ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
LEGITIMIDADE
HERANÇA INDIVISA
PARTILHA
Sumário

- Ainda que à data da compra e venda fosse a herança indivisa, que integra prédio rústico, a titular do direito de preferência, previsto no artº 1380º do CC, com a adjudicação ao A. desse prédio, por partilha, deixa de ser ao conjunto dos herdeiros que assiste legitimidade para instaurar ação de preferência.
- Com a partilha cessa a indivisão hereditária, passando os herdeiros a ser proprietários dos bens que lhe foram adjudicados, passando in casu a ser titular do direito de preferência o A., a quem o prédio rústico confinante foi adjudicado.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

RA intentou ação declarativa contra GP, EP e mulher, SP, tendo formulado os seguintes pedidos:
“a) Ser reconhecido o direito de preferência do Autor na qualidade de herdeiro e proprietário;
b) Declarar-se o terceiro Réu substituído, na posição (proprietários e possuidores) do prédio rústico identificado em 3.º e 4.º, pelo Autor.
c) Seja ordenado o cancelamento do registo a favor do terceiro Réu, nos termos da presunção do art.º 8º do C. R. Predial.”
Para o efeito, alegou, em síntese, que é dono e legítimo proprietário do prédio rústico, com a área total de 2.100,00 m2, sito na …, inscrito na respetiva matriz predial Cadastral sob o art. …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, tendo-o adquirido por via hereditária, no dia 16 de maio de 2023, no processo de inventário e partilha de sua mãe, que correu termos na Conservatória do Registo Civil de …. Os RR. mencionados em 1. e 2. eram proprietários e legítimos possuidores, em comum e partes iguais, do prédio rústico, confinante com aquele. No decurso do processo de inventário e partilha em que o A. veio a adquirir, como herdeiro legitimário, o prédio rústico referido, o primeiro R. e os segundos R.R. declararam (por escritura pública celebrada no dia 13 de fevereiro de 2023), vender ao terceiro R., que declarou comprar, pelo preço de € 40.000,00 (quarenta mil euros) o referido prédio rústico. Os R.R. referidos em 1. e 2. não notificaram a herança, na pessoa dos seus herdeiros de que iam vender ao 3º R. aquele prédio nem, muito menos, do concreto projeto de venda. Os referidos prédios têm ambos área inferior a 25.000 m2 (unidade de cultura para efeitos de emparcelamento). Só há cerca de quatro meses da data de propositura da presente ação, e de forma fortuita, o Autor soube da venda do prédio objeto desta preferência. Os direitos da herança, nomeadamente o direito de preferência na compra de prédio rustico confinante, transmitem-se ao herdeiro adquirente daquele prédio.
Os RR. AA e mulher, EA, apresentaram contestação, alegando, em suma, que à data da alienação (13.02.2023), não possuindo o autor, a qualidade de proprietário do terreno confinante, sendo apenas herdeiro de herança indivisa na qual se integra esse terreno (facto dado a conhecer com a presente ação), mas adquirindo-a, posteriormente, em maio de 2023, através de escritura da partilha que lhe adjudicou esse imóvel, não pode exercer o direito legal de preferência a que alude o art.º 1380.º/1 do C. Civil. Sendo a preferência obrigatoriamente exercida em litisconsórcio necessário ativo, nos termos do disposto no art. 33.º n.º 1 do CPC, no caso de ser a herança detentora do direito de ação por ser confinante. O Autor, não tem legitimidade para propor a presente ação, devendo esta ser julgada improcedente, absolvendo os RR da do pedido. Mais invocaram a caducidade do direito de ação e impugnaram factualidade alegada na p.i..
Concluíram pela sua absolvição da instância.
Os RR. GP, EP e SP apresentaram contestação conjunta, alegando, em suma, que à data do facto jurídico do qual emerge o direito ao exercício do direito de preferência (venda), o Autor não era nem proprietário, nem comproprietário nem titular de um direito de propriedade disponível e identificado sobre o prédio que confina com o prédio alienado. A preferência é obrigatoriamente exercida em litisconsórcio  necessário ativo, nos termos do disposto no art. 33.º n.º 1 do CPC, no caso de ser a herança detentora do direito de ação por ser confinante. Mais invocaram a caducidade do direito de ação e impugnaram factualidade vertida na p.i.
Concluíram pela sua absolvição dos pedidos.
O A. apresentou resposta às exceções pugnando pela sua improcedência.
Por despacho proferido em 09/02/2024 foi o A. convidado a pronunciar-se quanto à ilegitimidade ativa, por preterição de litisconsórcio necessário e a suprir tal exceção mediante dedução de incidente de intervenção principal provocada.
O A. requereu a intervenção principal provocada de JA, e, consequentemente, a sanação da invocada exceção.
Os RR. deduziram oposição ao incidente.
Foi proferida decisão que concluiu nos seguintes termos: “… o chamamento de JA, em face dos pedidos formulados pelo Autor e, bem assim, das normas legais donde decorre a legitimidade substantiva – cf. requerimento de 29 de fevereiro de 2024 (referência n.º 5608044) –, afigura-se, certamente, inútil e infrutífero, atenta a intransponibilidade do princípio da estabilidade da instância, na sua vertente objetiva (imutabilidade do pedido e da causa de pedir) – cf. artigos 590.º, n.º 6, e 265.º, ambos do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 590.º, n.º 1, e 3.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se elucidar as Partes que este Tribunal já se encontra em condições de se pronunciar quanto à presente lide e, consequentemente, pôr termo à mesma, pelo que convida-se as mesmas a, querendo, no prazo de 10 (dez) dias, virem aos autos apresentar o que tiverem por conveniente.”
As partes pronunciaram-se quanto à prolação de decisão de mérito.
Com dispensa de realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador sentença, que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus de todos os pedidos contra si formulados.
O A. interpôs recurso da sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
“I. O recorrente não se conforma com a decisão do, aliás, douto Tribunal “a quo”, que decidiu que por vir “exercido o direito de preferência em nome próprio, que não na qualidade de «representante» da herança ilíquida e indivisa que encabeça o mesmo direito, pelo herdeiro da proprietária falecida, mister é concluir que este direito não se lhe assiste, pelo que cabe julgar a ação improcedente, absolvendo os Réus dos pedidos”.
II. Salvo o devido respeito o saneador-sentença labora em erro, porquanto o ora, A., peticiona que lhe seja reconhecido o direito de preferencia na qualidade de herdeiro e proprietário. É que no momento em que tomou conhecimento da violação do direito de preferência a herança por óbito da mãe do A. MP já estava encerrada. Isto porque o inventário cessou com a partilha dos bens. Não podia, por conseguinte, o A. agir em nome da herança, mesmo que acompanhado pelo outro herdeiro (o seu único irmão), porquanto a mesma já estava partilhada e em virtude disso extinta.
III. Cite-se o entendimento do Prof. Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, 5.ª Edição Revista, pág. 546/547, citando no mesmo sentido M. Gomes da Silva, que considera a partilha como um ato modificativo do direito, na medida em que em lugar de um direito não exclusivo sobre a totalidade dos bens da herança, cada um dos herdeiros fica tendo um direito exclusivo sobre elementos determinados, cessando, em consequência, o estado de indivisão, com extinção da possibilidade de atuação coletiva sobre aquela massa de situações jurídicas.(sublinhado nosso).
IV. A verdade é que a Lei parece não ter uma norma especifica para acolher o caso ora em crise, isto é, para solucionar o caso em que a violação de um direito ocorreu quando a herança estava indivisa, mas esta (violação) só veio a ser conhecida após a liquidação da herança pelo herdeiro do bem.
V. Porém, o art.º 2119.º do Código Civil refere que “feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos (…)” e nos direitos, dizemos nós na esteira da doutrina e das jurisprudência,
VI. Já o art.º 2098, n.º 1 do Código Civil determina que com a partilha da herança cessa o regime de representação colectiva, passando cada herdeiro a responder pelas dívidas da herança na proporção da quota que nela lhe coube.
VII.Tudo o ante dito para afirmar que o legislador quis atribuir ao sucessor de um determinado bem (no caso vertente do prédio rústico) a responsabilidade pelos eventuais encargos mas também, e como não podia deixar de ser, os direitos inerentes ao bem herdado, retroactivamente conforme supra referido.
VIII.O saneador-sentença respalda-se no Acordão do Supremo Tribunal de Justiça 541/09.4TBCBC.G1.S1, no entanto olvida tratar-se de questão diversa uma vez que aquele arresto decide uma contenda em que a preferente age em nome pessoal pese embora a herança não esteja ainda partilhada, ao contrário do caso ora em análise onde o preferente é o proprietário que adquiriu por herança entretanto partilhada e consequentemente extinta.
IX. No mesmo arresto, citando o Acordão recorrido da Veneranda Relação, os Srs. Juízes Conselheiros afirmam que “Teremos assim que concordar inteiramente com a Relação quando diz que, não tendo havido partilha, o prédio preferente pertence à herança, pelo que o direito de preferência seria da herança, e não dos herdeiros (sublinhado nosso): “É que, não tendo sido partilhada a herança, o direito de propriedade sobre o prédio em questão e, consequentemente, o direito de preferência sobre os prédios confinantes e alienados entre os réus, encontra-se na esfera jurídica da herança. Como tal, autor e chamada, porque ainda não partilhada a herança, não podiam para si invocar o direito de propriedade sobre o prédio rústico mencionado mesmo que este pertencesse à herança aberta por morte de sua mãe”.
X. Ora, tendo sido a herança partilhada, como foi no caso agora em crise, solução diversa se impõe. Isto é, reconhecer a legitimidade do A. para intentar a ação de preferencia uma vez que é proprietário e detentor do direito de preferência.
XI. No mesmo sentido, o Venerando Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 1561/12.7TBOLH.E1, consultava em dgsi.pt, num processo em que a herança veio a ser partilhada no decurso da ação considerou os proprietários herdeiros partes legítimas: “Resumindo, não possuindo os recorrentes, à data da alienação, a qualidade de proprietários do terreno confinante, sendo apenas herdeiros de herança indivisa na qual se integra esse terreno, mas adquirindo, durante a pendência da ação, essa qualidade, na sequência da licitação e sentença homologatória da partilha que lhes adjudicou esse imóvel, podem exercer o direito legal de preferência a que alude o art.º 1380.º/1 do C. Civil” (sublinhado nosso). E decidiram-no afirmando que “se é certo que à data da propositura da presente ação os recorrentes não eram titulares do direito de propriedade do prédio confinante, pertencendo o direito de preferência em causa à herança indivisa, a verdade é que em 13/07/2011 teve lugar no processo de inventário a conferência de interessados, tendo a parte rústica sido licitada pelos autores, BB, DD, HH e pelas chamadas, QQ e SS, e em 17/12/2015 foi proferida a sentença homologatória da partilha, na qual esse imóvel lhes foi adjudicado definitivamente, facto a atender, nos termos do art.º 611.º/1 do CPC, detendo, pois, a necessária legitimidade para o seu exercício”(sublinhado nosso).
XII.Assim, atento tudo o ante explanado, não se vislumbra qualquer ilegitimidade uma vez que o Autor peticiona na qualidade de proprietário do bem (prédio rústico) cujo título adveio de ter sido herdeiro do mesmo e de nem numa nem noutra qualidade ter tomado conhecimento do projeto de venda para que pudesse, ou a herança indivisa, ou mais recentemente, o próprio A., exercer o direito que pretende agora ver judicialmente reconhecido. Direito que tem e que exerceu da única forma que o caso concreto lhe permite fazer.
XIII. Assim, à luz do entendimento do ora recorrente tem este legitimidade para prosseguir com a ação de preferência sendo que a decisão de o considerar que não tem direito de agir viola, entre outros, os art.ºs 2119.º e n.º 1 do 2098.º, ambos do Código Civil.
Nestes termos, nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de V.Excias., Venerandos Juízes Desembargadores, deverá o presente recurso ser decidido procedente e em consequência ser o saneador-sentença revogado e aquela decisão substituída por outra que considere o A. parte legitima prosseguindo a ação os seus ulteriores termos.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
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A decisão recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto:
“1. O prédio rústico, constituído por 4.100,00 m2, sito na …, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, encontra-se registado a favor dos Réus AA e EA, desde 14 de fevereiro de 2023.
2. Em 13 de fevereiro de 2023, os Réus GP e EP declararam, mediante escritura pública, vender o prédio rústico melhor identificado sob o ponto anterior aos Réus AA e EA, pelo preço de € 40.000,00.
3. O prédio rústico, com a área total de 2.100,00 m2, sito na …, inscrito na respetiva matriz predial cadastral sob o artigo …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, encontra-se registado a favor do Autor, desde 16 de maio de 2023, atenta a partilha da herança aberta por óbito de MP, sua mãe, realizada.
4. Mediante procedimento simplificado de partilha e registos, tido lugar em 16 de maio de 2023, foram relacionados e partilhados os bens deixados por morte de MP, falecida em 7 de setembro de 2015, entre os seus herdeiros legitimários, a saber, o aqui Autor e o seu outro filho JA.
5. Entre o mais, foi adjudicado ao Autor o prédio rústico melhor identificado sob o ponto 3.”
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do CPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do CPC).
Assim, a única questão a decidir consiste em aferir da legitimidade do Autor.
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Dispõe o nº 1 do artº 1380º do CC que “os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.”
“São pressupostos do direito real de preferência: a) que tenha sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura; b) que o preferente seja dono de prédio confinante com o prédio alienado; c) que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura: d) que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante.” [i]
O saneador sentença julgou improcedente a ação, com a seguinte fundamentação:
“Prima facie, há que mencionar que o aludido prédio rústico, à data do negócio translativo da propriedade celebrado entre os Réus, integrava a herança indivisa de MP, mãe do Autor.
Conforme resulta da factualidade supra assente, o acervo hereditário da mãe do Autor só veio ser partilhado em 16 de maio de 2023 e só nessa data é que o Autor adquiriu a qualidade de proprietário sobre um tal prédio. Com efeito, sempre que bens móveis ou imóveis integrem uma herança indivisa (situação em que se encontrava a herança de MP até 16 de maio de 2023), os seus herdeiros não são proprietários de tais bens, mas antes titulares de um direito de quinhão/de uma quota-parte ideal numa propriedade coletiva ou comunhão de mão comum. (…)
Daqui resulta, à míngua, a manifesta improcedência das pretensões do Autor, pois que não só este não é titular, em nome próprio, de uma quota ideal do imóvel sub judice, como também não lhe cabe, em sede de legitimidade substantiva, intentar uma ação, na qualidade de herdeiro – mesmo acompanhado pelo seu irmão, o outro sucessível que concorre consigo à herança aberta por óbito da sua mãe – para preferir em nome próprio e nessa qualidade.
Como já explanado, em despacho anteriormente proferido nestes autos, «havendo vários herdeiros e antes da partilha se efetuar, cada um deles – embora não tenha um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer uma quota-parte de cada um deles – detém um direito de quinhão, ou seja, à respetiva quota-parte ideal da herança global em si mesma, direitos estes de que tais herdeiros tem a propriedade» – cf. Rabindranath Capelo de Sousa, «Lições de Direito das Sucessões», Volume II, 3.ª Edição Renovada, Coimbra Editora, Coimbra, p. 2013, p. 90. Ou seja, só depois de efetuada a partilha da herança e adjudicados esses bens ou definida a quota-parte de cada um nesses bens concretos, é que o herdeiro passa a ser titular dos bens em concreto. (…)
De facto, enquanto a herança se mantiver indivisa, é ela mesma a titular do direito de preferência, devendo o respetivo exercício ser praticado por todos os herdeiros – v.g., Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7 de novembro de 2023, processo n.º 2720/22.7T8PNF.P1, Relatora Ana Lucinda Cabral (disponível em www.dgsi.pt).
Ora, no caso dos autos, em 13 de fevereiro de 2023 (data do negócio compra e venda celebrado entre os Réus), a herança aberta por óbito de MP encontrava-se numa situação de indivisão, que só findou em 16 de maio de 2023, com a partilha dos bens que a integravam.
Por tal, cabia ao Autor, acompanhado na lide com o seu irmão, exercer o eventual direito de preferência do qual se arroga em nome e em representação da herança, e não em NOME PRÓPRIO e no SEU interesse pessoal, como o fez. Recupere-se o Autor, na presente lide, peticiona (erradamente) que lhe seja «reconhecido o direito de preferência (…) na qualidade de herdeiro e proprietário» e declarado que «o terceiro Réu [seja] substituído, na posição (proprietários e possuidores) do prédio rústico identificado em 3.º e 4.º, pelo Autor.».
O exercício do direito de preferência pertence exclusivamente à herança aberta por óbito de MP e, uma vez reconhecido, o prédio preferendo integrará o  património da herança em si mesma considerada e não ingressar no património individual de cada um dos herdeiros, mormente, do Autor.
O Autor, porque à data ainda não haviam sido partilhados os bens, não pode invocar para si o direito de propriedade sobre o prédio identificado na petição, dado que o eventual direito de preferência se constitui como um direito da herança, integrando o património autónomo desta e não o dos herdeiros (…)”
O apelante alega que no momento em que tomou conhecimento da violação do direito de preferência a herança por óbito da sua mãe, MP, já estava encerrada, tendo o inventário cessado com a partilha dos bens; não podia o A. agir em nome da herança, mesmo que acompanhado pelo outro herdeiro (o seu único irmão), porquanto a mesma já estava partilhada e em virtude disso extinta.
Adiantamos que lhe assiste razão.
Na petição inicial alegou que é dono e legítimo proprietário do prédio rústico identificado em 3 dos factos provados, tendo-o adquirido por via hereditária, no dia 16 de maio de 2023, no processo de inventário e partilha de sua mãe. Os 1º e 2ºs RR. eram proprietários e legítimos possuidores, em comum e partes iguais, do prédio rústico, confinante com aquele, identificado no facto provado 1. No decurso do processo de inventário e partilha em que o A. veio a adquirir, como herdeiro legitimário, o prédio rústico referido, o primeiro R. e os segundos R.R. declararam (por escritura pública celebrada no dia 13 de fevereiro de 2023), vender ao terceiro R., que declarou comprar, o referido prédio rústico. Os 1º e 2ºs RR. não notificaram a herança, na pessoa dos seus herdeiros de que iam vender ao 3º R. aquele prédio nem, muito menos, do concreto projeto de venda. Os direitos da herança, nomeadamente o direito de preferência na compra de prédio rustico confinante, transmitem-se ao herdeiro adquirente daquele prédio. (sublinhados nossos).
É certo que no pedido elencado na alínea a) peticiona que lhe seja reconhecido o direito de preferência na qualidade de herdeiro e de proprietário. Todavia, dúvidas não restam de que o A. interpôs a ação na qualidade de proprietário de prédio confinante. A factualidade alegada/causa de pedir é inequívoca no sentido de que pretende exercer o direito de preferência enquanto proprietário de prédio confinante, que lhe foi adjudicado em partilha por óbito da sua mãe. A alusão em simultâneo à qualidade de herdeiro e proprietário naquele pedido tem de ser conjugada com a narração dos factos e não é impeditiva de vir a ser reconhecido o direito de preferência (apenas) enquanto proprietário (e não como herdeiro).
Em 13 de fevereiro de 2023, os Réus GP e EP declararam, mediante escritura pública, vender o prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Franca do Campo sob o n.º 681/19920821, aos Réus AA e EA, pelo preço de € 40.000,00.
À data da escritura de compra e venda o prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, integrava a herança aberta por óbito da mãe do A., ocorrido em 7 de setembro de 2015.
Na situação de herança indivisa, não partilhada, os herdeiros não são donos dos bens que a integram, mas apenas titulares de um direito sobre a herança que incide sobre uma quota ou fração da mesma, não tendo direitos sobre bens determinados, nem sobre uma quota parte em cada um deles.
Como refere Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Coimbra editora, 2ª edição, vol. II, pág. 90 “ sendo vários os herdeiros e antes da partilha se efetuar, cada um deles, embora não tenha um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer sobre uma quota-parte em cada um deles, detém todavia um direito de quinhão hereditário, ou seja, à respetiva quota-parte ideal da herança global em si mesma.”
Assim, à data da compra e venda era a herança indivisa a titular do direito de preferência, competindo o seu exercício conjuntamente a todos os herdeiros, sob pena de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário ativo (artº 2091º do CC).
Sucede que em 16 de maio de 2023 o referido prédio foi adjudicado, por partilha da referida herança, ao A., data em que foi registada a titularidade do direito de propriedade sobre o mesmo a favor daquele.
Com a partilha deixa de existir a indivisão hereditária, passando os herdeiros a ser proprietários dos bens que lhe foram adjudicados, a título singular ou em compropriedade.
Extinta a indivisão hereditária deixa a herança de ser a titular do direito de preferência e, consequentemente, não é ao conjunto dos herdeiros que assiste legitimidade para instaurar ação de preferência.
Dispõe o artº 2119º do CC que “feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem prejuízo do disposto quanto a frutos”.
“… mesmo os efeitos próprios da partilha, de cessação do estado de indivisão hereditária e de materialização dos bens de cada quinhão hereditário, retroagem também ao momento da abertura da sucessão (art. 2119º), assim se evitando quaisquer hiatos na titularidade das relações jurídicas que são objeto da sucessão. (…)
Aliás, mesmo quanto aos efeitos próprios da partilha, esta releva talvez mais como um acto de extinção de um estado de indivisão hereditária que a lei pretende transitório (cfr. art. 2101º do CC e, suporá pág. 129) do que como um acto modificativo do direito de herança, que também é.” [ii]
Após a partilha é o herdeiro a quem foi adjudicado o prédio confinante que passa a ser o titular do direito de preferência e, por conseguinte, quem tem legitimidade para a ação de preferência.
Tal como sucede, aliás, no caso de o preferente vender o prédio a terceiro.
“Se, após a verificação de todos os pressupostos do direito real de preferência, o preferente vender o seu prédio antes de exercer o direito, este transmite-se ao adquirente, que poderá fazê-lo valer nas mesmas condições enquanto não decorrer o prazo que a lei fixa para o respetivo exercício (…)” [iii]
Neste sentido, cfr. Ac.RE de 28/06/2018 [iv]: “Ora, a verdade é que os recorrentes, à data do exercício do direito, assim como à data em que se realizou a alienação, não eram proprietários ou comproprietários do prédio confinante e identificado em 3) dos factos assentes, quer se entenda que a qualidade de titular do direito de preferência deva ser aferida em relação ao momento em que esse direito seja exercido, quer se entenda que essa aferição deve ser feita em relação à data da alienação – cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/02/2007, proc. n.º 367/2000.C1 e de 1/6/2004 (Ferreira Barros), disponíveis em www.dgsi.pt.
Com efeito, a herança na data da referida venda, assim como na data da propositura da presente ação (6/11/2012) permanecia ilíquida e indivisa, visto que não havia ainda sido realizada a partilha dos bens por sentença transitada em julgado, o que só veio a ocorrer em 17/12/2015, isto é, durante a pendência da presente ação e antes da realização da audiência de discussão e julgamento, a qual teve lugar em 12/06/2017 (fls. 375).
Ora, se é certo que à data da propositura da presente ação os recorrentes não eram titulares do direito de propriedade do prédio confinante, pertencendo o direito de preferência em causa à herança indivisa, a verdade é que em 13/07/2011 teve lugar no processo de inventário a conferência de interessados, tendo a parte rústica sido licitada pelos autores, BB, DD, HH e pelas chamadas, QQ e SS, e em 17/12/2015 foi proferida a sentença homologatória da partilha, na qual esse imóvel lhes foi adjudicado definitivamente, facto a atender, nos termos do art.º 611.º/1 do CPC, detendo, pois, a necessária legitimidade para o seu exercício.
Dito de outro modo, mostram-se verificados todos os pressupostos elencados no artigo 1380.º do CC, nomeadamente a qualidade de proprietário de prédio confinante, pelo que não se acompanha, nesta parte, a decisão recorrida.
Resumindo, não possuindo os recorrentes, à data da alienação, a qualidade de proprietários do terreno confinante, sendo apenas herdeiros de herança indivisa na qual se integra esse terreno, mas adquirindo, durante a pendência da ação, essa qualidade, na sequência da licitação e sentença homologatória da partilha que lhes adjudicou esse imóvel, podem exercer o direito legal de preferência a que alude o art.º 1380.º/1 do C. Civil.”
No caso que nos ocupa, à data da alienação o A. não era titular do direito de propriedade do prédio confinante, pertencendo o direito de preferência em causa à herança indivisa. Todavia, na data da instauração da presente ação, na sequência da partilha realizada, o A. era o proprietário do prédio confinante, detendo em exclusivo a legitimidade para a ação, por ser o (único) titular do direito de preferência, pelo que a decisão recorrida não se pode manter.

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos.
Custas da ação e do recurso pela parte vencida a final.

Lisboa, 21 de novembro de 2024
Teresa Sandiães
Maria do Céu Silva
Carla Figueiredo
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[i] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 2ª edição, vol. III, pág. 270
[ii] R. Capelo de Sousa, ob. citada, pág. 359 e nota 1153
[iii] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. citada, pág. 271
[iv] Proc. nº 1561/12.7TBOLH.E1, in www.dgsi.pt