1. - A solução do indeferimento liminar está reservada, em geral, para situações em que “a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nessa fase, a improcedência inequívoca da pretensão ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis”. Ou seja, situações irremediáveis, obrigando ao desaproveitamento da petição inicial, em plano divergente, pois, com uma situação de considerada insuficiência originária de prova indiciária, a poder ser ultrapassada no decurso da ação.
2. - No âmbito do regime de maiores acompanhados, o indeferimento liminar, com fundamento na falta de elementos indiciadores da situação clínica alegada, só deve ser adotado em situações de manifesta falta de indícios relevantes.
3. - Se o M.º P.º, que intentou a ação, juntou documentação clínica que se reporta a um historial de síndrome depressivo, em pessoa idosa e portadora de outras patologias, tal é quanto basta, à partida, para se considerar suficientemente indiciada a alegada situação clínica, afastando a possibilidade de indeferimento liminar.
4. - Havendo esse princípio de prova do âmbito médico, deve a ação prosseguir, sendo no decurso de mesma que deverá ocorrer a produção das provas seguras/consistentes a respeito, no escopo da realização da justiça material, que coenvolve o superior interesse do beneficiário.
Recurso próprio, nada obstando ao seu conhecimento.
***
Ao abrigo do disposto no art.º 656.º do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), segue decisão sumária, face à simplicidade da questão a decidir.
***
I – Relatório
O Ministério Público (doravante, M.º P.º) instaurou ([1]) a presente ação especial de acompanhamento de maior em benefício de AA, nascida em ../../1952, com morada em Av.ª..., ... ..., requerendo assim:
«Nestes termos e nos demais de Direito, deverá proceder-se à audição pessoal e directa da beneficiária nos termos dos artigos 139.º, n.º 1, do CC e 898.º, do CPC, julgando-se a presente acção procedente, por provada e, consequentemente:
a. Ser decretado o regime de acompanhamento da beneficiária em razão do seu estado de saúde, sendo as medidas a aplicar a representação geral e a administração total dos seus bens – cfr. artigos 145.º n.ºs 1, 2, alíneas b) e c), 4 e 5, do CC;
b. Ser decretado o acompanhamento da beneficiária no exercício dos seus direitos pessoais e na celebração de negócios da vida corrente – cfr. 147.º, do CC;
c. Ser decretada a desnecessidade de publicidade da decisão final do processo – cfr. 153.º, do CC e 892.º, n.º 1, alínea d), 893.º e 894.º, do CPC;
d. Ser determinado o registo da presente acção na Conservatória do Registo Civil – cfr. 1920.º - B e 1920.º - C, do CC, aplicável por força do disposto no artigo 153.º, n.º 2, do CC.
(…)
Nos termos do artigo 143.º, n.ºs 2, alínea e), do CC, indica-se, para exercer o cargo de acompanhante BB, filha da beneficiária, com morada em ..., Lote ..., ..., ... ....
(…)
Nos termos dos artigos 1951.º, 1952.º e 1955.º, n.º 1, do CC, ex vi 145.º, n.º 4, do CC, indicam-se, para integrarem o Conselho de Família:
a. Protutor: a apurar aquando da inquirição da acompanhante;
b. Vogal: a apurar aquando da inquirição da acompanhante.» (destaques retirados).
Logo ofereceu requerimento de provas, nos seguintes moldes:
«Prova Documental:
Doc. n.º 1 – Certidão de Assento de Nascimento;
Doc. n.º 2 – Certidão de Assento de Nascimento;
Doc. n.º 3 – Documentação clínica disponível.
*
Prova Testemunhal [a notificar, nos termos do artigo 507.º, n.º 2, do CPC]:
BB, filha da beneficiária, com morada em ..., Lote ..., ..., ... ...».
Alegou, para tanto, em síntese:
- a beneficiária, nascida em ../../1952, reside com o marido, padecendo de, além de outras patologias, de síndrome depressivo;
- não sabe em que ano nasceu, não conhece a sucessão dos dias, meses e anos, não sabe o dia em que se encontra, não consegue cozinhar a sua alimentação, nem executar tarefas domésticas, nem deslocar-se a consultas médicas sem auxílio de terceiros, nem manter uma conversa simples e com sentido;
- não sabe contar ou efetuar operações matemáticas simples, não tendo capacidade para movimentar contas bancárias, efetuar pagamentos, levantamentos ou depósitos;
- também não tem capacidade para exercer atividade profissional, não sendo capaz de memorizar factos novos, antes estando dependente de terceiros e, como tal, impossibilitada de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e, bem assim, cumprir os seus deveres;
- daí, perante a patologia de que sofre, a necessidade de acompanhamento.
Por despacho de 14/10/2024, foi formulado convite ao Requerente (M.º P.º) para «juntar aos autos elementos que indiciem a situação clínica da beneficiária, alegada na petição inicial e que a incapacita de, de forma plena, pessoal e consciente, exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres, (…) sob pena de indeferimento liminar do requerimento inicial» ([2]).
O M.º P.º respondeu nos seguintes termos:
«(…) vem juntar aos autos cópia do registo clínico mais recente que dispõe, relativo a AA.
Tendo em consideração que ao processo de acompanhamento de maior se aplicam, com as necessárias adaptações, as regras da jurisdição voluntária e com vista a aferir se, atualmente, AA, reúne os pressupostos previstos no artigo 138.º do Código Civil, requer-se a V.ª Ex.ª que determine o prosseguimento da ação com a realização das seguintes diligências:
- A inquirição de BB (testemunha indicada pelo Ministério Público na Petição Inicial);
- A realização a AA do exame pericial a que alude o artigo 899.º do Código de Processo Civil; e
- A audição pessoal de AA nos termos do disposto nos artigos 897.º, n.º 2 e 898.º do Código de Processo Civil.».
Porém, por decisão datada de 29/10/2024, foi liminarmente indeferido o requerimento inicial.
Inconformado, recorre o M.º P.º, apresentando alegação, culminada com as seguintes
Conclusões ([3]):
«1- Por decisão proferida em 29.10.2024, o Tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento inicial apresentado pelo Ministério Público nos termos do disposto nos artigos 138.º e 141.º, n.º 1, do Código Civil, 4.º, n.º 1, al. r), do Estatuto do Ministério Público e 892.º, do Código de Processo Civil, no qual se pedia o acompanhamento da maior AA, mediante a aplicação das medidas de representação geral e administração total dos seus bens.
2- O Tribunal a quo considerou que o requerimento inicial não vinha acompanhado de elementos que indiciam a situação clínica da beneficiária, conforme exige a alínea e), do nº 1, do artigo 892º, do Código de Processo Civil.
3- Com tal entendimento, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 13.º da Constituição da República Portuguesa, 138.º, 139.º, nº 1, 140.º, nº 1, do Código Civil, 411.º, 891.º, nº 1, 892.º, 897.º, 898.º, 899.º e 986º, nº 2, do Código de Processo Civil.
4- Com efeito, «O indeferimento liminar deve ter lugar quando a improcedência da pretensão for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de actividade judicial» (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-10-2022, proc. nº 1121/20.9T8CSC-A.L1-8, disponível em www.dgsi.pt).
5- No caso, inexiste qualquer razão de facto ou de direito que justifique a decisão da qual se recorre.
6- Na petição inicial que deu origem aos autos foram indicados e concretizados os factos essenciais que fundamentam o pedido de acompanhamento de maior de AA. Foi indicada prova documental e testemunhal.
7- No que à prova documental respeita, juntaram-se os registos clínicos disponíveis e mais recentes relativos à beneficiária, os quais apresentam data anterior à da propositura da ação.
8- De tais elementos consta, além do mais, que a beneficiária se desloca em cadeira de rodas, apresenta limitação na marcha por patologia nos joelhos e tem antecedentes de síndrome depressivo.
9- A decisão recorrida não explica e não se alcançam os fundamentos de ciência médica e de Direito que levaram o Tribunal a quo a considerar que o facto da beneficiária se deslocar em cadeira de rodas, apresentar limitação na marcha por patologia nos joelhos e ter antecedentes de síndrome depressivo não representam indícios de que a mesma poderá reunir os requisitos de aplicação de medidas de acompanhamento.
10- Em muitos casos, - como se afigura ser o dos presentes autos -, só depois de realizadas as diligências de prova requeridas na petição inicial, bem como após a audição pessoal da beneficiária, a realização de exame pericial e demais diligências que o Tribunal considere necessárias à boa decisão da causa, o Tribunal estará em condições de decidir se a beneficiária necessita de medidas de acompanhamento.
11- Deste modo, no que concerne à petição inicial de ação de Acompanhamento de Maior e aos documentos que a acompanham, o Tribunal a quo apresenta mais exigências que a própria lei, sendo que tal entendimento contraria a natureza e as finalidades de tal ação.
12- O entendimento defendido pelo Tribunal a quo sobre o teor das informações clínicas que devem acompanhar o requerimento inicial nos termos do artigo 892.º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil, viola o princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, diferenciando cidadãos que beneficiam de acompanhamento médico regular daqueles que não beneficiam, de todo, de qualquer acompanhamento médico ou que não beneficiam de acompanhamento médico regular.
13- Perante o quadro factual apresentado e tendo em conta o disposto nos artigos 13.º da Constituição da República Portuguesa, 138.º, 139.º, nº 1, 140.º, nº 1, do Código Civil, 411.º, 891.º, nº 1, 892.º, 897.º, 898.º, 899.º e 986º, nº 2, do Código de Processo Civil, ao invés de ter indeferido liminarmente o requerimento inicial, o Tribunal a quo podia e devia, pelo menos, ter determinado a realização das seguintes diligências:
- A realização de exame e consequente relatório pericial a que alude o artigo 899.º do Código de Processo Civil;
- A audição pessoal e direta de AA, nos termos do disposto nos artigos 897.º, n.º 2 e 898.º do mesmo diploma legal; e
- A inquirição de BB, testemunha indicada na petição inicial.
Nestes termos, deverão Vossas Excelências dar total provimento ao presente recurso, revogando a decisão proferida pelo Tribunal a quo, a qual deverá ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos com:
- A realização, a AA, de exame e consequente relatório pericial a que alude o artigo 899.º do Código de Processo Civil;
- A audição pessoal e direta de AA, nos termos do disposto nos artigos 897.º, n.º 2 e 898.º do mesmo diploma legal; e
- A inquirição de BB, testemunha indicada na petição inicial.
Assim se fazendo justiça.».
O recurso foi admitido, como de apelação, com o regime fixado no processo ([4]), tendo sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem.
Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.
II – Âmbito recursivo
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([5]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber, apenas, se há, ou não, fundamento para o decretado indeferimento liminar.
III – Fundamentação
A) Matéria de facto
O quadro fáctico e a dinâmica processual a considerar são os que constam do antecedente relatório, aqui dado por reproduzido, a que se acrescenta apenas o seguinte:
1. - Com a petição foi junto “Relatório Médico” do Centro Hospitalar da ..., E.P.E., referente à beneficiária, AA, do qual consta (cfr. documento de fls. 9 e v.º do processo físico) que a beneficiária:
- é acompanhada em consulta de nefrologia desde novembro do ano de 2020, por discreta insuficiência renal, tendo antecedentes, para além do mais, de hérnias da coluna, varizes, gastrite nervosa, hiperuricemia, síndrome depressivo, embolia pulmonar, brucelose;
- sofre, por vezes, de perda de equilíbrio;
- apresenta osteoartrose, com alterações da marcha;
2. - Com o seu requerimento de 28/10/2024, o M.º P.º juntou “cópia do registo clínico mais recente que dispõe”, do qual resulta, com referência a um episódio de urgência ocorrido em julho de 2024, que:
- a beneficiária se terá dirigido ao Centro de Saúde depois de ter sofrido uma queda após desmaio, com traumatismo do pé esquerdo, tendo testado positivo para a Covid-19;
- movimentando-se em cadeira de rodas, é portadora de síndrome depressivo.
B) Aspeto jurídico do recurso
Dos requisitos de admissão/rejeição liminar da petição em ação especial de acompanhamento de maior
O Tribunal recorrido entendeu que, «conforme resulta do disposto no artigo 892º, nº1, alínea e), do CPC, com o requerimento inicial deve o requerente, além do mais, juntar elementos que indiciem a situação clínica do beneficiário, ou seja, declaração médica e/ou relatório que descreva a situação clínica do beneficiário, data de início, tratamento e prognóstico».
Ora, no caso, «(…) do relatório médico que acompanhou a petição inicial não se afigura possível concluir que a doença da beneficiária, pese embora a possa limitar fisicamente, a incapacite de exercer, de forma plena, pessoal e consciente os seus direitos e de cumprir os seus deveres, conforme alegado, i.e., de autogovernar e autodeterminar a sua vida, tanto pessoal, como patrimonial, pois tal não resulta minimamente indiciado do único elemento clínico que acompanhou tal articulado».
E prossegue a 1.ª instância (mesmo depois da junção do segundo documento médico):
«(…) nenhuma da documentação junta aos autos cumpre o disposto na alínea e), do nº1, do artigo 892º, do CPC, uma vez que da mesma não se afigura possível concluir que a doença da beneficiária, pese embora a possa limitar fisicamente, a torne totalmente dependente de terceiros e impossibilitada de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e de cumprir os seus deveres, conforme alegado no artigo 16º de tal articulado».
Para logo depois afirmar e concluir:
«(…) para que o processo de acompanhamento de maior prossiga os seus ulteriores termos têm de ser juntos com o requerimento inicial elementos que indiciem a situação clínica do beneficiário, alegada no requerimento inicial. Isto não significa que com o requerimento inicial tenha de ser junta prova concludente do estado clínico do beneficiário, alegado naquele articulado, mas tem que ser obrigatoriamente junta prova indiciária desse estado, o que no caso em apreço não se verifica, conforme já supra exposto, pese embora o convite formulado pelo Tribunal ao requerente nesse sentido.
É que se assim não se entender - i.e., se se entender que o requerente não terá de acompanhar o requerimento inicial com os elementos que indiciam a situação clinica do beneficiário, alegada naquele articulado, quando a instauração do processo de acompanhamento de maior se prende com motivos/razões de saúde do beneficiário - a alínea e), do nº1, do artigo 892º, do Código de Processo Civil fica esvaziada de qualquer conteúdo e, portanto, passa a ser letra morta, pois basta em qualquer processo de acompanhamento de maior alegar os factos que justificam a proteção do maior através do acompanhamento, para que o processo prossiga os seus ulteriores termos, apenas com a ulterior produção de prova indicada (pericial e testemunhal).
Atentas as considerações tecidas, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não partilhamos de tal entendimento, por considerarmos não ter sido essa a intenção do legislador com o estabelecido na disposição legal citada neste novo regime do maior acompanhado.
Em face do exposto, indefere-se liminarmente o requerimento inicial.» (destaques aditados).
Por seu lado, o M.º P.º esgrime que o indeferimento liminar da petição somente deve ocorrer em casos de manifesta improcedência da petição, tornando inútil qualquer instrução e discussão posterior, em casos, pois, em que o prosseguimento do processo não colha qualquer razão de ser.
Reforça, quanto a prova documental, que foram juntos os documentos clínicos disponíveis e mais recentes relativos à beneficiária, dos quais resulta, para além do mais, que aquela se desloca em cadeira de rodas e tem antecedentes de síndrome depressivo, sendo que as demais provas haverão de ser produzidas intra-processo, em conformidade com as diligências probatórias requeridas na petição.
Conclui que o Tribunal apresenta, com a decisão recorrida, um grau de exigência probatória maior que o da própria lei, com a agravante de ser violador do princípio constitucional da igualdade, por diferenciar cidadãos que beneficiam de acompanhamento médico regular de outros que o não têm.
Por isso, entende que o Tribunal teria de determinar o prosseguimento dos autos, com realização de diligências probatórias requeridas, das quais se retiraria luz sobre o estado da beneficiária.
Vejamos quem tem razão, começando por uma breve perspetiva quanto aos dados legais aplicáveis.
Dispõe o art.º 138.º do CCiv. que «O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código» (itálico aditado).
Neste âmbito, é inequívoco que:
«1 - O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.
2 - Em qualquer altura do processo, podem ser determinadas as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido» (art.º 139.º do mesmo Cód.).
De nunca esquecer, ainda, que:
«1 - O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.
2 - A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.» (art.º 140.º do mesmo Cód.).
Quanto aos aludidos deveres «de cooperação e de assistência que no caso caibam», estabelece o art.º 1674.º do CCiv. que «O dever de cooperação importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram».
Já o seguinte art.º 1675.º (quanto ao dever conjugal de assistência) dispõe assim:
«1. O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar.
2. O dever de assistência mantém-se durante a separação de facto se esta não for imputável a qualquer dos cônjuges.
(…)».
Porém, se a Requerida/Beneficiária, tem marido, com quem reside, certo é que o próprio Tribunal manifesta, na sua decisão em crise, que o marido padece de demência, razão pela qual corre termos em relação a ele um (outro) processo de acompanhamento de maior (com o n.º 1409/24....).
Afastada fica, pois, salvo o devido respeito, a conclusão no sentido de a medida ter o seu objetivo garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso coubessem.
Voltando à disciplina do regime do acompanhamento de maiores, prevê o art.º 145.º do CCiv. (quanto ao âmbito e conteúdo do acompanhamento) o seguinte:
«1 - O acompanhamento limita-se ao necessário.
2 - Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:
(…)
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
3 - Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica.
4 - A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.
5 - À administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes.».
Dúvidas não existem, por outro lado, de que no centro deste regime de acompanhamento está sempre o acompanhado e o seu interesse, sendo este que importa preservar e dispondo, nesta linha, o art.º 146.º do CCiv. (com a epígrafe «Cuidado e diligência») que:
«1 - No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada.
2 - O acompanhante mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada.».
Sabe-se ainda que (cfr. art.º 147.º do CCiv., na senda do princípio da menor ingerência e da proporcionalidade), quanto a «Direitos pessoais e negócios da vida corrente»:
«1 - O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.
2 - São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar.».
Por outro lado, «O acompanhamento cessa ou é modificado mediante decisão judicial que reconheça a cessação ou a modificação das causas que o justificaram» (art.º 149.º, n.º 1, do CCiv.).
E, quanto a conflito de interesses (art.º 150.º do CCiv.):
«1 - O acompanhante deve abster-se de agir em conflito de interesses com o acompanhado.
2 - A violação do dever referido no número anterior tem as consequências previstas no artigo 261.º
3 - Sendo necessário, cabe-lhe requerer ao tribunal autorização ou as medidas concretamente convenientes.».
Por fim, resulta do preceito do art.º 892.º do NCPCiv. que, no requerimento inicial, deve o requerente “Juntar elementos que indiciem a situação clínica alegada” [n.º 1, al.ª e)].
Trata-se, pois, de uma dimensão de indiciação, numa fase inicial dos autos, posto a prova segura só poder/dever caber, a jusante, no âmbito da tramitação do processo, com as diversas provas a serem produzidas em tribunal.
Sobre tal preceito e exigência legal, esclarecem Abrantes Geraldes e outros ([6]) que «Devem ser apresentados os meios de prova demonstrativos da situação em que o beneficiário se encontra (máxime a documentação relacionada com a situação clínica) (…).».
Quanto ao indeferimento liminar, dispõe o art.º 590.º, n.º 1, do NCPCiv. que, sendo apresentada a despacho liminar, «a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente (…)» ([7]).
No caso dos autos, vista a petição apresentada, com o seu pedido e a sua causa de pedir (e inerente factualidade alegada), não poderá dizer-se que ocorre, em termos materiais/substanciais, uma situação de manifesta improcedência do pedido.
E também não se vê que ocorra alguma típica exceção dilatória insuprível.
O que se considerou ocorrer foi, no plano estritamente probatório, a não junção, com a petição, de elementos (documentais ou periciais) que indiciassem suficientemente a situação clínica alegada.
Todavia, como, aliás, invocado pelo M.º P.º, vem sendo jurisprudencialmente entendido que «O indeferimento liminar deve ter lugar quando a improcedência da pretensão for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de actividade judicial» ([8]).
No caso dos autos não se trata de situação de manifesta improcedência da ação/pedido, posto os factos alegados, a resultarem provados, serem idóneos, materialmente, a desencadear a procedência da ação.
Não se tratando também da existência de qualquer exceção dilatória insuprível, do que se tem de cuidar é, afinal, de aquilatar sobre a quantidade e eficiência da prova junta originariamente (ou após o despacho de convite), com vista a determinar se a mesma basta, ou não, para indiciar a situação clínica alegada, dando início à ação.
E, nesse âmbito, é certo que – embora a dois tempos – foi junto um relatório médico, seguido de um documento de atendimento/tratamento em serviço de urgência.
Desses documentos, na sua conjugação entre si, resulta a existência de um quadro clínico da beneficiária, onde se salienta, para além da osteoartrose e problemas de mobilidade, o dito síndrome depressivo, aliado à idade daquela.
É sabido que vigora no nosso atual sistema processual civil o princípio do máximo aproveitamento dos atos, com afloramentos nos art.ºs 6.º e 590.º, n.ºs 2 e segs., do NCPCiv.).
Assim, os atos processuais – ou, como no caso, um processo judicial, mormente, pela sua natureza e interesses em causa, com aspetos de aproximação aos processos de jurisdição voluntária (como in casu, à luz do disposto no art.º 891.º, n.º 1, do NCPCiv.) – devem ser aproveitados, na medida do possível, em vez de desaproveitados, se dotados de viabilidade previsível ou assente, tendo em conta o escopo da justiça material, fim último do processo, preconizando-se agora, no âmbito da filosofia processual vigente, “que se adote comportamentos que potenciem a eficiência da resposta judiciária”, com inarredáveis preocupações de “celeridade e eficácia” ([9]).
Mormente se estamos ainda – reitera-se – na órbita/lógica dos processos de jurisdição voluntária – como na própria decisão recorrida se refere, este tipo de processos assume-se, substancialmente, como de jurisdição voluntária.
Assim sendo, o preceito do art.º 892.º, n.º 1, al.ª e), do NCPCiv. não deverá – salvo o respeito devido – ser interpretado no sentido de impor, perentoriamente, uma prova originária forte (documental ou pericial) sobre a situação clínica alegada, ao ponto de, se inexistir uma tal prova cabal, dever ocorrer indeferimento liminar.
A exigência da lei reporta-se à existência de indícios: junção de elementos que indiciem uma determinada situação alegada, no caso, elementos do âmbito médico.
Ora, se a lei se basta com indícios, não pode o aplicador da lei impor mais que elementos indiciadores, ou seja, ainda tem de admitir-se que possa ficar-se, originariamente, aquém de uma prova consistente.
Esta vai ser necessária para decisão da causa, mas deve ser produzida dentro do processo, no decurso dele, com sujeição ao princípio do contraditório na produção das provas.
Quando a petição é apresentada bastam os aludidos elementos indiciadores, ficando as provas consistentes para depois, por deverem ser produzidas, em lógica de observância do contraditório, no âmbito/decurso do processo.
Assim, tudo visto, afigura-se-nos que deve ser usado com cautela o controlo da petição, em termos de indeferimento liminar, à luz daquele preceito do art.º 892.º, n.º 1, al.ª e).
Havendo indiciação suficiente da situação clínica alegada, não deve, na fase inicial do processo, exigir-se uma prova consistente, em termos de, na falta desta, se partir para o indeferimento liminar da petição ([10]).
Assim, concorda-se que a prova essencial haverá de ser produzida ao longo do processo, em vez de ser trazida para o mesmo ao tempo da interposição da ação.
É certo que, sem indícios, não se compreenderia o prosseguimento de uma tal ação.
Mas, garantidos esses indícios, aquele prosseguimento não pode ficar dependente de uma prova robusta/consistente, já presente à nascença do processo.
No caso, resulta da prova documental médica que a aqui beneficiária, par além das doenças por que passa atualmente, tem um historial de síndrome depressivo, cuja profundidade e consequências por agora não é possível determinar, mas o que poderá, obviamente, ser esclarecido no decurso do processo, vista até a sinalizada natureza e caraterísticas do mesmo, podendo levar ao sucesso ou ao insucesso deste, mas sempre no fim/escopo último da realização da justiça material.
Em suma, para efeitos de prosseguimento da ação (e aproveitamento dos atos), afigura-se-nos existir indiciação suficiente da situação clínica – decomposta na factualidade alegada – invocada na petição, afastando o indeferimento in limine.
Estando em causa o superior interesse do maior acompanhado, no caso esse interesse passa pelo prosseguimento dos autos – em vez de indeferimento liminar –, com vista a apurar se a invocada situação clínica existe, ou não, e quais as respetivas consequências para a vida da beneficiária.
Termos em que, procedendo a apelação, deve revogar-se a decisão recorrida, para prosseguimento do processo.
V – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida.
Sem custas da apelação [cfr. art.º 4.º, n.º 2, al.ª h), do RCProc.].
06/12/2024
Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinatura eletrónica.
Vítor Amaral
([1]) Em 10/10/2024, no Juízo Local Cível da Covilhã (Juiz ...) do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco.
([2]) Na respetiva fundamentação pode ler-se: «(…) prescreve o artigo 892º, nº1, alínea e), que com o requerimento inicial deve o requerente, além do mais, juntar elementos que indiciem a situação clínica do beneficiário (ou seja, elementos clínicos que indiciem essa incapacidade). // Pese embora toda a alegação da petição inicial, do único elemento clínico que acompanhou tal articulado não resulta minimamente indiciado que a beneficiária não se encontra capaz de gerir a sua pessoa e os seus bens. // Conforme resulta do relatório médico que acompanhou a petição inicial, a beneficiária é acompanhada em consulta de nefrologia desde o ano de 2020 por discreta insuficiência renal, apresentando osteoartrose, com alterações da marcha e por vezes perda de equilíbrio. // No campo preenchido pelo médico sob a epigrafe “Diagnósticos incapacitantes ou de situação de deficiência e/ou dependência”, encontra-se apenas “Osteoartrose”. // Os antecedentes pessoais da beneficiária e a medicação que a mesma cumpre também não permitem concluir que a beneficiária não se encontra capaz de gerir a sua pessoa e os seus bens. // Salvo o devido respeito, o relatório médico que acompanhou a petição inicial afigura-se manifestamente insuficiente para o cumprimento do disposto na referida alínea da disposição legal supracitada, uma vez que do mesmo não se afigura possível concluir que a doença da beneficiária, pese embora a possa limitar fisicamente, a incapacite de exercer, de forma plena, pessoal e consciente os seus direitos e de cumprir os seus deveres, i.e., de autogovernar e autodeterminar a sua vida, tanto pessoal, como patrimonial.».
([3]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([4]) Subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
([5]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([6]) Cfr. Código de Processo Civil Anot., vol. II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, p. 347.
([7]) Sobre a matéria, cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anot., Vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, ps. 622 e segs..
([8]) Veja-se o sumário do Ac. TRL de 27/10/2022, Proc. 1121/20.9T8CSC-A.L1-8 (Rel. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira), em www.dgsi.pt.
([9]) Cfr. Abrantes Geraldes e outros, op. cit., p. 31, autores que chamam ainda a atenção para «dois pilares fundamentais do processo civil: o da instrumentalidade dos mecanismos processuais em face do direito substantivo e o da prevalência das decisões de mérito sobre as formais», sendo que, em «caso de conflito de interesses, impõe-se a intervenção reguladora do juiz com funções de tutela de direitos subjetivos ou de interesses juridicamente relevantes» (p. 32). E concluem que daqui «deriva a sobreposição do direito substantivo ao direito processual, relação que só deve inverter-se quando a boa administração da justiça imponha outra solução» (idem).
([10]) Como em geral se vem entendendo, os «casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nessa fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição» (cfr. Abrantes Geraldes e outros, op. cit., p. 674). Ou seja, situações irremediáveis, obrigando ao desaproveitamento da petição inicial, em plano divergente, pois, com uma situação de considerada insuficiência originária de prova, que pode ser ultrapassada no decurso da ação.