de prova que, em seu entender, fundamentariam decisão diversa; formulou a decisão que, em seu entender, seria ser aquela que o Tribunal deveria ter tomado em relação aos concretos pontos de facto sobre os quais discorda.
Na reapreciação da matéria de facto há ainda que levar em consideração o que dispõe o art.º 662º do Código de Processo Civil, tendo a Relação autonomia decisória “competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com a observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (conf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Ed., pg. 287).
4.2. Impugnação da matéria de facto
Para apreciação desta matéria este Tribunal procedeu à análise crítica da prova documental junta aos autos, e referida pela recorrente nas suas alegações, e ouviu a prova pessoal produzida na audiência final.
Antes de entrar na avaliação crítica da prova produzida, tendo em consta a matéria impugnada pela recorrente, enunciemos os traços essenciais da prova pessoal produzida em audiência final, e referida pela recorrente nas suas alegações:
- Depoimento da testemunha …..: apresentou-se como profissional de seguros da …… Seguros. Não é funcionário da ré, prestando alguns serviços à ré desde há um ano por conta de um contrato existente entre a …. e a ré. Foi funcionário da ré entre 1994 e 2014. Em 2008 era responsável das áreas de contratação e sinistros do ramo vida. Apenas no âmbito deste processo recorda o nome do falecido ….. A ajuda que pode prestar é a nível genérico, relativamente aos procedimentos adotados pela Companhia de Seguros e o tratamento dado às propostas. Analisando a proposta concreta pode concluir pelas considerações que a Seguradora terá tido. Não teve intervenção no caso concreto. Esclareceu que a ré, num seguro de grupo, é contratada através do banco, e não pelos proponentes, clientes do banco e subscritores de um pedido de empréstimo para crédito à habitação. Foram instituídos procedimentos com o banco mediante os quais no preenchimento da proposta tinham de dar a conhecer as cláusulas contratuais e explicar a proposta para o preenchimento, assegurar-se que eram preenchidas as declarações de saúde e de que a proposta era assinada. As cláusulas contratuais eram enviadas com o certificado individual (condições particulares com a especificidade de ser um seguro de grupo), para o proponente na altura da emissão do contrato, e no caso concreto, foram emitidas pelo sistema. Na proposta (em geral) consta uma declaração dos proponentes a dizer que receberam as condições e que as mesmas foram devidamente explicadas. Anexo à proposta de adesão sai o documento com as cláusulas que é entregue aos proponentes.
- Depoimento da testemunha ……: apresentou-se como bancária no Banco …. desde 1996. Em 2008 estava no Balcão da Rua …, no atendimento ao público, como gestora de clientes. Em 2008 não conhecia o Sr. …... Só o conheceu por volta do ano de 2017, para tratar, entre outros assuntos, de um processo de crédito à habitação. Foi uma transferência de balcão e as condições já estariam contratadas- se tem ou não seguro (“devia ter pois não estaríamos aqui”). Não sabe se o Sr. …. tinha um seguro de vida individual ou de grupo. Não sabe que coberturas este tinha contratado. Não teve intervenção nenhuma neste processo. Referiu genericamente que, quando contrata seguros de vida, informa os proponentes quais as coberturas disponíveis, a proposta com quais as condições, exclusões, tudo o que está indicado e o cliente tem a proposta física para poder analisar. Quando o cliente subscreve a proposta é-lhe entregue documentação atinente às condições do contrato- condições particulares. O cliente assina a proposta nos locais indicados. Não consegue precisar se o cliente rubrica as condições do contrato, pois estas ficam com o cliente. Não sabe se o Sr. …. tinha conhecimento da causa de exclusão “Suicídio”. Este é o procedimento que têm com a companhia de Seguros …..
- Depoimento da testemunha …..: apresentou-se como economista, tendo sido diretor e professor de um estabelecimento de ensino particular. O Sr. …. foi seu aluno entre 1982 e 1985. Não conhece o processo com a autora e não sabe do que se trata. Manteve contactos com a família e com o Sr. …, tendo a última vez sido há cerca de 4/5 anos. Ele trabalhava na Autoridade Tributária. Teve conhecimento do seu falecimento, através do seu pai. Descreveu-o como um rapaz esperto, chegou a colocar-lhe dúvidas sobre questões relativas ao fisco. Parecia “normalíssimo”. Nunca teve conhecimento de que ele tivesse tido uma depressão.
- Depoimento da testemunha …: apresentou-se como tendo sido sócio-gerente de uma empresa de restauração e catering. Conheceu o Sr. …., tornou-se amigo da família há cerca de 20 anos. Encontravam-se em reuniões e eventos de uma IPSS em Gaia. Viu-o pela última vez em fevereiro de 2018, dias antes de falecer. Chegou a conhecer a casa onde ele vivia, nada sabe sobre o contrato de financiamento celebrado para aquisição dessa casa. Nunca viu nele tendências suicidas ou de que padecesse de uma doença psiquiátrica- depressão, era uma pessoa com uma conduta de responsabilidade, de organização e de respeito, bastante humilde.
4.2.1. – Os dois factos elencados como não provados devem ser julgados provados?
Estes pontos têm a seguinte redacção:
“O segurado/mutuário foi efectivamente informado das condições atinentes à exclusão da cobertura do contrato de seguro que estava a firmar com a ré, em particular da atinente ao sinistro ‘’Suicídio’’ e abrangência temporal da mesma”. “Clausula essa que lhe foi explicada na data em que o segurado/mutuário subscreveu o seguro junto do Banco ….., S.A.”
A recorrente, apoiando-se no boletim de adesão ao seguro de vida de grupo – crédito à habitação subscrito pela pessoa segura de …., sustenta que este aí declarou expressamente (por duas vezes) que antes da subscrição e da celebração do contrato de seguro lhe haviam sido prestados todos os esclarecimentos e informações referentes ao contrato de seguro, tendo inclusivamente sido entregue exemplar das condições contratuais, e também nos depoimentos das testemunhas …. e …., que referiram os procedimentos adoptados para a contratação deste tipo de seguros, e …. e ….., cujos depoimentos incidiram sobre a pessoa do falecido ….., que definiram como sendo uma pessoa cuidadosa, conhecedora e com estudos, defende que esta matéria deverá ser considerada provada.
O tribunal recorrido motivou a sua decisão de facto, na parte impugnada pela recorrente, da forma que segue: “A decisão da matéria de facto, norteada pelo princípio da livre apreciação da prova, esteou-se fundamentalmente na inexistência de conhecimento das testemunhas ….., ….. e ……, respectivamente, profissional de seguros, funcionária da ré, entre 1994 e 2014, gestor de clientes no Banco …., SA, desde 1996, e funcionário bancário na mesma instituição bancária desde 1990, tendo este último atendido o pai do mutuário na agência do … no Porto. Na verdade, nenhuma das inquirições esclareceu se efectivamente foram comunicadas e explicadas as condições do seguro de vida associado ao crédito concedido pelo Banco …, SA ao de cujus, simplesmente porque nenhuma delas teve contacto com o proponente antes ou durante a celebração do contrato de mútuo e a adesão ao seguro de que o Banco é tomador. Salienta-se não terem sido juntas aos autos as condições contratuais devidamente assinadas pelo mutuário ou a proposta de adesão contendo as exclusões do risco de morte por suicídio. De igual modo nenhum elemento de prova de índole documental ou outra confirmou a asserção em debate, não restando alternativa senão concluir não estar provada. Ao invés, o documento constituído pelo boletim de adesão junto a fls. 58v a 60v não ilustra a comunicação e explicação das exclusões do contrato de seguro celebrado entre o beneficiário e a ré, não se encontrando, por outro lado, rubricadas pelo mutuante as condições gerais e especiais constantes de fls. 55v a 58.
Analisemos a prova junta aos autos:
- o boletim de adesão ao seguro de vida de grupo- crédito à habitação contraído pelo falecido ….. Este documento foi apresentado com o requerimento junto em 15 de abril de 2021.
- os depoimentos das testemunhas ….., …., ….. e ….., acima sumariadas.
A questão que se coloca é a de saber se …. teve conhecimento das condições gerais e especiais da contrato de seguro de vida de grupo que subscreveu.
A resposta, perante a prova produzida, e que se analisou, só pode ser negativa.
O boletim de adesão ao seguro de vida de grupo contém a assinatura de …., mas cinge-se ao teor do mesmo. Nenhuma prova nos autos foi feita de que … teve conhecimento das condições gerais e especiais e, com este conhecimento, subscreveu o boletim de adesão. Os documentos surgem “desgarrados”, não tendo sido feita prova de que um é a sequência ou contemporâneo do outro e de que o primeiro foi assinado por causa, ou apesar do conteúdo do segundo.
Os depoimentos das testemunhas nada ajudaram: pretendia-se um conhecimento efectivo e seguro sobre o caso concreto- a contratualização pelo falecido … de um seguro de vida de grupo e conhecimento por este das condições gerais e especiais do contrato. Contudo, as testemunhas ouvidas …. e …. falaram sobre os procedimentos internos adotados, respetivamente, pela Companhia de Seguros e pelo Banco para a contratualização deste tipo de seguros, nada sabendo sobre o contrato em causa nos autos. As testemunhas …. e ….. falaram do carácter do homem de quem, afinal, pouco sabiam.
Assim, extrai-se da prova, assim analisada criticamente, a convicção que justifica a manutenção dos dois factos como não provados, assim merecendo um juízo de improcedência o recurso apresentado que visava a impugnação da matéria de facto referida.
4.3. O mérito da ação
- O contrato de seguro de grupo
Não suscita controvérsia que o contrato de seguro celebrado se reconduz a um seguro de grupo (ramo vida) ao qual o segurado aderiu sem qualquer intervenção na modulação do seu conteúdo (ponto 4 dos Factos Provados), que é formado por cláusulas contratuais gerais (Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (RJCCG), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, sucessivamente reformulado até ao Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de dezembro).
Conforme se dispõe no Acórdão do STJ de 14-04-2015, proc. n.º 294/2002.E1.S1: «II - O contrato de seguro do ramo vida oferece uma particularidade relevante: trata-se de um seguro contributivo, em que o banco mutuante é o tomador do seguro – entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora, sendo responsável pelo pagamento do prémio; os mutuários do crédito concedido são o grupo segurável, i.e., as pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum; as pessoas mutuárias são aquelas cujo risco de vida, saúde ou integridade física tenha sido aceite pela seguradora depois da recepção das declarações de adesão ao grupo, quer dizer, do documento de consentimento da pessoa segura na efectivação do seguro – e que contribuem, no todo ou em parte, para o pagamento do prémio.»
Pressupõe, assim, o seguro de grupo, a existência de três sujeitos de direito distintos: o segurador, o tomador do seguro e os segurados.
Tem dois momentos na sua formação: em primeiro lugar verifica-se a celebração de um contrato entre a seguradora e o tomador de seguro e num segundo momento ocorrem as adesões dos membros do grupo, os segurados.
Trata-se, pois, de um contrato trilateral entre seguradora, tomador e aderentes, em que existe um contrato inicial celebrado entre a seguradora e o tomador de seguro, o Banco, definindo esse acordo o conteúdo dos contratos posteriormente celebrados com os aderentes, sendo que apenas com a adesão destes passa a haver segurados.
A pretensão da recorrente assenta no contrato de seguro assinado, em 25 de julho de 2008 por …., na posição de segurado, em conjunto com o ….., S.A., que ocupou a posição jurídica de tomador de seguro.
Atento o disposto no artigo 2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro instituído pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, adiante designado por RJCS, entrado em vigor desde 01 de janeiro de 2009, este é o diploma aplicável ao caso dos autos.
- O mérito e a impugnação da matéria de facto
Da leitura da motivação do recurso e das conclusões 1 a 13 decorre que parte dos fundamentos invocados pela recorrente no que tange à discussão do mérito da causa pressupunham a alteração da decisão sobre matéria de facto.
Porém, tendo o elenco de factos provados e não provados permanecido inalterado, forçoso é considerar que não se verificou o pressuposto da pretendida revogação da decisão recorrida, com o fundamento referido.
- Os deveres de informação (pré-contratual) (conclusões 14 a 17) e a alegada “questão nova”
Alega a recorrente que os deveres de informação pré-contratual impendem sobre o tomador (o Banco) e não sobre a seguradora, ao abrigo do disposto nos artigos 78/1 e 3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
Em sede de contra-alegações sustenta a recorrida que a recorrente “vem agora invocar o disposto nos artigos 78/1 e 79 do Regime jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), sustentando que, estando-se perante um seguro de grupo, os deveres de comunicação e de informação stricto sensu, incumbiam apenas ao Banco, enquanto tomador do seguro, e que a violação desses deveres tem como única consequência desencadear responsabilidade civil do Banco perante o segurado, não conduzindo ao afastamento da cláusula de exclusão. Trata-se de uma questão inteiramente nova e que, como tal, não pode, no entender da A., ser conhecida no recurso”.
Apreciando.
Como é entendimento pacífico, quer na doutrina (Cfr. designadamente o Prof. João de Castro Mendes, in " Recursos ",edição da AAFDL, 1980, págs. 27 e segs. ; Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I , 2ª Edição, pág. 566 ; Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, pág. 153 a 158 ; Armindo Ribeiro Mendes, in Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, 2009, pág. 81 e António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2010, Almedina, pág. 103 e segs.), quer na jurisprudência dos nossos tribunais superiores (Cfr. v.g. e de entre muitos outros: os Acs. do STJ 07.07.2009 e de 28.05.2009 ( proc. nº 160/09.5YFLSB), ambos disponíveis in www.dgsi.pt), e sem prejuízo do conhecimento oficioso que alguma questão reclame, os recursos visam possibilitar que o tribunal superior reaprecie questões de facto e/ou de direito que no entender do recorrente foram mal decididas/julgadas no tribunal a quo, não se destinando eles, portanto, a conhecer de questões novas, ou seja, de questões que não tenham sido, nem o tinham que ser ( porque não suscitadas pelas partes ), objecto da decisão recorrida. É que, como bem refere o STJ (In ac. citado de 28.05.2009, proc. nº 160/09.5YFLSB “(…) sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido ( matéria não anteriormente alegada) ou formulação de pedidos diferentes ( não antes formulados), ou seja, visando os recursos apenas a modificação das decisões relativas a questões apreciadas pelo tribunal recorrido ( confirmando-as, revogando-as ou anulando-as ) e não criar decisões sobre matéria nova, salvo em sede de matéria indisponível, a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo tribunal recorrido, tem inerente a consequência de encontrar vedada a respectiva apreciação pelo Tribunal ad quem (art. 676º CPC).”
Dito de uma outra forma, e como efectivo meio impugnatório de decisões judiciais, a interposição do recurso apenas vai desencadear a reapreciação do decidido [o tribunal de recurso vai reponderar a decisão tal como foi proferida], não comportando ele o ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria que não tenha sido submetida ( no momento e lugar adequado ) à apreciação do tribunal a quo ( nova, portanto ).
Concluindo, no nosso direito adjectivo a função do recurso ordinário tem pois como desiderato a reapreciação de uma decisão recorrida, sendo o respectivo modelo adoptado o da reponderação, que não o de reexame (Cfr. Armindo Ribeiro Mendes, ibidem).
Assim também o decidiu já recorrentemente o STJ: “ A questão nova não é susceptível de vir a obter um novo enquadramento jurídico, em sede de recurso, mas antes uma primeira e definitiva abordagem, pelo que, a menos que se reconduza a uma hipótese de conhecimento oficioso, está vedado, até com base no princípio da estabilidade da instância, ao Tribunal Superior a sua apreciação, que não pode conhecer e decidir o que, anteriormente, o não foi, por falta de atempada invocação”. (Cfr., de entre muitos outros, o Acórdão do STJ de 2/6/2015, proferido no Proc. nº 505/07.2TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, temos por certo que a questão do ónus da prova é transversal a todo o processo- sem prova não há facto.
Na decisão da 1.ª instância há um conhecimento implícito desta matéria- interpretou, como entendeu, a quem pertence o ónus da prova.
E não é pelo facto de não ter referido expressamente o artigo 78 do RJCS que procede a alegação da recorrida de que estamos perante “questão nova”. A questão que se discute é a quem cabe informar o segurado das cláusulas contratuais e quem tem o ónus dessa prova.
Isto para dizer que o círculo onde se movimenta a matéria a apreciar é o mesmo.
Aliás, diz-nos o n.º 4 do artigo 607 do CPC que na fundamentação da sentença o Juiz declara quais os factos que declara provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
Quer isto dizer que a determinação dos factos provados e não provados e o caminho até ambos percorrido é uma atividade que se impõe ao tribunal, não constituindo questão nova no sentido acima referido, tanto mais que, como já se disse, o tribunal recorrido apreciou o tema inerente ao ónus da prova ao ter julgado procedente a ação precisamente por ter entendido que não se provou que o segurado tivesse tido conhecimento, das condições atinentes à exclusão da cobertura do contrato de seguro que estava a firmar com a ré, em particular da atinente ao sinistro ‘’Suicídio’’ e abrangência temporal da mesma, ou que esta lhe tivesse sido explicada na data em que subscreveu o seguro junto do Banco …., SA”, o que constitui tomada de posição sobre o ónus da prova e o seu reflexo na presente demanda.
Inexiste, por isso, questão nova.
Defende a recorrente que à falta de comunicação de uma cláusula é aplicável a consequência específica prevista no artigo 78.º da Lei do Contrato Seguro e não o regime da LCCG, aprovado pelo Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de outubro, pelo que deve o tomador do seguro de grupo (o Banco …., SA), a quem competia efetuar a comunicação em falta, ser responsabilizado por esse incumprimento, sem que isso afete os termos do contrato de seguro, o qual foi validamente celebrado, devendo, pois, manter-se operante a cláusula em causa, a qual exclui a situação de …. do âmbito dos riscos cobertos pelo contrato de seguro.
Apreciando.
Dispõe o artigo 78 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) que: “1- Sem prejuízo do disposto nos artigos 18.º a 21.º, que são aplicáveis com as necessárias adaptações, o tomador do seguro deve informar os segurados sobre as coberturas contratadas e as suas exclusões, as obrigações e os direitos em caso de sinistro, bem como sobre as alterações ao contrato, em conformidade com um espécimen elaborado pelo segurador.
2- (…) 3- Compete ao tomador do seguro provar que forneceu as informações referidas nos números anteriores. (…)”.
Ora, sem prejuízo de se reconhecer a profunda divergência jurisprudencial que se estabeleceu sobre esta matéria [defendendo uns que “[o]s deveres de comunicação e esclarecimento, na íntegra, do conteúdo negocial estão previstos nos arts. 5.º e 6.º do DL 446/85 e resultam directamente do princípio da boa fé contratual consagrado no art. 227.º do Código Civil, estendendo-se a todas as partes dos contratos que tenham poder de impor cláusulas negociais ao consumidor” e, assim, “[o] facto de o legislador ter fixado, no art. 4.º, n.º 1 do DL n.º 176/95, de 26 de Julho, deveres de informação a cargo do tomador de seguro, não significa que tenha querido onerar exclusivamente o banco com estes deveres e exonerar a seguradora, perante o aderente, dos deveres que já decorriam dos arts 5.º e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro” (Parte do sumário do Ac. do STJ de 14/04/2015, Processo n.º 294/2002.E1.S1. No mesmo sentido, entre outros, o Ac. STJ de 09/03/2021, Processo n.º 1197/16.3T8BRG.G1.S1, de 10/05/2018, Processo n.º 261/15.0T8VIS.C1.S2, de 02/12/2013, Processo n.º 306/10.0TCGMR.G1.S1, Ac. RP de 27/02/2014, Processo n.º 2334/10.7TBGDM.P1; Ac. RP de 25/10/2012, Processo n.º 24/10.0TBVNG.P1; Ac. RP de 11/09/2008, Processo n.º 0834361, Ac. RLx de 22/05/2014; Ac. RLX de 26/02/2013, Processo n.º 411/10.3TBTVD.L1-7; Ac. RLX de 05/03/2009, Processo n.º 1860/07.0TVLSB-8, Ac. RG de 15/09/2014, Processo n.º 17/13.5TCGMR.G1, todos consultáveis em www.dgsi.pt), e outros, ao invés, que “[n]o tipo de contrato de seguro de grupo contributivo, na modalidade de seguros de vida de crédito à habitação, nos termos do artigo 4 do DL n.º 176/95, de 27-07, recai sobre o tomador do seguro, o banco mutuante, o ónus de informar e esclarecer os segurados aderentes sobre as cláusulas de cobertura e de exclusão do risco assim garantido” e, desse modo, “[o] incumprimento desse dever leal de informação e esclarecimento não se comunica à seguradora, salvo convenção em contrário, porquanto, no referido tipo de contrato de seguro de adesão, não se configura que o tomador do seguro intervenha como intermediário, auxiliar ou comissário da seguradora, não se encontrando, por isso, fundamento normativo para imputar a esta, as consequências da atuação irregular do tomador na comercialização do produto financeiro em causa. Nessa conformidade, não está vedado à seguradora invocar a seu favor contra os segurados aderentes as cláusulas gerais e particulares sobre o âmbito e exclusões do risco assumido no contrato de seguro, sem que a estes seja lícito contrapor o incumprimento do dever de informação e esclarecimento por parte do tomador do seguro” (Parte do sumário do Ac. do STJ de 20/05/2015, Processo n.º 17/13.5TCGMR.G1.S1. No mesmo sentido, entre outros: Acs. STJ de 30/05/2019, Processo n.º 532/17.1T8VIS.C1.S1, de 15/04/2015, Processo n.º 385/12.6TBBRG.G1.S1; de 18/09/2014, Processo n.º 2334/10.7TBGDM.P1.S1, de 09/07/2014, Processo n.º 841/10.0TVPRT.L1.S1; de 21/02/2013, Processo n.º 267710.6TBBCL.Gl.S1; de 29/05/2012, Processo n.º 7615/06. 1TBVNG.P1.S1; de 13/01/2011, Processo n.º 1443/04. 6TBGDM.PI.S1; de 20/01/2010, Processo n.º 294/06. 8TBOAZ.P1; de 12/10/2010, Processo n.º 646/05. OTBAMR.GI.S1; de 22/1/09, Processo n.º 08B4049; Ac. RC de 27/05/2015, Processo n.º 36/12.9TBALD.C1; Ac. RC de 10/09/2013, Processo n.º 1136/11.8TBGRD.C1, Ac. RG de 26/11/2015, Processo n.º 30/14.5TBPVL.G1, Ac. RG de 22/10/2015, Processo n.º 3401/12.8TBVCT.G1; Ac. RG de 25/09/2014, Processo n.º 285/12.6TBBRG.G1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.), a verdade é que essa divergência se mostra hoje, nalguma medida, ultrapassada, porquanto, como se refere no recente Ac. do STJ de 29/02/2024, em função do decidido no Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no seu Acórdão de 20/04/2023, proferido no Processo C‑263/22 (Proferido na sequência do reenvio prejudicial suscitado no âmbito do Processo n.º 2224/14.4TBSTS.P1.S1, cujos contornos e subsequente decisão constam do Ac. STJ de 25/05/2023, consultável em www.dgsi.pt), deve considerar-se que “a não comunicação de uma cláusula limitativa da cobertura do risco segurado pelo tomador de um seguro de grupo, a quem incumbia proceder a essa comunicação, pode ser oposta à seguradora no sentido de se considerar tal cláusula excluída do contrato de seguro”.
Isto porque, como se concluiu no citado Acórdão do TJUE, por um lado, “[o] artigo 4.º, n.º 2, e o artigo 5.º da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, lidos à luz do vigésimo considerando desta diretiva, devem ser interpretados no sentido de que: um consumidor deve ter sempre a possibilidade de tomar conhecimento, antes da celebração de um contrato, de todas as cláusulas que este contém”; e, por outro lado, porque “[o] artigo 3.º, n.º 1, e os artigos 4.º a 6.º da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que: quando uma cláusula d eum contrato de seguro relativa à exclusão ou à limitação da cobertura do risco segurado, da qual o consumidor em causa não pôde tomar conhecimento antes da celebração desse contrato, é qualificada de abusiva pelo juiz nacional, este tem de afastar a aplicação dessa cláusula a fim de que não produza efeitos vinculativos relativamente a esse consumidor”. Interpretação que é vinculativa para todos os Estados Membros e todos os tribunais nacionais desses Estados, em virtude do disposto no artigo 91.º do Regulamento do Processo do Tribunal de Justiça e do primado do direito da União Europeia, que a Constituição da República Portuguesa também acolhe (artigo 8.º, n.º 4).
Ora, no caso, não há dúvidas de que a inserção no contrato de seguro em apreço da cláusula controvertida nestes autos [designadamente, a cláusula 7 das Condições Especiais do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 15.00001, foi feita sem a mesma ter, previamente, sido comunicada e explicada ao segurado …. (ou pelo menos, sem se ter provado, como vimos, o cumprimento desses deveres). Nessa medida, tratando-se de cláusula limitativa da cobertura do risco segurado, não pode deixar de se considerar essa prática como abusiva e como tal deve ser sancionada com a consequência prevista na lei. Isto é, com a exclusão de tal cláusula do referido contrato, nos termos do artigo 8.º, al. a), do RJCCG.
Cabendo o ónus da prova do cumprimento desses deveres à seguradora, é sobre ela que recai o risco da falta de prova (artigo 5.º, n.º 3, do DL n.º 446/85), pelo que a cláusula em litígio tem de se dar como excluída do contrato nos termos do artigo 8.º als a) e b), do DL 446/85.
Nem, se compreenderia que fosse de outro modo. Efetivamente, tratando-se de contrato no conteúdo do qual o falecido segurado não teve qualquer intervenção, dificilmente se compreenderia, à luz das mais elementares das regras da boa-fé (artigo 227.º, n.º 1, do Código Civil), que a referida cláusula lhe pudesse ser imposta sem estar demonstrado que a mesma a ela, expressa e esclarecidamente, aderiu. Para mais, tratando-se de cláusula que lhe é manifestamente desfavorável. Como se refere no citado Aresto do TJUE, “se o caráter não transparente de uma cláusula contratual, devido à sua falta de clareza ou de compreensibilidade, pode constituir um elemento a ter em conta no âmbito da avaliação do caráter abusivo dessa cláusula, a falta de transparência, devido à impossibilidade de o consumidor tomar conhecimento da referida cláusula antes da celebração do contrato em causa, pode, por maioria de razão, constituir um elemento dessa natureza”.
Daí que, em suma, se considere tal cláusula como excluída do já referenciado contrato de seguro e a recorrente também vinculada pelas consequências desta decisão.
Note-se que, como se sublinhou no Ac. STJ de 25/05/2023 (Processo n.º 2224/14.4TBSTS.P1.S1, já referenciado), “[o] carácter abusivo da cláusula não pode ser desconsiderado em virtude de o direito nacional prever que o tomador do seguro que não tenha cumprido o dever de comunicação/informação que lhe está cometido pelo art. 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Julho, poder ser responsabilizado, seja pelo pagamento da parte do prémio correspondente ao segurado (cfr. art. 4.º, n.º 3, do mesmo diploma legal), seja, eventualmente, nos termos gerais da responsabilidade civil (cfr. o art. 79.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril), sem garantir, porém, o restabelecimento integral da situação em que o aderente estaria se tivesse beneficiado da cobertura do seguro”.
De acordo com a orientação do Acórdão do TJUE já indicado, “a interpretação do direito nacional em conformidade com a Diretiva 93/13/CEE não permite que a existência de um ou mais regimes de responsabilização pelo incumprimento do dever de comunicação/informação das cláusulas possa afectar a inoponibilidade ao aderente consumidor de cláusulas contratuais qualificadas como abusivas. Assim sendo, afigura-se que o direito nacional (art. 8.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro), ao determinar simplesmente que as cláusulas não comunicadas sejam excluídas do contrato (isto é, sem sujeitar o afastamento de tais cláusulas ao controlo do respectivo conteúdo a realizar em razão dos parâmetros constantes dos pontos 45 e seguintes da fundamentação do Acórdão do TJUE), se encontra em plena consonância com a Diretiva 93/13/CEE. Nas palavras de Joaquim Sousa Ribeiro («O princípio da transparência no Direito Europeu dos Contratos, in Estudos de direito do consumidor, n.º 4, Publicação do Centro de Direito do Consumo, Coimbra, 2002, pág. 150), «a violação da transparência é, neste domínio, uma causa autónoma e suficiente de ineficácia»”.
Daí a conclusão a que chegámos da qual resulta a manifesta improcedência do recurso interposto.
V. Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes desta 8.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Julgar improcedente o recurso de apelação e, em consequência, confirmar a decisão proferida em 1.ª instância.
Custas pela recorrente.
Escrito e revisto pela Relatora.
Lisboa, 21 de novembro de 2024
Ana Paula Olivença
Rui Pinheiro Oliveira
Maria teresa Lopes Catrola