ESCUSA E RECUSA
FUNDAMENTOS
CASO JULGADO
Sumário

I - O princípio fundamental da independência dos tribunais, consagrado no artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa tem como corolário o princípio da imparcialidade, definido no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos como uma garantia fundamental de cada ser humano, complementada pela independência dos juízes e pela obrigação de imparcialidade que sobre estes recai.
II - O princípio do juiz natural pode ser derrogado para dar satisfação a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade do juiz, para cuja garantia o legislador estabeleceu diversos mecanismos, como é o caso dos impedimentos, das recusas e das escusas.
III - O fundamento da escusa e recusa assenta numa razão séria e grave da qual resulte inequivocamente um estado de forte desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, imparcialidade que deve ser apreciada numa vertente subjectiva e numa vertente objectiva.
IV - Na perspectiva subjectiva a imparcialidade do juiz e do tribunal pressupõem a determinação ou a demonstração do que um juiz pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer o interessado na decisão, presumindo-se a sua verificação, e na perspectiva objectiva da imparcialidade visa-se determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade.
V - O indeferimento de anterior requerimento formulado pela senhora juíza recusada, em que pediu escusa de intervir nos mesmos autos por razões semelhantes às invocadas na recusa, por tais fundamentos não constituírem motivo grave, sério e adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, determinam o não conhecimento do pedido de recusa, sob pena de violação do caso julgado, nos termos do artigo 121.º, n.º 4, do C.P.C., aplicável ex vi do artigo 4.º do C.P.P..

Texto Integral

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veio requerer a recusa da Sra. Juíza … para intervir na audiência de discussão e julgamento.

Para tanto, alega, em síntese:

- Como questão prévia, … veio a M.ma. Juiz de Direito, …, suscitar incidente de escusa …, atual Apenso C, ao abrigo dos artigos 43º e seguintes do Código de Processo Penal, a fim de não intervir no processo suprarreferido com os fundamentos, transcritos na íntegra, mas que não prosperou.

 - Haverem questões prejudiciais a conhecer tais como:

- Existem outros processos-crime instaurados contra o aqui assistente (e vice-versa) e os factos jurídicos descritos na contestação apresentada nestes autos, apontam condutas improbas do assistente, o Magistrado …, que se provados constrangerão qualquer julgador que pertence à mesma categoria funcional e comarca.

- Ter um ex-conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, … como testemunha concede um privilégio ao assistente que pressupõe desigualdade de armas.

- Há um conflito de competência entre o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – juiz 3 e o Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 2 apesar da jurisprudência estabelecida pela Instância superior, manifestando discordância quanto à decisão proferida pelo TRC a 24.01.2024, entendendo que o processo deveria ser transferido para outra comarca,

Conclui que dado o conflito de interesses que compromete a imparcialidade dos juízes que comporão o tribunal coletivo, dado que o assistente esteve colocado em Leiria e atualmente está em Coimbra e as memórias e presença imaterial e material entrecruzam-se pelo que será injusta e ilegal a continuação do processo em Leiria ou em Coimbra.

Quanto à recusa em si mesma alega em síntese o seguinte:

- A recusa/escusa da Excelentíssima Juíza, por ser amiga do assistente-Juiz, com quem trabalhou … e com o pai, …, que é testemunha na lide, são factores graves e sérios que demonstram exteriormente ligações emocionais robustas que comprometem o discernimento de imparcialidade.

- De acordo com o artigo 43.º do Código de Processo Penal, a intervenção do juiz no processo pode ser recusada se existir um motivo sério e grave que gere desconfiança sobre a sua imparcialidade. Esta regra, que constitui uma exceção ao princípio do juiz natural, é uma garantia fundamental do processo criminal, protegendo os direitos de defesa não só do arguido, mas de todos os intervenientes processuais.

Assim, a recusa/escusa do juiz natural deve ser aceite quando houver circunstâncias definidas que demonstrem que a sua imparcialidade está em questão, e que o juiz designado anteriormente já não oferece garantias de equidade e isenção, conforme previsto por diversas fontes legais e jurisprudenciais relevantes neste contexto.

- A defesa da recusa da MM. Juiz de Direito, em virtude de sua amizade com … testemunha no processo e pai do assistente que também exerceu a função de juiz na mesma comarca, deve ser fundamentada em sólidos princípios jurídicos que sustentam independência do Judiciário, pilares inegociáveis de uma justiça verdadeiramente equitativa.

 - A Lei da Organização do Sistema Judiciário, estabelecida pela Lei nº 62/2013, não só regulamenta a estrutura do sistema judicial em Portugal, mas também reflete a necessidade intrínseca do judicativo isento, que deve ser garantido pela Constituição da República Portuguesa;

- Esta, em seu Artigo 20º, afirma inequivocamente a importância da independência dos juízes e da imparcialidade do julgamento, princípios que não podem ser comprometidos ou relativizados sob qualquer circunstância, visto que são a base da confiança pública e da credibilidade das decisões judiciais.

 - Além disso, o Artigo 6º da Declaração dos Direitos Humanos, que tem força normativa no ordenamento jurídico nacional, reforça o direito a um julgamento justo por um tribunal independente e imparcial, reforçando que a integridade do processo judicial não é apenas uma expectativa, mas um direito fundamental a ser resguardado a todos os cidadãos.

Conclui requerendo o deferimento da recusa da Mmª Juiz de Direito … ao abrigo do art. 43º e ss. do Código de Processo Penal e a sua substituição por outro juiz que preserve o direito ao julgamento justo por um tribunal independente e imparcial.


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 Foi ordenada a subida do incidente de recusa.

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Foi este com vista à Digna Procuradora Geral Adjunta a qual se pronunciou …

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Não se afiguram necessárias outras diligências de prova.

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O requerimento de recusa está em tempo (artº44º do C.P.P.).

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:


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            Dispõe o artº43º do Código de Processo Penal:

1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º

3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

4 – (…).

5 – (…).

Como é sabido, o princípio fundamental da independência dos Tribunais, consagrado no artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa, estabelece que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei, tendo como corolário o princípio da imparcialidade, definido, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo 10.º, como uma garantia fundamental de cada ser humano: “ Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida”.

A garantia de independência dos tribunais é complementada pela independência dos juízes e pela obrigação de imparcialidade que sobre estes recai.

Por outro lado, o artigo 4.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário [Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto], determina que “os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei”, prosseguindo tal preceito legal, dessa forma assegurando a sua independência, que “não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores”.

Assim sendo, o princípio do juiz natural, segundo o qual intervirá na causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência legal estabelecidas, consagrado como garantia do processo criminal, pode ser derrogado para dar satisfação a outros princípios constitucionais, como o é o da imparcialidade do juiz. Com efeito, a imparcialidade do juiz, imanente ao ato de julgar e pressuposto de uma decisão justa, é essencial à confiança pública na administração da justiça e "um direito fundamental dos destinatários das decisões judiciais, um dos elementos integrantes e de densificação da garantia do processo equitativo, com a dignidade de direito” [artigo 6.º, nº1 da CEDH e artigo 14.º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos].

Com vista à preservação da garantia constitucional de imparcialidade do juiz penal e da confiança dos sujeitos processuais e do público em geral nessa imparcialidade, o legislador estabeleceu diversos mecanismos, como é o caso dos impedimentos, das recusas e das escusas, esta última, que no caso interessa, prevista no artigo 43.º do Código de Processo Penal.  

Decorre da mencionada disposição legal que pode ser suscitado o incidente de recusa do juiz quando se verifiquem uma das seguintes situações:
® correr o risco de ser considerado suspeito, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade; ou
® tiver havido a sua intervenção noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º.

Sobre o que se deve entender por motivo suficiente para o afastamento de um juiz, decidiu-se no Acórdão do STJ de 12.11.2020 [processo nº 9560/14.8TDPRT-C.G1-A.S1, disponível in www.dgsi.pt] que: “ Para afastar o juiz natural não basta um qualquer motivo que alguém possa ter como susceptível de afectar a sua imparcialidade, antes importa que o mesmo seja sério e grave no contexto de uma determinada situação concreta.

Conforme assinalado no cit. Ac. do STJ de 09.11.2011[processo nº 100/11.1YFLSB.S1, disponível in www.dgsi.pt]: “os motivos sérios e graves adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador hão-se, pois, resultar de objectiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador”.

O fundamento da escusa/recusa deve, pois, ser objetivado numa razão séria e grave da qual resulte inequivocamente um estado de forte desconfiança sobre a imparcialidade do julgador.

A imparcialidade deve, assim, ser apreciada numa vertente subjetiva e numa vertente objetiva.

A imparcialidade do juiz e do tribunal, numa perspetiva subjetiva, pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer o interessado na decisão. A imparcialidade subjetiva presume-se.

Por sua vez, numa perspetiva objetiva da imparcialidade visa-se determinar se o comportamento do Juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade.

Contudo, não basta a objetiva independência e imparcialidade subjetiva do juiz; não basta sê-lo, importa também parecê-lo.


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Porém, antes de partirmos para a análise da questão concretamente colocada, isto é da verificação da exceção de caso julgado ou, caso assim não se entenda, dos pressupostos para  o deferimento ou indeferimento do presente incidente de recusa, importa tecer algumas considerações acerca do que o requerente indica como questões prévias e prejudiciais:

Afirma, neste contexto, o requerente a existência de processos-crime que correrão termos contra o assistente e onde figurará como suspeito/arguido e nomeadamente os referidos processos-crime nº …, … e o processo crime nº …, este instaurado pelo assistente contra o aqui arguido.

Ora, o teor de eventuais processos e peças processuais neles constantes, onde são intervenientes o arguido e o assistente extravasam o âmbito do que - nos termos do disposto no art. 43º do Código de Processo Penal - se submete a decisão deste Tribunal,  que é apenas o de saber se na situação em concreto existe fundamento para a recusa de uma concreta Sra. Juíza, … (não se alegando ser ela própria visada ou sequer mencionada nesses processos ou peças processuais).

Invoca ainda o requerente o teor da contestação apresentada nos autos principais para concluir que dada a gravidade dos factos descritos, estes constrangerão qualquer julgador que pertence à mesma categoria funcional e comarca.

Ora, no âmbito do apenso 855/22.8T9PBL-A.C1 foi já proferida decisão transitada em julgado conheceu o conflito negativo de competência entre o Juízo Central Criminal de Leiria, Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria e o Juízo Central Criminal de Coimbra, Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra (Cf. decisão de 22.01.2024, proferida no apenso 855/22.8T9PBL- A.C1, disponível na aplicação citius), de cujo dispositivo consta o seguinte: “Pelo exposto, decidindo o presente conflito negativo, atribuo a competência para a tramitação e julgamento do processo n.º 855/22.8T9PBL ao Juízo Central Criminal de Leiria – Juiz 3, da Comarca de Leiria.”

            Assim, eventuais razões de discordância relativamente a esta decisão não poderão ser discutidas ou equacionadas neste incidente, nem podem ou devem ser confundidas com motivo sério e grave adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade da Sra. Juíza … e estão abrangidas pelo caso julgado formado pela decisão proferida no referido conflito negativo de competência.

Suscita ainda o requerente como “questão prejudicial” a circunstância de ter sido indicado como testemunha nos autos nº 855/22.8T9PBL um senhor Juiz Conselheiro Jubilado recentemente empossado presidente da Comissão Nacional de Eleições como testemunha entendendo que tal concede “um privilégio ao assistente que pressupõe desigualdade de armas”, acrescentando “apesar do atestador[conselheiro jubilado] não possuir qualquer ligação aos factos acusatórios contra o arguido, muito menos ter participado de qualquer circunstância que foi denunciada similarmente foi Juiz Desembargador e laborou na Comarca de Coimbra onde atualmente encontra-se o assistente e o inquérito que corre contra si” , e prosseguindo “ portanto, existe já uma natural contaminação das lides contra o arguido e uma propositada influência do patriarca do assistente. Qualquer “cidadão médio a percebe identifica-a e critica-a” e invocando a propósito o seguinte: “ No presente caso, entendemos que a norma da Lei da Organização do Sistema Judiciário, presente na Lei nº 62/2013, de 26/8, é considerada inconstitucional, pois compromete a imparcialidade e a equidade do julgamento, princípios fundamentais garantidos pelo Artigo 20º da Constituição da República Portuguesa e pelo Artigo 6º da Declaração dos Direitos Humanos.

13 - O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 200/2016, já decidiu que a norma que permitia a designação de um juiz com tais conflitos violava o princípio da imparcialidade e da independência dos juízes porque permite a designação de um juiz natural para um determinado processo, mesmo que este tenha conflitos de interesses, pessoais e locais, que possam prejudicar a imparcialidade e a equidade do julgamento.

14 - Essa disposição vai contra o princípio do próprio juiz natural e do direito a um julgamento justo e equitativo, que são fundamentais à garantia dos direitos do arguido no processo judicial. Prejudica a essência do diálogo no processo como instrumento da democracia, viola os princípios do julgamento imparcial e recto ao arguido, estabelecidos no artigo 40.º do CPP, bem como o princípio do Estado de Direito Democrático (conforme artigo 2.0 da Constituição da República).

15 - Além disso, a norma viola os direitos e garantias de defesa do arguido, conforme afiançados no artigo 32.º da Constituição da República, nos artigos 20.º, nºs. 1, 4 e 5 da Constituição da República, 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 6.º, nos. 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 14. º, nos. 1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e 4 7.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Portanto é uma questão prejudicial”.

            Salvo o devido respeito a questão colocada pelo requerente, mais uma vez, em muito ultrapassa o que se pode obter através do incidente de recusa, que é, reiteramos, perceber se existe motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade de um concreto juiz.

Assim, não cabe em decisão de incidente de recusa tomar posição sobre hipotéticas contaminações das lides ou hipotéticas propositadas influências na indicação do pai do assistente como testemunha nos autos, que não estão sequer minimamente concretizadas e designadamente por relação à Sra. Juiz Presidente cuja recusa se pede, sendo que não se discute ou decide neste incidente qualquer aspeto relativo a inquérito que corra termos na Comarca de Coimbra (instaurado contra o assistente nestes autos).

            Aliás no contexto do presente incidente de recusa não se percebe a inconstitucionalidade invocada ( Cf. pontos 12 a 15 do requerimento apresentado).

            No caso presente impõe-se a análise e ponderação do estabelecido no art. 43º do Código de Processo Penal, e mesmo que este tenha, porque a tem, interligação com normas da Lei da Organização do sistema judiciário, não é esta Lei ou uma específica norma desta, que aqui está em discussão.

            Aliás, nem o requerente invoca qual a concreta norma que considera inconstitucional, e que relação tem esta com o incidente que se aprecia, limitando-se a referir “a norma da lei de Organização do sistema Judiciário, presente na lei nº 62/2013 de 16/8 é considerada inconstitucional (…)” prosseguindo com idêntico discurso, sem que nunca identifique em concreto a que norma se refere, o que impede também, por esta via, qualquer tomada de posição deste Tribunal sobre a referida inconstitucionalidade

            Renova-se que o que se discute são os fundamentos para a eventual recusa da Sra. Juíza de Direito …, que constitui um incidente processual, com reflexos naturais na simplicidade da sua tramitação e na irrecorribilidade da decisão proferida sobre o mesmo, que por isso, não se compadece nem permite a análise de matérias que extravasam, em muito, a sua dimensão e âmbito, ainda que intituladas de questões prejudiciais (mas que verdadeiramente o não são).

            Aliás, de acordo com os elementos juntos aos autos tendo o Sr. Juiz de Direito …,  tal como a Sra. Juíza …, a categoria funcional de Juízes de Direito, não exercem funções na mesma comarca, exercendo o primeiro funções – de acordo com o alegado no Tribunal da Comarca de Coimbra e a segunda no Tribunal da Comarca de Leiria.   

Vejamos então, ultrapassadas as denominadas questões prévias e prejudiciais, os fundamentos do incidente de recusa.

Apesar da extensão do requerimento apresentado os fundamentos invocados são a amizade entre a Sra. Juiz Presidente, cuja recusa de requer e o assistente Sr. Juiz de Direito …, bem como a  amizade e vínculo com a testemunha nos autos, e pai do assistente …

Na verdade, o requerente afirma, no ponto 65: “No caso específico do processo-crime em que … é arguido, é fundamental garantir que a imparcialidade do juiz que irá presidir o processo seja assegurada. A amizade entre o juiz assistente, testemunha … e a juiz-presidente do processo cria uma relação que é tida como suspeita pelo cidadão mediano, prejudica assim a equanimidade do julgamento (negrito e sublinhado nossos) Acrescentando no ponto 94: “Analisando os elementos disponíveis verifica-se que a Exma. Juíza demonstrou afeto e emoção em atos relacionados com o juiz no processo assistente, e com o … testemunha no processo e também amigo, no pedido de escusa, o que é adequado a suscitar dívidas sobre a sua imparcialidade.” (negrito e sublinhado nosso).

E ainda no ponto 97 invoca: A defesa da recusa da MM Juiz de Direito, em virtude de sua amizade com …, bem como o seu vínculo com o Conselheiro … – testemunha no processo e pai do assistente que também exerceu função de juiz na mesma comarca, deve ser fundamentada em sólidos princípios jurídicos que sustentam independência do Judiciário, pilares inegociáveis de uma justiça verdadeiramente equitativa”. (negrito e sublinhados nossos).

Ora a este propósito suscitou a Digna Procuradora Geral Adjunta a questão de estarmos perante uma situação de caso julgado resultante de ter sido já proferida decisão em incidente de escusa formulado pela Sra. Juíza ora visada.

Na verdade correu termos neste Tribunal da Relação de Coimbra o incidente de escusa com o nº 104/24.4IRCBR ( atual apenso 855/22.8T9PBL- C, disponível no Citius) o qual apreciou o requerimento de escusa formulado pela Sra. Juíza … (que foi junto ao presente requerimento) e que tinha o seguinte teor: “…, juiz de Direito no Juízo Central Criminal de Leiria, Juiz 4, vem deduzir pedido de escusa nos seguintes termos:

Foi distribuído ao Exmº Colega titular do 3º juízo o Processo nº 855/22.8T9PBL, processo comum coletivo em que é assistente o Exmº Senhor Juiz de Direito …

Ao Exmº Colega foi concedida escusa tendo-nos sido presentes os referidos autos por via do regime de substituição.

Sucede que o Exmº Colega … esteve colocado, como juiz auxiliar, neste Tribunal … no ano judicial de 2015/2016 no Juízo Central Criminal com quem manteve relação de cordialidade no exercício de funções e de franca amizade fora do Tribunal;

Outrossim, o Exmº Colega Dr. … esteve colocado no ano judicial de 2016/2017 no juízo Local Criminal de Leiria, juiz 1, como titular sendo a signatária, ao tempo, titular do juiz 2 do juízo Local Criminal de Leiria, onde se reforçou essa cordialidade e amizade.

Além do mais, a signatária foi assessoria judicial no Tribunal da Relação de Coimbra entre o ano 2000 e 2003, onde procedia no âmbito das suas funções à elaboração dos sumários dos acórdãos prolatados pelo, então, Senhor Juiz Desembargador … pai do Exmº Colega assistente nos autos e com quem também mantem relação de cordialidade e de amizade.

Entende assim a signatária que tais circunstâncias , e o facto de presidir ao julgamento em que o Exmº Colega é assistente e o Senhor seu pai testemunha, é uma das situações que corre o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade nos termos do artº 43º nº 1 e 4 do CPP.

Pelo exposto, vem requerer a V.ª Exª que lhe seja concedida escusa de intervir no Processo 855/22.8T9PBL.”

Em tal incidente foi proferido acórdão a 08.05.2024, que apreciando os fundamentos invocados decidiu “ Indeferir o pedido de escusa da Exma. Sra. Juiz …, relativamente à intervenção da mesma, como Juiz-presidente, na audiência de julgamento com intervenção do Tribunal Coletivo no âmbito do Processo Comum Coletivo nº 855/22.8T9PBL.” (Cf. processo 10424.YRCBR atual apenso 855/22.8T9PBL - C acessível através da aplicação Citius) por se ter entendido que os fundamentos invocados não constituíam motivo sério, grave e adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Sobre esta matéria da litispendência/caso julgado em face da prévia dedução de incidente de escusa, debruçou-se o acórdão do STJ de 08.11.2018 [proferido no processo nº 30/15.8TRLSB.S1-D, disponível in www.dgsi.pt] no qual se escreveu:

“I - Os processos de escusa e de recusa têm idêntica natureza e idêntico objecto. A diferente designação tem a ver com a iniciativa. Se a iniciativa parte do próprio juiz o pedido é de escusa, se partir do MP, do arguido, do assistente ou partes civis, estaremos perante uma recusa.

II - Tal significa que, se surgir um requerimento de recusa quando já esteja pendente um pedido de escusa, e se os motivos forem idênticos, se estará perante uma situação de litispendência.”

III - Num processo de escusa ou recusa não há qualquer disputa entre partes, sujeitos ou intervenientes processuais. O que se discute é a posição de um juiz perante um determinado processo, se está ou não condições de apreciar a questão sub judice com objectividade e imparcialidade ou se, independentemente de tal facto, a sua intervenção processual poderá ou não suscitar perante a comunidade graves suspeitas de falta de imparcialidade.

IV - Mesmo quando a iniciativa parta de outro sujeito processual que não o juiz, o que estará em causa e em apreço não é qualquer interesse próprio desse sujeito mas o interesse público da boa administração da justiça e a imagem da justiça perante os cidadãos.

V - Daí que o pedido de recusa possa ser formulado pelo MP, pelo arguido, assistente ou partes cíveis, que para isso terão que apresentar os necessários fundamentos mas sem que tenham que demonstrar um interesse direto ou um interesse próprio já que a recusa cumpre objectivos que estão para além dos interesses próprios de qualquer dos sujeitos processuais, não sendo a escusa e a recusa meios alternativos, cumulativos ou complementares, constituindo antes a recusa um remédio face à ausência de pedido de escusa. A recusa cumpre assim as mesmas exigências que a escusa, pressupondo a inércia do juiz.

VI - O pedido de escusa oportunamente formulado pelo Senhor Conselheiro agora visado realiza plenamente os objectivos de requerimento de recusa formulado com fundamentos idênticos e por isso, sob risco de expor o tribunal a decisões contraditórias relativamente a um mesmo pedido e num mesmo processo, o requerimento só pode ser admitido com novos fundamentos (cfr. art. 121.º, n.º 4, do CPC, aplicável por força do disposto no art. 4.º do CPP).

VII - Verificando-se que o requerimento de recusa apresentado pelos requerentes não aponta novos fundamentos que não tenham sido objecto de apreciação no pedido de escusa, limitando-se a emitir juízos de avaliação dos factos apresentados no pedido de escusa, acrescentando apenas que o aqui visado, enquanto testemunha indicada pelo Assistente, manifestou posições "sempre favoráveis à posição deste", forçoso é considerar que este facto é irrelevante já que o dever da testemunha é dizer a verdade e só a verdade (art." 91.°, n.º 1 do CPP), independentemente de o depoimento ser favorável ou desfavorável em relação a algum dos sujeitos processuais, considerando-se que não pode ser dado deferimento ao requerimento de recusa porquanto, sobre os respectivos fundamentos, se formou caso julgado.”

Ora, como acima mencionado, os fundamentos do presente incidente de recusa são a relação de amizade e cordialidade que existe com o assistente, fruto da sua permanência enquanto juiz nos anos de 2015/2017 primeiro como juiz auxiliar e depois como titular do Juiz 1 do Juízo Local Criminal estando a Sra. Juíza à data colocada no juiz 2 do mesmo Juízo Local Criminal e quanto à relação de amizade e cordialidade que manteve com … sendo aquele testemunha nos autos. E, apesar de o requerente em volta desta situação objetiva elaborar variada argumentação o certo é que os fundamentos são coincidentes com os analisados no incidente de escusa que correu termos sob o nº 104/24.4YRCBR.

Como se refere no supracitado acórdão do STJ de 08.11.2018: “ Mesmo quando a iniciativa parta de outro sujeito processual que não o juiz, o que estará em causa e em apreço não é qualquer interesse próprio desse sujeito mas o interesse público da boa administração da justiça e a imagem da justiça perante os cidadãos. Daí que o pedido de recusa possa ser formulado pelo Ministério Público, pelo arguido, assistente ou partes cíveis, que para isso terão que apresentar os necessários fundamentos mas sem que tenham que demonstrar um interesse direto ou um interesse próprio já que a recusa cumpre objectivos que estão para além dos interesses próprios de qualquer dos sujeitos processuais, não sendo a escusa e a recusa meios alternativos, cumulativos ou complementares, constituindo antes a recusa um remédio face à ausência de pedido de escusa. A recusa cumpre assim as mesmas exigências que a escusa, pressupondo a inércia do juiz [Ennio Fortuna in E. Fortuna/S. Dragone/E. Fassone/R. Giustozzi/A. Pignatelli, Manuale Pratico del Nuovo Processo Penale, 4.ª edição, Cedam, 1995, pag. 144]. Como tal, nos termos do art.º 121.º, n.º 4 do CPC, aplicável por força do disposto no art.º 4.º do CPP, “Se o juiz tiver pedido dispensa de intervir na causa, mas o seu pedido não houver sido atendido, a suspeição só pode ser oposta por fundamento diferente do que ele tiver invocado (…)” [V. também o disposto no n.º 2 do art.º 121.º do C.P.C.]. Isto porque, quanto aos fundamentos apresentados no pedido de dispensa, se constituiu caso julgado.” (Neste sentido ainda o Acórdão do STJ de 15.11.2001, processo 01P2819, cujo sumário se mostra disponível in www.dgsi.pt).

Assim, concordando com o exposto neste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, e tendo em conta o disposto no art. 121º, nº4 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 4º do Código de Processo Penal, torna-se forçoso concluir que o anterior requerimento formulado pela Sra. Juíza e o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no respetivo incidente de escusa com o nº 104/24.4YRCBR, onde foi já decidido que os fundamentos invocados não constituíam motivo grave, sério e adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, realizam plenamente os objetivos do requerimento de recusa ora formulado (com fundamentos idênticos) e, por isso, nenhuma outra decisão pode ser tomada por este Tribunal sobre tal matéria, sob pena de violação do caso julgado.


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III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam as juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- Não tomar conhecimento das “questões prejudiciais” invocadas pelo requerente por extravasarem o âmbito da decisão a proferir no presente incidente de recusa.

- Julgar verificada a exceção de caso julgado relativamente aos fundamentos do pedido de recusa formulado, o que impede o seu conhecimento.


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Coimbra, 20 de novembro de 2024.

 [Texto elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

Sandra Ferreira

(Juíza Desembargadora Relatora)

Cristina Branco

 (Juíza Desembargadora Adjunta)

Maria da Conceição Miranda

 (Juíza Desembargadora Adjunta)