REQUERIMENTO DA PARTE PARA PRESTAÇÃO DAS SUAS DECLARAÇÕES
INDICAÇÃO DOS PONTOS DE FACTO SOBRE QUE HÁ-DE RECAIR
OMISSÃO DE TAL INDICAÇÃO
Sumário

I – A parte, ao requerer a sua prestação de “declarações”, deve indicar, discriminadamente, os factos sobre os quais há-de recair (cf. art. 452º, nº 2 aplicável por força do art. 466º, nº 2, ambos do n.C.P.Civil).
II – “Discriminar” significa, em tal contexto, que se devem mencionar os pontos do articulado onde constam os factos sobre que há-de incidir o depoimento ou as declarações, não se bastando com uma referência genérica, como, por exemplo, «toda a matéria de facto da presente resposta».
III – Não tendo feito tal indicação, deve o juiz convidar a parte a fazê-la.

Texto Integral

Apelações em processo comum e especial (2013)

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     Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

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            1 – RELATÓRIO

Em autos inventário instaurados para partilha da herança aberta por óbito de AA, requeridos por BB e CC , a viúva (cabeça-de-casal) DD entregou a relação de bens, na qual relacionou vários direitos de crédito da herança, nomeadamente sobre as interessadas filhas do inventariado e da cabeça-de-casal (as ditas requerentes BB e CC), mais concretamente por empréstimos dos pais.

Em reclamação à relação de bens, estas interessadas BB e CC negaram tais empréstimos.

A cabeça-de-casal ofereceu resposta à reclamação daquelas interessadas, na qual requereu produção de prova e, no que ao aqui diretamente interessa, requereu sob a al. D do requerimento de prova que «Se tomem declarações de parte à cabeça-de-casal sobre toda a matéria de facto da presente resposta».

           Na oportuna sequência processual, a Exma. Juiz de 1ª instância indeferiu esse requerimento de prestação de declarações de parte pela cabeça-de-casal sobre a matéria de facto da sua resposta à reclamação da relação de bens por parte das interessadas BB e CC, com o fundamento de não terem sido identificados, de forma discriminada, os factos sobre os quais tais declarações haviam de recair (art. 452º, nº 2, ex vi do art. 466º, nº 2 do n.C.P.Civil), mais concretamente nos seguintes termos literais:

«- Indefiro às declarações de parte da cabeça-de-casal, por não virem indicados, de forma discriminada, os factos sobre os quais tais declarações haveriam de recair (artigo 452.º, n.º 2 ex vi 466.º, n.º 2 do Código do Processo Civil).»

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Inconformada com tal despacho, apresentou a cabeça-de-casal recurso de apelação contra o mesmo, cujas alegações finalizou, com a apresentação das seguintes conclusões:

           «1. Nos presentes autos de inventário, a ora recorrente, e cabeça-de-casal, juntou aos autos a relação de bens na qual foram relacionados diversos direitos de créditos da herança sobre as interessadas, filhas do inventariado e cabeça-de-casal, BB e CC, por empréstimo dos pais.

               2. Tais interessadas reclamaram da relação de bens, negando os empréstimos.

               3. A cabeça-de-casal, ora recorrente (mãe das reclamantes) veio responder à reclamação, oferecendo resposta, articulada sob os artigos nº. 1 a 48, e requereu prova, entre a qual a sua prestação de declarações de parte.

               4. Toda a resposta se relaciona com tais empréstimos referidos na relação de bens, efectuados pelos pais (o inventariado e a cabeça-de-casal) sendo, portanto, do conhecimento directo da cabeça-de-casal.

               5. No seu requerimento de prova, a ora recorrente pede, expressamente, que “Se tomem declarações de parte à cabeça-de-casal sobre toda a matéria de facto da presente resposta” (al. D) do requerimento de prova).

               6. Encontram-se, pois, discriminados os factos, porquanto são todos os constantes daquela resposta (factos que se relacionam com os empréstimos relacionados e negados pelas reclamantes).

               7. Sem conceder, mesmo que se entenda que a cabeça-de-casal devia ter discriminado os factos por referência individual a cada artigo da resposta (1 a 48 da mesma), sempre, como é jurisprudência conforme dos nossos Tribunais Superiores, a Mª. Juiz a quo deveria, antes de proferir o douto despacho de indeferimento - com o fundamento de a requerente não ter indicado de forma discriminada os factos sobre os quais tais declarações haviam de recair -, convidar a requerente (ora recorrente) a, em prazo a fixar, vir discriminá-los, ao abrigo do disposto nos artºs. 3º, nº 3, parte final, 6º, nº 1 e 590º do Código do Processo Civil.

               8. Violados, pois, foram as seguintes disposições legais: artºs. 3º, nº 3, 6º, nº 1, 7º, 417º, 452º, 466º e 590º do C.P-Civil.

                Termos em que se R., com o douto suprimento de V. Exªs., Venerandos Desembargadores, a revogação do douto despacho recorrido, admitindo-se as declarações de parte da cabeça-de-casal (se se entender que foram discriminados os factos) ou substituindo-se a decisão recorrida por outra que convide a recorrente a discriminar os factos, em prazo para o efeito.

                Assim se fazendo JUSTIÇA.»

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Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

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           Cumprida a formalidade dos vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

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            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte: acerto da decisão sobre o requerimento de “declarações de parte” da cabeça-de-casal DD, decisão essa que foi no sentido do seu indeferimento.

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é, no essencial, a que consta do relatório que antecede

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Importa no presente recurso aferir e decidir do acerto da decisão sobre o requerimento de “declarações de parte” da cabeça-de-casal DD, decisão essa que foi no sentido do seu indeferimento.

Recorde-se que o fundamento do despacho recorrido para um tal indeferimento consistiu na invocação de que não teriam sido identificados, de forma discriminada, os factos sobre os quais tais declarações haviam de recair (cf. art. 452º, nº 2, ex vi do art. 466º, nº 2 do n.C.P.Civil).

Vejamos.

É sabido vigorar no nosso sistema, em termos de princípio, a liberdade de prova, com vista à descoberta da verdade relevante, no escopo da boa decisão da causa, desde que observados determinados requisitos (ser a prova válida, tempestiva e útil/pertinente).

Por outro lado, naturalmente que assume paralela relevância o princípio geral da celeridade processual, por força e à luz do qual se deve privilegiar na interpretação e aplicação das normas a solução que melhor permita a consecução de tal objetivo, o que, diga-se, foi expressa opção do legislador aquando da última revisão do processo civil.

Não obstante o vindo de dizer, cremos que será na concreta ponderação das caraterísticas e natureza do meio de prova em causa, que se encontra e define o critério da decisão da questão em apreciação.

Senão vejamos.

            Nos termos do art. 466º, nº 1 do n.C.P.Civil, «as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo», aplicando-se-lhes, nos termos do subsequente nº2, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior [leia-se, quanto à “prova por confissão das partes”/“depoimento de parte”.

            Ora, se a remissão para as normas que regulam o depoimento de parte [cf. os arts. 452º a 465º do mesmo n.C.P.Civil], pode suscitar dificuldades, parece, contudo, não existir atualmente especial controvérsia quanto ao dever de a parte, que pretende prestar “declarações”, indicar os factos sobre que irá depor.

Com efeito, prescreve-se expressamente no nº2 do dito art. 452º que «Quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há-de recair». [com destaque da nossa autoria]

           De referir que mesmo para aqueles que não aderem a tal exigência, não deixam de anuir a que sempre deverá existir uma delimitação mínima sobre o objecto das “declarações”, até para permitir ao juiz imprimir determinada cadência e precisão na condução da inquirição, ao que acresce que as declarações nesta sede apenas poderão respeitar a factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo.

           Ora é precisamente esta delimitação legal sobre o objeto das “declarações de parte” – “factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo” – que se torna decisiva para a decisão quanto à primeira linha de argumentação da cabeça-de-casal/recorrente, a saber, que havia em concreto discriminados os factos, porquanto eram “todos” os constantes do seu requerimento de resposta.

           Com efeito, não foi expressamente invocado nem ressaltava daquele seu requerimento de resposta que a cabeça-de-casal/recorrente tivesse “intervindo pessoalmente” em todos os empréstimos relacionados nem tivesse “conhecimento directo” de todos eles.

Basta um simples confronto com o que está alegado, para concluir que se o sujeito ativo dos empréstimos foi sempre, ainda que não exclusivamente, o de cujus, está em causa um vasto elenco de empréstimos, com distintos beneficiários e alegadamente operados num período temporal dilatado e em circunstâncias espaciais diversas.

Nesse quadro, seria altamente improvável ou até inverosímil que a cabeça-de-casal/recorrente tivesse “intervindo pessoalmente” em todos e cada um dos empréstimos relacionados ou tivesse “conhecimento directo” de todos e cada um deles…

Por isso que a indicação de o objecto das “declarações” ser “toda a matéria de facto” do seu requerimento de resposta [cf. que «Se tomem declarações de parte à cabeça-de-casal sobre toda a matéria de facto da presente resposta»], tem que ser apodada de “genérica”, “indefinida” e “indiscriminada”!

Com tal, salvo o devido respeito, não se indicaram em concreto os “factos” sobre que iam recair as “declarações de parte”…

Nem muito menos de forma “discriminada”…

Na verdade, «não satisfaz a exigência legal o requerimento em que se diga: pretende-se o depoimento da parte contrária sobre todos os factos (ou sobre todos os artigos) da petição inicial (…); tal indicação não é discriminada. É necessário, pois, especificar os factos que hão-de ser objecto do depoimento.»[2]

Ademais, atente-se no que já foi doutamente sublinhado a este propósito:

«(…) consubstanciando-se as declarações de parte num interrogatório dirigido pelo juiz – e não pretendendo ser este um momento em que é simplesmente concedida a palavra às partes, para alegarem à sua vontade – urge que haja um fio condutor na inquirição, que se traduz na indicação desses factos que a parte pretende ver provados. Aliás, tendo este meio de prova lugar somente mediante requerimento da própria parte, de outra forma não se conceberia, sob pena de, desconhecendo o tribunal a intenção probatória da parte, não só não poder avaliar a necessidade de tal meio de prova, como não poder, de todo, proceder à referida inquirição.»[3]

Face a estes considerandos, entendemos que improcede a argumentação da cabeça-de-casal recorrente no sentido de que deviam ser admitidas sem mais as declarações de parte da cabeça-de-casal [dando acolhimento ao entendimento de que haviam sido discriminados os factos].

O que já não se diga relativamente ao seu segundo e subsidiário argumento, a saber, que, no limite, e em vez da decisão de indeferimento sobre a prestação de declarações de parte pela cabeça-de-casal que havia sido requerida, devia ter sido convidada a requerente das mesma (e ora recorrente) a, em prazo a fixar, vir discriminar quais os factos sobre os quais se pretendia que as declarações de parte fossem prestadas.

Na verdade, também quanto a nós, a omissão da indicação dos factos sobre os quais recairão as declarações de parte não constitui fundamento de indeferimento do requerimento, dando – isso sim – azo a um despacho de aperfeiçoamento.

Tal é imposição do novo Código de Processo Civil, no qual a regra é o aproveitamento dos atos das partes que apresentem deficiências, a qual tem um valor reforçado no plano da proposição e produção probatória [cf. art. 411º do n.C.P.Civil].

Nesta linha de entendimento já foi sublinhado que «Se o juiz tem o poder e o dever de ordenar oficiosamente uma diligência probatória, por maioria de razão tem o dever de convidar a parte a suprir uma deficiência do seu requerimento probatório», sendo que «a possibilidade de supressão da aludida deficiência corresponde à melhor interpretação do princípio da prevalência da substância sobre a forma e da instrumentalidade dos mecanismos processuais em face do direito substantivo.»[4]

Acresce que o convite à parte para corrigir o lapso decorrente de uma deficiente indicação factual mostra-se conforme com os poderes/deveres de gestão processual conferidos ao juiz (cf. art. 6º do mesmo n.C.P.Civil), de onde emanam pilares fundamentais do processo civil como o da instrumentalidade dos mecanismos processuais em face do direito substantivo e o da prevalência das decisões de mérito sobre as formais.

A este propósito já foi sublinhado que «o direito adjectivo só existe porque existe direito substantivo integrado por normas que, de modo abstracto e generalizado, concedem direitos, fixam obrigações ou impõem ónus ou limitações. Em caso de conflito de interesses, impõe-se a intervenção reguladora do juiz com funções de tutela de direitos subjectivos ou de interesses juridicamente relevantes.»[5]

Sendo certo que, neste particular, a posição doutrinária e jurisprudencial largamente maioritária tem sido no sentido de que a falta de indicação no respectivo requerimento dos factos sobre que a parte irá depor deve ser suprida mediante convite judicial, nunca podendo ser motivo de indeferimento.[6]

Atente-se que a remissão para o estabelecido quanto ao depoimento de parte, com as necessárias adaptações, conduz a que o procedimento das declarações de parte seja desenhado sobre o procedimento do depoimento de parte, com exclusão de preceitos para os quais haja regulação específica (cf. art. 466º, quanto à legitimidade, objecto e oportunidade da declaração), de modo que «no requerimento a parte deve indicar, de forma discriminada, os factos sobre que hão de recair as suas declarações (cf. artigo 452º, n.º 2) […] Não tendo feito tal indicação “deve o juiz convidar a parte a fazê-la».[7]

O que tudo serve para dizer que face à diligência de prova/“declarações de parte” requerida pela cabeça-de-casal, sem indicação discriminada dos “factos” sobre que há de recair, deveria o Tribunal a quo ter proferido despacho de aperfeiçoamento, convidado a parte requerente a suprir a apontada deficiência.

Assim, não o tendo feito, há que dar procedência à apelação e o despacho recorrido deve ser revogado, determinando-se a notificação da cabeça-de-casal ora recorrente para, no prazo de 10 dias, indicar, de forma discriminada, os concretos factos sobre que há-de recair as “declarações de parte” que oportunamente requereu, sob pena de indeferimento.[8]

De referir que caso a cabeça-de-casal corresponda ao convite, será então proferido na 1ª instância o despacho que se justificar, seguindo-se a devida tramitação da causa.

Nestes termos procedendo as alegações recursivas e o recurso.

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(…)

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6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, julgar a apelação interposta procedente, revogando-se o despacho recorrido e, em consequência, ordenar-se a notificação da cabeça-de-casal para, no prazo de 10 dias, indicar, de forma discriminada, os concretos factos sobre que há-de recair as “declarações de parte” que oportunamente requereu, sob pena de indeferimento, seguindo-se a subsequente tramitação da causa.

Custas a suportar pela parte vencida a final.


Coimbra, 26 de Novembro de 2024
Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

João Moreira do Carmo


                                              


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. João Moreira do Carmo
[2] Citámos ALBERTO DOS REIS, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. IV, reimpressão de 1987, Coimbra Editora, a págs. 132.
[3] Assim por MARIANA FIDALGO, citada por LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, in “As Declarações de Parte. Uma Síntese, Abril de 2017, pp. 10-11, acessível em file:///C:/Users/Admin/Documents/Processo%20Civil/PIRES%20
DE%20SOUSA,%20L.%20F.,%20As%20Declara%C3%A7%C3
%B5es%20de%20Parte.%20Uma%20S%C3%ADntese.%20(04.2
017).pdf.
[4] Assim no acórdão do TRG de 09.05.2024, proferido no proc. nº 1223/20.1T8BGC-A.G1, acessível em www.dgsi.pt/jtrg.
[5] Cf. ABRANTES GERALDES / PAULO PIMENTA / LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, a págs. 32
[6] CF. inter alia, os autores em obra e local citados na precedente nota, ora a págs. 531.
[7] Como tudo esclarece RUI PINTO in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, 2018, a págs. 676; neste mesmo sentido, vide JOSÉ LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, a págs. 285, quando referem: «Não sendo indicados os factos quando se requer o depoimento, o juiz deve ainda convidar a parte a fazer a indicação. Com efeito, para a prossecução da verdade material foram conferidos ao juiz poderes de zelar pelo aproveitamento dos atos das partes que apresentem deficiências, sendo excessivo aplicar a consequência normal da não observância dum ónus processual, que é a preclusão.»


[8] Neste mesmo sentido, inter alia, os acórdãos do TRP de 18.12.2013 (proferido no proc. 114/09.1TBETR-A.P1) e de 21.11.2019 (proferido no proc. n.º 29903/15.6T8PRT-F.P1) e bem assim no do TRL de 31.05.2022 (proferido no proc. nº 6660/21.1T8LSB-A.L1-7), este último com uma útil síntese das posições doutrinais e jurisprudenciais sobre esta matéria, estando todos eles acessíveis em www.dgsi.pt.