CONTRATO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉCTRICA
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
CONSUMIDOR
PRESCRIÇÃO
Sumário


I. O Dec. Lei 328/90 de 22 de Outubro dispunha no artigo 1º nº 1 “constituir violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica qualquer procedimento fraudulento susceptível de falsear a medição da energia eléctrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras.
Por sua vez, dispunha o nº 2 do mesmo artigo que qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor.
Ao estabelecer que qualquer procedimento fraudulento se presume, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor, a norma não presume que o consumidor foi o autor do procedimento fraudulento, a norma apenas responsabiliza o consumidor que recebe energia através do equipamento falseado perante o distribuidor pelas consequências desse procedimento, excepto se provar que o mesmo não se deve a culpa sua.
II. Na Lei n.º 23/96, de 26.06 o pagamento da prestação de serviços públicos essenciais foi sujeito a um prazo de prescrição extintiva de seis meses a contar da respetiva prestação, impondo o legislador que, decorrido o prazo de seis meses, se extingam o crédito e a correlativa obrigação civil, nos termos gerais da prescrição extintiva.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Processo n.º 432/23.6T9TNV.E1

Recorrente: EMP01..., LDA.

Recorrida: E-REDES - DISTRIBUIÇÃO DE ELETRICIDADE S.A.

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Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora,

I. Relatório

E-REDES - DISTRIBUIÇÃO DE ELETRICIDADE S.A. intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra EMP01..., LDA., peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de 40.007,82€, a título de indemnização por prejuízos causados, acrescida de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Alegou, em suma, que exerce as funções de operador de rede de distribuição de energia elétrica, explorando todas as instalações elétricas que servem essa rede e recolhendo a leitura dos valores registados nos equipamentos de medição, para informação aos comercializadores de energia e emissão, por parte destes, da respetiva faturação e que é proprietária dos fluxos de energia que circulam na rede pública de distribuição, sendo que, no exercício da sua atividade, detetou anomalias no contador afeto ao local de consumo relativo a contrato de fornecimento de energia celebrado com a Ré tendo, após análise, concluído ter havido manipulação do mesmo.

Mais alegou que, por força de tal manipulação do contador, a Ré consumiu energia elétrica não registada, cujo valor, acrescido dos custos da utilização de potência e dos encargos administrativos com a deteção e tratamento da anomalia, ascende a 40.007,82€.

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Citada, a Ré apresentou contestação, na qual arguiu a exceção dilatória de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial e a exceção perentória de abuso do direito - invocando que a Autora tinha o ónus de medição e leitura dos consumos, de verificação dos equipamentos de medição e de correção de quaisquer anomalias, que não cumpriu, e apenas quando a Ré solicitou os seus serviços, verificou o estado de anomalia do equipamento e que, por ter incumprido tal ónus, deve ser impedida de exercer o seu direito de cobrar os valores não medidos pelo contador.

Mais alegou a Ré que a caixa do contador estava instalada em local de acesso público, sem o seu controlo e fechada à chave, não possuindo a Ré a respetiva chave.

Referiu que a própria Autora não lhe imputa, na petição inicial, a prática de qualquer facto com vista à adulteração da contagem, baseando-se apenas na circunstância de ser titular do contrato de consumo energético associado àquele contador para, de seguida, presumir a sua responsabilidade pelas adulterações encontradas no equipamento.

Terminou pedindo a condenação da Autora em multa e indemnização, como litigante de má-fé.

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Por requerimento de 18-05-2023, a Autora respondeu às exceções invocadas pela Ré na sua contestação e, bem assim, ao seu pedido de condenação como litigante de má-fé.

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Na sequência de despacho para o efeito, a Autora juntou petição inicial aperfeiçoada, em 05-06-2023, na qual concretizou os factos nos quais baseava o pedido de condenação da Ré ao abrigo do instituto da responsabilidade civil extracontratual, tendo a Ré exercido o contraditório acerca desta peça processual por articulado apresentado em 19-06-2023, no qual impugnou todos os factos novos articulados pela Autora e reiterou a invocação da exceção dilatória de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial.

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Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a aludida exceção dilatória, se procedeu à fixação do objeto do litígio e à enunciação dos temas de prova.

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Procedeu-se à realização da audiência final, a que se seguiu a prolação de sentença, com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente, por provada, a ação intentada por E-REDES - DISTRIBUIÇÃO DE ELETRICIDADE S.A. contra EMP01..., LDA. e, em consequência, decide-se:

a) condenar a R. a pagar à A. a quantia de 39.827,74€ (trinta e nove mil oitocentos e vinte e sete euros e setenta e quatro cêntimos);

b) condenar a R. no pagamento de juros moratórios sobre a referida quantia, a contar da citação (em 23-03-2023) e até efetivo e integral pagamento da aludida quantia, à taxa legal de juros civis sucessivamente em vigor;

c) absolver a R. do demais peticionado.

Mais se decide não condenar a A. como litigante de má-fé.(…)”

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Da sentença vem a Ré, inconformada, interpor o presente recurso, apresentando, após alegação, a seguinte síntese conclusiva:

1. O presente recurso vem interposto da decisão de fls…., proferida a 18-02-2024, com a referência 95066476, nos termos da qual é julgada parcialmente procedente a acção intentada pela Autora E-REDES- Distribuição de Electricidade, S.A. contra a ora Recorrente EMP01..., LDA.., sendo, em consequência, decidido condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 39.827,74€ (trinta e nove mil, oitocentos e vinte e sete euros e setenta e quatro cêntimos), acrescida dos juros moratórios sobre a referida quantia, calculados a contar desde a data da citação (23-03-2023) até efectivo e integral pagamento, à taxa legal de juros civis sucessivamente em vigor, absolvendo a Ré do demais peticionado, mais decidindo não condenar a Autora como litigante de má fé.

2. Começa a sentença em causa por decidir, como questão prévia “não invocação da excepção de prescrição pela Ré”, não apreciar na sentença a questão da excepção de prescrição, uma vez que entende não ter sido invocada na contestação e que, quando invocada em requerimento de resposta à petição inicial aperfeiçoada, já se encontrava precludido o direito de invocar tal matéria.

3 . Sucede que não pode a Recorrente concordar com tal entendimento do Tribunal A Quo, desde logo atentando à excepção dilatória de ineptidão invocada na contestação, sendo que, atentando ao teor da petição inicial que deu origem aos presentes, veio a Recorrente, na contestação oportunamente apresentada, invocar a ineptidão da petição inicial, com a consequente nulidade de todo o processo e absolvição da Ré da instância, atenta a falta de causa de pedir, considerando existir falta de alegação de factos essenciais à procedência da acção, referindo não terem sido alegados quaisquer factos que pudessem implicar o preenchimento ou não dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual invocada.

4. Por outro lado, mencionou igualmente na contestação deduzida nos autos que a Autora não indicou, na petição inicial, qual o período em que o equipamento em causa supostamente se encontrou adulterado, não oferecendo qualquer baliza temporal para além da totalidade do período em que o contrato de fornecimento se manteve em vigor (artigo 58º da contestação), mais não indicando quais os períodos a que supostamente dizem respeito os valores reclamados por si na acção interposta (artigo 59º da contestação).

5. Seguidamente, e por despacho pré saneador proferido a 22-05-2023, com a referência 93393289, veio o Tribunal a Quo determinar a notificação da Autora para apresentar petição inicial corrigida, referindo o seguinte “Assim, cumpre referir que recai sobre o Autor o ónus de alegar e provar os factos integrantes da causa de pedir (cfr. artigo 342º, n.º 2 do Código Civil) e ainda que os documentos juntos aos autos não substituem o ónus de alegação dos factos constitutivos do direito que a parte pretende fazer valer”.

6. Após apresentação da petição inicial corrigida, a 05-06-2023, com a referência 9753708, veio a Recorrente exercer o contraditório, mantendo o entendimento da ineptidão da petição inicial e da falta de elementos essenciais, mais referindo, nos artigos 36º e 37º do requerimento de resposta à petição inicial corrigida, datado de 19-06-2023, com a referência 9786440 o seguinte:

(A Autora) “ (...) já não alega quais são os factos concretamente praticados pela R., nem indica o período temporal a que se reporta a alegada manipulação,

37.º O que impossibilita determinar o hipotético valor do bem alegadamente furtado e, por sua vez, a qualificação ou não do alegado crime de furto, o que tem consequências a nível da qualificação do crime e da moldura penal a considerar, nomeadamente para efeitos do prazo de prescrição aplicável in casu, sendo certo que o processo crime que correu termos com o objecto em causa nos presentes autos foi arquivado”.

7 . Assim, e considerando a falta de elementos que dispunha para se pronunciar, na contestação, quanto à prescrição do direito invocado pela Autora, à Recorrente não poderia ser exigido que deduzisse toda a sua defesa na contestação, pelo que não se pode concordar com o Tribunal recorrido, no segmento em que afirma, no 3º parágrafo da página 29 da sentença recorrida, que “ Assim, não tendo a R. invocado a exceção de prescrição na contestação, e não se baseando a sua invocação em qualquer facto novo alegado na petição inicial aperfeiçoada, aquando da apresentação de tal resposta, já se mostrava precludido o seu direito de invocar tal matéria (...)”, sendo que tal entendimento, e salvo o devido respeito, contraria não só o disposto no artigo 573º do Código de Processo Civil, e no artigo 660º, n.º 2 do CPC, como também põe em causa o exercício do direito ao contraditório que assiste à Ré e que se encontra consagrado no artigo 3º, n.º 3 do CPC.

8. Mais, e ao não apreciar a matéria em causa, o Tribunal recorrido não se pronunciou quanto à questão que deveria ter sido apreciada, o que, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, constitui fundamento de nulidade da sentença e que aqui se argui para os devidos efeitos legais.

9. Sem prejuízo, e por outro lado, verifica-se que a sentença recorrida é, também, nula por condenar em quantidade superior e em objecto diverso do pedido, ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, senão vejamos: resulta peticionado pela Autora, no âmbito dos presentes autos, a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos causados, no montante de 40.007,82€, acrescida de juros vencidos e vincendos, sendo o montante peticionado, a título de responsabilidade civil extracontratual (artigo 483º e seguintes do Código Civil), referente ao valor da energia eléctrica indevidamente utilizada pela Ré, acrescida da utilização de potência e dos encargos administrativos com a detecção e tratamento da anomalia, elencando a Autora, no artigo 31º da petição inicial, os valores apurados, em termos da diferença de valores registados, o que o Tribunal A Quo considerou devidamente provado, nos pontos 17, 18 e 19 dos factos provados.
10. Entende o Douto Tribunal A Quo que os factos em apreço encontram enquadramento legal no regime da responsabilidade civil extracontratual pela prática de factos ilícitos, considerando estarem preenchidos os respectivos pressupostos, a saber: i) facto voluntário; ii) ilícito; iii) culposo; iv) existência de um dano; v) nexo de causalidade entre o facto e o dano.

11 . Contudo, não pode a Recorrente concordar com o preenchimento dos pressupostos acima elencados, sendo que a falta dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual sempre deveriam conduzir à improcedência da acção, sendo que, ademais, entende que nem tão pouco foram os mesmos devidamente alegados em sede de petição inicial, conforme impõe a lei, nomeadamente no seu artigo 552º, n.º 1, alínea d) do CPC.

12. Em primeiro lugar, importa referir que o Tribunal A Quo refere, no ponto 2.3. da sentença recorrida, sob a epígrafe “D a responsabilidade civil extracontratual da R. (verificação de consumos fraudulentos e sua imputação” estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, fundamentando todo o seu entender quanto ao requisito da culpa.

13. Contudo, não se pronuncia o Tribunal A Quo sobre os demais requisitos da responsabilidade civil extracontratual previstos no artigo 483º do Código Civil, carecendo a sentença recorrida, em consequência e no entender da ora Recorrente, de fundamentação.

14. Na verdade, dispõe o artigo 607º, n.ºs 3 e 4 do CPC que, na sentença:

“3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.

4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”

15. Sendo que, nos termos do artigo 615 º, n.º 1 , alínea b) do CPC, é nula a sentença quando Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

16. Assim, e ao não especificar concretamente os fundamentos em que baseia a condenação da Ré no pagamento à Autora da quantia em causa nos autos, a sentença recorrida é nula, o que argui para os devidos efeitos legais.

17. Por outro lado, à Autora incumbia o ónus de alegar os factos essenciais em que fundamenta a sua pretensão, que constituem a causa de pedir, formulando o respectivo pedido, nos termos do artigo 552º, n.º 1, alíneas d) e e) do CPC. Quanto a este ponto, entende a Recorrente que a Autora não alegou, quer na petição inicial apresentada quer na petição corrigida, os factos essenciais que permitissem concluir pela aplicação, ao caso dos autos do regime da responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente quanto ao regime da culpa e respectivo nexo de causalidade, mais entendendo, conforme acima mencionado, que a Autora não alegou qual o período em que o contador em causa supostamente se encontrou adulterado, não oferecendo qualquer baliza temporal para além da totalidade do período em que o contrato de fornecimento se manteve em vigor, mais não indicando quais os períodos a que supostamente dizem respeito os valores reclamados por si na acção interposta, referindo, somente, ter existido uma deslocação ao local e a data em que se procedeu à substituição do contador, a 3 de abril de 2018.

18. Ora, pese embora a existência de uma presunção, nos termos do artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, a qual, conforme infra se irá expor, não se entende ser de aplicar aos caso dos autos, a verdade é que sempre caberia à Autora alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do disposto no artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, pelo que, não se verificando alegados ou provados os factos essenciais que fundamentam o regime da responsabilidade civil extracontratual de que se quer fazer valer a Autora com a acção interposta, e ao decidir como resulta da sentença recorrida, violou o Tribunal A Quo o disposto no artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, devendo a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que conclua pela improcedência da acção interposta pela Recorrida.

19. Por outro lado, incumbia também à Autora alegar e provar, para além do período de tempo em que durou o procedimento fraudulento, os restantes factos que permitissem calcular o valor do consumo irregular de energia eléctrica que existiu em decorrência daquele, para além do que, no que respeita aos concretos prejuízos existentes- enquanto dano, que constitui pressuposto da responsabilidade civil extracontratual, devendo, em consequência, ser alegado e provado pela Autora-, limitou-se a Autora a elencar matéria conclusiva, ao referir, no artigo 31º da petição inicial e reproduzido no artigo 45º da petição inicial corrigida, os valores por si apurados, sem que, contudo, alegue e comprove devidamente os prejuízos elencados.

20. No entanto, e muito embora não o alegue a Autora, o Tribunal A Quo dá como provado, nomeadamente nos pontos 10 a 19, factos que se entendem consubstanciarem factos sujeitos a alegação por parte da Autora, sendo que, incumprindo a Autora tal ónus de alegar os factos essenciais que sobre si impendia, nos termos do artigo 5º, n.º 1 do CPC, e ainda o ónus de provar os factos alegados, nos termos do artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, deveria a acção interposta ser considerada totalmente improcedente, com a consequente absolvição da Ré.

21. Ora, a acrescer ao já acima referido, e no que respeita ao cálculo a efectuar para a determinação do montante referente ao consumo irregularmente feito, nos termos do disposto no artigo 3º, n.º 1, alínea b) e artigo 6º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, resulta deste que Para a determinação do valor do consumo irregularmente feito ter-se-á em conta o tarifário aplicável, bem como todos os factos relevantes para a estimativa do consumo real durante o período em que o acto fraudulento se manteve, designadamente as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes, se as houver, e as leituras posteriores, sempre que necessário.”

22. Assim, e conforme decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, por acórdão datado de 12-01-2023, proferido no âmbito do processo n.º 5011/21.0T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt , incumbia à Autora, “ fazer a prova do período de tempo em que durou o procedimento fraudulento, tendo que alegar os respectivos factos na petição inicial, devendo verificar (factos sempre a alegar como complemento do facto principal do período de tempo) a eventual ocorrência de variações abruptas no perfil de consumo da instalação e a data da última deslocação à instalação, com acesso ao equipamento de medição ”, assim como competia à Autora “verificar a existência de registos fiáveis nos equipamentos de medição e alegar esse facto, bem como alegar os factos respeitantes ao tarifário aplicável e restantes factos relevantes para se poder proceder à estimativa do consumo real, como sejam as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes e as posteriores.”

23 . Verifica-se, pois, e na senda do que tem vindo a ser referido pela Ré, que a Autora não alegou tais factos que lhe permitia alegar e que eram essenciais para que o Tribunal A Quo procedesse ao cálculo da indemnização devida nos autos, limitando-se a indicar os cálculos que efetuou, sem inclusivamente mencionar que foram obtidos a título de estimativa, resultando dos factos provados na sentença, nos pontos 18 e 19, a expressão “Partindo dos consumos que estimou (referidos em 17)”, pelo que sempre se dirá que a sentença recorrida é nula, por conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, mais sendo nula por condenar em quantidade superior e em objecto diverso do requerido, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.

24. De notar que o Tribunal A Quo refere, no último parágrafo da página 54 da sentença recorrida que “(...) conquanto a A. não tenha alegado explicitamente na petição inicial a data de adulteração do contador e o período de tempo que considerou para efeitos do cálculo de energia consumida e não faturada que plasmou no artigo 45.º da petição inicial aperfeiçoada, não só este último resulta do documento 5 junto com aquela peça processual (para o qual a A. remete no artigo 46.º daquele articulado), onde se identifica clara e explicitamente o período relevante como sendo entre 04-04-2015 e 03-04-2018, como o primeiro foi apurado e contraditado em audiência final e, enquanto facto concretizador (e não essencial) da causa de pedir da A., foi considerado no elenco dos factos provados ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil. “,

25. Sendo que, salvo o devido respeito, viola o Tribunal A Quo, com tal entendimento, o disposto no artigo 342º, n.º 1 do Código Civil e no artigo 5º, n.º 1 do CPC, sendo certo que já no despacho pré saneador, proferido a 22-05-2023, com a referência 93393289, veio o Tribunal a Quo referir que “recai sobre o Autor o ónus de alegar e provar os factos integrantes da causa de pedir (cfr. artigo 342º, n.º 1 do Código Civil) e ainda que os documentos juntos aos autos não substituem o ónus de alegação dos factos constitutivos do direito que a parte pretende fazer valer ”, entendendo a Recorrente que os mencionados factos sempre terão de ser considerados constitutivos do direito que a Autora pretende fazer valer nos autos,
26. Pelo que na senda do supra citado acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, a 12-01-2023, no âmbito do processo n.º 5011/21.0T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt , deveriam tais factos ter sido alegados desde logo, não bastando a junção de documentação da qual resultem tais factos.

27 . Ademais, entende o Tribunal A Quo que “a prova produzida revelou outrossim a conexão entre o alegado no artigo 29.º e no artigo 45.º da petição inicial aperfeiçoada, tendo permitido ao Tribunal validar os elementos aos quais a A. recorreu para calcular a energia consumida sem medição (cf. facto provado n.º 17).”, que a Autora “considerou um período de utilização ilícita compreendido entre 04- 04-2015 e 03-04-2018 (correspondente ao período máximo de 36 meses previsto na Diretiva 5/2016, da ERSE) “, e que “os valores computados pela A. foram-no com base, por um lado, nas características do contador e no modo como se encontrava a funcionar quando manipulado (com utilização de resistências de menor valor óhmico, que importavam um erro de menos 35,5%, por comparação com a leitura de um contador no seu estado original), e, por outro lado, nos consumos registados efetivamente pelo contador. Aplicando a correção do desvio aos valores efetivamente registados, chegou a A. aos consumos presumivelmente reais, no período de 3 anos que considerou”,

28. Sendo que, novamente, tal factualidade não resulta alegada pela Autora, não podendo, em consequência, ser considerada provada e servir de base à condenação da Ré na obrigação de indemnizar a Autora.

29 . Caso assim não se entenda, e por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que, no que tange ao teor da sentença recorrida quanto aos requisitos da responsabilidade civil, e no que respeita ao requisito da culpa, é a Ré condenada no pagamento de indemnização à Autora com base na presunção estabelecida no artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de Outubro, aplicável ao caso dos autos.

30. Assim, e desde logo, na petição inicial, para além de não ser alegado qualquer facto em concreto, referente à Ré, que possa consubstanciar a prática do referido facto ilícito voluntário e culposo, não resulta alegada qualquer presunção, limitando-se a Autora a referir, na petição inicial que deu origem aos presentes autos, que, no âmbito de deslocação de técnico da Autora ao local de consumo, foi detectado que “os selos da tampa superior do contador não estavam como os de fábrica, que as medições feitas na baixada eram superiores à registada no contador e que as ordens de fases não estavam correctas”, e que, em face dessas irregularidades, procederam à substituição do contador e remeteram-no para análise, significando isso, no entender da Autora, que a Ré “esteve a beneficiar do consumo da energia eléctrica não registada, logo não paga, sem o consentimento e contra a vontade da aqui Autora”.

31. Da petição inicial aperfeiçoada também não resulta qualquer facto adicional essencial a este respeito, uma vez que se limita a Autora a acrescentar que tal se deveu a “facto ilícito que lhe é imputável” (leia-se, à Autora).

32. Refere, neste momento, que “tendo havido apropriação de forma ilícita por parte da Ré, de energia eléctrica, através da manipulação do equipamento de contagem, está preenchido o pressuposto da ilicitude”, bem como que “A Ré age quanto aos factos com dolo, com o propósito conseguido de se apropriar indevidamente de energia elétrica da rede de distribuição pública, impedido, através de manipulação ilícita, que electricidade consumida indevidamente lhe fosse cobrada (...).”

33. Assim, e muito embora a Autora impute à Ré o conceito jurídico subjacente, não discrimina quais os factos praticados pela Autora que possam consubstanciar a prática dessa manipulação ilícita, pelo que, desde logo, e salvo o devido respeito, nunca poderia a Ré ser condenada ao pagamento à Autora de qualquer quantia, em face da falta de elementos alegados em sede de petição inicial e, consequentemente, na petição inicial corrigida.

34. Veja-se que a Ré, no requerimento de resposta à petição inicial apresentada, consegue demonstrar, artigo por artigo, os factos que foram acrescentados pela Autora nesta petição inicial aperfeiçoada, com referência à que já havia sido apresentada inicialmente, demonstrando, desde logo, que a falta de concretização e a insuficiência da causa de pedir invocada pela Ré na contestação- e comprovada pelo despacho de aperfeiçoamento proferido- não foi sanada, mantendo-se essa insuficiência ao longo de todo o processo, o que sempre deveria conduzir à não condenação da Ré em qualquer pagamento.

35. Caso assim não se entenda, e considerando o que resulta da sentença ora recorrida, entende o Tribunal A Quo que, muito embora não se tenha provado que tivesse sido a Ré, ou alguém a seu mando, a autoria das provadas manipulações ao contador, a lei dispensou a prova dessa autoria nos termos do artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, aplicando o Tribunal A Quo, ao caso dos autos, a presunção aí estabelecida, a qual entende não ter sido ilidida pela Ré, considerando, em consequência, a Ré como responsável, perante a Autora, pelo pagamento do valor do consumo irregularmente feito.

36. Entende, contudo, a Recorrente não ser de aplicar qualquer presunção, desde logo em face do próprio texto da norma em causa. Na verdade, dispõe o aludido artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, que “Qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor.” ( sublinhado nosso) .

37. Assim, importa atentar ao espírito do legislador ao estabelecer tal presunção, sendo que, no entender do Recorrente, a expressão “exclusivamente” utilizada na norma pretende atribuir à presunção em causa uma função mais garantística dos direitos dos consumidores, considerando, desse modo, que nas situações em que o local de consumo seja servido exclusivamente por uma instalação de utilização de energia eléctrica se presuma que, qualquer fraude ali detectada, seja imputável ao respectivo consumidor, salvo prova em contrário.

38. Ora, não nos parece que o caso em sub judice possa ser enquadrado na previsão da norma invocada pela sentença recorrida para considerar a Ré como responsável pelo pagamento à Autora de qualquer quantia, desde logo face ao que resulta provado nos pontos 22 e 23 dos factos provados da sentença recorrida que ora se transcreve:

“22. O local onde funciona a clínica da A. é um edifício com duas entradas por lados opostos, onde estão instaladas, para além da clínica da A., uma casa paroquial, salão paroquial e residência do pároco, e onde esteve instalado, até 2022, um núcleo do EMP02....

23. A caixa de montagem onde se encontrava o contador referido em 7, encontra-se instalada no edifício referido em 22, junto a outras caixas, numa rua pública, junto à entrada para a clínica da A..”

39. Assim, e de acordo com o ponto 23 dos factos provados, a caixa de montagem onde se encontrava o contador encontra-se instalado junto a outras caixas, numa rua pública , o que, ademais, resulta demonstrado nas fotografias juntas sob o Doc. n.º 1 da contestação apresentada pela Ré/ Recorrente, pelo que, no entender da Recorrente, o Tribunal A Quo , ao decidir aplicar ao caso dos autos a presunção estabelecida no artigo 1 º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, labora em erro de julgamento de direito, implicando, ademais, uma contradição entre a decisão proferida e a matéria de facto provada.

40. Ao invés, deveria o Tribunal A Quo não ter considerado a existência de qualquer presunção legal aplicável, cabendo, em consequência, à Autora a prova de que a fraude praticada é imputável à Ré, tendo em consideração que, de acordo com o que resulta do artigo 3º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, o distribuidor só tem direito a ser ressarcido do valor do consumo irregularmente feito e das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude “Se da inspecção referida no artigo anterior se concluir pela existência de violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica por fraude imputável ao consumidor”.

41. Ainda que assim não se entenda, e salvo o devido respeito, o elenco dos factos provados também não permitiria ao Tribunal A Quo aplicar a presunção em causa, uma vez que não resulta provado em qualquer momento- resultando provado o inverso, no entender da Recorrente- qualquer facto que permita concluir que o local de consumo em causa nos autos era “exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica”.

42. Não se provando, no caso dos autos, que a fraude detectada seria imputável ao consumidor, e não sendo de aplicar a presunção constante do artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que decida pela improcedência da acção interposta pela Autora.

43. Por mera cautela de patrocínio, e caso se entenda ser de aplicar ao caso dos autos a referida presunção, o que não se concebe, sempre se dirá que resulta manifestamente excessivo e desproporcional fazer impor à Ré a prova de quem foi a autoria da fraude detectada, considerando, ademais, ter decorrido investigação criminal, no âmbito de processo crime instaurado pela Autora que correu termos junto do Ministério Público- Procuradoria da República da Comarca de Local 1- DIAP- Secção ..., sob o n.º 46/19...., a cargo de entidades competentes para o efeito, como o são os órgãos de polícia criminal,

44 . Investigação essa que findou com a prolação de despacho de arquivamento, que foi junto sob o Doc. n.º 1 da petição inicial, do qual resulta, em suma, o seguinte:

“ Compulsada a prova produzida entendemos não resultar provado nos autos que a EMP01..., LDA. tenha desenvolvido qualquer procedimento suscetível de falsear ou viciar, por qualquer meio, o funcionamento normal ou a leitura do referido equipamento de contador de consumo de eletricidade. Acresce que resulta dos autos que a arguida sempre pagou pontualmente os valores que lhe foram faturados pelo consumo de eletricidade verificado durante o referido período. Além do mais, resulta dos autos que a caixa de contagem se encontra instalada em local de acesso público, sem controlo da EMP01..., LDA. e encontra-se fechada à chave, não possuindo a EMP01..., LDA. a chave que permita o acesso à mesma Por outro lado, o auto de vistoria lavrado pelos funcionários da EDP, não faz qualquer referência a sinais de violação de fechadura da caixa onde se encontra o contador de consumo de eletricidade. Acresce que, sendo a EDP Distribuição a entidade responsável pela leitura direta do mencionado contador, não se percebe que apenas ao fim de cerca de seis anos seja detetada a alegada utilização irregular de energia Além do mais, a leitura direta do consumo de eletricidade prevalece sempre sobre qualquei estimativa e a responsabilidade pela leitura direta recai sobre a EDP Distribuição, que, na eventualidade de não ver facultado o seu acesso ao contador por mais de seis meses consecutivos, deve promover a realização de leituras extraordinárias”,

45. Concluindo, no final da página 9 do referido Doc. n.º 1 junto à petição inicial, “(...) não ser possível imputar a alteração no contador referido na queixa aos denunciados, pois que a mesma pode até dever-se a ações de funcionários da queixosa, quando da instalação ou em posteriores deslocações ao local. Até porque não resulta da prova produzida que os denunciados tenham acesso ao contador ou que a fechadura da caixa onde o mesmo se encontra tenha sido violada”.

46. Assim, considerar que à Ré caberia provar que foi terceiro a executar os actos dado como provados nos pontos 11, 12 e 14 da matéria de facto provada é, salvo o devido respeito, atribuir à Ré uma obrigação que, desde logo, não lhe compete- a investigação criminal, de modo a descobrir e recolher provas do autor dos factos fraudulentos ocorridos com o contador em causa, sendo que a Ré colaborou de forma activa no âmbito do processo crime que decorreu termos, pretendendo obter a identificação do autor dos referidos actos ilícitos, sem que, contudo, tal tivesse sido possível, conforme resulta do despacho de arquivamento proferido e que consta junto à petição inicial como Doc. n.º 1.

47. Assim, e sem prejuízo de se considerar não ser de aplicar ao caso dos autos a presunção constante do artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, entende a Recorrente que a sentença recorrida viola, face ao supra exposto, o disposto na lei penal quanto às atribuições do Ministério Público, particularmente previstas nos artigos 48º e 50º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal, bem como o disposto no artigo 3º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 328/90 de 22 de outubro, ao considerar que a Ré não logrou ilidir a presunção legal em causa.

48. Quanto a este ponto, importa referir que a Ré, na contestação que apresentou nos autos, fez menção ao processo crime em causa, no artigo 45º que se transcreve: “ Nunca foi adotada pela R. qualquer conduta ilícita, e muito menos criminosa, como de resto ficou provado no proc. n.º 46/19...., que correu junto da Secção de Local 2 do Departamento de Investigação e Ação Penal ..., Procuradoria da República da Comarca Local 1, no qual foi proferido o devido Despacho de Arquivamento, já junto aos autos como Doc. 1 da Petição Inicial ”.

49. Também a Autora, no seu articulado inicial, nomeadamente nos artigos 4º, 5º, 6º e 8º da petição inicial, vem aludir ao processo crime em causa e aos crimes investigados contra a Ré, ora Recorrente, bem como ao respectivo arquivamento, referindo:

“4.º A Autora intentou a respetiva queixa crime em 2018, que correu termos sob o n.º8748/18.....

5.º Do referido processo foi extraída uma certidão, que esteve na origem do processo que correu termos sob o n.º 46 /19.5..., da Secção de Local 2, do Departamento de Investigação e Ação Penal, Ministério Público, Procuradoria da República da Comarca Local 1, conforme documento que se junta, e dá, como os demais, como reproduzido para todos os efeitos legais, DOC. 1

6 .º Em causa naqueles autos estava a eventual prática, por parte da ali participada, aqui Ré, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 2, al. a), de falsificação de notação técnica, p e p. pelo artigo 258.º, n.º 1 e 2 e de quebra de marcas e de selos, p e p. pelo artigo 356.º, todos do Código Penal. (...)

8.º Sucede que no âmbito do processo crime supra identificado, veio o a ser proferido em 28 de janeiro de 2022, Despacho de Arquivamento, cf. DOC. 1 “,

50. Sendo, ademais, junto aos autos pela própria Autora, na petição inicial e sob o Doc. n.º 1, o referido despacho de arquivamento.

51. Ora, não resulta da matéria de facto provada qualquer facto alusivo a tal processo crime, considerando a Ré tal matéria essencial, dada a imputação de responsabilidade que lhe é assacada na sentença recorrida e que foi investigada e objecto de arquivamento no âmbito do processo criminal que decorreu termos, pelo que vem a Recorrente impugnar a decisão sobre a matéria de facto, entendendo que o Tribunal A Quo deveria ter valorado, com base no alegado pela Ré na sua contestação, pela Autora na petição inicial, e no Doc. n.º 1 junto com a petição inicial- meio de prova que impunha uma decisão diversa da proferida quanto à matéria de facto provada-, e considerado como provado os seguintes factos, que deverão ser aditados ao elenco dos factos provados, sob o pontos 27, 28 e 29:

27. Relativamente aos factos referidos em 11, 12 e 14, a Autora intentou a respectiva queixa crime em 2018, tendo sido extraída certidão que originou o processo que correu termos sob o n.º 46/19...., junto da Secção de Local 2 do Departamento de Investigação e Ação Penal ..., Procuradoria da República da Comarca Local 1.

28. No âmbito do referido processo crime foi investigada a conduta ilícita referida em 11, 12 e 14 , estando em causa naqueles autos de inquérito a eventual prática, por parte da Ré, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204º, n.º 2, alínea a), de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258º, n.ºs 1 e 2 e quebra de marcas e de selos, p. e p. pelo artigo 356 º todos do código Penal.

29 . Tendo, a final, sido proferido o devido Despacho de Arquivamento, por não existirem indícios suficientes que permitissem acusar a Ré em relação aos crimes denunciados, concluindo o investigador não ser possível imputar a alteração do contador referido na queixa à Ré.”

52. De igual modo, e considerando a factualidade acima alegada e constante do despacho de arquivamento junto aos presentes autos, também não deveria o facto g) dos factos não provados- “ Não foi a R. que executou ou promoveu a execução do referido em 11, 12 e 14 dos factos provados ” constar desse elenco, devendo tal facto do ponto g) dos factos não provados, em face da prova produzida nos autos- nomeadamente do Doc. n.º 1 junto à petição inicial, conjugada com a demais prova que permitiu concluir que o contador se encontrava em local público, acessível por terceiros (pontos 22 e 23 dos factos provados)- e dos factos a aditar nos termos supra sob os pontos 27, 28 e 29, constar dos factos considerados provados, sendo que, muito embora resulte do ponto 24 dos factos provados que a caixa em causa se encontrava fechada, mas que abria rodando com uma chave plástica, o certo é que, de acordo com o que resulta da motivação da matéria de facto quanto ao ponto g) dos factos não provados, nomeadamente na página 27 da sentença recorrida, “(...) a caixa onde se encontrava o contador em causa não necessitava de uma chave específica (contrariamente às outras caixas ali existentes) abrindo com uma chave plástica”.

53. Insurge-se, também, a Recorrente com a decisão proferida pelo Tribunal A Quo no ponto “2.4. Das condições/requisitos procedimentais a observar pela A. para exigir o pagamento dos consumos não contabilizados à R. “ da sentença recorrida, entendendo o Tribunal A Quo que, para além de tal excepção não ter sido invocada na contestação apresentada e, consequentemente, do seu conhecimento estar vedado ao Tribunal, também não seria de aplicar ao caso dos autos obrigações de informação a cargo da Autora.

54. Sucede que, em primeiro lugar, a Ré arguiu, desde logo na contestação, e pese embora a arguição da excepção de ineptidão da petição inicial, o incumprimento dos deveres a que a Autora se encontrava adstrita, referindo, no artigo 19º, que: “ Fá-lo num quadro legislativo que lhe imputa também deveres, deveres esses que protegem os consu midores de situações como a que encontra plasmada nos presentes autos e que a A. não cumpriu ou não se encontraria na posição que alega estar.

55. Por outro lado, e considerando não só a ratio a lei em causa, que visa prevenir situações de fraude, mas também a protecção que deverá ser dada à Ré enquanto consumidora do serviço prestado pela Autora mediante o pagamento de um preço, sempre será de concluir que deve a Autora pautar-se, na relação com a Ré, por critérios de transparência e segurança, pelo que não pode a Recorrente crer que fosse intenção do legislador dar a possibilidade da Autora exigir o pagamento de valores à Ré, por condutas fraudulentas, sem que lhe fossem atribuídos alguns deveres, principalmente o dever de informar adequada e atempadamente o utente/ consumidor da situação ocorrida e dos direitos e possibilidades que lhe assistiam, direito fundamental dos consumidores,

56. Desde logo, e primordialmente, o direito constante do artigo 5º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90 de 22 de outubro, isto é, de requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria da instalação eléctrica sobre a qual surgisse a suspeita de fraude, sendo certo que, ao não informar a Ré adequadamente de tal prerrogativa, impediu a Autora que a Ré pudesse exercer os seus direitos e, de forma segura, saber se o que resulta da vistoria realizada a mando da Autora se encontrava em conformidade com a realidade.

57. Assim, considerando a seriedade do assunto em questão, como bem denota a sentença recorrida, e os valores em causa, avultados, a ser peticionados à Ré, entende a Recorrente, ao contrário do douto Tribunal A Quo, que deveria a Autora ter diligenciado pelo cumprimento de todos os deveres de informação cabal à Ré para que esta pudesse, no momento oportuno, utilizar os meios existentes para a sua eventual defesa.

58. Nestes termos, pugna a Recorrente por se considerar que incumbia à Autora a prestação de informações cabais à Ré, no que respeita ao contador e possibilidades de verificação do mesmo, em caso de imputação de conduta fraudulenta, na senda do também decidido pelo
Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido a 10-05-2016, no âmbito do processo n.º 1929/13.1 TBPVZ.P1.S1.

59 . Ainda para mais nas situações em que o local de consumo não é utilizado, em exclusivo, pela consumidora e se pretenda fazer uso de uma presunção legal que lhe atribua a responsabilidade pelo pagamento dos montantes em causa no artigo 3º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 328/90 de 22 de outubro.

60. Além do mais, resulta do artigo 2º, n.ºs 1, 2 e 3 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, que “1. Sempre que haja indícios ou se suspeite da prática de qualquer procedimento fraudulento, o distribuidor poderá proceder à inspecção da respectiva instalação eléctrica, por meio de um técnico seu, entre as 10 e as 18 horas, o qual poderá, quando o julgar conveniente, solicitar a presença da autoridade policial competente. 2 - Da inspecção será lavrado auto, onde, sendo caso disso, se fará a descrição sumária do procedimento fraudulento detectado, bem como de quaisquer outros elementos que possam interessar à imputação da correspondente responsabilidade. 3 - O auto de vistoria será lavrado, sempre que possível, em presença do consumidor ou de quem no local o represente, designadamente um seu familiar ou empregado, e deverá ser instruído com os elementos de prova eventualmente recolhidos; deste auto será deixada cópia ao consumidor.”

61. Ora, compulsada a factualidade considerada como provada na sentença recorrida, não resulta em qualquer momento provada a elaboração do devido auto de vistoria, com os elementos legalmente impostos, assim como não resultando provado que tenha sido deixada cópia à Autora de qualquer auto de vistoria elaborado, sendo que tal constitui obrigação basilar a cargo da Autora, para que possa comprovar e peticionar qualquer procedimento fraudulento, e, a ser incumprida e não resultando dos autos a sua existência, põe desde logo em causa, e salvo o devido respeito, a ocorrência do procedimento fraudulento em causa, não se verificando, uma vez mais, um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual em causa, a saber: o do facto ilícito, e, consequentemente, extingue o direito da Autora em ser ressarcida dos consumos irregularmente efectuados, nos termos do disposto na alínea b) do n.º1 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, por inexistência de fraude apurada nos termos da inspecção referida no artigo 2º, cuja violação se imputa à Autora.
62 . Assim, e ao condenar a Ré na obrigação de indemnizar a Autora, viola a sentença recorrida o disposto quer nos artigos 2º, n.ºs 2 e 3 e 3º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 328/90 de 22 de outubro, bem como o disposto no artigo 483º do Código Civil, devendo, por essa razão, ser revogada.

Nestes Termos e nos Melhores de Direito , dado que seja por V.Exªs., Venerandos Desembargadores, o V. douto suprimento, deve ser concedido provimento ao presente Recurso e, em consequência, ser a douta sentença ora recorrida revogada, com o que se fará a desejada JUSTIÇA!”

*

A Recorrida contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:

1. A sentença recorrida fez uma boa apreciação da prova junta aos autos e da produzida em audiência de julgamento, está bem fundamentada, preenche os requisitos legais e não merece reparo, pelo que deverá ser mantida.

2. Resultou provado que a Ré beneficiou de consumo ilícito de energia elétrica, por ter procedido à manipulação do equipamento de contagem de eletricidade, com esse fim, pelo que bem andou a sentença ao condenar a Ré, ora Recorrente, nos termos em que o fez.

3. O pedido formulado pela Autora nos autos é claro e consiste na condenação da Ré ao pagamento da indemnização devida pelo consumo ilícito de energia elétrica. O pedido da Autora preencheu todos os requisitos e pressupostos legais, o que resultou da petição inicial e da petição inicial aperfeiçoada, que a Autora veio a apresentar, na sequência de convite para tal do tribunal nos termos do artigo 590.º n.º 3 do Código de Processo Civil. Tendo então prosseguidos os autos e vindo a ser proferida sentença, a qual, também por esta razão, deverá ser mantida.

4. Entendeu e bem a sentença recorrida, que foi feita pela ora Recorrida a devida prova dos prejuízos que reclama nos autos. De facto a Autora apresentou em sede própria os valores de energia e de potência pedidos nos autos, correspondentes ao consumo fraudulento de que a Recorrente beneficiou, tendo procedido ao cálculo do valor da indemnização com base em critérios objetivos, que resultaram da aplicação de fórmulas específicas, cuja fundamentação consta dos autos e de que também foi feita prova em audiência de discussão e julgamento, por testemunha com eles confrontada, que então prestou ao tribunal e às partes todos os esclarecimentos pedidos. Tal permitiu ao tribunal fixar o valor da indemnização devida à ora Recorrida, pelo que a sentença recorrida, também neste ponto, não merece reparo.

5. A circunstância do contador elétrico dos autos poder estar instalado junto a outras caixas, virado para uma via pública, como é atualmente norma por forma a facilitar as leituras dos consumos elétricos, tal não obsta, como bem entendeu a sentença recorrida, a que a Recorrente tenha promovido a adulteração do contador elétrico por forma a, por meios criminosos, passar a pagar menos eletricidade do que aquela que efetivamente consumiu.

Não cabe no raciocínio logico de ninguém, e menos ainda do julgador, que alguém alheio aos interesses da sociedade Ré e dos seus sócios, sem qualquer interesse próprio, ou benefício, praticando atos criminosos, com risco da própria vida, decida adulterar o contador elétrico dos autos em benefício de terceiros. Bem entendeu também aqui a sentença recorrida, não merece reparo.

6. O consumo elétrico ilícito em resultado da adulteração do contador elétrico foi detetado na instalação elétrica dos autos, que é da exclusiva responsabilidade, e apenas serve, a Ré, sendo o benefício da energia consumida e não paga unicamente da Ré, ora Recorrente. Para além da prova produzida, e não contrariada pela Recorrente, presume-se a sua responsabilidade, nos termos do disposto no artigo 1.º n.º 2 do DL n.º328/90, de 22 de outubro. Também por esta razão a sentença recorrida deverá ser mantida.

7. A ora Recorrida cumpriu nos autos todos os deveres a que está adstrita enquanto concessionária do serviço público de distribuição de eletricidade. Cumpriu nomeadamente o dever de informação, tendo o Auto de Vistoria elaborado pela equipa técnica da Autora sido assinado por um trabalhador da Ré, ora Recorrente. Assim entendeu e bem a sentença recorrida, que, para além do mais, entendeu que:

Como é bom de ver, o alegado incumprimento, pela A. de eventuais condições legais para a exigência à R. do pagamento de energia consumida e não faturada, não influi no resultado das análises realizadas ao contador nem infirma a prova produzida acerca do desvio verificado na contagem de energia, sendo matéria a apreciar na fundamentação de Direito da presente sentença.”

“Nas situações em que o distribuidor do serviço opte por não exercer o seu direito a interromper o fornecimento de energia, não lhe é exigível proceder à notificação ao consumidor, por escrito, do valor presumido do consumo irregularmente feito e de o informar dos seus direitos, nomeadamente do direito de requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria prevista no artigo 5.º do Decreto-lei n.º 328/90.”

8. A Autora cumpriu as suas obrigações legais quanto às inspeções periódicas levadas a capo, tendo cumprido no caso das inspeções dos autos. No caso dos autos, por se tratar de uma ligação de baixa tensão, as inspeções podem legalmente ser efetuadas apenas a cada 15 anos, obedecendo as ligações de média tensão a outras regras, nos termos do ponto 21.3 da Diretiva 5/2016 da ERSE.

9. Conforme as presentes conclusões resulta que a sentença recorrida não merece reparo e que deverá ser mantida nos precisos termos, o que se conclui e requere.

Termos em que, e nos mais de Direito, deverá improceder o recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos precisos termos em que foi proferida, com que se fará JUSTIÇA e cumprirá o DIREITO.

***

No despacho de admissão do recurso, o Tribunal Recorrido pronunciou-se pela improcedência das arguidas nulidades de sentença.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

***

II. QUESTÕES A DECIDIR.

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, também CPC) –, importa apreciar e decidir:

1. Das invocadas nulidades da sentença; e no caso de improcedência das mesmas,

2. Se estão verificados os pressupostos do de procedência do pedido em face do regime decorrente do Decreto Lei n.º 328/90, de 22-10).

***

III. FUNDAMENTAÇÃO.

III.1. O Tribunal Recorrido considerou provados, com interesse para a boa decisão da causa, os seguintes factos:

1. Para o local de consumo com o n.º ...206, que corresponde à instalação de Baixa Tensão Especial, sita na Rua 1, Código Postal 1 Local 2, existiram, desde 22-09-2010, vários contratos de fornecimento de energia elétrica entre empresas comercializadoras de eletricidade e a R..

2. Em 01-06-2013, foi celebrado um contrato de fornecimento de energia elétrica em baixa tensão entre o comercializador NATURGY IBERIA, S.A. e a R., para o local de consumo referido em 1.

3. O contrato referido em 2 estava em vigor em 03-04-2018.

4. A A. gerou, em 21-03-2018, a ordem de serviço n.º ...94, para a realização de “Revisão de Equipamento Telecontagem BTE”.

5. A ordem de serviço referida em 4 foi executada no dia 03-04- 2018, aquando da deslocação do piquete técnico da A. ao local de consumo mencionado em 1.

6. Na vistoria realizada na data referida em 4, o técnico detetou que os selos da tampa superior do contador não se encontravam como originalmente vieram de fábrica, que as medições feitas na baixada eram superiores às registadas no contador e que a ordem de fases não estava correta.

7. Detetadas as irregularidades referidas em 6, os técnicos ao serviço da A. procederam à substituição do contador trifásico da marca Actaris, com o número de série: 50067216, que ali se encontrava.

8. O referido contador de eletricidade foi enviado à empresa LABELEC, Estudos, Desenvolvimentos e Actividades Laboratoriais, S.A..

9. O contador de eletricidade referido em 7, que estava instalado no local de consumo referido em 1, era do modelo ACE6000, do ano de 2010, tinha a data e hora corretas, estava programado com tarifário CD4T e com a relação de transformação: RTi= 300/5.

10. O contador referido em 7 apresentava um erro de menos 35,5% na leitura de energia elétrica, por comparação a um contador em normal funcionamento.

11. Os selos metrológicos de fábrica do contador referido em 7 estavam colocados, mas apresentavam sinais de manipulação, principalmente nas zonas de inserção dos arames de selagem nos cunhos, pois ambos os cunhos estavam colocados ao contrário, com as inscrições para trás.

12. O contador de eletricidade referido em 7 revelava adulteração no circuito de medição das suas correntes de entrada, tendo as resistências originais sido trocadas por outras com um valor óhmico diferente.

13. Por força do referido em 12, o valor de corrente de entrada assumido pelo contador era menor do que o valor real e, consequentemente, a energia contabilizada pelo contador referido em 7 era inferior à energia consumida.

14. Pelas 00:43 do dia 17-10-2012, pessoa não concretamente apurada abriu o contador referido em 7, manipulando-o nos moldes referidos em 12, para que a energia elétrica consumida não fosse contada na totalidade.

15. Os consumos elétricos registados após a colocação do novo contador elétrico no ponto de consumo referido em 1 foram superiores aos registados entre 28-09-2015 e 03-04-2018 (período em que o contador de eletricidade instalado era o referido em 7).

16. Da aplicação de um fator de correção de 1,55 (fator de compensação de um valor de desvio de -35,5%) aos valores da energia elétrica registada pelo contador, no período referido em 15, resultam valores idênticos aos registados após a colocação de novo contador.

17. Com base nos resultados referidos em 10, 13, 15 e 16, a A. considerou que a anomalia referida em 12 provocou uma diminuição de contagem de 35,5% da energia elétrica consumida pela A., e, através da aplicação de um fator de correção de 1,55 sobre a energia elétrica efetivamente contabilizada e faturada à R. entre 04-04-2015 e 03-04-2018, a A. estimou que a energia elétrica que a R. consumiu nesse período e que não foi contabilizada por força do referido em 12, correspondeu a:

17.1. 33.532 kWh de energia ativa consumida em super vazio, valorizada segundo a tarifa média vigente em 2018 (0,08€/kWh), no valor de 2.682,08€;

17.2. 49.873 kWh de energia ativa consumida em vazio, valorizada segundo a tarifa média vigente em 2018 (0,0912€/kWh), no valor de 4.548,45€;

17.3. 46.653 kWh de energia consumida em ponta, valorizada segundo a tarifa média vigente em 2018 (0,22€/kWh), no valor de 10.263,60€;

17.4. 118.938 kWh de energia consumida em cheias, valorizada segundo a tarifa média vigente em 2018 (0,1308€/kWh), no valor de 15.557,29€;

17.5. 69.999 KwH de energia reativa consumida fora de vazio, valorizada segundo a tarifa média vigente em 2018, no valor de 340,23€.

18. Partindo dos consumos que estimou (referidos em 17), a A. calculou os períodos em que o local de consumo identificado em 1 excedeu a potência contratada, concluindo que a R. usou potência, além da contratada e faturada, no valor de 405,04€.

19. Partindo dos consumos que estimou (referidos em 17), a A. calculou os períodos em que o local de consumo identificado em 1 consumiu potência em hora de ponta, concluindo que a R. usou potência em hora de ponta não faturada no valor de 6.031,05€.

20. A A. teve encargos administrativos com a deteção e tratamento da anomalia.

21. A R. não fazia leitura de consumos e nunca procedeu ao envio de qualquer leitura.

22. O local onde funciona a clínica da A. é um edifício com duas entradas por lados opostos, onde estão instaladas, para além da clínica da A., uma casa paroquial, com salão paroquial e residência do pároco, e onde esteve instalado, até 2022, um núcleo do EMP02....

23. A caixa de montagem onde se encontrava o contador referido em 7, encontra-se instalada no edifício referido em 22, junto a outras caixas, numa rua pública, junto à entrada para a clínica da A..

24. A caixa referida em 23 estava fechada, mas abria rodando com uma chave plástica.

25. AA, funcionário da R., foi chamado pelos funcionários da A. para verificar o estado do contador.

26. Entre 17-10-2012 e 03-04-2018, a A. não fez verificações in loco do contador referido em 7.

***

III.2. O Tribunal Recorrido considerou que com relevância para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:

a) A A. é proprietária dos fluxos de energia que circulam na rede pública de distribuição.

b) Foi a R. que, por si, ou recorrendo a um eletricista, manipulou as resistências elétricas do contador de eletricidade, nos termos referidos em 12.

c) A R. atuou nos moldes referidos em b) com o objetivo de consumir energia elétrica sem a pagar na sua totalidade.

d) A substituição do contador referida em 7 dos factos provados teve o custo de 107,98€.

e) Os custos incorridos pela A. e referidos em 20 foram no montante de 72,10€.

f) A vistoria levada a cabo pela A., no dia 03-04-2018, não ocorreu na sequência de qualquer suspeita de fraude, mas porque a R. solicitou uma ordem de serviços, com vista à realização de “Revisão de Equipamento Telecontagem, BTE”.

g) Não foi a R. que executou ou promoveu a execução do referido em 11, 12 e 14 dos factos provados.

h) A R. desconhecia qual dos contadores existentes no edifício onde se situa a sua clínica lhe pertencia.

i) A R. não tinha chaves de acesso ao contador, quer na pessoa do seu legal representante, quer na pessoa de outro funcionário.

*

III.3. Da nulidade da sentença.

Entende a Recorrente que ao não apreciar a matéria relativa à exceção de prescrição, a sentença enferma de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, já que no seu entender, o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre questão que deveria ter sido apreciada.

Apreciando.

Na decisão recorrida entendeu-se, acerca desta questão, que:

“(…)Ora, nos termos do disposto no artigo 573.º do Código de Processo Civil, «Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.» e «Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.»

Ademais, decorre do artigo 579.º, a contrario, do Código de Processo Civil que o tribunal não pode conhecer oficiosamente das exceções perentórias cuja invocação a lei torne dependente da vontade do interessado, como é o caso da exceção de prescrição (cf. artigo 303.º do Código Civil).

Assim, não tendo a R. invocado a exceção de prescrição na contestação, e não se baseando a sua invocação em qualquer facto novo alegado na petição inicial aperfeiçoada, aquando da apresentação de tal resposta, já se mostrava precludido o seu direito de invocar tal matéria, razão pela qual a questão não foi levada ao objeto do litígio nem aos temas de prova, nem será apreciada na presente sentença.”

A decisão descreveu adequadamente o teor dos artigos 573º e 579º do Código de Processo Civil, pelo que aqui nos dispensamos de o reproduzir.

No caso dos autos, porém, importa ter em consideração que na contestação a ora Ré invocou a exceção de ineptidão da petição inicial por considerar que “não tendo sido alegados quaisquer factos que impliquem o preenchimento ou não dos pressupostos para a responsabilidade civil extracontratual, (…) nomeadamente se a conduta violou o direito de outrem e se essa violação foi ilícita, bem como se a conduta foi praticada com dolo ou mera culpa, (…) não bastando alegar, salvo melhor entendimento, que a R. esteve a beneficiar do consumo de energia não registada, não paga, sem o consentimento e contra a vontade da A.”

E nessa sequência, veio a ser proferido despacho de aperfeiçoamento, através do qual se convidou a Autora a “concretizar factualmente os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, procedendo à devida individualização por referência ao comportamento da Ré.”

Acedendo a tal convite, veio a Autora juntar o articulado de 05.06.2023, no qual concretiza os factos que permitem imputar à Ré o valor que peticiona, de forma inovadora relativamente ao que havia feito na petição inicial.

Assim, esclareceu no aludido articulado que imputava à Ré o facto ilícito em que sustenta a sua pretensão, alegando nesse momento, após reprodução dos relatórios a que fez referência, que:

“(…)34º A manipulação ilícita das resistências elétricas do contador de eletricidade pela Ré, com o que esta conseguiu consumir mais eletricidade do que a registada pelo contador, e consequentemente que lhe pode ser faturada, e que a Ré pagou, preenche os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Ré, que originam o consequente dever de indemnizar.

35.º O primeiro requisito corresponde à execução de um facto que foi dominado pela vontade da Ré, agindo por ação, de manipulação ilícita, por si, ou recorrendo a um eletricista, do equipamento de contagem de consumo de eletricidade, com o objetivo conseguido de consumir energia elétrica a pagar na sua totalidade.

36.º Quanto à ilicitude, esta corresponde a um comportamento antijurídico da Ré que merece a censura da ordem jurídica, consistindo num desvalor do facto praticado em si mesmo, sabendo a Ré que com a referida manipulação agia contra a vontade da Autora, que a eletricidade não é um bem gratuito, o que é público e notório, e que a parte da eletricidade que consumia sem ser registada pelo contador e, consequentemente, sem ser faturada, nem paga, constitui um facto ilícito.

37.º Tendo havido apropriação de forma ilícita por parte da Ré, de energia elétrica, através da manipulação do equipamento de contagem, está preenchido o pressuposto da ilicitude, pois ao consumo de energia elétrica pela Ré não corresponde apenas ao que lhe foi possível faturar, em resultado da manipulação e, consequentemente, a Ré pagou menos eletricidade do que a que de facto consumiu.

38.º A Ré age quanto aos factos dos autos com dolo, com o propósito conseguido de se apropriar indevidamente de energia elétrica da rede de distribuição pública, impedido, através de manipulação ilícita, que a eletricidade consumida indevidamente lhe fosse cobrada pelas vias normais, o que fez contra a vontade e sem o consentimento da Autora, usufruindo da eletricidade não paga com perfeito conhecimento de que não lhe pertencia e que o fazia sem autorização da respetiva proprietária, a ora Ré.

39.º Relativamente ao dano, sendo que a função fundamental do próprio instituto da responsabilidade civil é a sua reparação, importa recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora um princípio de ressarcimento dos danos, que deverá atuar sempre que exista uma razão para que o dano verificado não seja suportado pelo próprio lesado.

40.º De salientar que a Autora enquanto concessionário de um serviço público, fornece energia elétrica aos consumidores, a qual não é por si produzida, mediante contrato de fornecimento para o efeito, celebrado previamente com empresas comercializadoras de eletricidade, havendo obrigação de pagamento da energia elétrica consumida. Porém, quando não se verifica o cumprimento dessa obrigação por parte dos consumidores em resultado de facto ilícito causador de dano, a Autora deixa de receber o benefício que teria, caso não se tivesse verificado o dano.

41.º Pode afirmar-se que está também verificado o nexo de causalidade entre o dano sofrido pela Autora e o facto ilícito consubstanciado na conduta da lesante, sendo que o primeiro é decorrente do segundo.

42.º Assim, dada a conduta ilícita da Ré ao manipular o equipamento de contagem de eletricidade, permitindo um consumo superior ao registado pelo contador e, consequentemente, tendo o valor pago pela Ré sido inferior ao devido pelo respetivo consumo elétrico, conclui-se pela responsabilidade civil extracontratual da Ré, originando o dever de indemnizar.(…)”

A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos – artigo 20º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa.

Por outro lado, toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida – cf. artigos 10º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 6º/1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

O Tribunal Constitucional tem defendido que o princípio do contraditório se integra no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, da Constituição da República Portuguesa, porquanto o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, de ser um processo equitativo e leal - nele cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão.

É o direito de defesa, que as partes hão de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, nº 1, citado[1].

O princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e, de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras”[2].

Cada uma das partes há de, pois, poder expor as suas razões perante o tribunal (princípio do contraditório). E deve poder fazê-lo em condições que a não desfavoreçam em confronto com a parte contrária (princípio da igualdade de armas).

Também o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem proferido jurisprudência constante no sentido de que:

“(…)A noção de processo equitativo implica, em princípio, o direito de as partes tomarem conhecimento de todos os elementos ou observações apresentados ao juiz e de os discutirem (ver Lobo Machado supracitado, ibidem; Vermeulen c. Bélgica, 20 de Fevereiro de 1996, Recueil 1996 I, § 33; Nideröst-Huber supracitado, § 23; e, mais recentemente, Spang c. Suíça, No. 45228/99, § 32,11 de Outubro de 2005).(…)

37. Todavia, o direito a um processo contraditório na acepção do artigo 6.º, n.º 1, tal como interpretado pela jurisprudência, “implica que cada uma das partes no processo deve, em princípio, ter o direito de tomar conhecimento e de discutir qualquer peça ou observação apresentada ao tribunal, mesmo que seja por um magistrado independente, com vista a influenciar a decisão do tribunal” (ver J.J. c. Países Baixos, 27 de Março de 1998, Recueil 1998-II, § 43 in fine). (…)”[3].

Sendo certo que quando se formula um pedido indemnizatório com base na responsabilidade civil contratual ou extracontratual, a causa de pedir é complexa e envolve pressupostos como facto ilícito e culposo, ligado a um dano que causalmente ocasiona, no caso dos autos, como decorre do que se expôs, apenas com o aperfeiçoamento pôde a Ré compreender com clareza a natureza do ato em que a Autora fundava contra si a sua pretensão indemnizatória, tudo na sequência de despacho nesse sentido proferido pelo Tribunal.

Constituindo, pois, o princípio do contraditório, um princípio estruturante do processo civil português, não pode deixar de admitir-se à Ré a possibilidade de perante esse conhecimento, que apenas nesse momento ocorreu por causa que não lhe é imputável, opor os meios de defesa que, em face do mesmo, se suscitam, designadamente a invocação da exceção de prescrição, à semelhança do que, de resto, o legislador expressamente previu para os articulados supervenientes, nos termos do disposto no artigo 588º do Código de Processo Civil.

Assiste, consequentemente razão ao Recorrente quando entende que o Tribunal Recorrido deveria ter conhecido da exceção de prescrição, verificando-se, pois, nulidade de sentença por omissão de pronúncia, prevista na al. d), do n.º 1, do artigo 615.º, do Código de Processo Civil, que agora deverá ser conhecida e suprida, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 665.º, do Código de Processo Civil, o qual determina que “ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação”.

*

A Autora funda o seu pedido numa atuação ilícita decorrente da adulteração e manipulação do equipamento de contagem que lhe permitia um consumo elétrico superior ao registado e, consequentemente, não pago.

À data dos factos, regia a este propósito o Dec. Lei 328/90 de 22 de Outubro que dispunha no artigo 1º nº 1 “constituir violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica qualquer procedimento fraudulento susceptível de falsear a medição da energia eléctrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras.

Por sua vez, dispunha o nº 2 do mesmo artigo que qualquer procedimento fraudulento detetado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respetivo consumidor.

Ao estabelecer que qualquer procedimento fraudulento se presume, salvo prova em contrário, imputável ao respetivo consumidor, a norma não presume que o consumidor foi o autor do procedimento fraudulento, a norma responsabiliza o consumidor que recebe energia através do equipamento falseado perante o distribuidor pelas consequências desse procedimento, excepto se provar que o mesmo não se deve a culpa sua[4].

No recente Acórdão da Relação de Coimbra de 10.09.2024[5] discutiu-se a constitucionalidade de tal presunção, que na prática, faz recair sobre o consumidor uma prova negativa, que é quase impossível, designadamente em casos como o dos autos, em que o contador se encontra inserido num prédio com diversos habitantes e com acesso pela rua, pois que situado no exterior (pontos 22 e 23 dos factos provados).

Ali pode ler-se:

“(…)No âmbito da presunção em apreço, o fornecedor de energia elétrica terá de demonstrar “a existência de procedimento fraudulento suscetível de falsear a medição da energia elétrica consumida ou da potencia tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras”.
Provada essa viciação suscetível de falsear a medição da energia elétrica, presume-se que essa viciação é imputável ao consumidor, cabendo a este, sendo cado disso, a prova de que tal viciação foi efetuada por terceiro ou se deveu a causa de força maior.
A presunção de responsabilidade assenta no raciocínio de que o consumidor é quem tem o controlo das instalações, sendo ele quem tem livre acesso as mesmas, incumbindo-lhe a respetiva vigilância, pelo que, o que lá acontecer é da sua responsabilidade, presunção que é comum em várias outras áreas (ex. presunção no exercício de atividades perigosas, nos termos do art. 493º, nº2, CC, e relativamente ao detentor do veículo, nº 1 do artigo 503º).
Não acompanhamos, assim, a afirmação da Apelante, de que tal presunção, protege claramente a autora em relação à ré, violando o principio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP ou o acesso à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20º da CRP.
A norma em apreço faz uma distribuição dos factos a provar, contendo uma presunção relativa que faz recair a prova de determinados factos sobre a autora – a existência de vício suscetível de alterar a medição da energia elétrica – e outros sobre a Ré – que, a existir vício é imputável a terceiro ou força maior –, partindo dos interesses em causa, do fornecedor de energia, por um lado, e do consumidor, por outro lado, dos meios que cada um pode controlar e da facilidade de acesso a meios de prova.
De qualquer modo, também a invocada inconstitucionalidade é irrelevante para a situação em apreço, uma vez que a autora não faz assentar o seu pedido de restituição dos valores consumidos na circunstância de ter sido a Ré a autora da intervenção fraudulenta (ainda que por falta de elisão de tal presunção), para efeitos de a responsabilizar pelos prejuízos causados à distribuidora nos termos do artigo 3º nº1, fundamentando o pedido restituição do consumo irregularmente feito pelo consumido no artigo 3º, nº2, direito que é atribuído ao distribuidor “quando o consumidor não seja o autor do procedimento fraudulento ou por ele responsável”.

Pedro Falcão, in “O Contrato de fornecimento de energia eléctrica”, Petrony Editora (2019), pág. 112, apesar de reconhecer que a lei estabelece esta presunção, critica a solução legal considerando que:

“não nos parece razoável que a lei presuma, sem mais, imputável ao utente, v. g. a adulteração do contador que, embora associado exclusivamente à sua instalação de utilização, não é exclusivamente acedido por esse mesmo utente. Sendo certo que uma hipotética adulteração só se justifica, em princípio, em seu benefício, não se afigura justo que sobre ele impenda o ónus de realizar a prova, praticamente impossível, da não realização desse comportamento, se for esse o caso … Seria porventura adequada a revogação da mencionada norma, deixando a eventual presunção para o tribunal, em face do caso concreto”.

Independentemente da controvérsia de que se deixou nota acerca da indicada presunção, no caso dos autos, sucede que, pese embora a alegação de que a adulteração do contador foi realizada pela Ré, o certo é que não se provou que tivesse sido da Ré, ou de alguém a seu mando, a autoria das provadas manipulações ao contador (cf. alíneas b) e c) da matéria de facto não provada, que não sofreram impugnação).

E sendo certo que o já citado artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 328/90, não encerra uma presunção de facto (não faz presumir que foi o consumidor o autor da fraude), mas antes e apenas a responsabilização do consumidor que recebe energia através do equipamento falseado perante o distribuidor pelas consequências desse procedimento, exceto se provar que o mesmo não se deve a culpa sua. (cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13-05-2021, disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 2422/19.4T8AGD.P1, não estando pois em causa responsabilidade por ato ilícito demonstrado, importa concluir que o prazo de prescrição a ter em consideração a ter em conta não é o previsto no artigo 498º do Código Civil - pois que o ato ilícito a ele subjacente, não se demonstrou, como se referiu - mas antes o prazo aplicável ao fornecimento de serviços públicos essenciais ao utente, previsto na Lei 23/96, de 26 de julho, pois que se enquadram no previsto na alínea b) do artigo 1º, n.º 2 do citado diploma, considerando-se a Ré utente, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3, de tal diploma.

Não se demonstrando a prática de ato ilícito, e responsabilizando a lei a ora Ré pelo pagamento do valor não faturado, nenhuma razão se vislumbra para não aplicar o regime de prescrição aplicável à generalidade dos utentes de serviços públicos essenciais.

Pode ler-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 30.03.2023[6] que:

“(…) segundo o disposto no artigo 10.º, n.º 1, da referida Lei n.º 23/96, na redação da Lei n.º 12/2008, de 26.02, «[o] direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação».

Com tal prazo prescricional de seis meses pretendeu o legislador proteger o utente/consumidor, ciente de que as operadoras de comunicação têm uma estrutura organizativa que lhes permite cobrar os seus créditos naquele prazo, em momento, pois, próximo do respetivo consumo.

Considerando tal escopo e a letra perentória da lei, «prescreve no prazo de seis meses», sufraga-se o entendimento de que se trata de uma prescrição comum, liberatória ou extintiva, sem desconhecer, contudo, entendimento diverso, como o sufragado por Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V volume, edição de 2018, página 239, que entende tratar-se de uma prescrição presuntiva.

Com refere Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, edição de 2017, páginas 337 a 339, «[n]a prescrição comum, o beneficiário só precisa de invocar e demonstrar a inércia do titular do direito no seu exercício durante o tempo fixado na lei. O regime comum da prescrição é neutro em relação ao cumprimento ou incumprimento. A prescrição ocorre, quer o devedor tenha já cumprido, quer não. Se já tiver cumprido, o devedor deixa de ter de invocar e demonstrar o cumprimento, basta-lhe invocar a prescrição; se não tiver cumprido, também a invocação da prescrição lhe permite bloquear a pretensão do credor».

Na Lei n.º 23/96, de 26.06 «o pagamento da prestação de serviços públicos essenciais foi sujeito a um prazo de prescrição extintiva de seis meses a contar da respetiva prestação».

No mesmo sentido refere Calvão da Silva, Revista de Legislação e Jurisprudência ano 132.º, página 152, «(…) a nova lei impõe que, decorrido o prazo de seis meses, se extingam o crédito e a correlativa obrigação civil, nos termos gerais da prescrição extintiva. Apesar da brevidade do prazo, não se trata de simples prescrição presuntiva, mas de autêntica e verdadeira prescrição, ainda que de curto prazo, com a nova lei a querer evitar que o devedor continuasse, ex vi do Código Civil, vinculado à obrigação pelo longo prazo de cinco anos: agora, pela lei nova, decorridos seis meses, dá-se a liberação do devedor, sem que o credor possa impedi-lo de se prevalecer da excepção peremptória» - igual posição sufragou o mesmo autor na Revista de Legislação e Jurisprudência ano 137.º, páginas 174 e seguintes, ora à luz das alterações decorrentes das Lei n.ºs 12/2008 e 24/2008.

Na matéria, também no sentido de estar em causa «uma prescrição extintiva», refere o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2010, de 03.12.2009, publicado no DR, 1.ª série, n.º 14, de 21.01.2010, que «[o] texto legal não dá abertura à qualificação, de iure constituto, como prescrição presuntiva; a duração do prazo, mais próximo dos prazos das prescrições presuntivas, não é argumento suficiente, sabendo-se que a lei pretendeu declaradamente proteger o utente. E, em bom rigor, não ocorre aqui uma das principais razões da existência das prescrições presuntivas, e que é a de corresponderem a dívidas para cujo pagamento não é habitual a exigência de recibo».

No sentido de que o art.º 10 da Lei 23/96, de 23/7, consagrou uma prescrição extintiva ou liberatória, e não meramente presuntiva, na jurisprudência mais recente deste Tribunal da Relação de Lisboa vejam os acórdãos de 27.01.2022, processo n.º 67360/19.5YIPRT.L1-8, e de 26.01.2023, processo n.º 107382/20.0YIPRT.L1-8.(…)”

Ora, no caso, ainda que se considerem as regras relativas à interrupção da prescrição decorrentes do disposto nos artigos 323.º, n.ºs 1 e 2, e 325.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código Civil, mesmo que se considere a data da notificação do despacho de arquivamento do processo crime (que ocorreu, pelo menos, em 2 de fevereiro de 2022, como o demonstra o documento junto à petição inicial com o n.º 1) sempre haverá que concluir que entre essa data e a da propositura da ação 17.03.2023, decorreu o prazo prescricional de seis meses.

Note-se que invocada a prescrição, a averiguação do prazo aplicável consubstancia matéria de direito, e que o artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil dá expressão à ideia ou regra conhecida como “iura novit curia”, ou seja, de que o juiz conhece (todo) o direito - o julgador não está circunscrito às alegações das partes no que toca à indagação, à interpretação e à aplicação das regras jurídicas aplicáveis.

Nestes termos, tem-se por prescrito o direito ao recebimento do valor dos serviços prestados pela Requerente, à aqui Recorrida, e não pagos, até 03.04.2018, data da substituição do contador.

A prescrição de direitos constitui uma exceção perentória, cuja procedência importa a absolvição total ou parcial do pedido, uma vez que o seu beneficiário tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (cfr. artigos 576.º, n.º1 e 3 do Código de Processo Civil e 304.º, n.º1 do Código Civil).

Conclui-se desta forma pela procedência da apelação, o que prejudica a apreciação dos demais fundamentos de recurso.

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IV. Decisão

Pelo exposto, na procedência da apelação, acorda-se em considerar prescrito o direito ao recebimento do preço dos serviços prestados e não pagos em causa nos autos pela Recorrida à ora Recorrente, absolvendo esta última do pedido.

Custas pela Apelada (cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.

Évora, 07-11-2025

Ana Pessoa

José António Moita

Manuel Bargado

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[1] Cf, entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 358/98, DR, II série, de 17-07-1998, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.03.2024, proferido no âmbito do processo n.º 14398/21.3T8PRT-C.P1.S1 e toda a jurisprudência e doutrina no mesmo citadas.
[2] Cf. O Acórdão do STJ citado.
[3] Cf. o Acórdão do TEHD proferido em 21.06.2010, CASO FERREIRA ALVES c. Portugal (No 3).
[4] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 13.07.2022, proferido no âmbito do processo n.º 4630/21.9T8VNG.P1.
[5] Proferido no âmbito do processo n.º 2465/19.8T8LRA.C1.
[6] Proferido no âmbito do processo n.º 68431/20.0YIPRT-B.L1-2.