SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CAUSA PREJUDICIAL
RELAÇÃO DE PREJUDCIALIDADE
ACÇÃO INTENCIONAL NA INSTAURAÇÃO DA ACÇÃO PREJUDICIAL
Sumário

1. - Nos termos do art.º 272.º, n.º 1, do NCPCiv. (anterior n.º 1 do art.º 279.º do Cód. revogado) a suspensão da instância por via de causa prejudicial só pode ocorrer quando a decisão da causa estiver na dependência do julgamento de outra já proposta.
2. - Tal, porém, não obriga a que a causa prejudicial seja de instauração anterior à causa dependente, apenas se impondo que aquela esteja proposta ao tempo da decisão de suspensão.
3. - É o que ocorre quando na causa prejudicial se discuta questão essencial para a decisão da dependente, em termos de o pedido desta poder perder a sua razão de ser ante a decisão da causa prejudicial.
4. - Existe relação de prejudicialidade entre uma ação de reivindicação, fundada em contrato de transmissão do domínio (aquisição derivada), e outra ação (a prejudicial) onde se questiona a validade desse contrato/aquisição (em que foram também outorgantes outros sujeitos, que não estão na discussão na ação dependente).
5. - Caso assim não se entendesse, justificar-se-ia, oficiosamente, a suspensão com fundamento em “outro motivo justificado”, a que alude a parte final do n.º 1 do art.º 272.º do NCPCiv..
6. - Não é de considerar haver ação deliberada/intencional na instauração da ação invocada como prejudicial – no intuito exclusivo de obter a suspensão da causa dependente, esta intentada anteriormente – se a ponderação quanto à instauração da causa em que se invocou a invalidade do contrato de transmissão foi efetuada por patrono nomeado no âmbito do apoio judiciário, o qual foi primeiramente notificado para o efeito de instauração da ação e somente depois (com esta já intentada) para dedução de contestação na ação de reivindicação.

Texto Integral

                                                          ***

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                               ***

I – Relatório

AA, com os sinais dos autos,

intentou a presente ação declarativa – de reivindicação –, com processo comum, contra

BB, também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação do R. a:

«a) Reconhecer que o A. é dono e legitimo possuidor do conjunto predial identificado no artigo 1.º d[a] P.I.,

b) Reconhecer que a ocupação por parte do R., daquele conjunto predial (…), é abusiva, ilegal, insubsistente e de má fé, e

consequentemente, a

c) Entregar o referido imóvel identificado no artigo 1º, ao A. livre e desocupado e ainda a,

d) pagar uma indemnização ao A. pelos prejuízos causados no montante global de 250,00€ referente ao mês de outubro, acrescido da indemnização mensal de 250,00€ até á efetiva entrega do imóvel (…)» ([1]).

Para tanto, alegou, em síntese:

- ser dono e legítimo possuidor do conjunto predial identificado, o qual adquiriu ao R., por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 16/05/2013 no Cartório Notarial ...;

- o R. havia adquirido esse prédio por sucessão mortis causa de sua mãe, de quem era o único herdeiro;

- estão, ademais, verificados todos os pressupostos de que depende a aquisição por usucapião a favor do A., instituto pelo mesmo invocado;

- aproveitando ainda ao A. a presunção de propriedade, por força da registral inscrição de aquisição a seu favor;

- porém, tendo o A. dado autorização ao R., por mero favor e tolerância, para continuar a ocupar o imóvel, a título de empréstimo, até que o A. lhe solicitasse a devolução, este (R.) ainda não procedeu à entrega, apesar das diversas solicitações do A. nesse sentido, antes continuando com a sua ocupação, sem qualquer título e contra a vontade do dono, com os inerentes prejuízos para o demandante, obrigado, assim, a recorrer à ação de reivindicação.

O R. contestou, impugnando diversa factualidade alegada pelo A. – invoca que «não “vendeu o imóvel ao A.”, na verdade não teve qualquer intervenção no negócio: não o negociou; não o desejou; não o aprovou; não recebeu dinheiro; não entregou o imóvel» (cfr. art.º 2.º da contestação) – e concluindo que:

«Processualmente está vedada a possibilidade de o R. deduzir reconvenção, pedindo a nulidade do negócio, porque tal daria origem a uma situação de litispendência, dado já ter sido peticionado no âmbito do processo 225/24.....

Pelo que, nos termos do art. 272 nº 1 do C.P.C., se requer a suspensão dos presentes autos até que seja proferida decisão no processo 225/24...., dada a sua total conexão e dependência.

A final deverá a presenta acção ser julgada improcedente por improvada, e o R absolvido do pedido» ([2]).

O A., observado o princípio do contraditório, veio pronunciar-se quanto à matéria de exceção:

a) Invocando que o R., depois de interposta a presente ação, “veio instaurar uma segunda ação judicial relativamente ao mesmo imóvel”, pelo que é a segunda ação que depende da primeira, e não o contrário, com a consequência de dever a suspensão da instância ser decretada na ação interposta pelo R., por pendência de causa prejudicial;

b) Concluindo, quanto ao mais, pela total improcedência da matéria de exceção deduzida e como na sua petição.

Após o que, dispensada a audiência prévia, foi proferida, em 05/06/2024, decisão em matéria de suspensão da instância, com o seguinte dispositivo:

«(…) não subsistindo dúvidas que naquela ação se discute uma questão que é absolutamente essencial para a decisão a proferir neste processo (porquanto não se pode condenar o réu a sair do identificado prédio e a condená-lo nos valores peticionados pelo autor sem previamente se perceber se o contrato subjacente a estes pedidos é ou não nulo, como propugnado pelo réu), suspende-se a presente instância até à decisão com trânsito em julgado a proferir no âmbito do processo n.º 225/24.... do Juízo Central Cível e Criminal - Juiz ... – ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.» (destaques retirados).

Inconformado com o assim decidido, vem o A. interpor o presente recurso [apelação autónoma, como permitido pelo art.º 644.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv.], apresentando alegação, onde formula as seguintes

Conclusões:

“1. Na presente ação, o Autor reivindica propriedade de prédio adquirido por escritura impugnada pelo Réu em processo separado com fundamento em pretensa nulidade.

2. O douto despacho recorrido não teve na devida que os factos e o direito apontam para que o processo que fundou a suspensão da presente instância foi instaurado posteriormente à presente ação, desnecessariamente e provavelmente para obter a suspensão.

3. Deve ter-se em conta que o patrono do Réu é o mesmo nas duas ações, e que a ação separada foi instaurada em pleno curso do prazo para apresentar contestação na presente ação.

4. Os factos que serviram de causa de pedir à pretensa ação prejudicial serão os mesmos que serviram de fundamento à defesa do Réu nos presentes autos.

5. A presente ação proposta em 23.10.2023.

6. O Réu foi citado a 27.11.2023.

7. A 06.11.2023 e a 13.11.2023, o Réu comunicou e documentou a apresentação nos presentes autos de pedido de proteção jurídica, de nomeação e pagamento de compensação a patrono para contestar a presente ação, interrompendo o prazo para contestar.

8. Desde então os presentes autos não tiveram tramitação relevante até à apresentação de contestação.

9. A ilustre Patrona nos presentes autos, foi nomeada a 21.11.2023 para instaurar ação fundada na declaração de nulidade da escritura que funda os direitos dos Autores.

10. Essa ação foi proposta a 03.02.2024, e deu origem ao processo 225/24.....

11. A 08.03.2024, a ilustre patrona foi nomeada para contestar a presente ação.

12. A 12.03.2024, o Réu apresentou contestação nos presentes autos.

13. As regras da experiência comum apontam claramente para que o Réu não poderia deixar de ter alertado a ilustre Patrona da existência dos presentes autos, pelo que a estratégia juridicamente mais rigorosa e conforme à boa fé processual seria concentrar a defesa do Réu na contestação aos presentes autos, como resulta do princípio da concentração da defesa consagrado no artigo 573.º do Código de Processo Civil.

14. A dedução da reconvenção nos presentes autos é admitida pelos artigos 266.º e 37.º, n.º 2 e n.º 3, do Código de Processo Civil e permitiria a justa composição global do presente litígio num único processo, ao invés de dois, sem prejuízo absolutamente nenhum para o Réu.

15. Tal era inteiramente viável, porque até decorrer o prazo para apresentar contestação, o presente processo não poderia ter andamento e o mesmo não poderia causar prejuízos adicionais ao Réu.

16. Tendo o Réu tido patrona nomeada que apreciou a sua pretensão antes de ter decorrido o prazo para contestar os presentes autos, não se vê a mínima necessidade de propor processo separado para apreciar uma pretensão que podia e devia ser discutida nos presentes autos.

17. Tal surge como inteiramente excessivo e desproporcionado nos presentes autos, e não se compreende.

18. Só não é admissível a dedução de reconvenção nos presentes autos porque foi proposta ação separada, já depois de ter sido instaurada a presente ação e com o prazo para contestar a presente ação ainda em curso.

19. O despacho recorrido não atentou, valorizando convenientemente, nem os factos da tramitação de ambos os processos, nem os articulados e o teor dos mesmos, que apontam claramente para a inadmissibilidade da suspensão da instância.

20. Neste sentido se pronunciou num caso próximo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.04.2005, processo n.º 1091/2005-8, disponível em http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/d5c92bbdbed1f0a480257004004710e4?OpenDocument).

21. Como refere este aresto, existe uma relação de prejudicialidade entre a causa indicada como prejudicial e a presente, pois que naquela se pede a declaração de nulidade da escritura pela qual o autor adquiriu o imóvel, escritura essa que é invocada nestes autos como meio de aquisição da propriedade.

22. E, como conclui o mesmo aresto, havendo fundadas razões para crer que a causa indicada como prejudicial só foi intentada para suspender a dos presentes autos, não deve ser ordenada a suspensão da instância.

23. Como prescreve o artigo 272.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão.

24. E é justamente por esse motivo que o processo n.º 225/24.... não pode ser considerado causa prejudicial aos presentes autos.

25. O douto despacho recorrido mobilizou o disposto nos artigos 272.º, n.º 1 e n.º 2, 276.º, n.º 2 e 573.º do Código de Processo Civil, pois deveria ter sido indeferido o pedido de suspensão da instância.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso jurisdicional ser julgado totalmente procedente, e, em consequência, ser revogado o despacho interlocutório ora recorrido, pelo qual se decidiu suspender a instância dos presentes autos, devendo ordenar-se o prosseguimento dos mesmos.” (destaques retirados).

Foi apresentada contra-alegação, concluindo o R./Recorrido pela improcedência da pretensão recursória.

O recurso foi admitido, como de apelação, com efeito meramente devolutivo e subida imediata e nos próprios autos, tendo sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime recursivo.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do recurso

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv. –, está em causa na presente apelação saber, somente, se há, ou não, fundamento válido para a decretada suspensão da instância com base na pendência de causa prejudicial cível.

III – Fundamentação

         A) Da factualidade apurada

         O factualismo e a dinâmica processual a considerar para decisão do recurso são os supra aludidos, em sede de relatório, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

         B) Da relação de prejudicialidade e consequente suspensão da instância

Como visto, veio o A. (ora Apelante) intentar contra o R. a presente ação de reivindicação, fundada na aquisição, mediante outorgada escritura pública de transmissão, ao demandado de um determinado imóvel.

Ou seja, o imóvel é reivindicado ao R. por, alegadamente, ter sido alienado por este ao demandante.

Acontece que o aqui R. veio, por sua vez, depois intentar uma ação contra o ora A. e outros, como descrito – nesta parte, sem controvérsia – na decisão recorrida (cuja correspondente base fáctica não foi impugnada), por isso se deixando transcrita a parte relevante:

«(…) embora aquela ação tenha sido proposta em momento posterior a esta, resulta todavia da leitura articulada das duas ações que só em 08.03.2024 é que o autor foi notificado da identificação da Ilustre Patrona que lhe foi nomeada para contestar esta ação (após diverso pedidos de escusa), quando naqueloutro processo (225/24....) a Ilustre Patrona foi nomeada a 21.11.2023 e a ação foi proposta a 03.02.2024, isto é, tudo datas anteriores à nomeação da Ilustre Patrona para contestar a presente ação, a qual só foi notificada no dia 08.03.2024.».

Ora, é incontroverso – faltando impugnação a respeito – que, como exarado na decisão recorrida, a ação intentada pelo R. (contra o aqui A. e os pais deste) “corre atualmente termos (…) no Juízo Central Cível e Criminal - Juiz ..., desta comarca, onde arguiu a nulidade da escritura que serve de suporte ao pedido formulado pelo autor nos presentes autos, alegando, para tanto que aquela foi feita sem o seu consentimento e conhecimento, pelo pai do autor (seu primo) que, munido de uma procuração que lhe tinha outorgado a 20.11.2012 para que aquele o auxiliasse num projeto de alojamento local que pretendia fazer na Quinta, outorgou a dita escritura, “vendeu” aquele conjunto predial ao seu próprio filho, em tudo conluiado com os demais réus naquela ação (autor e pais do aqui autor)».

A esta luz, resulta incontroverso que naqueloutra ação (a intentada pelo R., apesar de posterior) se discute a validade da escritura pública de alienação em que o A. funda o seu direito dominial na presente ação de reivindicação.

Assim sendo, não pode ignorar-se que a questão – e respetiva decisão – sobre a validade/invalidade daquela escritura pública de alienação se apresenta como prejudicial (condicionante) perante o que tem de decidir-se na presente ação de reivindicação, cujos pedidos se reportam ao reconhecimento do direito dominial (do aqui A.), fundado na validade de tal escritura, e decorrente entrega/restituição do imóvel reivindicado (o alegadamente vendido, de forma válida, pelo R. ao A.).

Ou seja, a reivindicação depende, obviamente, da validade da transmissão, que constitui pressuposto material de procedência da ação.

E a validade/invalidade dessa transmissão está a ser questionada naqueloutra ação posterior.

Daqui se retira que existe efetivamente relação de prejudicialidade, como invocado pelo aqui R. e sufragado na decisão recorrida (é a ação de reivindicação que depende, nos seus pressupostos, da decisão da outra ação, apesar de posterior).

Com efeito, dispõe o art.º 272.º, n.º 1, do NCPCiv. (norma semelhante ao n.º 1 do art.º 279.º do Cód. revogado), que o tribunal pode ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.

E, nos termos do n.º 2 do art.º 276.º do NCPCiv. (anterior n.º 2 do art.º 284.º), se a decisão da causa prejudicial fizer desaparecer o fundamento ou a razão de ser da causa que estivera suspensa, é esta julgada improcedente.

Tudo começava, pois, por saber se a decisão da presente causa está, ou não, dependente do julgamento daqueloutra causa cível.

Como vem entendendo, de há muito, a jurisprudência do STJ:

«I - A decisão de suspender ou de não suspender a instância, ao abrigo do disposto no artigo 279 do Código de Processo Civil é, em certo sentido, discricionária, o que não significa que o tribunal possa ordenar a suspensão sempre que o queira, mas apenas se ocorrer uma relação de prejudicialidade entre duas acções; mas ocorrendo a prejudicialidade o tribunal, tomando em consideração as circunstâncias concretas de cada hipótese pode ordenar ou não ordenar a suspensão.

II - Existe prejudicialidade quando na causa prejudicial se discuta, em via principal, uma questão que seja essencial para a decisão da prejudicada e que nesta não possa ser resolvida a título incidental.» ([4]).

Na mesma linha de raciocínio, pode argumentar-se que haverá dependência (e, como tal, prejudicialidade) quando a procedência de uma ação possa tirar a razão de ser à existência de outra ação, caso em que aquela funciona como causa prejudicial para esta, razão por que se deve suspender a instância nesta última ([5]).

Aliás, pode mesmo dizer-se que a suspensão da instância se justifica pela conveniência de evitar a prática de atos processuais inúteis ([6]), como quando o pedido da causa prejudicada/dependente perde a sua razão de ser face à decisão da causa prejudicial ([7]).

E ainda que “Não há lugar à suspensão da instância por vontade do juiz com fundamento na prejudicialidade de questão a apreciar noutra acção, se o decidido nesta não pode formar caso julgado material na acção suspensa” ([8]).

E coisa diversa não vem defendendo a jurisprudência das Relações, como pode ver-se, a título de exemplo, no sumário do Acórdão TRP de 14/04/2015 ([9]), com o seguinte teor:

“I- A suspensão da instância, com fundamento em causa prejudicial, depende da verificação do nexo de prejudicialidade, o qual ocorre quando a decisão daquela possa destruir os fundamentos ou a razão de ser da causa dependente.

II- Existe prejudicialidade quando na causa prejudicial se discuta, em via principal, uma questão que seja essencial para a decisão da prejudicada e que nesta não possa ser resolvida a título incidental (…)”.

Tudo ponderado, é líquido, pois, que in casu existe efetiva relação de prejudicialidade, sendo causa prejudicial a ação intentada pelo R. (e causa dependente a presente ação).

Porém, o A./Recorrente invoca, ex adverso, que aqueloutra ação judicial outra coisa não visou que alcançar a suspensão da presente instância – considera haver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão, o que remete para uma conduta intencional de obstrução do ali A. e aqui R..

É sobre este ponto que cabe agora ponderar (cfr. art.º 272.º, n.º 2, do NCPCiv.).

O Tribunal recorrido entendeu, perante a seriação de datas aludidas, assim:

«Daí que não se consiga, com o devido respeito, afirmar qualquer intenção dilatória na propositura da referida ação, tal como a Ilustre Patrona, aliás, sublinha na contestação que apresentou neste processo, no artigo 41.º da assinalada peça processual, ao registar que “está vedada a possibilidade de o R. deduzir reconvenção, pedindo a nulidade do negócio, porque tal daria origem a uma situação de litispendência, dado já ter sido peticionado no âmbito do processo 225/24....”.

Pelo que, face ao que antecede e reunidos que se mostram os requisitos previstos o artigo 272.º, n.º 1 do Código do Processo Civil e não se conseguindo sustentar, fundadamente, que a propositura da outra ação teve qualquer intenção dilatória por parte do réu, e constatando-se que os processos se encontram na mesma fase processual (fase de saneamento), entende-se que não se pode apreciar e decidir os pedidos formulados pelo autor nesta ação sem previamente aquela ação apreciar e decidir a questão da nulidade do contrato que serve de suporte a todos os pedidos formulados neste processo.».

E, como visto, não será de negligenciar que, para efeitos de nomeação de patrono ao aqui R. – no âmbito da figura do apoio judiciário, de que aquele se socorreu –, primeiro ocorreu a nomeação da Ilustre Patrona para intentar ação (aqueloutro processo, n.º 225/24....), em 21/11/2023, vindo essa ação a ser proposta em 03/02/2024.

Só depois teve lugar a nomeação da Ilustre Patrona para contestar a presente ação, com notificação em 08/03/2024, levando à dedução da contestação, como refere o A./Recorrente, em 12/03/2024.

Ou seja, quando aquela Ilustre Patrona foi notificada da sua nomeação no âmbito destes autos e para contestar a presente ação – em 08/03/2024 – já aqueloutra ação havia sido intentada, pelo que a questão que se punha então era a da litispendência, como também invocado, a obstar à dedução de reconvenção com o mesmo objeto substancial (por referência ao pedido/pretensão e à causa de pedir) de uma ação já proposta e em curso [cfr. art.ºs 577.º, al.ª i), e 580.º a 582.º, todos do NCPCiv.].

Por outro lado, o disposto no n.º 4 do art.º 266.º do NCPCiv. permite que, em caso de pedido reconvencional que envolva outros sujeitos – como no caso vertente, envolvendo, como demandados, o aqui A. e os seus pais –, os quais, de acordo com os critérios gerais aplicáveis à pluralidade de partes, possam associar-se a uma das partes na reconvenção, possa o réu suscitar a respetiva intervenção.

Ou seja, a lei estabelece que, em tais casos, envolvendo outros sujeitos (para além das partes), “pode” ser suscitada, pelo réu, a respetiva intervenção, para efeitos de dedução de reconvenção (contra a outra parte e todos aqueles).

Trata-se, assim, de uma possibilidade – não de uma obrigatoriedade –, cabendo ao demandado decidir se pretende suscitar essa intervenção, apresentando reconvenção, ou intentar ação (contra todos) em separado.

E também já se viu que, relativamente à ocorrência de causa prejudicial, “pode” o Tribunal ordenar a suspensão, não se tratando, pois, de uma obrigatoriedade legal, mas de um exercício decisório em âmbito de inevitável margem de liberdade de apreciação – a dita apreciação “discricionária”, «tomando em consideração as circunstâncias concretas de cada hipótese».

Porém, não se ignora a posição moderada de alguma doutrina a respeito da suspensão da instância com fundamento em causa prejudicial: como referem Abrantes Geraldes e outros ([10]), somente «podem motivar a suspensão com esse motivo ações que tenham sido instauradas anteriormente à ação em causa, a não ser que se verifique uma relação de prejudicialidade relativamente a um processo da competência dos tribunais criminais ou dos tribunais administrativos e fiscais (art. 92.º), em que o juiz pode decretar a suspensão (…) até que o tribunal competente se pronuncie.».

Todavia, a doutrina não é unânime a este respeito, havendo quem defenda – com respaldo em diversa jurisprudência – ser «irrelevante que a causa prejudicial já pendesse à data da propositura da ação em que se formula o pedido dependente» ([11]).

Neste sentido aponta, na jurisprudência, entre outros, o Ac. TRL de 18/03/2010, Proc. 3541/06.2TVLSB.L1-2 (Rel. Sousa Pinto), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «Estando a decorrer acção de reivindicação, a existência de processo de atribuição de casa de morada de família entretanto intentada entre as mesmas partes, mas com posições antagónicas, pode constituir causa prejudicial face àquela acção» ([12]).

Afigura-se-nos mais adequada esta última orientação, que não é contrária à letra do n.º 1 do art.º 272.º do NCPCiv. (o texto legal ainda a contempla), termos em que propendemos para considerar que não obsta à suspensão da instância, com base em causa prejudicial, a circunstância de esta última ser posterior à causa dependente (a causa a suspender), desde que já se mostre intentada aquando da decisão de decretamento da suspensão, posição mais plástica e conformadora perante situações como a dos autos, sujeita a vicissitudes estranhas à vontade das partes, como a operância prática da dita figura do apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono, e contingências que nesse âmbito podem ocorrer, mas que não devem prejudicar a parte carenciada economicamente, aquela que recorre à assistência judiciária.

Ponto é que não estejamos perante conduta intencional/dolosa da parte que pretende a suspensão.

Ora, no caso, vistas até aquelas vicissitudes ocorridas no âmbito da nomeação da Ilustre Patrona do aqui R., não se encontram razões que permitam concluir que houve uma atuação concertada (entre Patrona e R.) no sentido de terem acordado em intentarem outra ação apenas para obterem a paralisação da instância destes autos (cfr. o dito art.º 272.º, n.º 2, do NCPCiv.).

E, ainda que assim não se entendesse, sempre poderia considerar-se – em matéria de direito – que a suspensão haveria de ser concedida ao abrigo da parte final do n.º 1 do dito art.º 272.º: existência de “motivo justificado”.

Com este fundamento, é sabido que o “tribunal pode também ordenar, discricionariamente, a suspensão”, desde que não se verifiquem as circunstâncias daquele n.º 2 do art.º 272.º ([13]).

É sabido que a suspensão da instância “não está necessariamente dependente da iniciativa da parte, podendo ser oficiosamente determinada se acaso o juiz for confrontado com uma situação que mereça esse tratamento”, sendo tal suspensão “avaliada pelo juiz em função das circunstâncias que se verificarem”. Aliás, além da relação de prejudicialidade, a “suspensão da instância em geral pode encontrar outros motivos cuja justificação é sujeita ao escrutínio do juiz, o qual, neste campo, goza de uma larga margem de discricionariedade, devendo aquilatar se efetivamente se justifica tal medida. Nesses casos, o juiz deve sempre fixar o prazo de suspensão …” ([14]).

Ou seja, nesta perspetiva, se não se suspendesse a instância com fundamento em causa prejudicial, seria de decretar tal suspensão, em adequado escrutínio do Tribunal, com fundamento em “outro motivo justificado” ([15]), como sempre seria, a nosso ver – e salvo o devido respeito –, no caso de uma ação de reivindicação, fundada em contrato de transmissão do domínio (aquisição derivada), quando noutra ação se questiona precisamente a validade desse contrato/aquisição (em que foram também outorgantes outros sujeitos, que não estão na discussão na ação a suspender).

Em suma, improcedem as conclusões do Recorrente em contrário, devendo manter-se a decisão recorrida.

Vencido, o A./Recorrente deve suportar as custas recursivas (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

(…)


***

V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em, julgando improcedente a apelação, manter a decisão recorrida.

Custas da apelação pelo A./Recorrente – a parte vencida no recurso.

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 26/11/2024

Vítor Amaral (relator)

João Moreira do Carmo

Fernando Monteiro


([1]) Descreveu assim o referido “conjunto predial”: «(…) prédio misto, sito ao Bairro ..., inscrito na matriz da freguesia ..., a parte urbana sob os artigos ...14 e ...87 e a parte rustica sob o artigo 1466 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...60 a favor do A. aqui requerente através da AP....26 de 2013/05/17» (cfr. art.º 1.º da petição).
([2]) Como sintetizado na decisão aqui recorrida, invoca o R. que a escritura aludida «foi feita sem o seu consentimento e conhecimento, pelo pai do autor (seu primo) que, munido de uma procuração que lhe tinha outorgado a 20.11.2012 para que aquele o auxiliasse num projeto de alojamento local que pretendia fazer na Quinta, outorgou a dita escritura, “vendeu” aquele conjunto predial ao seu próprio filho, em tudo conluiado com os demais réus naquela ação (autor e pais do aqui autor)».
([3]) Excetuando, logicamente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Assim já o Ac. STJ, de 11/10/1994, Proc. 081359 (Cons. Sousa Inês), em www.dgsi.pt.
([5]) Cfr. Ac. STJ, de 29/10/1998, Proc. 99A604 (Cons. Silva Paixão), em www.dgsi.pt. E, no mesmo sentido, pode dizer-se que se verifica “a relação ou nexo de dependência ou prejudicialidade quando a decisão ou o julgamento de uma acção (a dependente) pode ser atrasado ou afectado pela decisão ou o julgamento emitido noutra acção (a prejudicial)” – vide Ac. STJ, de 18/02/1982, Proc. 069941 (Cons. Santos Silveira), também em www.dgsi.pt.
([6]) Assim foi entendido no Ac. STJ, de 13/07/1988, Proc. 075946 (Cons. Rodrigues Gonçalves), também em www.dgsi.pt.
([7]) Cfr. Ac. STJ, de 31/10/1979, Proc. 068123 (Cons. Rodrigues Bastos), em www.dgsi.pt.
([8]) Vide Ac. STJ, de 21/11/1996, Proc. 96B446 (Cons. Costa Marques), em www.dgsi.pt. Também no sumário do Ac. STJ, de 28/02/1975, Proc. 065660 (Cons. Correia Guedes), ainda em www.dgsi.pt, já se referia que a “suspensão da instância por causa prejudicial depende de nesta se discutir questão cuja decisão pode destruir o fundamento ou razão de ser daquela”.
([9]) Proc. 5050/13.4TBMTS.P1 (Rel. Fernando Samões), em www.dgsi.pt..
([10]) Cfr. Código de Processo Civil Anot., vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 314.
([11]) Cfr., neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anot., vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 551, bem como a jurisprudência ali aludida.
([12]) Veja-se ainda a fundamentação deste aresto, convocando outra jurisprudência, nos seguintes termos: «(…) contrariamente ao que entende o agravante, não é exigível que a acção prejudicial tenha de ser intentada antes da acção de que é dependente. // Como se refere no Ac. do STJ de 04/11/1997, em que foi Relator o Senhor Juiz Conselheiro, Dr. Machado Soares (in www.dgsi.pt), “é entendimento corrente que a acção prejudicial já deva estar intentada quando se determina a suspensão, mas não importa que o não estivesse ainda na data em que se intentou a causa dependente.”. // Nesse mesmo sentido, também o decidido no Ac. desta Relação, de 31/10/2002, em que foi relator o Senhor Juiz Desembargador, Dr. Carlos Valverde (in www.dgsi.pt): “Nos termos do artº 279º do CPC, para que a decisão de uma causa esteja dependente do julgamento de outra já proposta basta que a decisão de questão nesta última possa modificar à situação jurídica objecto daquela, não obstando à suspensão que a causa prejudicial haja sido instaurada posteriormente.”».
([13]) Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 553.
([14]) Cfr., ainda, Abrantes Geraldes e outros, op. cit., p. 315, com itálico aditado.
([15]) Por motivo justificado deve entender-se, neste âmbito, um motivo/circunstância que, em concreto, torne adequada, à luz de um critério de razoabilidade, a paralisação temporária do processo, posto dever deixar-se logo fixado o prazo de duração da suspensão.