I – A declaração da Autora constante do acordo de revogação do contrato de trabalho no sentido de que declara nada mais ter a receber da ARP, seja a que título for, ficando extintos, por remissão, todos e quaisquer créditos vencidos no âmbito do contrato ou emergentes da sua cessação e/ou eventual violação, sejam de que natureza forem, incluindo eventuais créditos litigiosos, presentes ou futuros, anuidades, diuturnidades ou quaisquer outros é válida, na medida em que durante a fase negocial da cessação do contrato não se verificam os constrangimentos que se podem pressupor durante a vigência da relação laboral por força da subordinação jurídica.
II – Tendo em conta o disposto no artigo 236.º do C.C., ou seja, o sentido normal da declaração, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real, possa deduzir do comportamento do declarante.
III – Se a Autora recorrente não invocou qualquer vício da vontade capaz de inquinar a sua declaração e de tornar inválido o acordo celebrado, o tribunal de 1ª instância estava em condições de avaliar o alcance da declaração de vontade da Autora em sede de despacho saneador.
(Sumário elaborado pela Relatora)
I – Relatório
AA, residente em ..., ...,
intentou a presente ação declarativa de processo comum contra
A..., SA, com sede em ...
alegando, em síntese, que em 01/09/2008, fruto do acordo celebrado entre B..., SA e a Ré A..., SA, a Autora passou a exercer as suas funções ao serviço desta última, mantendo todos os direitos adquiridos, relação que se manteve até 31/12/2022; a Ré não lhe pagou as horas de trabalho noturno (no valor total de € 14.075,08), de trabalho em dia feriado (no valor total de € 2.13,75) e ao domingo (no valor total de € 7.348,98), ao contrário do que sempre aconteceu até então; A Ré não permitiu que a A. gozasse a dispensa diária para amamentação, prestando durante esse período duas horas diárias de trabalho (no valor total de € 1.183,70) que não lhe foram pagas; a Ré não lhe pagou o trabalho prestado em período de férias, no valor total de € 199,36; a Ré deve-lhe o prémio de produtividade referente a, pelo menos, o 1º semestre do ano de 2022, no valor total de € 2.400,00; A. e Ré outorgaram “acordo de revogação de contrato de trabalho” no dia 22/06/2022, com efeito a 31/12/2022, devendo a Ré pagar-lhe a remuneração normal até esta data e a quantia ilíquida de € 11.000,00, sendo que, a Ré apenas pagou a título do acordado pela cessação, a quantia de € 8.154,58 e, em janeiro de 2023, a quantia de € 1.088,10, pelo que, deve-lhe a quantia de € 1.757,32; consta do acordo que a aqui A. declara nada mais ter a receber da Ré, seja a que título for, ficando extintos por remissão, todos e quaisquer créditos vencidos no âmbito do contrato ou emergentes da sua cessação, no entanto, a Autora não foi adequadamente informada sobre o seu possível efeito, na eventualidade de terem ocorrido, como ocorreram, violações dos normativos relativos ao pagamento da retribuição, pelo que, aquela cláusula não pode operar quanto aos créditos ora reclamados pela Autora.
Termina, formulando o seguinte pedido:
“Nestes termos e nos demais de Direito deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e consequentemente
- Ser a Ré condenada no pagamento à Autora das seguintes quantias:
a) A quantia de 14.075,08 € (catorze mil e setenta e cinco euros e oito cêntimos), a título de trabalho nocturno realizado e não pago;
b) A quantia de 7.348,98 € (sete mil trezentos e quarenta e oito euros e noventa e oito cêntimos) a título de acréscimo da retribuição devida e não paga pelo trabalho realizado aos domingos em dias feriado;
c) A quantia de 2.134,75 € (dois mil cento e trinta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos) a título de acréscimo da retribuição devida e não paga pelo trabalho realizado em dias feriado;
d) A quantia de 1.183,70 € (mil cento e oitenta e três euros e setenta cêntimos), pelo trabalho que prestou no período em que devia estar a gozar a dispensa para amamentação do seu filho BB;
e) A quantia de 199,36 € (cento e noventa e nove euros e trinta e seis cêntimos) pelo trabalho prestado durante 4 dias em pleno período de férias;
f) A quantia de 2.400,00 € (dois mil e quatrocentos euros), a título de Prémio de Produtividade relativo ao 1º semestre de 2022, e referente às duas lojas de que a Autora era responsável;
g) A quantia de 1.757,32 € (mil setecentos e cinquenta e sete euros e trinta e dois cêntimos) pelo não pagamento do valor acordado pela cessação do contrato de trabalho, acrescida de juros vencidos até esta data, no valor de 62,59 € (sessenta e dois euros e cinquenta e nove cêntimos);
O que totaliza o montante de 29.099,20 € (vinte e nove mil e noventa e nove euros e vinte cêntimos).
Valor acrescido de juros de mora vincendos desde a data da citação da Ré até integral e efectivo pagamento.”
*
Teve lugar a audiência de partes e na qual não foi obtido acordo.
*
A Ré, devidamente notificada para contestar, veio fazê-lo alegando, em síntese, que:
Com o pagamento do montante acordado de mais 5% a título de isenção de horário de trabalho a partir de 01/01/2009, a A. passou a beneficiar de um aumento na sua retribuição destinado a compensar a hipotética penosidade de trabalhar no período noturno, em dias feriados e aos domingos; é falso que a Ré tenha pedido ou exigido à Autora a prestação de trabalho em período de amamentação e em dias de férias; na avaliação efetuada a Ré entendeu que a A. não reunia os pressupostos para atribuição do prémio; a A. assinou de livre vontade o acordo revogatório do contrato de trabalho e que, por um lado, a dispensou da prestação de trabalho sem perda de retribuição desde 01/07/2022 até 31/12/2022 e, por outro, fixou o pagamento à A. da quantia de € 11.000,00, tendo sido pago à Autora a quantia total de € 19.480,18; a remissão abdicativa era admissível até 01/05/2023 e, mesmo que procedesse a tese da A., ao montante peticionado há que subtrair os € 19.480,18 já pagos, ficando o crédito remanescente em € 9.619,02.
Termina, dizendo que “improcede por não provada a presente ação judicial absolvendo-se a Ré dos pedidos”.
*
Foi proferido o despacho saneador sentença de fls. 104 e segs., com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, o Tribunal decide:
1) Absolver a Ré do pedido no que excede a quantia de €1.819,91 [1.757,32 + 62,59].
2) Condenar a Autora no pagamento das custas na proporção do decaimento.”
*
A Autora, notificada desta decisão, veio interpor o presente recurso da mesma e formulando as seguintes conclusões:
(…).
*
A Ré apresentou resposta, concluindo que:
(…).
*
O Exm.º Procurador Geral Adjunto, emitiu o douto parecer de fls. 141 e segs., no sentido de que “deve ser negado provimento ao recurso e a decisão recorrida mantida, nos seus precisos termos.”
*
Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
II – Questões a decidir
Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (artigo 639.º, n.º 1, do CPC), com exceção das questões de conhecimento oficioso.
Assim, cumpre conhecer a questão suscitada pela Autora recorrente, qual seja:
– Se a remissão abdicativa constante do acordo de revogação do contrato de trabalho é inválida e ineficaz.
*
III – Fundamentação
a) - Factos provados constantes da decisão recorrida:
1. A Autora AA celebrou contrato de trabalho sem termo com a “B..., S.A.” no dia 16-03-2007 e a partir de 01-09-2008, fruto de acordo celebrado entre a “B..., S.A.” e a Ré “A..., S.A.”, a Autora passou a exercer as suas funções ao serviço da Ré.
2. A 22-06-2022 as Partes celebraram um “ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO” [fls.69 a 70, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido], no qual consta, no que aqui releva, o seguinte:
“CONSIDERANDO QUE:
1. A A... e a Trabalhadora encontram-se vinculadas por contrato de trabalho sem termo celebrado em 16/03/2007, tendo esta a categoria profissional de Chefe de Secção, e desempenhando actualmente as funções de Responsável de Mercado SBE (Saúde e Bem Estar) nas lojas A... de ... e ...;
2. As Partes pretendem a cessação do contrato individual de trabalho que as vincula, através do presente acordo revogatório.
É celebrado o presente acordo de revogação de contrato de trabalho, nos termos do disposto nos artigos 349.º e seguintes do Código do Trabalho (Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), que se rege pelas seguintes cláusulas:
Cláusula Primeira
(Objecto e produção de efeitos)
As partes acordam em revogar o contrato de trabalho entre ambas celebrado em 16/03/2007, com efeitos a partir de 31-12-2022, data em que se considera, para todos os efeitos legais, terem cessado todos e quaisquer direitos, deveres e garantias das partes, emergentes do referido contrato.
Cláusula Segunda
(Compensação global e créditos vencidos)
1. Por força deste acordo, a Trabalhadora recebe da A..., a quantia líquida de EUR 11.000,00 (onze mil euros), como compensação pecuniária de natureza global pela cessação do seu contrato de trabalho, na qual se incluem os créditos laborais anteriormente vencidos e os créditos laborais vencidos em consequência da cessação do contrato de trabalho, como proporcionais de férias, de subsídio de férias e de subsídio de Natal, e da qual dá quitação em documento separado, nada mais havendo, reciprocamente, a exigir.
2. A quantia referida no número anterior será paga, uma vez feitos os descontos legais, por transferência bancária para o IBAN da Trabalhadora que a A... conhece, até ao dia 31-12-2022.
3. Com o pagamento da quantia referida no número 1, a Trabalhadora declara nada mais ter a receber da A..., seja a que título for, ficando extintos, por remissão, todos e quaisquer créditos vencidos no âmbito do contrato ou emergentes da sua cessação e/ou eventual violação, sejam de que natureza forem, incluindo eventuais créditos litigiosos, presentes ou futuros, anuidades, diuturnidades ou quaisquer outros.
...
Cláusula Nona
(Revogação do Acordo)
Nos termos da nova redacção do artigo 349.º, n.º 3 do Código do Trabalho, ex vi da Lei n.º 73/2017, de 16 de Agosto, a Trabalhadora pode fazer cessar o presente acordo de revogação mediante comunicação escrita dirigida à A..., até ao sétimo dia seguinte à data da respectiva celebração.
Este acordo é celebrado em duplicado e vai assinado pelas partes, por ser a expressão fiel da sua vontade, ambos valendo como original.”.
*
*
b) - Discussão
Se a remissão abdicativa constante do acordo de revogação do contrato de trabalho é inválida e ineficaz.
Alega a recorrente que:
- No caso em apreço, o ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO outorgado entre Autora e Ré no dia 22 de junho de 2022, e pelo qual o Tribunal a quo entendeu ter aquela remitido qualquer crédito que pudesse ter sobre a Ré relacionado com o contrato de trabalho, foi outorgado na vigência do contrato de trabalho.
- O contrato de trabalho manteve-se vigente por mais seis meses, uma vez que o contrato apenas cessou no dia 31 de dezembro de 2022, pelo que, não pode haver disponibilidade de créditos provenientes de contrato de trabalho.
- Tendo que ser considerado inválido e ineficaz o ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO na parte em que está em causa a remissão abdicativa dos créditos laborais por parte da Autora.
- Sempre teria o Tribunal a quo que avaliar a real vontade da Autora aquando da outorga do ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO, nomeadamente no que respeita à remissão abdicativa dos créditos laborais que teria, ou poderia ter, a reivindicar da Ré.
- Tem que se olhar para a declaração e para o circunstancialismo em que foi produzida e interpretar a declaração negocial no sentido de apurar se existe efetivamente uma remissão abdicativa.
- No caso em apreço trata-se de uma renúncia global, mas discriminando, ainda assim, os que se encontram incluídos na compensação e, consequentemente, aos que se renuncia.
- Mesmo após a rutura do contrato de trabalho - que não foi caso -, o consentimento do trabalhador a uma cláusula com uma fórmula geral e imprecisa [a renúncia a todos os direitos] dificilmente permite concluir que o mesmo foi esclarecido relativamente ao conjunto de direitos futuros ou eventuais.
- Trata-se de uma renúncia a direitos que o trabalhador nem sequer tem a obrigação de conhecer - não é jurista e pode não saber ou sequer suspeitar, no momento da declaração, que está a ser vítima de um incumprimento e violação de normativos, de forma reiterada, por parte do empregador.
- A Autora não foi adequadamente informada sobre o seu possível efeito, na eventualidade de terem ocorrido, como ocorreram, violações reiteradas dos normativos relativos, nomeadamente, à retribuição do trabalho noturno, trabalho aos domingos, e trabalho aos feriados, bem como à dispensa para amamentação, direito à não interrupção das férias, bem como direito à não discriminação no que respeita à retribuição, designadamente ao recebimento do Prémio de Produtividade.
- Os créditos discriminados no Acordo de Revogação de Contrato de Trabalho, que se alegam estar incluídos na compensação, nada têm a ver com os créditos que a Autora veio reclamar, pelo que, não pode tal cláusula operar quanto a estes.
- No caso concreto, saber se a declaração da Autora deve ser entendida como integrada num contrato de remissão abdicativa pressupõe sempre a análise, pelo Tribunal a quo, da prova produzida e a produzir na audiência de discussão e julgamento, pelo que, não poderia o Tribunal a quo decidir pela validade e eficácia da remissão abdicativa dos créditos laborais por parte da Autora em sede de Despacho Saneador, pelo facto de não estar em condições de avaliar o alcance da vontade real da declaração negocial da Autora aquando da outorga do Acordo de Revogação de Contrato de Trabalho.
Por outro lado, a este propósito consta da decisão recorrida, além do mais, o seguinte:
“É pacífico para as Partes e para o Tribunal que o “ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO” que as Partes celebraram a 22-06-2022 incluiu um contrato de remissão abdicativa, previsto no art.º 863.º/1 do CC: “O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor.”.
(…)
Para que se forme este contrato de remissão é necessária a verificação de duas declarações negociais: uma proferida pelo credor – declarando renunciar ao direito de exigir a prestação – e outra por banda do devedor – declarando aceitar aquela renúncia.
No caso concreto, em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por diferente e melhor juízo, é manifesto que a Autora declarou que nada mais tinha a reclamar da Ré no âmbito da relação laboral que mantiveram, pelo que, por via deste contrato de remissão abdicativa, a aqui Autora manifestou a sua vontade (aceite pela aqui Ré) de abdicar de eventuais créditos que pudesse ter sobre a aqui Ré cuja fonte obrigacional fosse o contrato de trabalho que vigorou e cessou entre as Partes.
É este, à luz do art.º 236.º CC, o único sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real, pode deduzir da declaração negocial da aqui Autora.
Por outro lado, a Autora não invocou qualquer vício que tenha inquinado a sua vontade livremente declarada no “ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO” e pelo qual renunciou a reclamar da Ré qualquer direito relacionado com o contrato de trabalho cessado e no qual declarou que o acordado era a expressão fiel da sua vontade.
É certo que a Autora alega agora falta de conhecimento sobre os seus direitos, sendo certo que não procedeu – como poderia ter feito – à revogação do “ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO” nos 7 dias seguintes à data da sua celebração, à luz do art.º 350.º CT; direito em relação ao qual estava perfeitamente ciente por ter ficado expressamente mencionado na cláusula 9.ª do “ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO”.
Deste modo, mesmo que se demonstrasse a alegada falta de informação, não teria a mesma a virtualidade de configurar qualquer erro-vício ou erro-motivo que pudesse conduzir à nulidade do celebrado contrato de remissão abdicativa.
(…)
Em síntese, em princípio, os eventuais direitos que na presente Acção a Autora pretendia fazer valer contra a Ré encontram-se extintos desde a celebração do “ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO”, pelo qual a Autora remitiu qualquer crédito que pudessem ter sobre a Ré relacionado com o contrato de trabalho.
Sobre a aplicação da lei no tempo:
O “ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO” foi celebrado pelas Partes a 22-06-2022.
Porém, a Lei n.º 13/2023, de 03/04, veio introduzir uma nova norma no art.º 337.º CT, passando este a dispor de um número 3 no qual se estabelece que:
“O crédito de trabalhador, referido no n.º 1, não é suscetível de extinção por meio de remissão abdicativa, salvo através de transação judicial.”.
Esta alteração legal entrou em vigor a 01-05-2023.
Assim, desde esta data, deixou de ser possível, como era até então, que o trabalhador, por outra forma que não uma transacção judicial (ou forma equiparada), procedesse à extinção dos seus créditos emergentes de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação através de remissão abdicativa.
Porém, como decorre do art.º 12.º/1 CC: “A lei só dispõe para o futuro; ainda que, lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.”. Igualmente, o art.º 35.º/1 da L.13/2023 veio estabelecer que: “Ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento.”.
No caso concreto, o “ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO” foi celebrado pelas Partes a 22-06-2022 e produziu todos os seus efeitos até 31-12-2022, pelo que não é a validade e eficácia do contrato de remissão abdicativa por ele celebrado afectada pela circunstância de não ter sido celebrado através de transacção judicial, pois tal requisito formal apenas passou a ser exigido para as remissões abdicativas posteriores a 01-05-2023.
Em conclusão, deverá improceder o pedido formulado pela Autora em tudo o que excede a parte da quantia que tem a haver à luz do “ACORDO DE REVOGAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO” e que alega que não lhe foi paga.
Com efeito, a Autora alega que não recebeu a totalidade da quantia líquida de €.11.000,00, mas apenas e só a quantia de €.9.242,68; facto que é negado pela Ré.”
Apreciando:
Antes de mais cumpre dizer que acompanhamos a sentença recorrida no que respeita à questão da aplicação da lei no tempo que, aliás, não foi impugnada pela recorrente.
Quanto ao mais:
Resulta da matéria de facto provada que em 22/06/2022, a Autora assinou o acordo de revogação do contrato de trabalho junto aos autos e do qual consta, além do mais:
“As partes acordam em revogar o contrato de trabalho entre ambas celebrado em 16/03/2007, com efeitos a partir de 31-12-2022, data em que se considera, para todos os efeitos legais, terem cessado todos e quaisquer direitos, deveres e garantias das partes, emergentes do referido contrato.
(…)
1. Por força deste acordo, a Trabalhadora recebe da A..., a quantia líquida de EUR 11.000,00 (onze mil euros), como compensação pecuniária de natureza global pela cessação do seu contrato de trabalho, na qual se incluem os créditos laborais anteriormente vencidos e os créditos laborais vencidos em consequência da cessação do contrato de trabalho, como proporcionais de férias, de subsídio de férias e de subsídio de Natal, e da qual dá quitação em documento separado, nada mais havendo, reciprocamente, a exigir.
2. A quantia referida no número anterior será paga, uma vez feitos os descontos legais, por transferência bancária para o IBAN da Trabalhadora que a A... conhece, até ao dia 31-12-2022.
3. Com o pagamento da quantia referida no número 1, a Trabalhadora declara nada mais ter a receber da A..., seja a que título for, ficando extintos, por remissão, todos e quaisquer créditos vencidos no âmbito do contrato ou emergentes da sua cessação e/ou eventual violação, sejam de que natureza forem, incluindo eventuais créditos litigiosos, presentes ou futuros, anuidades, diuturnidades ou quaisquer outros.
Por outro lado, e sob a epígrafe “cessação do contrato de trabalho por mútuo acordo”, resulta do n.º 5 do artigo 349.º o CT, que “se, no acordo ou conjuntamente com este, as partes estabelecerem uma compensação pecuniária global para o trabalhador, presume-se que esta inclui os créditos vencidos à data da cessação do contrato ou exigíveis em virtude desta.”[2]
Significa isto que a lei estabeleceu uma presunção ilidível[3] no sentido de a compensação global incluir todos os créditos vencidos à data da cessação do contrato, sendo certo que, recai sobre o trabalhador o ónus de provar não só a existência do crédito que peticiona bem como que o mesmo foi excluído daquela[4].
Como já referimos, resulta do próprio texto do acordo de revogação do contrato de trabalho celebrado pela A. e Ré que o mesmo foi assinado em 21/06/2022 mas tendo acordado os outorgantes em fazer cessá-lo com efeitos a partir de 31/12/2022 e, ainda, que a trabalhadora declara nada mais ter a receber da A..., seja a que título for, ficando extintos, por remissão, todos e quaisquer créditos vencidos no âmbito do contrato ou emergentes da sua cessação e/ou eventual violação, sejam de que natureza forem, incluindo eventuais créditos litigiosos, presentes ou futuros, anuidades, diuturnidades ou quaisquer outros.
Por outro lado, <<o credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor>> - n.º 1, do artigo 863.º, do C.C.
Como resulta deste normativo, a remissão tem natureza contratual.
<<A obrigação extingue-se sem chegar a haver prestação.
Na remissão é o próprio credor quem com a aquiescência embora do devedor, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse, que a lei lhe conferia. (…)
A remissão da dívida é, por conseguinte, a renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com a aquiescência da contraparte.
(…) Ficou, de facto, bem assente no texto definitivo do artigo 863.º, que a remissão necessita de revestir a forma de contrato (embora a aceitação da proposta contratual do remitente se possa considerar especialmente facilitada pelo disposto no art. 234.º, quer se trate de remissão donativa, quer de remissão puramente abdicativa. (…)
Não basta, por conseguinte, a declaração abdicativa ou renunciativa do credor para extinguir a obrigação. Esse efeito só resulta do acordo entre os dois titulares da relação creditória, ainda que a lei seja especialmente aberta à prova da aceitação do devedor (art. 234.º)>>[5].
Acresce que, os créditos laborais são irrenunciáveis e indisponíveis mas apenas durante a relação laboral, constituindo jurisprudência unânime o entendimento de que a remissão abdicativa é aplicável às relações laborais sendo, no entanto, nula qualquer declaração deste teor durante a vigência da relação laboral.
Como se refere no acórdão do STJ de 25/11/2009[6]:
<<(…) II – Como contrato que é, a “remissão” exige o necessário consenso entre as partes e, daí a emissão de, pelo menos, duas declarações negociais: uma delas a cargo do credor – declarando renunciar ao direito de exigir a prestação – e a outra por banda do devedor – declarando aceitar aquela renúncia – podendo, esta, ser tácita.
III – Este tipo de declaração é normalmente emitido aquando do acerto de contas após a cessação do contrato: o empregador paga determinada importância, exigindo em troca a emissão daquela declaração, a fim de evitar futuros litígios e, por sua vez, o trabalhador aceita passar essa declaração em troca da quantia que recebe, evidenciando-se, assim, um verdadeiro acordo negocial, com interesse para ambas as partes.
IV – É entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça que o contrato de “remissão abdicativa” tem plena aplicação no domínio das relações laborais, designadamente quando as partes se dispõem a negociar a cessação do vínculo pois, nessa fase, já não colhe o princípio da indisponibilidade dos créditos laborais, que se circunscreve ao período de vigência do contrato de trabalho, o que não exclui que tal contrato não possa ser tido como inválido, sempre que concorra um vício na declaração da vontade, seja ele intrínseco ao agente ou motivado por terceiros.
(…)
X – A admissibilidade da disponibilidade creditícia pós-laboral conforma-se com os parâmetros constitucionais, não só porque a sua inadmissibilidade levaria ao absurdo de se concluir que os acordos de cessação do contrato de trabalho entre a entidade empregadora e o trabalhador seriam sempre irrelevantes, apesar de estarem expressamente previstos na lei como uma das modalidades da cessação da relação laboral (art. 393.º CT de 2003) mas também porque, nessa altura, o trabalhador não está já sujeito aos constrangimentos da subordinação que o inibiam contratualmente durante o período vinculístico.>>
Ora, como já referimos, o acordo de revogação do contrato de trabalho da Autora foi assinado em 22/06/2022 mas as partes acordaram em fazer cessar o mesmo com efeitos a partir de 31/12/2022, pelo que, impõe-se a seguinte questão:
A citada indisponibilidade dos créditos laborais mantém-se quando o trabalhador decidiu negociar a sua desvinculação?
Pensamos que não.
Na verdade, como se decidiu no acórdão do STJ, de 16/01/2008, disponível em www.dgsi.pt:
<<A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem pacificamente entendendo que o contrato de “remissão abdicativa” tem plena aplicação no domínio das relações laborais, designadamente quando o trabalhador se predispõe a negociar a cessação do contrato de trabalho.
Nessa fase – como sublinha o Acórdão desta Secção de 11/10/05 (Proc. n.º 1763/05) – já não colhe o princípio da indisponibilidade dos créditos laborais, que se circunscreve ao período de vigência do contrato de trabalho.
Mais sublinha o referido Aresto:
“Qualquer outro entendimento levaria ao absurdo de se concluir que os acordos de cessação do contrato de trabalho entre a entidade empregadora e o trabalhador seriam sempre irrelevantes – porquanto o trabalhador nunca poderia dispor dos seus direitos – isto apesar de estarem expressamente previstos na lei como uma das modalidades da cessação da relação laboral (cfr. arts. 7º e 8º da L.C.C.T.)”.
O que se deixa dito não exclui, todavia e à semelhança do que acontece em qualquer contrato, que o mesmo não possa ser tido como inválido, sempre que concorra um vício na declaração da vontade, designadamente a existência de um erro reportado à ignorância do direito a créditos salariais que, ulteriormente, se vêm reclamar.>>[7]
Também neste sentido se decidiu, num caso idêntico ao ora em apreciação, no acórdão da RL, de 13/07/2010, disponível em www.dgsi.pt:
<<No caso vertente, a referida declaração abdicativa, embora tenha sido assinada antes da cessação efectiva do contrato de trabalho, tinha como pressuposto o acordo de cessação desse contrato, que produziria os seus efeitos na data daquela cessação. Resulta assim que a cláusula em causa tinha como pressuposto a cessação do contrato, pelo que a trabalhadora não se encontrava numa situação psicologicamente inibidora que a impedisse de reclamar quaisquer créditos dado que estava a negociar um acordo de cessação do contrato em que deixaria de estar vinculada à ré, ou seja, a sua liberdade negocial não estava constrangida por força da relação laboral, em resultado do medo de poder vir a ser prejudicado na sua situação profissional pois que estava a negociar a cessação dessa relação.
Mas ainda assim, nos termos do art.º1, n°1 da Lei n.º38/96 de 31.08, o acordo de cessação do contrato de trabalho pode ser revogado por iniciativa do trabalhador até ao segundo dia útil seguinte à data de produção dos seus efeitos, mediante comunicação escrita à entidade empregadora. Assim, se alguma das declarações constantes do acordo rescisório não correspondessem à livre vontade da recorrente, sempre podia ter revogado o aludido Acordo, o que também não sucedeu, sendo certo que a autora não alegou quaisquer vícios de vontade nas declarações em causa, designadamente erro, coacção ou até falta de consciência dos seus direitos, cuja prova sempre lhe competira produzir, nos termos do art.º 342 n.º2 do CCivil.
Deste modo, concluímos que a declaração da autora, de que nada mais tinha a receber da Refer, constante na cl.3ª do acordo revogatório do contrato de trabalho, é plenamente válida e eficaz, em virtude do trabalhador já não estar em situação psicologicamente inibidora que o impedisse de reclamar quaisquer créditos contra a mesma; já perfilhamos este entendimento no acórdão proferido em 29.6.2005, proc n.º10290/04-4, no mesmo sentido, neste Tribunal da Relação, vide o Acórdão de 26.01.05, proferido no proc. n.º 9733/04, e o proferido em 27.05.2009 proc. n.º3475/07.3TTLSDBL1-4, os dois na Internet www dgsi.pt.
Mais recentemente o STJ, no acórdão proferido em 29.11.2009, proc.n.º274/07.6TTBRR.S1, também disponível na Internet, dgsi, escreveu-se:
“É entendimento deste Supremo Tribunal que o contrato de “remissão abdicativa” tem plena aplicação no domínio das relações laborais, designadamente quando as partes se dispõem a negociar a cessação do vínculo pois, nessa fase, já não colhe o princípio da indisponibilidade dos créditos laborais, que se circunscreve ao período de vigência do contrato de trabalho, o que não exclui que tal contrato não possa ser tido como inválido, sempre que concorra um vício na declaração da vontade, seja ele intrínseco ao agente ou motivado por terceiros.”
Acompanhamos este entendimento, pelo que, ao contrário do alegado pela recorrente, a declaração da Autora no sentido de que declara nada mais ter a receber da A..., seja a que título for, ficando extintos, por remissão, todos e quaisquer créditos vencidos no âmbito do contrato ou emergentes da sua cessação e/ou eventual violação, sejam de que natureza forem, incluindo eventuais créditos litigiosos, presentes ou futuros, anuidades, diuturnidades ou quaisquer outros é válida pois, durante a fase negocial da cessação do contrato não se verificam os constrangimentos que se podem pressupor durante a vigência da relação laboral por força da subordinação jurídica.
Aqui chegados, importa apreciar as alegações da recorrente no sentido de que sempre teria o tribunal de avaliar a real vontade da Autora aquando da outorga do acordo no que respeita à remissão abdicativa dos créditos que poderia reivindicar da Ré; de que a Autora não foi adequadamente informada sobre o seu efeito; de que os créditos discriminados no acordo de revogação nada têm a ver com os reclamados pela Autora na presente ação e de que não podia o tribunal a quo decidir pela validade e eficácia da remissão abdicativa no despacho saneador por não estar em condições de avaliar o alcance da vontade real da declaração da Autora.
E desde já avançamos que não acompanhamos a recorrente.
Na verdade, como já referimos, a lei estabeleceu uma presunção ilidível no sentido de que a compensação global inclui todos os créditos vencidos à data da cessação do contrato.
Por outro lado, a Autora, no citado acordo, declarou nada mais ter a receber da A..., seja a que título for, ficando extintos, por remissão, todos e quaisquer créditos vencidos no âmbito do contrato ou emergentes da sua cessação e/ou eventual violação, sejam de que natureza forem, incluindo eventuais créditos litigiosos, presentes ou futuros, anuidades, diuturnidades ou quaisquer outos.
Ora, tendo em conta o disposto no artigo 236.º do C.C., ou seja, o sentido normal da declaração, sendo que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real, possa deduzir do comportamento do declarante, entendemos que a Autora, com a citada declaração, quis dizer que com o pagamento da quantia de € 11.000,00 (como compensação pecuniária de natureza global pela cessação do seu contrato de trabalho, na qual se incluem os créditos laborais anteriormente vencidos e os créditos laborais vencidos em consequência da cessação do contrato de trabalho, como proporcionais de férias, de subsídio de férias e de subsídio de Natal, e da qual dá quitação em documento separado, nada mais havendo, reciprocamente, a exigir), nada mais tem a receber, seja a que título for, ficando extintos todos os créditos vencidos no âmbito do contrato ou emergentes da sua cessação ou violação, sejam de que natureza forem, ou seja, faz-se referência expressa tanto aos créditos emergentes da execução do contrato como aos resultantes da cessação.
A declaração da Autora tem de ser interpretada no sentido de abranger todos os créditos resultantes quer da execução do contrato, quer da sua cessação.
Acresce que, também não colhe a alegação da recorrente no sentido da falta de informação adequada, posto que, ficou a constar do acordo de revogação que a trabalhadora podia fazer cessar o mesmo mediante comunicação escrita dirigida à Ré, até ao sétimo dia seguinte à data da respetiva celebração, ou seja, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 350.º do CT.
E, por fim, impõe-se dizer que a recorrente não invocou qualquer vício da vontade capaz de inquinar a sua declaração e de tornar inválido o acordo celebrado, pelo que, ao contrário do que alega, o tribunal de 1ª instância estava em condições de avaliar o alcance da declaração de vontade da Autora.
Concluímos, assim, tal como consta da decisão recorrida que a declaração da Autora suprarreferida configura um contrato de remissão abdicativa no sentido de abranger todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e, consequentemente, os eventuais créditos da Autora peticionados nos presentes autos encontram-se extintos no que excede a quantia de € 1.819,91.
Improcedem, assim as conclusões da Autora recorrente.
*
Face ao exposto, improcedem as conclusões formuladas pela recorrente, impondo-se a manutenção da decisão recorrida.
*
*
IV – Sumário[8]
(…).
*
*
V – DECISÃO
Nestes termos, sem outras considerações, na total improcedência do recurso acorda-se em julgar improcedente a apelação mantendo-se a decisão recorrida.
*
Custas a cargo da Autora recorrente.
*
_____________________
(Paula Maria Roberto)
____________________
(Felizardo Paiva)
____________________
(Mário Rodrigues da Silva)