I-Extinto, por prescrição, o direito de acção cambiária corporizado numa letra, pode esta ainda assim ser usado como quirógrafo da relação causal subjacente à sua emissão, integrado no elenco dos documentos particulares previstos no artº 703, al. c) do C.P.C., desde que verificadas as seguintes situações: a execução seja movida pelo credor originário contra o devedor originário e para execução da obrigação fundamental (subjacente); esta não exija forma especial; da letra resulte a causa da obrigação ou, não resultando, tenha sido alegada no requerimento executivo.
II- Só preenche o ónus de alegação a cargo do exequente, a indicação, ainda que de forma sumária, dos factos constitutivos do direito do credor, não bastando uma referência genérica à causa da subscrição da letra, nem a remessa para documentos por estes constituírem meio de prova e não suprirem o ónus de alegação de factos.
III-A omissão de indicação da causa subjacente, não pode ser suprida por via da contestação aos embargos de executado.
IV- Intentada execução de uma letra, prescrita a obrigação cambiária, não poderá esta valer como documento quirógrafo da obrigação principal contra o demandado na qualidade de avalista, pois que o aval constitui uma figura exclusiva do direito de acção cambiário.
V- Em qualquer caso, constituindo a relação causal a celebração de um contrato de ALD, sujeito a forma escrita de acordo com as especificações obrigatórias do artº 9, nº1 do D.L. 181/2012, de 6 de Agosto, não pode este ser substituído pela letra enquanto documento quirógrafo da obrigação por aquele titulada.
( Sumário elaborado e da responsabilidade da Relatora)
Recorrida: AA
Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves
Juízes Desembargadores Adjuntos: Sílvia Pires
António Domingos Pires Robalo
RELATÓRIO
*
“I – Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. ( ) proferida pelo Juízo de Execução de Soure – J... que julgou totalmente procedentes os embargos de executado, determinando a extinção da execução contra a Embargante, fundando a douta decisão na verificação da prescrição do direito cartular e do aval que garantia o seu pontual cumprimento, entendendo não ter sido validamente alegado que a Embargante tenha garantido pessoalmente a relação subjacente.
II – Conforme resulta do requerimento executivo e consta aliás do n.º 5 dos factos provados, foi expressamente referido que a referida letra “constitui título executivo bastante, de acordo com o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 703º do Código de Processo Civil, sendo certa, líquida e exigível a dívida nela constante pelos factos também acima descritos e em face dos documentos juntos”.
III – Ou seja, a Exequente, no seu requerimento executivo, faz expressa menção à disposição legal que permite que os títulos de crédito sejam títulos executivos enquanto quirógrafos, e, conforme aí exigido, alegou precisamente os factos constitutivos da relação subjacente.
IV – De facto, conforme resulta também dos factos provados, a Exequente alegou a celebração do contrato e o seu incumprimento, bem como as interpelações e, em consequência, o preenchimento da letra. Resulta da mera leitura do contrato, que foi junto ao requerimento executivo como documento n.º 2 e aí dado por integralmente reproduzido, que a Embargante se constituiu fiadora – basta atentar na primeira página do contrato, no n.º 8 das condições particulares, onde se refere “FIADOR(ES): Declaro(amos) que aceito(amos) ser fiador(es) deste contrato de ALD e ter sido informado(s) por este do montante das rendas, bem como das cláusulas constantes do verso do presente contrato, que declaro(amos) conhecer e aceitar, pelo que nos obrigamos como fiador(es) e principais pagador(es) pelas obrigações dele emergentes”, tendo a Embargante aposto a sua assinatura imediatamente por baixo.
V – Assim como foi alegado – e demonstrado, através da junção do respetivo documento que é o contrato celebrado entre as partes –, no art. 4.º dos factos alegados no requerimento executivo, que “a letra junta como documento 1 foi estritamente preenchida em obediência ao pacto de preenchimento constante do contrato de aluguer nº ...75, celebrado entre a ora aqui Exequente e a sociedade B..., Lda. e os aqui Executados em 31.03.2004, e que à mesma está subjacente”.
VI – Neste sentido, e estando em causa situação muito similar à dos presentes autos, veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 11.02.2020 no âmbito do Proc. 2841/18.3T8PRT-A.P2:
“I - Nos termos do artigo 703.º, alínea c), do Código de Processo Civil, a livrança pode ainda ser título executivo depois de prescrita, enquanto quirógrafo, desde que “os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.
II – Junto com o requerimento executivo um contrato de mútuo onde os avalistas da livrança se responsabilizam na qualidade de fiadores como garantes da dívida mutuada e sendo alegado, e provado, pela exequente que a livrança foi estritamente preenchida em obediência ao pacto de preenchimento constante do referido contrato de mútuo terá que entender-se constituir a dita livrança um título executivo, enquanto quirógrafo.”.
VII – Ou seja, não pode aceitar-se que se entenda que a letra foi executada contra a executada sem que tivesse sido invocado que a mesma era também parte na relação subjacente. Pois que basta a mera leitura do requerimento executivo para concluir ter sido alegado que o contrato foi celebrado “entre a ora aqui Exequente e a sociedade B..., Lda. e os aqui Executados em 31.03.2004”.
VIII – De facto, ao longo de toda a exposição de factos do requerimento executivo foi alegada a relação subjacente (o contrato celebrado com todas as partes). A este propósito, veja-se o art. 5.º dos factos alegados no requerimento executivo: “A livrança foi entregue à Exequente devidamente assinada pelos subscritores, aquando da celebração do contrato referido, a título de caução, e como garantia do cumprimento de todas as obrigações decorrentes do contrato, destinando-se a ser preenchida em caso de incumprimento do contrato pelo valor que então se mostrasse em dívida”. (sublinhado nosso)
IX – No requerimento executivo foi devidamente alegada e provada a existência da relação subjacente, não podendo entender-se, à luz das regras de interpretação, que a intenção do Exequente era a de executar apenas o aval, resultando claro da análise quer do alegado no requerimento executivo, quer dos documentos ao mesmo juntos, que a letra foi executada enquanto quirógrafo porque a Embargante era de facto não só garante da letra, mas também do contrato à mesma subjacente.
X – Se a intenção da Exequente fosse executar a letra por si e não enquanto quirógrafo, bastar-se-ia com a alegação de que era legítima portadora da letra dada à execução e de que a mesma, apresentada a pagamento, não tinha sido paga, não sendo necessária a alegação de qualquer relação subjacente, nem a junção de quaisquer outros documentos além da própria letra. Se a Exequente alegou a relação subjacente, foi precisamente porque, nos termos do disposto no art. 703.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil – que a Exequente expressamente invoca no art. 12.º dos factos alegados no requerimento executivo – para que a letra seja título executivo bastante é necessária a alegação da relação subjacente.
XI – Pelo que andou mal a douta sentença quando, em face da alegação vertida no requerimento executivo e bem assim dos documentos juntos, entendeu não ter sido alegada a relação subjacente à letra e que permitia a execução da mesma enquanto quirógrafo.
XII – Em face dos factos provados, designadamente o facto provado 5.º, não podia o Mmo. Juiz a quo ter julgado não existir título executivo, nos termos do disposto no art. 703.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
XIII – Devendo a douta decisão ser revogada, sendo substituída por outra que julgue improcedente a exceção de prescrição da obrigação exequenda e, em consequência, julgue totalmente improcedentes os embargos de executado.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO E SEMPRE COM O MUI DOUTO
SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, MUI VENERANDOS DESEMBARGADORES, ROGA-SE SEJA REVOGADA A DOUTA SENTENÇA DE FLS.( ), QUE JULGOU PROCEDENTES OS EMBARGOS DE EXECUTADO, POR OUTRA QUE DETERMINE A IMPROCEDÊNCIA DOS EMBARGOS, ASSIM SE FAZENDO BOA E SÃ JUSTIÇA.”
*
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]
Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar se:
a) se extinta a obrigação cambiária, por prescrição, pode ainda assim a letra valer como título executivo, por terem sido alegados os factos constitutivos da obrigação causal.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
“1. No dia 25/03/2023, o exequente instaurou acção executiva na forma ordinária, entre o mais, contra a embargante, para pagamento da quantia de 26.754,83 €.
2. Do campo do requerimento executivo denominado “Finalidade da Execução”: constam os seguintes dizeres: “Pagamento de Quantia Certa - Letras, livranças e cheques [Execuções]”.
3. Do campo do requerimento executivo denominado “Título Executivo”, constam os seguintes dizeres: “Letra”.
4. O título dado à execução é um documento denominado “letra”, contendo, além do mais, os seguintes dizeres: a. Importância: 19.776,51 €;
b. Vencimento: 02/10/2014;
c. Local e data de emissão: ...; 24/09/2014;
d. Valor: contrato de aluguer nº ...75;
e. Assinatura do sacador: Assinatura sob carimbo do representante do aqui embargado;
f. No local destinado ao aceite, consta aposta, de forma transversal, a assinatura da embargante, sob carimbo da sociedade B..., Lda.;
g. No verso, consta a assinatura da embargante, antecedida dos dizeres manuscritos “Bom para aval”;
5. No campo do requerimento executivo destinado à exposição dos factos, consta o seguinte:
“1º - A Exequente é uma sociedade anónima que tem por objecto o exercício da actividade bancária em geral e de locação financeira e aluguer de veículos.
2º - A Exequente é dona e legítima possuidora de uma letra com data de vencimento em 02.10.2014, no montante de € 19.776,51, avalizada pelos Executados, conforme DOCUMENTO Nº 1 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
3º - De acordo com o disposto nos artigos 30.º a 32.º da LULL, aplicável por remissão do art.º 77.º do mesmo diploma, os avalistas são responsáveis da mesma maneira que as pessoas por eles afiançadas, pelo que os Executados são parte legítima para a presente execução.
4º - A letra junta como documento 1 foi estritamente preenchida em obediência ao pacto de preenchimento constante do contrato de aluguer nº ...75, celebrado entre a ora aqui Exequente e a sociedade B..., Lda. e os aqui Executados em 31.03.2004, e que à mesma está subjacente, contrato que aqui se junta como DOCUMENTO Nº 2 e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
5º - A livrança foi entregue à Exequente devidamente assinada pelos subscritores, aquando da celebração do contrato referido, a título de caução, e como garantia do cumprimento de todas as obrigações decorrentes do contrato, destinando-se a ser preenchida em caso de incumprimento do contrato pelo valor que então se mostrasse em dívida.
6º - Tendo o contrato chegado ao seu termo sem que tivessem sido cumpridas todas as obrigações do mesmo decorrentes, os Executados foram devidamente interpelados para a regularização do valor em dívida através de cartas aos mesmos remetidas em 06.12.2010, conforme DOCUMENTOS Nºs 3 e 4 que aqui se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
7º - Na referida carta foram peticionados os valores dos alugueres vencidos e não pagos, respetivos juros e despesas, no montante de € 4.587,93.
8º - Por força do término do contrato e nos termos do mesmo, a locatária estava também obrigada à restituição do veículo objeto do contrato.
9º - Não tendo sido cumprida a obrigação de restituição do veículo, a locatária e os aqui Executados incorreram na obrigação de pagamento de uma penalização nos termos do disposto na cláusula 17 do contrato, que em 24.09.2014, aquando do preenchimento da letra, se fixava em € 14.359,73.
10º - Pelo que em 24.09.2014 foi preenchida a letra pelo montante então em dívida e decorrente do incumprimento do contrato celebrado que nessa data se fixou em 19.776,51, tendo os Executados sido devidamente informados e interpelados para o seu pagamento, conforme carta aos mesmos remetida cuja cópia aqui se junta como DOCUMENTO Nº 5.
11º - Face à letra, tem a Exequente o direito de haver dos Executados o montante em dívida de € 19.776,51, acrescido dos respectivos juros de mora, vencidos à taxa legal de 4% ao ano desde a data do vencimento da livrança em 02.10.2014 e que até 25.03.2023 se fixam em € 6.709,93; bem como tem direito ao correspondente imposto de selo sobre os juros no montante de € 268,40.
12º - A mencionada letra constitui título executivo bastante, de acordo com o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 703º do Código de Processo Civil, sendo certa, líquida e exigível a dívida nela constante pelos factos também acima descritos e em face dos documentos juntos.
13º - Até à presente data os Executados não procederam ao pagamento da quantia titulada pela letra supra junta.”
Cumpre-nos apreciar em primeiro lugar
-se a extinção da obrigação cambiária por prescrição determina tout court a extinção da execução.
O art. 70 da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, dispõe que "Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento" (nº. 1) e que "As acções do portador contra os endossantes e contra o sacador prescrevem num ano, a contar da data do protesto feito em tempo útil, ou da data do vencimento, se se trata de letra contendo a cláusula “sem despesas” (nº. 2) .
Assim, o prazo de prescrição das obrigações cambiárias conta-se desde a data do vencimento da letra, pelo que tendo decorrido mais de três anos, desde essa data mostra-se prescrita a obrigação cambiária, o que o recorrente não contesta.
A prescrição da obrigação cambiária extingue a obrigação cartular, mas já não a obrigação causal, o que constitui um corolário do princípio da autonomia da obrigação cartular face à obrigação que lhe subjaz. É questão que se mostra resolvida desde o Assento nº 5/1936, de 08/05/1936 que declarou, embora na vigência do artº 339 do Código Comercial que “A prescrição a que se refere o artigo 339 do Codigo Comercial não abrange a da obrigação constante da letra”, ou seja, a prescrição da obrigação cartular não atinge a obrigação derivada da relação subjacente, entendimento que permanece válido e intocável face ao disposto no artº 70 da LULL
Com efeito, os títulos de crédito, possuem determinados requisitos próprios que se consubstanciam nos seguintes elementos:
- Incorporação da obrigação no título (a obrigação e o título constituem uma unidade);
- Literalidade da obrigação (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspecção do título);
- Abstracção da obrigação (o título é independente da “causa debendi”);
- Independência recíproca das várias obrigações incorporadas no título (a nulidade de uma das obrigações que o título incorpora não se comunica às demais);
- Autonomia do direito do portador (o portador é considerado credor originário), sendo que, “o carácter literal e autónomo dum título de crédito só produz efeito, quando este entra em circulação e se encontra em poder de terceiros de boa fé.”[3].
Conforme ensina Rui Pinto[4] constituem títulos de crédito aqueles “documentos que incorporam certo direito de crédito – o crédito não existe sem o título – caracterizados pela literalidade autonomia e abstração. Eles valem nos estritos limites objetivos e subjetivos do que enunciam e independentemente das vicissitudes que afetem a relação subjacente que lhes dá causa. Por isso (…) a causa de pedir da sua execução consiste no facto aquisitivo do direito à prestação (…) cambiária (…) e não a relação subjacente (causa debendi) correspondente a esse direito.”
Quer isto dizer que os vícios da obrigação cartular não se estendem à obrigação subjacente e a prescrição do direito de acção cambiária não se comunica àquela, pelo que, ainda que o exequente não se possa valer da livrança enquanto título executivo, poderá sempre invocar o direito de crédito que serviu de base à emissão da livrança em sede declarativa.
Questão diversa é se o pode fazer em sede de execução, mais concretamente se, apesar de extinto o direito de acção cambiária, poderá o título de crédito continuar a valer como título executivo, mas agora como quirógrafo da obrigação causal.
No âmbito do actual Código de Processo Civil, esta questão mostra-se respondida com base no disposto no artº 703, alínea c).
Neste preceito, fez o legislador consignar, seguindo a posição maioritária da doutrina e da generalidade da jurisprudência que se debruçaram sobre esta questão no domínio do regime anterior, que constituem títulos executivos “os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.
Assim, se do próprio título constar mencionada a obrigação subjacente, este vale como título executivo por constituir quirógrafo dessa obrigação.
Se não resultar do próprio título a relação causal, como nos ensina LEBRE DE FREITAS[5] “há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerja ou não de um negócio jurídico formal”, porque no primeiro caso, sendo a forma essencial à validade da obrigação, o título cambiário prescrito não constituirá título executivo. No segundo caso, o título prescrito constituirá título executivo desde que alegado no requerimento executivo os factos constitutivos da obrigação subjacente à sua emissão, “tendo em conta a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento de dívida”, previsto este no artº 458 nº1 CC.
Se a questão se nos afigura pacífica face à actual redacção do artº 703 c) do C.P.C., não era pacífica no âmbito do anterior C.P.C. de 1961, que definia como títulos executivos aqueles a que por disposição especial era conferida esta natureza, nomeadamente os títulos de crédito e os documentos particulares, desde que reunidos os requisitos de exequibilidade previstos na alínea c) do artº 46.
Ao abrigo deste diploma legal e apenas no quadro das relações credor originário/devedor originário e para execução da obrigação fundamental (subjacente), prescrito o direito de acção cambiária e não valendo este título como título de crédito, suscitava-se a questão de poderem, ainda assim, ser apresentados à execução como meros quirógrafos, ao abrigo da alínea c) deste preceito legal que considerava títulos executivos “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.”
Quanto à exequibilidade das letras, livranças ou cheques que não reunissem as condições legais para serem considerados títulos de crédito, o entendimento jurisprudencial não foi unânime, dividindo-se essencialmente em três posições distintas.
Para a primeira posição jurisprudencial (seguida por doutrina minoritária) estes documentos não poderiam valer como títulos executivos, uma vez que não tinha sido opção do legislador incluir estes títulos noutras categorias e porque, pelas sua próprias características de autonomia, literalidade e abstracção, deles não poderia resultar nunca a constituição ou reconhecimento da obrigação causal.[6]
Para outros[7], os títulos que não pudessem valer como títulos de crédito incluídos no âmbito do disposto na alínea d) do artº 46, ainda assim seriam título executivo, integrados no elenco da alínea c), uma que do próprio título resultava já o reconhecimento unilateral de uma dívida (cfr. o disposto no artº 458 do CC.), não necessitando a causa da obrigação de constar do título ou do requerimento executivo, pois que se presume existir, cabendo ao devedor, em sede de embargos invocar que não existe.
Neste caso, beneficiando o credor da presunção de existência de causa, o ónus de prova inverte-se. Não é já o credor que tem de provar a causa da obrigação, porque esta presume-se existir, mas é ao devedor que cabe o ónus de prova da falta de causa da obrigação inscrita no título ou alegada no requerimento inicial.
Fundava-se esta posição na consideração de que os títulos de crédito constituem promessa de pagamento de um determinado montante no seu vencimento, pelo que deles se extrai “uma declaração de dívida que, independentemente da sua causa, vincula o respectivo subscritor ao pagamento de uma determinada quantia, sem prejuízo da invocação, no âmbito da defesa, de factos impeditivos dos efeitos pretendidos.”[8]
No entanto, a maioria da jurisprudência[9] e a generalidade da doutrina[10] entendia, no âmbito deste diploma legal, que os títulos de crédito prescritos ou que não preenchessem os requisitos legais para poderem ser considerados títulos de crédito poderiam, ainda assim, ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à sua emissão, desde que resultasse a causa da obrigação do próprio título ou, não resultando, fosse alegada no requerimento executivo.
Ou seja, “extinta, por prescrição, a obrigação cambiária (…), este pode continuar a valer como título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, no quadro das relações credor originário/devedor originário e para execução da respectiva obrigação subjacente ou fundamental, desde que, nesse caso, o exequente haja alegado, no requerimento executivo, essa obrigação, (a relação causal) e que esta não constitua um negócio jurídico fornal”.[11]
Foi esta última posição que, como vimos, foi acolhida na alínea c) do artº 703 do C.P.C., regime aplicável tendo em conta que a letra tem data de vencimento de 2014 (já após a entrada em vigor da Lei 41/2013) e a execução foi instaurada em 2023.
Nestes termos, a letra prescrita, não titulando já uma obrigação cambiária, constitui ainda assim documento quirógrafo da obrigação, título executivo incluído no âmbito desta alínea c), desde que:
-se esteja no âmbito das relações imediatas;
-os factos constitutivos da obrigação (subjacente) constem da própria letra;
-não constando, estejam alegados no requerimento executivo e a obrigação exequenda não emerja de um negócio jurídico formal.
Parece-nos ser esta a posição que encontra acolhimento no texto da alínea c) do artº 703, pois que não reunindo os títulos de créditos os requisitos de exequibilidade previstos na LULL, não podem ser considerados como títulos executivos, sem que do próprio documento resulte a constituição ou reconhecimento de uma obrigação (a obrigação subjacente), ou resultem do r.e. os factos constitutivos desta obrigação, uma vez que já não estamos no âmbito das obrigações abstractas (como o são as obrigações cambiárias).
As obrigações abstractas, conforme refere TEIXEIRA DE SOUSA[12] dispensam “a alegação de qualquer causa de aquisição da prestação, dado que a exigência desta não está dependente da demonstração de qualquer causa debendi. Assim, sempre que o título executivo respeite a uma pretensão abstracta, este é suficiente para fundamentar a execução”, pelo que “o exequente só tem o ónus de apresentar esse título de crédito, porque ele incorpora a relação cambiária que constitui a causa de pedir do título executivo.”
Pelo contrário as obrigações causais, não dispensam a invocação da respectiva causa, ónus de alegação imposto por via do disposto na alínea c) do artº 703 e 724, nº1 al. d) do C.P.C.
Do disposto no artº 724, nº1 al. d) do C.P.C., resulta que o requerimento executivo deve conter uma exposição sucinta dos “factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo (…)”, mais se dispondo no artº 725 nº 1 c) que a secretaria deve recusar o requerimento quando seja omitida esta indicação.
Destes preceitos resulta que o legislador, mesmo no âmbito do anterior processo executivo, não prescindia da indicação dos factos que fundamentam o pedido executivo, quando estes não constassem do título e não se tratasse de obrigação abstracta (ou seja, meramente cambiária).
Quer isto dizer que, no caso de títulos de crédito apresentados como título executivo, deve o credor, quando prescritos, invocar desde logo no requerimento a causa da obrigação, uma vez que, invocada esta prescrição, só poderá este valer como mero quirógrafo da obrigação desde que do documento ou do r.e. contem invocados os factos bastantes para se considerar invocada e devidamente delimitada a obrigação causal, sendo que só então se poderá colocar outra questão que consiste em saber se a obrigação exige forma especial e ainda, se este ónus de alegação, por reporte ao artº 458 nº1 do C.C., dispensa o credor da prova destes factos e determina a inversão do ónus probandi, de molde a que em sede de embargos incumba ao devedor provar que a causa invocada não existe.[13]
É no entanto, necessário para que se possa ponderar sobre a quem cabe o ónus de prova, que se verifique cumprido o ónus de alegação, este sempre a cargo do exequente.[14]
Ora, nos presentes autos, veio o exequente alegar os seguintes factos no requerimento executivo:
- a emissão e entrega de uma letra, avalizada pelos executados, incluindo a embargante, preenchida pelo valor da dívida e não paga pelos executados na data do seu vencimento, tudo de acordo com obrigações assumidas num contrato junto aos autos e que se dá como reproduzido;
Não constitui esta (parca) alegação genérica a invocação da relação causal subjacente. É necessário a alegação, ainda que de forma sumária, dos factos constitutivos do direito do credor, sendo que a mera junção do contrato não dispensa esta alegação. Conforme refere a primeira instância “A junção desse documento (ou de qualquer outro) não supre a falta de alegação, por consubstanciar simplesmente um meio de prova dos factos alegados. Mas esses factos, como se viu, têm por único enfoque a relação cambiária, nada tendo sido alegado quanto à assunção da qualidade de fiadora naquele negócio jurídico”. Para o efeito, teria o exequente de ter indicado no requerimento executivo, a indicação expressa do negócio celebrado com os executados, incluindo a obrigação de fiança e o seu conteúdo, a data e a forma que revestiu este negócio, o prazo e demais condições relevantes, a data de vencimento deste negócio, bem como o seu não pagamento, indicando o montante em dívida.
Esta omissão de indicação de causa de pedir não pode ser suprida pela mera junção do documento com a execução e não pode ser sequer suprida por via da contestação aos embargos de executado[15].
Acresce que, conforme bem referiu a primeira instância, teria o exequente, prevenindo a possibilidade de invocação da prescrição da obrigação cambiária, ter demandado a embargante também na qualidade de fiadora da obrigação fundamental. É que, conforme refere certeiramente Virgínio da Costa Ribeiro/Sérgio Rebelo[16], o aval é uma figura exclusiva do direito de crédito cambiário, pelo que, demandado um executado, exclusivamente nessa qualidade, extinta a obrigação cambiária, deve considerar-se extinto o aval.
Ora, a embargante foi executada na qualidade de avalista, sendo para o efeito irrelevante a junção do contrato e a menção de que se dava este por reproduzido.
Por último, ainda que assim não fosse, a letra não pode valer como quirógrafo de negócios formais. Ora, o negócio que resulta do documento junto ao título executivo, refere-se a um aluguer de longa duração de veículo sem condutor, negócio consabidamente formal com requisitos próprios e obrigatórios (cfr. artº 9, nº1 do D.L. 181/2012, de 6 de Agosto), pelo que, ainda que tivessem sido alegados os factos relativos à obrigação subjacente, não poderia valer esta letra como quirógrafo desta obrigação e prosseguir a execução já não com base na obrigação cambiária, mas com base no negócio subjacente, embora titulado não pelo respectivo contrato, mas por este documento (a letra prescrita), por a tal se opor o referido artº 9 do D.L. nº 181/2012, vigente à data de celebração do contrato que constitui esta relação causal.
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DECISÃO
[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] DELGADO, Abel, Lei Uniforme Sobre Cheques, Anotada, págs. 100 e segs.
[4] PINTO, Rui, A Ação Executiva, AAFDL Editora 2020, Reimpressão, pág. 194.
[5] LEBRE DE FREITAS, José, A Ação Executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª edição, Coimbra Editora 2014, pág. 74. No mesmo sentido PINTO, Rui, A Ação Executiva, ob. cit pág. 198.
[6] Vide Acs. do STJ de 29/02/00, CJSTJ 2000, Tomo I, pág. 124 e de 16/10/01, CJSTJ 2001 Tomo III, pág. 89. Na doutrina, é esta a posição assumida por PINTO, Rui, A Ação Executiva, AAFDL Editora, 2020, pág 200. Defende este autor que o subscritor de um título de crédito apenas se vincula ao abrigo das Leis Uniformes, pelo que “Atribuir-se uma vontade negocial ao subscritor de reconhecer a dívida que deu causa ao ato, equivale de facto a ultrapassar os limites objectivos inerentes ao título de crédito e os seus limites temporais.”
[7] Por todos o Ac. do STJ de 11/05/99, CJSTJ 1999, TOMO II, pág. 88.
[8] ABRANTES GERALDES, António Santos, “Títulos Executivos”, Revista Themis, Ano IV, nº7 (2003), pág. 60, embora com a ressalva de que esta posição é anterior às reformas introduzidas no processo executivo em 2003 e 2008.
[9] A título de mero exemplo vide os Acórdãos do STJ de 11/05/99, Relator Lemos Triunfante, Revista 99A353, disponível in CJSTJ, 1999, Tomo II, pág. 88 e segs.; de 19/06/08, Relator Santos Bernardino, Revista nº08B1054 e de 28/04/2009, relator Serra Baptista, Revista nº 09B0304, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Neste sentido vide RIBEIRO, Vírginio da Costa, REBELO, Sérgio, A Ação Executiva Anotada e Comentada, Almedina 2015, págs. 137 e LEBRE DE REITAS, A Acção Executiva - depois da reforma da reforma, 5ª edição, Coimbra Editora, 2009, págs. 62,63.
[11] Ac. do STJ de 27/11/2007, relator Santos Bernardino, Revista nº 07B3685, disponível in www.dgsi.pt.
[12] TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, Acção Exexutiva Singular, lex, 1998, pág. 68
[13] A este respeito refere-se no Ac. do TRC de 10/09/19 relator Barateiro Martins, proc. nº 2296/17.0T8PBL-A.C1 que “o título cambiário, enquanto documento particular assinado pelo devedor, não cumprindo necessária e forçosamente a função de reconhecimento duma dívida, não podia ver-lhe aplicado o art. 458.º do C. Civil; o que significava (em “oposição” à tese do reconhecimento de dívida) que não era o devedor que, como acontece com o reconhecimento de dívida, tem que fazer a prova do contrário, isto é, numa execução em que o título seja integrado por um cheque/letra/livrança “extinto”, não é o devedor/executado que, para se eximir à obrigação, tem que provar que a obrigação não tem causa (…) havendo oposição e negando o executado a existência da relação subjacente, eramos como que devolvidos à “estaca zero”, em termos de definição do direito, uma vez que, dizendo-se que o exequente não goza da presunção do art. 458.º do C. Civil, era ele que, de acordo com os princípios gerais (342.º/1 do C. Civil), teria que provar os factos constitutivos do direito alegado/executado”. Para DELGADO DE CARVALHO, José Henrique, Ação Executiva para Pagamento de Quantia Certa, Quid Juris, 2014, págs. 189, pelo contrário, “é o devedor que tem de fazer a prova do contrário de tais factos, alegando e provado que a obrigação se encontra cumprida ou nunca existiu”, posição a que aderimos tendo em conta a natureza do título executivo que dispensa a prova da existência da obrigação, cabendo em regra aos executados embargantes o ónus de prova dos factos que aleguem e que constituem excepção ao direito, em aparência existente. Não se vê assim razão para considerar de forma diversa os quirógrafos da obrigação exequenda.
[14] Apesar de PINTO, Rui, ob. cit. a págs. 204 defender que “o exequente que queira usar o “mero quirógrafo” deve fazê-lo logo no requerimento executivo, sobre ele construindo os fundamentos e o pedido executivo, nos termos do artº 724 nºs 1 e) e f) e 4 al. a). Efectivamente o credor não pode começar a execução como título de crédito e, supervenientemente, convolar para execução de um reconhecimento quirográfico de dívida. Isto porquanto a invocação da relação subjacente, em substituição da invocação da relação formal, configura a invocação de uma causa de pedir diferente da habitual.” Discordamos deste entendimento pois que invocados no r.e. os factos constitutivos da relação obrigacional subjacente, nada impede que o título possa valer como quirógrafo da obrigação, desde que não formal e sem que constitua a diferente qualificação, diversa causa de pedir.
[15] Neste sentido, DELGADO DE CARVALHO, José Henrique, pág.s 189.
[16] RIBEIRO, Virgínio da Costa, REBELO, Sérgio, ob. cit. pág. 151.