I - Ajuizar do acerto da decisão que determinou a inversão do ónus da prova em relação a uma parte, por razões atinentes à sua recusa em prestar autorização para que o banco prestasse informações bancárias atinentes a um financiamento de crédito, implica a prévia definição do seu ónus probatório.
II - Implica ainda enquadrar os ónus probatórios na causa de pedir onde se inserem os títulos levados à execução: escritura de crédito, hipoteca e livrança.
III - Sendo o contrato de abertura de crédito um contrato consensual por via do qual um estabelecimento bancário se obriga a ter à disposição do cliente uma soma de dinheiro que este tem possibilidade de utilizar, mediante uma ou mais operações bancárias, este contrato, só por si, não é título executivo. Os atos subsequentes à abertura de crédito e complementares desta é que titulam o direito de crédito do exequente, na medida do desembolso que este tenha efetuado.
IV - Incumbindo, nesse caso, ao credor alegar e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que efetuou ou ofereceu a prestação, nos termos do atual art. 715.º do CPC.
V - A escritura pública donde apenas constam declarações dos outorgantes no sentido de constituírem uma hipoteca para garantia do pagamento de quantias que possam vir a ser devidas por força de um “contrato de financiamento” não é título executivo bastante em ação executiva destinada a obter o pagamento de quantia certa, nos termos do art. 701.º, n.º 1, al. b), do CPC, porque essa escritura não importa na constituição ou reconhecimento duma obrigação pecuniária.
VI - Sempre que o avalista e credor estejam ligados por uma convenção extracartular, seja ela anterior, contemporânea ou posterior à subscrição do título, estaremos em presença de relações imediatas e o conteúdo daquela convenção é invocável pelo avalista contra o credor na qualidade de meio de defesa próprio.
VII - Cabendo aos embargantes avalistas a prova do preenchimento abusivo.
Acordam na 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
I.1. Em 03-10-2013 BANIF – Banco Internacional do Funchal, S.A. (presentemente na sua posição processual Oitante, S.A.) instaurou ação executiva para pagamento de quantia certa contra os executados:
- SIROCO, Construção Civil e Obras Públicas, S.A;
- GOOP-Gestão de Obras Públicas e Particulares, S.A., entretanto declarada insolvente;
- AA e BB, entretanto declarados insolventes.
Com vista à obtenção do pagamento da quantia de €620.988,60, a título de capital, acrescido de juros, imposto de selo e despesas de cobrança, perfazendo a quantia total de €631.093,54.
Apresentando como títulos executivos:
1. Uma livrança avalizada em branco, subscrita pela executada GOOP, a seu favor, com avales prestados por AA e BB e, o valor aposto de € 620.988,60.
2. Uma escritura pública de hipoteca outorgada em 10-10-2011 por Siroco - Construção Civil e Obras Públicas, SA, a favor de BANIF – Banco Internacional do Funchal, S.A em caução e garantia do bom cumprimento das obrigações emergentes do «Contrato de abertura de crédito para fomento à Construção» outorgado entre Banif - Banco Internacional do Funchal, SA (primeira outorgante), GOOP - Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA (segunda outorgante) e AA e BB (terceiros outorgantes ou garantes).
Contrato de abertura de crédito que juntou aos autos.
I.2. Em 03-06-2015, vieram todos os executados deduzir embargos de executado, com fundamento em nulidade ou resolução do contrato de abertura de crédito garantido pela livrança e hipoteca, considerando os seguintes fundamentos: a inclusão no mesmo de cláusulas contratuais gerais proibidas; não cumprimento pela embargada do financiamento acordado; alteração anormal das circunstâncias devido à grave crise económica que o país atravessou a partir de 2010; incumprimento pela embargada das obrigações previstas no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25-10 (PERSI).
Requerendo seja declarada extinta a execução.
I.3. Por despacho de 05-07-2018, foram os embargos liminarmente admitidos.
1.4. Em 03-09-2018, veio a Exequente/Embargada contestar por impugnação, pedindo a improcedência dos embargos e consequente prossecução da ação executiva.
1.5. Em 10-11-2020 foi proferido despacho a determinar a suspensão da instância quanto à Executada/Embargante Gopp Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA, nos termos do artigo 81.º n.º 1 do CIRE, por a mesma ter sido declarada insolvente.
1.6. – Em 25-11-2020 os embargantes apresentaram requerimento inicial aperfeiçoado, no qual mantêm, como alegado na primitiva petição (art. 50º), a falta de recebimento efetivo do montante financiado, seja diretamente pela GOOP, S.A, seja, indiretamente mediante pagamentos à M...Lda., empreiteira encarregue de prestar trabalhos para a GOOP S.A., no âmbito do contrato tripartido que antecedeu o contrato de abertura de crédito e justificou este bem como as garantias prestadas: livrança com avales prestados e hipoteca.
Invocaram, assim, que o contrato celebrado em 31-12-2010 denominado “Contrato tripartido de gestão de pagamentos ao empreiteiro no âmbito do contrato de fomento à construção” celebrado entre o BANIF, a sociedade GOOP, S.A., dona da obra e a sociedade M...Lda. empreiteira, mediante o qual o banco pagava, por tranches, em função do bom andamento da obra, diretamente à M...Lda., permitindo desse modo acabar as obras em curso;
Desse modo, alegaram os embargantes, não obstante a constituição da hipoteca e demais garantias para tal financiamento, nunca foram libertados fundos para fazer face aos pagamentos da GOOP S.A, perante a M...Lda., pelo que, não tendo o Banif feito os pagamentos a que se obrigou no referido contrato, não é devida a quantia exequenda.
No final, requereram os Embargantes que, para comprovarem esta alegação “ao abrigo do preceituado no art.º 429º do CPC, seja a Embargada notificada para juntar aos autos, em prazo a designar, documentos comprovativos dos pagamentos efetuados à sociedade M...Lda., ou da libertação de fundos à sociedade GOOP. S.A., para fazer face aos pagamentos aquela devidos, no âmbito do contrato de abertura de crédito para fomento à construção, junto como doc. nº 2, com o requerimento executivo, a que os Embargantes não têm acesso e se encontram na posse da Embargada, o que fazem para prova da matéria de facto alegada (…)”.
1.7. Veio a Embargada responder por requerimento de 30-11-2020, aduzindo que a GOOP S.A. incumpriu as suas responsabilidades contratuais, carecendo de qualquer fundamento legal a pretensão dos Embargantes na junção pela Embargada de documentos comprovativos dos pagamentos efetuados à sociedade M...Lda., ou da libertação de fundos diretamente à sociedade GOOP. S.A., no âmbito de um contrato que não constitui causa de pedir.
1.8. Em audiência prévia de 25-05-2021 foi deferido o referido requerimento probatório e ordenada a notificação da Embargada para juntar aos autos os documentos especificados pelos embargantes.
1.9. A Embargada em 05-07-2021 veio informar “que apesar dos esforços junto do nosso arquivo não foi possível obter os elementos solicitados. Esta situação fica-se a dever ao facto das circunstâncias em que ocorreu a transmissão das posições do Banif para a Oitante, nomeadamente o facto de as contas terem todas transitadas para o Banco Santander Totta, S.A.. (…) Contudo sendo que tais elementos estarão da disposição do Banco Santander Totta, S.A., requer-se que se digne a ordenar a notificação desta entidade para juntar a informação pretendida pela Embargante e por este doutro Tribunal”.
1.10. O que foi deferido, tendo o Banco Santander Totta, S.A., sido notificado “nos termos dos artigos 417.º e 432.º do CPC, para, no prazo de 15 dias, juntar aos autos os documentos especificados pelos executados/embargantes.”
1.11. Em 04-03-2022, o Banco Santander Totta, S.A., informou os autos do seguinte:
“(…) nos termos dos art. 78º e 79º do Diploma que regulamenta o Regime Geral das Instituições de Crédito, as informações solicitadas encontram-se abrangidos pelo segredo bancário, não nos sendo possível facultá-las, sem obtermos, previamente, autorização dos respetivos titulares, pelo que solicitamos enquadramento legal para o pedido apresentado por V. Exas.”.
1.12. Em 23-03-2022, foi proferido despacho ordenando “a notificação dos embargantes para, em 10 dias, juntarem aos autos as solicitadas declarações de autorização de acesso aos documentos/informações bancárias em causa ou requererem, a este respeito, o que tiverem por conveniente.”
1.13. Em 11-05-2022, os Embargantes AA, BB e Siroco, Construção Civil e Obras Públicas, S.A., vieram invocar o direito à reserva da intimidade da vida privada, como fundamento de recusa para prestação de tal autorização.
1.14. Em 12-05-2022, a Exequente/Embargada respondeu imputando aos embargantes abuso de direito.
1.15. Em 23-05-2022, os Embargantes/Executados vieram insistir para que a Embargada seja de novo notificada para produzir prova de que pagou ou colocou à disposição da Embargante e em que montantes, relativamente à quantia creditada “(…) não cabendo à Embargante provar o facto negativo de não recebimento. Seria, pois, uma inversão de ónus de prova de facto negativo.
Pelo que, mais uma vez salvo melhor opinião, se entende que cabe a prova de facto positivo - de pagamento – à Embargada, bastando para isso comprovar que o fez.”
1.16. Em novo requerimento a Exequente/embargada reitera que tal prova depende do levantamento do sigilo bancário, sendo censurável a atitude dos embargantes em vedar o acesso a tal informação.
1.17. Em 31-05-2022, foi proferido o seguinte Despacho:
“A exequente, ora embargante, deu à execução, além do mais, um documento particular, datado de 10/10/2011, que titula um «contrato de abertura de crédito para fomento à construção», pelo qual Banif declarou conceder à sociedade GOPP, SA, ora co-embargante, um crédito até ao montante de €710.000,00 para «construção de 5 lotes de terreno».
No requerimento executivo, pede o pagamento da quantia de €620.988,60, a título de capital, acrescido de juros, imposto de selo e despesas de cobrança, perfazendo a quantia total de €631.093,54.
Os embargantes opuseram-se à execução, impugnando, para o que releva, a efetiva disponibilização do invocado financiamento, quer diretamente à GOPP, SA, quer por meio de pagamentos à sociedade M...Lda., que o referido financiamento visava assegurar.
Na PI aperfeiçoada apresentada em juízo em 25/11/2020, vieram os embargantes requerer, ao abrigo do preceituado no art.º 429º do CPC, que a embargada fosse «notificada para juntar aos autos, em prazo a designar, documentos comprovativos dos pagamentos efetuados à sociedade M...Lda., ou da libertação de fundos à sociedade GOOP. S.A., para fazer face aos pagamentos àquela devidos, no âmbito do contrato de abertura de crédito para fomento à construção, junto como doc. nº 2, com o requerimento executivo».
A embargada, notificada para esse efeito, requereu que tais elementos fossem solicitados ao Banco Santander Totta, SA, para onde transitaram, não estando, por isso, ao seu dispor.
O Banco Santander Totta, SA, por sua vez, recusou-se a facultar os elementos de prova solicitados, sob invocação de sigilo bancário.
Nessa sequência, os embargantes foram notificados para, na qualidade de titulares das informações sujeitas a sigilo bancário (cfr. artigo 14.º da PI aperfeiçoada), juntarem aos autos declaração de autorização de acesso a tais elementos.
Por requerimento de 11/05/2022, os embargantes recusaram-se a dar essa autorização, invocando que o acesso a tais informações/documentos bancários viola o seu direito à intimidade da vida privada.
Contudo, afigura-se ilegítima a recusa.
Note-se que está em causa o acesso a documentação bancária que respeita a financiamentos feitos, no âmbito do contrato dado à execução, por Banif, SA, à embargante GOPP, SA, seja diretamente, seja por intermédio de uma terceira sociedade comercial (M...Lda.), sociedade que, segundo os embargantes, pertence ao mesmo grupo económico da sociedade Gopp, SA, sendo que ambas têm por presidente de conselho de administração o embargante AA.
Ora, embora as pessoas colectivas possam ser titulares de direitos fundamentais compatíveis com a sua natureza (artigo 12.º, n.º 2, da Constituição), não se afigura que o direito à intimidade da vida privada e familiar, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, seja compatível com a natureza das pessoas coletivas, que são meros centros de imputação de interesses, organizados em torno de uma finalidade comum, no caso de natureza comercial.
Ao recusar o acesso a essa informação bancária, sem causa legítima que o justifique, os embargantes inviabilizam a prova pela embargada - que é quem está onerada com o correspondente ónus (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, e 715.º do CPC) - de um facto essencial à constituição do direito de crédito emergente do contrato de abertura de concessão de crédito dado à execução, que é a efetiva entrega ao embargante Gopp, SA, do financiamento aí contratado.
Deve, por isso, inverter-se o ónus da prova, nos termos das normas conjugadas dos artigos 417.º, n.º 2, segunda parte, e 344.º, n.º 2, do CPC.
Pelo exposto, determino a inversão do ónus da prova em relação à matéria enunciada no ponto 1. dos temas da prova.
Notifique”.
1.18. Em 03-08-2022, foi proferida sentença de declaração de insolvência dos ora Embargantes/Executados AA e BB, tendo a execução a que os embargos estão apensos sido suspensa.
1.19. Em 09-12-2022, foi proferida sentença que, considerando:
- ser legítima a invocação de preenchimento abusivo da livrança por parte dos avalistas que tenham tido intervenção no pacto de preenchimento, por não ter a livrança saído do âmbito das relações imediatas;
- ser legítimo por parte do dono da coisa hipotecada que não é o devedor o direito de opor ao credor os meios de defesa que tiver contra o credor, nos mesmos termos que a lei reconhece ao fiador;
- a natureza quoad constitutionem do contrato de abertura de crédito a que respeitam as garantias dadas à execução, fazendo recair sobre a exequente/embargada o ónus de prova da entrega do capital em causa à executada Gopp - Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA, seja diretamente, seja por meio de pagamentos efetuados à M...Lda.;
- o despacho de 31-05-2022 que determinou a inversão do ónus da prova desse facto (entrega efetiva do capital creditado), nos termos dos artigos 417.º, n.º 2, segunda parte e 344.º, n.º 2, do CPC;
- a falta de prova pelos embargantes “como lhes competia, por força do citado despacho”, que a exequente/embargante não disponibilizou à executada Gopp - Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA, seja diretamente, seja por meio de pagamentos efetuados à M...Lda. o montante creditado;
- sendo de concluir que a Embargada fez tal prova, ou seja, procedeu a tal entrega.
Julgou improcedentes os embargos de executado e determinou o prosseguimento da execução.
1.20. Inconformada com tal decisão, veio a Executada/ Embargante Siroco, S.A., em 31-01-2023, apresentar recurso de apelação, tendo centrado a sua reação na inversão do ónus da prova.
Assim, decorre de tal peça as seguintes conclusões:
“A- A sentença é nula ao abrigo do disposto na aliena d) do número 1 do artigo 668 do CPC., porquanto não se pronuncia sobre a totalidade do objeto do litígio;
B- Foi invertido o ónus da prova contra os embargantes pessoa coletiva GOOP S.A. e pessoas singulares;
C- Tal inversão operou após a sua declaração de insolvência;
D- Pelo que, e estando os autos suspensos face a tais intervenientes processuais a inversão do ónus da prova é de efeito nulo nos presentes autos;
E- Na relação processual embargada/embargante Siroco S.A., o ónus da prova referente à matéria controvertida em pontos 3 de “Questões a decidir “ e “Ata da audiência prévia”, o ónus da prova recai sobre a embargada;
F- Deverá a matéria contida no ponto 2 dos factos não provados ser considerada por provada;
G- Concomitantemente sendo considerado o incumprimento contratual da embargada, e porquanto a efetiva transferência de dinheiro efetuada pelo mutuante é elemento constitutivo ou integrante do contrato de mútuo, de tal forma que este não existe sem que o mutuante proceda à entrega efetiva da quantia mutuada, nascendo a obrigação do mutuário restituir a quantia mutuada e a respetiva remuneração apenas após aquela entrega.
H- Serem os embargos considerados procedentes Fazendo-se a costumada justiça”.
1.21. – Não foram apresentadas contra-alegações.
1.22. – Apreciada a invocada nulidade por omissão de pronúncia e concluindo-se pela sua improcedência, foi o recurso de apelação admitido.
1.23. - A Relação considerando preliminarmente:
- inexistir ou não ser configurável o vício de nulidade da sentença resultante de omissão de pronúncia.
- que o recurso interposto questiona o decidido no despacho da 1ª instância prolatado em 31-05-2022, que determinou a inversão do ónus probatório relativamente a determinada matéria factual, “o que se afigura legalmente possível, pois, não se estando perante qualquer matéria suscetível de apelação autónoma, sempre poderia a mesma ser impugnada no recurso interposto da decisão que colocasse termo à causa – cf., os nºs. 1 a 3, do artº. 644º, do CPC -, não se podendo, assim, aludir, à existência de qualquer caso julgado formal”;
- sendo neste âmbito que a Recorrente Siroco S.A., acaba por impugnar um ponto da matéria factual;
- existir em todo este um procedimento um manifesto equívoco por parte do Tribunal a quo, cristalizado na decisão determinante da inversão do ónus;
- em tal momento decisório apenas relativamente à Embargante/Executada Goop, S.A., se encontrava suspensa a presente instância declarativa, por força do disposto no nº 1 do art. 88º do CIRE.
Enunciou no acórdão de 06-06-2024, os seguintes pressupostos e o seguinte juízo concreto, relativamente à inversão do ónus probatório:
- o artº. 417º, do CPC, consagra, no âmbito da instrução da causa, um dever geral de cooperação (ou colaboração), nomeadamente na conservação dos meios probatórios, com o desiderato da descoberta da verdade material, tendo por pressuposto uma almejada boa administração da justiça;
- a legal solução de inversão do ónus probatório justifica-se quando a parte não onerada com a prova, através da recusa do dever de cooperação (pré-processual ou processual), impossibilita a prova do facto probando pela parte onerada com tal prova, seja devido à impossibilidade de prová-lo por outros meios, seja por legal impedimento, ou, ainda, por não se revelarem bastantes os outros meios probatórios produzidos, inexistindo outros, alternativos ou complementares, disponíveis;
- tal mecanismo deve ser reservado para os casos de maior gravidade, funcionando como uma espécie de sanção ou censura à parte não cooperante/colaborante;
- o mesmo deve englobar não só os comportamentos dolosos e de negligência grave, como ainda os comportamentos meramente culposos, eivados daquele plus de gravame;
- para que tal inversão do ónus da prova ocorra é mister a ocorrência de uma ação ou omissão da parte não onerada com a prova, que impossibilite a prova pela contraparte onerada (ou, pelo menos, que parcialmente a inviabilize) – elemento objetivo -, e que aquela conduta, ativa ou omissiva, seja praticada, pelo menos, a título negligente – elemento subjetivo;
- urgindo, ainda, aferir, em concreto, se a parte que requere a junção de meio probatório, pela contraparte, não foi, ela própria negligente em munir-se de tal prova, por forma a evitar-se que ocorra indevida inversão do ónus de prova.
“Ora, justificaram os Embargantes/Executados, com a sua conduta, que tivesse sido determinada a inversão do ónus probatório, com posteriores reflexos na sentença recorrida?
Em primeiro lugar, para que pudesse ocorrer, legitimamente, a inversão do ónus probatório, a parte notificada para prestar a informação pretendida, ou seja, e in casu, para juntar aos autos as enunciadas declarações de autorização para acesso aos documentos/informações bancárias, teria, desde logo, que possuir disponibilidade sobre os elementos solicitados, de forma a poder colaborar com o Tribunal, pois, só assim seria possível lograr-se estar perante situação de recusa de colaboração para efeitos probatórios.
Ora, a notificação foi efetuada aos Embargantes/Executados avalistas, bem como à Siroco, S.A., proprietária do imóvel hipotecado (garante), únicos que ainda se encontravam nos autos, e não à Executada/Embargante Goop, S.A. (nomeadamente na pessoa do administrador de insolvência nomeado), em virtude de, já naquela data, os autos de execução (e de embargos) se encontrarem suspensos relativamente à mesma.
Todavia, tendo as aludidas declarações de autorização de acesso aos documentos/informações bancárias, por desiderato, a obtenção de documentação bancária que comprovasse os pagamentos efetuados pelo então Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A., à sociedade M...Lda., ou a liberação de fundos, por parte da mesma instituição bancária, à sociedade Goop, S.A., outorgantes do aludido Contrato de Abertura de Crédito para Fomento à Construção, resulta claro que os documentos bancários que eventualmente pudessem retractar tais putativos movimentos reportam-se às contas bancárias quer da terceira M...Lda., quer da Goop, S.A.. E não, claramente, a quaisquer contas bancárias que tivessem por titulares os notificados avalistas e garante.
Desta forma, tal inversão do ónus probatório nunca poderia ser operatória, pelo que, conforme melhor veremos infra, caberia à Exequente/Embargada o ónus de provar que procedeu à entrega da quantia feita constar no citado Contrato de Abertura de Crédito.
E, nem se afirme que tendo sido o identificado avalista AA o legal representante da Goop, S.A., sempre a sua notificação para a prestação da aludida autorização poderia traduzir e consubstanciar concreta notificação daquela sociedade.
Efetivamente, não só a notificação do mesmo não foi feita naquela qualidade de aludido representante legal societário, como, ainda, naquela data, estando a Goop, S.A., já declarada insolvente, a sua representação sempre seria assegurada pelo administrador de insolvência nomeado – cf., o artº. 81º, do CIRE - e não pelo administrador societário.
Acresce, ainda, que se tal poderia ser equacionável relativamente à concretizada notificação do identificado AA, nunca tal juízo seria extensível à Embargante Siroco, S.A., pois esta não possuía qualquer disponibilidade para permitir o acesso à informação bancária, apenas figurando como garante na aludida outorga do Contrato de Abertura de Crédito.
Em segundo lugar, resulta evidente, do quadro apontado, a total ausência de preenchimento dos requisitos ou pressupostos, conducentes à inversão do ónus da prova, nos termos em que estes são delineados no transcrito nº. 2, do artº. 344º, do Cód. Civil.
Efetivamente, constatámos ser necessário, para a ocorrência da inversão do ónus da prova, a ocorrência de uma ação ou omissão da parte não onerada com a prova, que impossibilite a prova pela contraparte onerada (ou, pelo menos, que parcialmente a inviabilize) – elemento objetivo -, e que aquela conduta, ativa ou omissiva, fosse praticada, pelo menos, a título negligente – elemento subjetivo.
Ora, relativamente aos Embargantes, verifica-se, desde logo, uma total ausência no preenchimento do enunciado elemento objetivo, ou seja, que aqueles, de forma ativa ou omissiva, tenham impossibilitado ou inviabilizado a prova a cargo da Embargada/Exequente, pois, o fornecimento aos autos da aludida prova documental não dependia, fosse a que título fosse, do seu consentimento ou autorização para o invocado levantamento do sigilo bancário.
Aliás, sempre se dirá que muito se estranha o comportamento processual da mesma Embargada/Exequente que, apesar de não ter sido a impulsionadora inicial da junção da pretendida prova documental, veio a revelar-se a principal interessada naquela junção, nomeadamente ao não ter deduzido incidente de quebra de sigilo profissional (sigilo bancário), que, na ponderação dos interesses em litígio, sempre poderia putativamente permitir, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, o acesso a tal documentação bancária.
Resulta, assim, do exposto, que a decretada inversão do ónus de prova, relativamente à descrita matéria factual - apurar se a embargada libertou o montante peticionado, a título de capital, pagando-o à M...Lda., ou disponibilizando-o, para esse efeito, à segunda embargante -, não possui fundamento legal, pelo que não pode subsistir, antes se devendo reconhecer, conforme melhor analisaremos infra, que o ónus probatório de tal factualidade incumbe, efetivamente, à Exequente/Embargada.»
1.24. Na sequência da cessação de tal juízo de inversão do ónus da prova, a Relação ponderando que:
- compulsada a matéria factual provada, constata-se não se encontrar provada a matéria factual equacionada, ou seja, que a Embargada/Exequente (ou melhor, a antecedente Exequente entidade bancária, cedente da posição creditícia) tenha entregue o capital enunciado no Contrato de Abertura de Crédito, quer diretamente à Goop, S.A., quer mediante pagamentos efetuados à M...Lda., conforme contrato tripartido enunciado no facto provado 8. ;
- não resulta da prova produzida, nos termos em que é ajuizada criticamente na sentença recorrida, que a prova de tal factualidade tenha sido concretamente efetuada, nem a Embargada/Exequente Recorrida logrou apresentar ampliação do âmbito do recurso, nos termos do artº. 636º, do Cód. de Processo Civil, salvaguardando eventual situação de procedência do recurso interposto, relativamente à pretendida reversão da inversão do ónus probatório daquela concreta matéria. Nomeadamente, procurando demonstrar e justificar ter efetivamente liberado o capital acordado, quer mediante prova testemunhal, que o atestasse, quer mediante prova documental que sempre poderia lograr ter obtido junto da instituição bancária cedente do crédito exequendo (ou sua sucessora entidade bancária), nomeadamente salvaguardando tal obtenção aquando da outorga da cessão de créditos;
- o Contrato de Abertura de Crédito para Fomento à Construção, datado de 10/10/2011, e posteriormente alterado em 30/03/2012 tem a natureza de contrato de abertura de crédito.
- o contrato de abertura de crédito define-se como aquele em que a entidade bancária se obriga a colocar determinada quantia pecuniária à disposição do cliente contratante (obrigação primária da creditante), normalmente mediante uma linha de crédito e por tempo determinado, ficando este vinculado a reembolsar os valores ou somas utilizados, bem como suportar os juros e comissões devidas por tal disponibilização;
- contrariamente ao que acontece com o contrato de mútuo, estamos perante um contrato consensual quoad constitutionem (por contraposição com o contrato real quoad constitutionem), que fica perfeito mediante o mero acordo das partes, sem necessidade de ocorrência de entrega de qualquer quantia pecuniária;
- mediante tal contrato, a entidade bancária vincula-se, perante o cliente, em vir a tornar-se credora deste, até um determinado montante de disponibilização (com consequente contrapartida de realização de amortizações ou pagamentos por parte do cliente), não resultando, do mesmo, a concreta e efetiva entrega de quaisquer montantes, mas antes uma futura vinculação a tal, no âmbito da execução do contrato;
- tendo sido o contrato de abertura de crédito outorgado mediante documento particular, em data antecedente à da entrada em vigor do atual CPC, aplica-se-lhe o artº. 46º, nº. 1, alª. c), do Cód. de Processo Civil de 1961, mas a sua força executiva não é automática, urgindo que adicionalmente se faça a demonstração do reconhecimento de obrigações pecuniárias;
- quer este normativo, quer o disposto no nº. 1, do artº. 804º, do mesmo diploma, implicam que o contrato de abertura de crédito assim formalizado apenas adquira a sua completude executiva mediante prova complementar do título, através da qual se demonstre, nomeadamente mediante extratos de conta-corrente ou outros documentos bancários, que as prestações futuras nele convencionadas foram efetivamente prestadas, assim criando obrigações pecuniárias por parte do cliente;
- exigindo-se, assim, que se faça a prova complementar do título, através da demonstração de que a obrigação futura foi efetivamente constituída ou realizada na execução do contratualmente acordado, devendo completar a escritura de abertura de crédito com a prova real e concreta de que alguma quantia monetária foi disponibilizada e utilizada pelo cliente creditado (nos termos do artº. 707º, do atual CPC).
-in casu, o título dado à execução reporta-se à livrança junta, subscrita pela executada Goop, S.A., e avalizada pelos Executados pessoas singulares.
- relativamente à Executada Siroco, S.A., a sua responsabilidade decorre da sua constituição como garante, conforme escritura pública de constituição de hipoteca voluntária referenciada no facto 2 provado, e a sua legitimidade do estatuído no nº. 2, do artº. 54º, do Cód. de Processo Civil.
- estando-se no âmbito das relações imediatas, quer a subscritora da livrança, quer os avalistas, poderiam recorrer a todos os mecanismos de defesa que tivessem relativamente ao credor emitente de tal título – cf., o artº. 17º, da L.U.L.L. - Lei Uniforme relativa às letras e livranças, estabelecida pela Convenção assinada em Genebra, em 7 de Junho de 1930, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 23721, de 29 de Março de 1934, e ratificada pela Carta de 21 de Junho de 1934.
- por sua vez, conforme decorre do estatuído no nº. 1, do artº. 698º, do Cód. Civil, também a Siroco, S.A., enquanto terceira, dona do imóvel hipotecado, pode opor ao credor os meios de defesa que o devedor tiver contra o crédito.
- conforme enunciado, perante a impugnação apresentada pelos Embargantes, referenciando que, apesar da outorga do contrato de abertura de crédito, a quantia aí prevista nunca foi disponibilizada, constituía ónus probatório da entidade bancária (ora Exequente originária, a quem sucedeu a ora Embargada) ter efetivamente feito a entrega ou liberação de tais quantias, quer mediante pagamentos efetuados diretamente à M...Lda. (conforme acordado no ponto 3 da cláusula 4ª, do Contrato de Abertura de Crédito descrito no facto 1 provado, e complementado mediante o acordo descrito no facto 8 provado), quer mediante liberação à própria contratante devedora Goop, S.A..
- ora, compulsada a factualidade assente, tal prova não se mostra efetuada, não tendo, assim, a Exequente/Embargada demonstrado, de forma evidente e inequívoca, a existência do alegado crédito, com base no qual procedeu ao preenchimento do título dado em execução (livrança). Prova que, nos termos que já expusemos, lhe era totalmente possível, e que se lhe impunha, atenta a sua posição de sucessora no direito reclamado.
- o que implica, por um lado, que, não se podendo concluir por qualquer situação de incumprimento, aquele preenchimento do título executivo se mostre abusivo, e que, por outro, um eventual equacionar do contrato de abertura de crédito como título, sempre conduziria ao reconhecimento da sua incompletude, atenta a não prova, real e concreta, de que o montante consignado havia sido disponibilizado e utilizado pela sociedade creditada (Goop, S.A.).
1.25. Pelo que, a Relação decidiu revogar a sentença apelada, julgando-se procedentes os embargos de executado deduzidos, com consequente declaração de extinção da execução.
1.26. Irresignada, veio agora a exequente/embargada interpor recurso de Revista, concluindo:
1. A presente Execução foi intentada pelo então BANIF – Banco Internacional do Funchal, S.A., contra GOPP – Gestão de Obras Públicas e Particulares, S.A., AA, BB e Siroco – Construção Civil e Obras Públicas, S.A., para pagamento da quantia global de € 631.093,54, acrescida de juros de mora vincendos, com base em Livrança subscrita pela Primeira Executada e avalizada pelos Segundo e Terceira Executados/Embargantes, e escritura pública de constituição de hipoteca voluntária outorgada pela Quarta Executada/Embargante/Apelante Siroco - Construção Civil e Obras Públicas, S.A. garantias prestadas para assegurar o cumprimento das obrigações contraídas pela Primeira Executada/Embargante no Contrato de Abertura de Crédito para Fomento à Construção celebrado em 10 de Outubro de 2011, incumprido.
2. Foram apresentados Embargos de Executado em conjunto pelas quatro Executados onde alegaram em sua defesa, além do mais, - julgado improcedente no Despacho Saneador - que:
“i) o contrato de abertura de crédito garantido pela livrança e hipoteca e o documento complementar à escritura pública de hipoteca incluem cláusulas gerais contratuais gerais proibidas e, por isso, nulas, que identifica;
ii) a embargada não concedeu a totalidade dos financiamentos acordados com a executada Gopp, SA, quer no contrato de abertura de crédito de 10/10/2011, quer no contrato de abertura de crédito celebrado em 04/06/2008, o que inviabilizou a conclusão das obras e impediu a libertação do crédito, nos termos contratados;
iii) por força da grave crise económico-financeira que o país atravessou a partir de 2010, os pressupostos de mercado que estiveram na base da prestação das referidas garantias alteraram-se, pelo que devem os avalistas ser exonerados da dívida e a hipoteca, por aplicação do disposto no artigo 437.º do Código Civil;
iv) finalmente, a embargada não deu cumprimento às obrigações previstas no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, aplicável, pelo que devem os embargantes ser absolvidos da instância.”
3. A Exequente/Embargada e aqui Recorrente, notificada para o efeito, contestou os Embargos apresentados, defendendo-se por impugnação.
4. Posteriormente, veio a ser apresentado pelos Segundo, Terceira e Quarta Executados/Embargantes articulado aperfeiçoado onde colocam em causa – e apenas aí – o efetivo recebimento do montante financiado pela Segunda Executada/Embargante e aqui Recorrente, requerendo que fosse a então Embargada notificada para juntar aos autos documentos comprovativos dos pagamentos efetuados no âmbito do contrato de abertura de crédito para fomento à construção identificado no requerimento executivo.
5. A Exequente/Embargada e aqui Recorrente, encontrando-se impossibilitada de tal junção, face à transmissão das posições do Banif para a Oitante e tendo as contas onde eram realizados os montantes passado para a esfera do Banco Santander Totta, S.A., veio requerer a notificação desta entidade - (Banco Santander Totta, S.A.) - para juntar a informação pretendida pela Embargante e por este doutro Tribunal.
6. Notificado para o efeito, o Banco Santander Totta, S.A. veio arguir que tais informações estão abrangidos pelo segredo bancário, não sendo possível facultá-las.
7. Foi proferido Despacho Judicial que ordenou a notificação dos “embargantes para, em 10 dias, juntarem aos autos as solicitadas declarações de autorização de acesso aos documentos/informações bancárias em causa ou requererem, a este respeito, o que tiverem por conveniente”.
8. O que os Executados/Embargantes recusaram.
9. Decidiu o douto Tribunal de Primeira Instância que, considerando a recusa do acesso a informação bancária necessária, sem causa legítima que o justifique, os Executados/Embargantes inviabilizam a prova pela Exequente/Embargada, determinando nos termos das normas conjugadas dos artigos 417.º, n.º 2, segunda parte do CPC e 344.º, n.º 2 do CC a inversão do ónus da prova em relação à matéria em causa.
10. Este Despacho foi devidamente notificado às partes, não tendo sido objeto de qualquer Reclamação ou Recurso, antes sendo aceite.
11. Posteriormente, foi proferida Sentença pelo Tribunal de Primeira Instância que julgou improcedentes os Embargos de Executado e, em consequência, determinou o prosseguimento da Execução.
12. Veio a Executada/Embargante/Apelante Siroco – Construção Civil e Obras Públicas, S.A., em 31/01/2023, apresentar Recurso de Apelação, origem do mui douto Acórdão de que se recorre, arguindo:
“A- A sentença é nula ao abrigo do disposto na aliena d) do número 1 do artigo 668 do CPC., porquanto não se pronuncia sobre a totalidade do objeto do litígio;
B- Foi invertido o ónus da prova contra os embargantes pessoa coletiva GOOP S.A. e pessoas singulares;
C- Tal inversão operou após a sua declaração de insolvência;
D- Pelo que, e estando os autos suspensos face a tais intervenientes processuais a inversão do ónus da prova é de efeito nulo nos presentes autos;
E- Na relação processual embargada/embargante Siroco S.A., o ónus da prova referente à matéria controvertida em pontos 3 de “Questões a decidir“ e “Ata da audiência prévia”, o ónus da prova recai sobre a embargada;
F- Deverá a matéria contida no ponto 2 dos factos não provados ser considerada por provada;
G- Concomitantemente sendo considerado o incumprimento contratual da embargada, e porquanto a efetiva transferência de dinheiro efetuada pelo mutuante é elemento constitutivo ou integrante do contrato de mútuo, de tal forma que este não existe sem que o mutuante proceda à entrega efetiva da quantia mutuada, nascendo a obrigação do mutuário restituir a quantia mutuada e a respetiva remuneração apenas após aquela entrega.
H- Serem os embargos considerados procedentes Fazendo-se a costumada justiça”.
13. Delimitado o objeto do presente Recurso de Apelação:
“(…) a apreciação a efetuar na presente sede determina o conhecimento das seguintes questões:
1. DA EVENTUAL NULIDADE de SENTENÇA, nos quadros da alín. d) (1ª parte), do nº. 1, do artº. 615º, do Cód. de Processo Civil (omissão de pronúncia);
2. Seguidamente, aferir acerca da SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS, o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA.
Neste enquadramento, a apreciação a efetuar na presente sede consubstancia-se, fundamentalmente, em aferir acerca:
. Da inversão do ónus da prova relativamente a sujeitos processuais sem intervenção nos autos (declarados insolventes) – Goop, S.A., AA e BB -, sendo tal inversão de efeito nulo nos presentes autos;
. Da não inversão do ónus da prova relativamente à Embargante Siroco, S.A., mantendo-se o ónus probatório na Embargada/Exequente;
. Da não prova que a Embargada tenha cumprido com as suas obrigações, determinando que o ponto 2 dos factos não provados deva ser considerado provado ;
. Do incumprimento contratual da Embargada/Exequente – a efetiva transferência de dinheiro por parte da mutuante é elemento constitutivo ou integrante do contrato de mútuo, pelo que este não existe sem que o mutuante proceda à entrega efetiva da quantia mutuada e, só após, nasce a obrigação do mutuário restituir a quantia monetária e a respetiva remuneração.”
14. Proferido o respectivo Acórdão, ressalvando-se o devido respeito pela mui douta opinião dos Ilustres Juízes Desembargadores do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, entende a aqui Recorrente que andou mal quando decidiu revogar a Sentença recorrida e julgar procedentes os Embargos de Executado deduzidos, com extinção da execução, pelo que vem interpor o presente Recurso de Revista do Acórdão proferido, porquanto crê que a decisão assenta em pressupostos errados, não resultando a correta interpretação da prova junta aos autos nem a correta aplicação da Lei ao caso dos presentes autos, incorrendo no erro de interpretação ou de aplicação da norma e errada aplicação da lei de processo.
15. No que às questões concretas objeto de Recurso respeita, relativamente à Inversão do Ónus da Prova,
16. Nas suas Alegações, a Quarta Executada/Embargante/Apelante e ora Recorrida arguiu que foi invertido o ónus da prova no sentido desta passar a caber a sujeitos processuais sem intervenção nos autos, devido à suspensão dos mesmos operada ao abrigo do disposto no artigo 88.º do CIRE, pelo que terá efeito nulo considerando que os autos apenas prosseguiram contra a Executada/Embargante SIROCO, S.A., não tendo sido invertido relativamente a esta.
17. Cumpre atender-se ao disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPC e no artigo 344.º, n.º 2 do CC.
18. Sendo que neste caso, a verdade é que a recusa expressa dos Executados/Embargantes torna impossível a prova à aqui Recorrente.
19. Atente-se a Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 491, que referem que o “efeito mais grave pode traduzir-se na inversão do ónus da prova quando a atitude dolosa ou culposa da parte tiver inviabilizado a prova de um facto a cargo da contraparte, por não ser possível fazer tal prova com recurso a outros meios, quer por impedimento legal (v.g. arts. 313º, nº. 1, e 364º do CC), quer por insuficiência dos meios de prova produzidos, inexistindo meios de prova complementares ou alternativos disponíveis”.
20. Nesse mesmo sentido veja-se Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida in Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, pág. 239, segundo o qual deve ocorrer a “inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente impossibilitado (tornado impossível) a prova do facto ao onerado (cfr. o nº. 2 do artº 344º do CC)”.
21. O disposto no artigo 344.º, n.º 2 do CC pressupõe dois elementos: elemento objectivo, ou seja, ação /omissão da parte que torna impossível a prova pela outra parte onerada; e elemento subjetivo, ou seja, aquela ação /omissão da parte será culposa.
22. Precisamente a situação em apreço, porquanto os Executados/Embargantes recusaram emitir declaração de autorização de acesso aos elementos bancários necessários para se obter os comprovativos em causa, bem sabendo que com tal atuação impediam culposamente (mesmo que se pondere que apenas por negligência) a Exequente/Embargada e aqui Recorrente de efetuar a prova do facto.
23. A que acresce que foram os próprios que requereram a junção da já enunciada prova documental.
24. Estamos a falar de documentação bancária que respeita ao financiamento feito no âmbito do contrato dado à execução, e bem assim de pessoas coletivas, pelo que dos direitos fundamentais compatíveis com a sua natureza (artigo 12.º, n.º 2, da Constituição), não se afigura que o direito à intimidade da vida privada e familiar, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, donde que se afigura ilegítima esta recusa.
25. Pelo que apenas se poderá concluir que andou bem o Tribunal de Primeira Instância, na Sentença proferida!
26. Ressalvando-se o devido respeito pela douta opinião dos Ilustres Juízes Desembargadores do Venerando Tribunal da Relação, atento todo o supra exposto, entende-se que andaram mal quando julgaram em sentido diverso, violando o previsto nos artigos 417.º, n.º 2 do CPC e 344.º, n.º 2 do CC.
27. Consequentemente, os Executados/Embargantes não provaram, como lhes competia, que a Exequente/Embargada e ora Recorrente não disponibilizou à Executada Gopp - Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA, a quantia peticionada na execução a título de capital, resultando assim que a Exequente/Embargada e ora Recorrente o fez.
28. Donde que, deve a decisão proferida e de que ora se recorre ser alterada em conformidade, decidindo-se pela correta decisão de Primeira Instância, confirmando-se a verificação da inversão do ónus da prova nos termos das normas conjugadas dos artigos 417.º, n.º 2 do CPC e 344.º, n.º 2 do CC e consequentemente ser os Embargos de Executado julgados improcedentes.
29. Por outro lado, no que às questões concretas objeto de Recurso respeita, relativamente ao (alegado) Incumprimento Contratual da Embargante/Exequente,
30. Nos Embargos de Executado, os Executados/Embargantes vieram alegar que a Exequente/Embargada não cumpriu com as obrigações do contrato de financiamento celebrado entre as partes, tendo o douto Acórdão de que se recorre entendido que a Exequente/Embargada não demonstrou “de forma evidente e inequívoca, a existência do alegado crédito, com base no qual procedeu ao preenchimento do título dado em execução (livrança)”.
31. Desde logo, conforme anteriormente exposto – que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos – por todo o ocorrido nos autos, resulta verificada a inversão do ónus da prova, nos termos das normas conjugadas dos artigos 417.º, n.º 2 do CPC e 344.º, n.º 2 do CC, não tendo os Executados/Embargantes provado, como lhes competia, por força da citada inversão do ónus da prova, que a Exequente/Embargada não disponibilizou à Executada Gopp - Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA, a quantia que pede na execução a título de capital.
32. Atente-se a José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, Almedina, pág. 222 e 223 – onde defendem, que, no âmbito do artigo 417.º do CPC “o comportamento do recusante que seja parte na causa (…) pode determinar, quando verificado o condicionalismo do art. 344-2 CC, a inversão do ónus da prova”, o que acontece “quando a recusa impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (…), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos (por exemplo, a destruição, pelo condutor do automóvel, logo após o acidente, dos indícios da sua culpa no acidente de viação, o obstáculo eficaz erguido à deslocação a tribunal duma testemunha da parte contrária ou a não apresentação dum documento na posse da parte pode, se outra prova dos factos em causa não existir ou, existindo, for insuficiente, dar lugar à inversão do ónus da prova, que ficará a cargo da parte não cooperante).”
33. Donde que, não tendo aqueles logrado fazer tal prova, que lhes competia, resulta provado o cumprimento da Exequente/Embargada aqui Recorrente!
34. Devendo a decisão proferida e de que ora se recorre ser alterada em conformidade, decidindo-se pela correta decisão de Primeira Instância, confirmando-se a mesma, e consequentemente ser os Embargos de Executado julgados improcedentes.
35. Caso assim não se entenda, o que mera cautela de patrocínio se pondera, sem, contudo, conceder, sempre se dirá,
36. Ressalvando-se o devido respeito pelo entendimento dos Ilustres Juízes Desembargadores, andaram mal ao vir analisar em sede do Acórdão proferido a natureza constitutiva do contrato descrito ou a sua exequibilidade e título executivo.
37. Ao virem os Executados/Embargantes arguir a falta de cumprimento das obrigações contratuais pela Exequente/Embargada, recai sobre si o ónus de prova de tal falta.
38. Compulsada a factualidade assente, tal prova não se mostra efetuada, não tendo, os Executados/Embargantes demonstrado, de forma evidente e inequívoca, o incumprimento das obrigações contratuais pela Exequente/Embargada, aqui Recorrente. Os Executados/Embargantes nada provaram que permitisse sustentar a conclusão de que foi a própria Exequente/Embargada quem provocou o incumprimento do referido contrato! Nem poderiam, porque tal ocorreu!
39. O Tribunal de Primeira Instância ficou esclarecido quanto ao efetivo cumprimento pela Exequente/Embargada e aqui Recorrente do contrato celebrado, conforme resulta da Sentença proferida.
40. Quanto ao princípio da livre apreciação da prova, veja-se Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 491, “Tal princípio não vigora apenas para efeitos de apreciação crítica dos meios de prova, devendo estender-se à apreciação da conduta processual, designadamente à que respeita à instrução da causa. Daí que, mesmo sem inversão do ónus da prova, mecanismo que deve ser resguardado para casos de maior gravidade, o juiz poderá sustentar a decisão sobre a matéria de facto provada e não provada também na ponderação do modo como as partes se posicionaram no que concerne ao exercício do ónus de prova e de contraprova e ao acatamento do princípio da cooperação em matéria probatória”.
41. Resulta claro que não houve qualquer preenchimento abusivo do título executivo ou a sua incompletude por alegada não prova de que o montante consignado tenha sido disponibilizado junto da Executada/Embargada e utilizado por esta.
42. O Tribunal de Primeira Instância apreciou livre e corretamente as provas produzidas nos autos - com correta imputação do respetivo ónus de prova!
43. Sempre se dirá, que o Juiz em Primeira Instância encontra-se, por via do imediato contacto com as provas, em particulares condições para efeitos de julgamento da matéria de facto - condições estas que, por regra, não são repetíveis no julgamento em Segunda Instância.
44. Por mais respeito que o Tribunal recorrido nos mereça, que é muito, entendemos que nos presentes autos não se decidiu bem, pelo que, deve a decisão proferida e de que ora se recorre ser alterada em conformidade, decidindo-se pela correta decisão de Primeira Instância, confirmando-se a mesma, e consequentemente ser os Embargos de Executado julgados improcedentes.
45. Caso assim não se entenda, o que mera cautela de patrocínio se pondera, sem, contudo, conceder, ainda se dirá,
46. Não concorda a Exequente/Embargada e aqui Recorrente que com a assinatura do contrato aqui em causa não se tenha constituído uma obrigação pecuniária, pelo contrário, a obrigação pecuniária é obrigação de entregar dinheiro, ou seja, de solver uma dívida em dinheiro, conforme resulta expresso das cláusulas do mesmo, tendo este de ser pago no seu termo, constituindo-se uma obrigação pecuniária cujo montante está determinado ou é determinável por simples cálculo aritmético - de acordo com as cláusulas constantes do contrato.
47. O título dada à execução é título executivo bastante nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do CPC aprovado pelo DL n.º 324/2003, de 27 de Dezembro.
48. O novo Código de Processo Civil, no seu artigo 703.º, veio retirar do elenco taxativo de títulos executivos os documentos particulares, todavia, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015 veio declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do CPC, aprovado em anexo à Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil, e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição), porquanto a imprevista eliminação de exequibilidade a um documento que anteriormente era dotado de força executiva poderia deixar o credor em sérias dificuldades (senão mesmo privado de meios) para ver satisfeito o seu direito de crédito.
49. O contrato dado à execução, celebrado entre as então partes em 10 de Outubro de 2011, encontra-se incluído nesta “bolha” de exceção, valendo como título executivo bastante.
50. Entende a Exequente/Embargada e aqui Recorrente que andou mal o Tribunal da Relação a quo quando decidiu pelo preenchimento abusivo do título executivo Livrança e/ou pela incompletude face à suposta falta de prova de que o montante tenha sido disponibilizado e utilizado, antes deveria o Ilustre Tribunal da Relação a quo ter decidido no sentido de manter a decisão do Tribunal de Primeira Instância, não o fazendo e decidindo com os fundamentos vertidos no Acórdão recorrido viola o artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961 e o direito de crédito da Recorrente, pelo que deve a decisão proferida e de que ora se recorre ser alterada em conformidade, decidindo-se pela correta decisão de Primeira Instância, confirmando-se a mesma, e consequentemente serem os Embargos de Executado julgados improcedentes.
51. Ressalvando-se o devido respeito pela douta opinião dos Ilustres Juízes Desembargadores do Venerando Tribunal da Relação, que é muito, atento todo o supra exposto, ao decidir nos termos do presente Acórdão, o Ilustre Tribunal da Relação não fez a correta interpretação e aplicação da letra da lei ao caso concreto, violando: o sentido do artigo 9.º do Código Civil, e bem assim, violando o previsto nos artigos 417.º, n.º 2 do CPC e 344.º, n.º 2 do CC, artigo 342.º, n.º 2 do CC, artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961, contrariando o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º408/2015 que veio declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do CPC, aprovado em anexo à Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil, e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição) e violando o princípio da segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, na sua vertente subjetiva de princípio de proteção da confiança.
52. Imperando a necessidade de revogação do Acórdão de que aqui se recorre.
Pede por fim, seja julgada procedente a revista, revogado o acórdão e confirmada a decisão proferida em primeira instância.
1.27. Não foram apresentadas contra-alegações.
II. Objeto do recurso
Assim, de acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º 2, 635.º, nº 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC), importa conhecer das seguintes questões:
- Da demonstração dos pressupostos para afirmar a inversão do ónus da prova tal como decidido na 1ª instância.
- Da não prova da ocorrência de abuso por parte da exequente no preenchimento da livrança e no acionamento da hipoteca.
Inscreve-se no âmbito do recurso de revista a apreciação do modo como as instâncias interpretaram e aplicaram a norma de direito probatório material prevista no art. 344°, nº 2, do CC, na medida em que a inversão do ónus da prova é suscetível de influir no conteúdo da decisão do tribunal que aprecia as provas produzidas.
III – Os factos
A 1ª instância fixou a seguinte factualidade:
A –Factos provados:
1. Em 10/10/2011, a exequente/embargada Banif - Banco Internacional do Funchal, SA (primeira outorgante), a executada Gopp - Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA (segunda outorgante) e os embargantes AA e BB (terceiros outorgantes ou garantes) celebraram um acordo escrito, com a designação «Contrato de Abertura de Crédito para Fomento à Construção», alterado em 30/03/2012, com as seguintes cláusulas:
«PRIMEIRA
(…)
2. Montante: €710.000,00 (setecentos e dez mil euros)
3. Finalidade: Construção de 5 lotes de terreno.
(…)
5. Prazo: vencendo-se em 28 de Agosto de 2013.
6. Conta de Depósitos à Ordem n.º ...377/10, da Agência de ..., de que o(s) segundo(s) outorgante(s) é/são titular(es).
7. Prazo máximo de utilização: até 31/03/2012.
(…).
9. Reembolso Integral, mediante utilização de crédito disponibilizado por Contrato de Abertura de Crédito para Fomento à Construção celebrado entre as partes em 04/06/2008, condicionado à apresentação das licenças de utilização das frações a edificar e objeto do mencionado contrato e dadas aí em hipoteca, ou mediante o termo do prazo, o que ocorrer primeiro.
10. Libertação Inicial: Conforme indicado no n.º 3 da Cláusula Quarta.
(…).
14. Garantias:
14.1. Hipoteca constituída nesta data sobre o prédio sito no Casal ..., ..., Freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ...86 e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ....
14.2. Aval de AA e BB, à Livrança subscrita pelo(s) segundo(s) outorgante(s) nos termos e condições acordadas no presente contrato.
Os Garantes aceitam expressamente todos os termos e condições do presente contrato, assumindo solidariamente com os segundos outorgantes o cumprimento integral de todas as obrigações pecuniárias dele decorrente (…).
SEGUNDA
O Banif, a pedido e no interesse dos segundos outorgantes concede-lhes um crédito até ao montante mencionado na cláusula primeira, que se destina obrigatoriamente à finalidade referida na mesma cláusula (…).
(…)
QUARTA
1. O montante do crédito concedido será creditado pelo Banco na Conta mencionada na Cláusula Primeira.
2. O crédito concedido será utilizado no Prazo Máximo de Utilização, a contar da presente data, nas condições abaixo indicadas e mediante instruções escritas dos segundos outorgantes, endereçadas ao Banco.
3. O presente crédito destina-se exclusivamente à realização de pagamentos ao empreiteiro M...Lda. (…) e será libertado por pagamento direto do Banif ao Empreiteiro mediante solicitação dos segundos outorgantes e contra a apresentação de faturas diretamente relacionadas com a obra.
(…)
SÉTIMA
1. Os montantes utilizados ou os saldos do capital em dívida serão reembolsados e pagos pelo Segundo Outorgante ao Banif até ao termo de vigência deste contrato ou suas eventuais prorrogações.
2. O reembolso antecipado do capital utilizado ou dos saldos em dívida poderá ainda ser efetuado (…) mediante a apresentação das competentes licenças de utilização referentes aos prédios e frações identificadas no n.º 4 da Cláusula primeira.
3. Caso o segundo outorgante apresente as respetivas licenças de utilização referidas no número anterior, serão de imediato utilizados os valores disponibilizados no Contrato de Abertura de Crédito para Fomento à Construção celebrado em 04/06/2008 entre o Banif e o segundo outorgante, para reembolso do presente crédito.
(…)
DÉCIMA
1. (…)
2. É nesta data entregue ao Banif uma Livrança em branco emitida e subscrita pelo segundo outorgante à ordem do Banif, autorizado desde já o Banco, nos casos de incumprimento deste contrato (…), a preencher pelo valor que lhes é devido, a fixar-lhe a data de emissão e de vencimento (…)».
(…)».
(…)
DÉCIMA TERCEIRA
Sem prejuízo do estabelecido na antecedente cláusula décima primeira nos casos de incumprimento pelos segundos outorgantes de qualquer obrigação emergente deste contrato, e bem assim nos casos previstos no artigo 780.º do Código Civil, ou ainda se o património dos segundos outorgantes for objeto de apreensão judicial ou por qualquer outra forma onerado ou se não cumprirem as obrigações por si/eles assumidas perante o Banco, ou perante outras instituições de crédito ou financeiras do Grupo Banif, ou outras operando no mercado português, o Banco poderá reduzir o valor do crédito disponibilizado ao Montante total entretanto utilizado, e considerar automaticamente vencidas as dívidas dos segundos outorgantes resultante do mesmo contrato, dando o mesmo por resolvido».
2. Por escritura pública outorgada em 10/10/2011, a executada/embargante Siroco - Construção Civil e Obras Públicas, SA, declarou constituir a favor da exequente/embargada uma hipoteca voluntária sobre o prédio sito no Casal ..., ..., Freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ...86 e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ..., em caução e garantia do bom cumprimento das obrigações emergentes do contrato referido no ponto 1. supra.
3. No documento complementar à escritura pública acima referida, lê-se o seguinte:
«TERCEIRA
O Banif reserva-se, ainda, o direito de:
(…).
5. Considerar o empréstimo garantido vencido, tornando-se imediatamente exigível toda a dívida, se o(s) objeto(s) da hipoteca for(em) alienado(s), arrendado(s) ou por qualquer forma onerado(s), ou desvalorizado, ou se o(s) devedor(es) e/ou garante(s) deixarem de cumprir qualquer das obrigações resultantes do presente contrato ou da lei.
(…)
SEXTA
Sem prejuízo do estabelecido na antecedente cláusula quarta nos casos de incumprimento pelo(s) segundo(s) outorgante(s) de qualquer obrigação emergente deste contrato, o Banco pode reduzir o valor do crédito disponibilizado ao Montante total entretanto utilizado e considerar automaticamente vencidas as dívidas do(s) segundo(s) outorgante(s) resultante do mesmo contrato, dando o mesmo por resolvido».
4. Em garantia e caução de bom cumprimento das obrigações emergentes do contrato referido no ponto 1. supra, a executada Gopp - Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA, subscreveu uma livrança em branco.
5. Os embargantes AA e BB avalizaram a referida livrança, em branco, apondo no verso desta os dizeres «Bom por aval à firma subscritora».
6. Por cartas datadas de 21 de Agosto de 2013, remetidas aos embargantes, a embargada declarou a dívida vencida e interpelou-os para a pagarem, no prazo de 5 dias.
7. A embargada preencheu a livrança referida no ponto 4. supra, pelo valor de €620.988,60, nela apondo como data de vencimento o dia 17/09/2013.
8. Em 31/12/2010, a exequente/embargada, a executada Gopp - Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA, e M...Lda., um acordo com a designação «Contrato Tripartido de Gestão de Pagamentos ao Empreiteiro no âmbito do contrato de fomento à construção», junto com a PI (aperfeiçoada), que aqui se dá por integralmente reproduzida.
Tendo considerado como não provados os seguintes factos:
1. A exequente/embargada nunca libertou fundos para fazer face à dívida perante a M...Lda., não obstante as múltiplas solicitações do administrador da Gopp - Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA, para que esse crédito fosse desbloqueado.
2. Do valor do financiamento global aprovado de €7.500.000,00 apenas foi disponibilizada a quantia de €6.800.000,00, ao contrário do que havia sido acordado entre representantes da embargada e o Dr. CC.
3. A hipoteca, de acordo com o combinado, apenas subsistiria até à concessão das licenças de utilização.
4. Dos seis prédios inicialmente previstos, apenas dois obtiveram licença de habitação, ficando os restantes por acabar, porquanto a embargada depois de pagar as licenças de construção para o ano de 2012, dois meses depois decidiu simplesmente cortar os financiamentos e resolver os contratos, por tal lhe ser conveniente em face das medidas da Troika.
5. A embargada, entre a aprovação dos financiamentos e a sua efetiva concessão, demorou nunca menos de 8 meses, o que atrasou a realização das obras, por falta de financiamento.
6. As cláusulas 3.ª, n.º 5, e 6.ª do Documento Complementar à Escritura Pública de Hipoteca e as cláusulas 13.ª do «Contrato de Abertura de Crédito para Fomento à Construção», na versão introduzida pelo primeiro aditamento, fora objeto de prévia negociação pelas partes.
A 2ª instância ao abrigo do disposto nos nºs. 3 e 4, do artº. 607º, ex vi do nº. 2, do artº. 663º, ambos do Cód. de Processo Civil, aditou ao elenco dos factos provados os seguintes:
9. Nos números 4. e 5. da cláusula QUARTA, do Contrato identificado no ponto 1. da factualidade provada, consta o seguinte:
“4. O Banif, mediante o seu exclusivo critério comercial, poderá recusar algum ou alguns pagamentos que entenda não serem devidos.
5. O crédito concedido, só poderá ser mobilizado pelo(s) SEGUNDO(S) OUTORGANTE(S), por valores parciais, correspondentes ao financiamento das diversas fases de construção previstas e acordadas com o Banif, e após as «medições de obra» relativas à fase anterior, que comprovem o bom andamento da obra e cuja execução é pressuposto de novas mobilizações” ;
10. o requerimento inicial executivo apresentado nos autos do processo executivo, em 03/10/2013, possui o seguinte teor:
“I – Do Contrato de Abertura de Crédito e Escritura de Mútuo com Hipoteca para Fomento à Construção celebrado em 10 de Outubro de 2011 e respetivos Aditamentos
Conforme Escritura de HIPOTECA e Contrato, lavrados a 10 de Outubro de 2011, que se junta como Doc. 1 e 2 que se consideram integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, a Sociedade G.O.P.P. – Gestão de Obras Públicas e Particulares, S.A., reconheceu ter-lhe sido concedido pelo ora Exequente um crédito até ao valor limite de € 710.000,00 (setecentos e dez mil euros) destinando-se o mesmo a financiar a Construção de 5 lotes de terreno, nos prédios urbanos sitos na Quinta..., na freguesia de ..., concelho do ....
O referido montante foi concedido desde 10 de Outubro de 2011, com data de vencimento em 31 de Março de 2012, a ser reembolsado e pago pela sociedade ao Banif, na data do vencimento, de modo integral, mediante utilização do crédito disponibilizado por Contrato de Abertura de Crédito Para Fomento à Construção celebrado entre as partes em 04/06/2008, condicionado à apresentação das licenças de utilização das frações a edificar e objeto do mencionado contrato e dadas aí em Hipoteca, ou mediante o termo do prazo, o que ocorrer primeiro, cfr. referido no n.º 9 da Cláusula Primeira, do doc. 2 já junto.
Em caução e garantia do bom cumprimento de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, do contrato já junto sob doc. 2, a Sociedade ora Executada, "SIROCO - CONSTRUÇÃO CIVIL E OBRAS PÚBLICAS, S.A.", declarou constituir uma hipoteca voluntária, a favor do Exequente, destinada a garantir o pagamento da quantia mutuada, juros, despesas judiciais e extrajudiciais, sobre o seguinte bem imóvel propriedade da ora Executada, cfr. Escritura de Hipoteca já junta sob o doc. 1:
1. Prédio Urbano, composto de moradia unifamiliar de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito em Casal ..., ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...trinta e dois, da citada freguesia, com aquisição a favor de SIROCO – CONSTRUÇÃO CIVIL E OBRAS PÚBLICAS, S.A., pela apresentação dois mil novecentos e vinte e três, de vinte e nove de Janeiro de dois mil e nove, inscrito na matriz sob o artigo ...86, com valor patrimonial tributário de 190.660,00 euros. A hipoteca mencionada encontra-se devidamente registada a favor do Banco mutuante, como decorre da certidão predial que ora se junta sob o Doc. 3 e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, através da Ap. ...77 de 2011/10/10, garantindo um capital de € 710.000,00 (setecentos e dez mil euros) e assegurando um montante máximo de € 941.516,80 (novecentos e quarenta e um mil quinhentos e dezasseis euros e oitenta cêntimos).
Assim,
Vence juros à taxa e nas condições descritas na Cláusula Primeira do Contrato, sendo a taxa de juros a que vigorar para a operação de crédito acrescida de quatro pontos percentuais em caso de mora, a título de cláusula penal.
Mais sendo concedido ao Banco o direito de capitalizar juros vencidos, desde que não correspondam a um período inferior a três meses, ou por menor período, caso venham a existir disposições legais que o permitam.
Sucede que, pelo 1º Aditamento ao Contrato de Abertura de Crédito de 10/10/2011, celebrado em 30 de Março de 2012, cfr. doc. 4 que ora se junta e se considera integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, foi alterada a Cláusula Primeira no referente à data de vencimento, passando a mesma a ser em 28 de Agosto de 2013.
Tendo sido acrescentada Comissão de Processamento da Prestação de acordo com o estabelecido no preçário em vigor à data do movimento, que à data era de €60,00 por prestação, bem como alteradas as taxas de juros, cfr. ponto 11 e 12 respetivamente da Cláusula Primeira.
A Cláusula Nona, foi alterada, no sentido do Banif poder autorizar o arrendamento do imóvel, devendo o contrato de arrendamento prever as condições na Cláusula especificadas.
A Cláusula Décima foi acrescida ao contrato, prevendo as garantias constituídas a favor do Banif.
Nos termos da alteração à Cláusula Décima Terceira, caso o património do Segundo Outorgante, for objeto de apreensão judicial ou por qualquer outra forma onerado, e no que demais na mesma cláusula se prevê, poderá o Banco considerar automaticamente vencida a dívida, dando o contrato por resolvido.
A Cláusula Décima Quarta acrescenta que, sendo a garantia hipotecária de 1º grau, a mesma poderá ficar sujeita ao cumprimento de obrigações hipotecárias a emitir diretamente pelo Banif, ou por outras entidades, cfr. previsto na mesma cláusula.
Na Cláusula Décima Sexta, passa a prever que o Banif tem o direito a dar em garantia o presente crédito a terceiros para efeitos de refinanciamento, nos termos melhor concretizados na respetiva cláusula.
Acresce que, em garantia e caução do bom cumprimento de todas as obrigações derivadas do empréstimo concedido, a Sociedade “G.O.P.P. – Gestão de Obras Públicas e Particulares, S.A.” subscreveu uma livrança em branco.
Adicionalmente, os ora Executados AA e BB prestaram caução e garantia do bom cumprimento dos termos contratuais, mediante aposição de aval na livrança subscrita pela Sociedade G. O. P.P. – Gestão de Obras Públicas e Particulares, S.A.”.
Sucede, porém, que os ora Executados incumpriram com o pagamento das prestações a que estavam obrigados perante o Banco por via do empréstimo concedido, originando o vencimento antecipado das prestações vincendas, nos termos do artigo 781º do Código Civil.
Assim, o Banco ora Exequente procedeu ao preenchimento da livrança pelo valor devido por força do incumprimento do contrato que lhe subjaz, no montante de € 620.988,60 (seiscentos e vinte mil novecentos e oitenta e oito euros e sessenta cêntimos), acrescido de € 3.104,94 (três mil cento e quatro euros e noventa e quatro cêntimos) a título de imposto do selo, com data de vencimento a 17-09-2013, conforme Doc. 5 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, constituindo Título Executivo nos presentes autos.
Apresentada a mesma a pagamento junto dos ora Executados, conforme doc. 6, que se junta e se dá por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, o respetivo valor não foi pago, constituindo ao presente uma dívida vencida, certa e exigível a favor do Banco ora Exequente à qual acrescem juros de mora à taxa de 4% até efetivo e integral pagamento
Pelo que vê-se obrigado o ora Exequente a recorrer à presente via para se ressarcir do seu crédito, ao qual acrescem juros de mora até integral e efetivo pagamento, bem como as despesas e encargos judiciais e extrajudiciais tidas pelo Exequente pela cobrança dos seus créditos.
Assim,
A Livrança constitui título executivo bastante, de acordo com o disposto no art.º 703.º, c) do CPC, sendo certa, líquida e exigível a dívida dela decorrente;
Os Executados garantiram pessoalmente o pagamento integral da livrança que se executa, uma vez que nela prestaram, válida e eficazmente o seu aval, nos termos do art.º 30.º e 31.º da LULL;
A dívida é certa, líquida e exigível.” ;
11. Tendo, na parte referente à Liquidação da Obrigação, feito constar o seguinte:
“I – Do Contrato de Abertura de Crédito e Escritura de Mútuo com Hipoteca para Fomento à Construção celebrado em 10 de Outubro de 2011 e respetivos Aditamentos
Capital, € 620.988,60
Imposto do Selo S/livrança, € 3.104,94
Perfazendo o montante de €624.093,54 (seiscentos e vinte e quatro mil e noventa e três euros e cinquenta e quatro cêntimos), ao qual devem acrescer juros de mora vencidos e vincendos à taxa de 4%, contabilizados sobre o capital desde 18 de Setembro de 2013, acrescido de Imposto do Selo s/juros até efetivo e integral pagamento.
Ao valor em dívida decorrente do contrato supra mencionado, acrescem ainda as despesas de cobrança no valor de € 7.000,00 (sete mil euros), as quais são devidas nos termos das cláusulas contratuais gerais do contrato outorgados pelo Executado, bem como nos termos do arts. 798º e 804º do Código Civil.
Totalizando o valor de € 631.093,54 (seiscentos e trinta e um mil e noventa e três euros e cinquenta e quatro cêntimos)” ;
12. E indicando como título executivo “1 Livrança”.
IV – O Direito
A Recorrente embargada centra a sua reação na alegação de que deve prevalecer o despacho da 1ª instância datado de 31-05-2022 que determinou a inversão do ónus da prova e que o acórdão recorrido invalidou.
Paralelamente no ponto 10 das conclusões de recurso refere que o mesmo despacho, tendo sido devidamente notificado às partes, não foi “oportunamente” objeto de qualquer reclamação ou recurso, pelo que foi aceite.
Sugerindo o caso julgado formal, a Recorrente coloca em causa a oportunidade da impugnação de tal decisão no recurso de apelação, o que importa conhecer como questão prévia.
Dispõe o art. 644º do CPC que:
«1 - Cabe recurso de apelação:
a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;
b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.
2 - Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:
(…)
3 - As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1.
4 - Se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão.»
A decisão impugnada foi proferida no decurso da fase instrutória e visou definir o ónus probatório para os ulteriores termos da ação, ou seja, não decidiu de mérito nem pôs termo à ação.
Logo, não sendo suscetível de integrar qualquer dos fundamentos de apelação autónoma previstos no art. 644º nºs 1 e 2 do CPC, manteve-se provisória, podendo ser impugnada nos termos do nº 3 ou 4 do mesmo artigo no recurso de apelação interposto da decisão final, o que os embargantes concretizaram.
Tal decisão não estava, assim, afetada pelo caso julgado formal, sendo lícito o pedido de reapreciação de tal despacho pela apelante SIROCO S.A. no âmbito do recurso de apelação.
Entremos na questão central.
A Recorrente imputa ao acórdão da Relação erro na apreciação dos pressupostos factuais e na aplicação da lei ao caso concreto, no respeitante à Inversão do Ónus da Prova, “sendo que, neste caso, a verdade é que a recusa expressa dos Executados/Embargantes torna impossível a prova à aqui Recorrente”.
Pretende a Recorrente que a recusa dos embargantes AA, BB e, Siroco, S.A., a prestarem uma declaração de autorização do Banco para fornecimento por este de informações e documentação bancária comprovativos de transferências de financiamento de crédito por parte da credora (à data Banif, S.A.), torna impossível a prova pela sua parte da efetiva concessão do financiamento contratado. E que, sendo tal recusa ilegítima, deve ser revalidado o despacho da 1ª instância que contra os embargantes inverteu o ónus da prova, nos termos dos artºs 417, nº 2 do C.P.C e 344 nº 2 do C.C..
Está em causa o bom cumprimento do dever de cooperação pelas partes.
O art. 7º do C.P.C. inserido nos princípios fundamentais do processo, prevê um princípio geral de cooperação para todos os intervenientes processuais, prescrevendo que:
«1 - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
(…)»
O artº. 417º inserido no Título V destinado à instrução do processo, a propósito do «Dever de cooperação para a descoberta da verdade» refere que:
«1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.
2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.» (sublinhados nossos)
Normas que importa articular com as regras de regulação probatória de direito substantivo, pois que só se o recusante de colaboração for parte, o valor da recusa será apreciado para efeitos probatórios.
Assim, consideremos, o art. 342º do C.C. que distribui o “Ónus da prova”:
«1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.»
O art. 344º do C.C. estabelece a “Inversão do ónus da prova”:
«1. As regras dos artigos anteriores invertem-se, quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.
2. Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.» (sublinhados nossos)
Ajuizar do acerto da decisão que determinou a inversão do ónus da prova em relação aos embargantes, por razões atinentes à sua recusa em prestar autorização para que o banco prestasse informações bancárias, implica a prévia definição dos ónus probatórios por parte destes, pois que, a inversão prevista no nº 2 do art. 344º do C.P.C. só atinge a parte que à partida, por definição legal, não esteja onerada com a prova, passando a ficá-lo por via dum comportamento não colaborante e culposo seu.
Implica ainda enquadrar os ónus probatórios na causa de pedir onde se inserem os títulos levados à execução, cuja apreciação de idoneidade se impõe, pois que, «a sua admissibilidade funda-se na pressuposição de que existe um direito de crédito válido na esfera jurídica do exequente cujo cumprimento coercivo possa ser efetivado, tendo por suporte um título executivo, isto é, um “documento que exterioriza ou demonstra a existência de um ato (constitutivo ou certificativo de uma ou mais obrigações) ao qual a lei confere força bastante para servir de base à ação executiva» (cf. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 3ª ed., p. 51).
Como refletem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa in Código de Processo Civil Anotado Vol. II, 2ª ed. em notas 4. e 5. ao art. 703º:
«4. O título executivo contém em si, o grau de segurança suficiente, o acertamento do direito, de tal modo que, por princípio, acoberto desse título e sem necessidade de outras indagações, haverá de ser desenvolvida a atividade processual adequada a obter o pagamento da quantia exequenda, a entrega de certa coisa ou a prestação de facto positivo ou negativo (art. 10º nº 5). Ressalva-se a necessidade de diligências complementares tendentes a assegurar os requisitos de certeza, da exigibilidade e da liquidez da obrigação exequenda, nos termos dos arts. 713ª a 716ª, ou daqueles que fundamentam o pedido, nos termos do art. 724ª, nº 1, al.e).
5. O acertamento do direito proporcionado pelo título executivo não significa, todavia, que a atividade do tribunal não possa envolver a análise do direito invocado pelo exequente ou dos requisitos formais da execução, seja em sede de despacho liminar (art. 726º) ou em momento posterior (art. 734º) seja quando o executado oponha defesa por embargos (art. 728º e ss.).»
In casu, foram dados à Execução uma livrança, subscrita pela executada Goop, S.A., e avalizada pelos Executados AA e BB pessoas singulares e, uma escritura de hipoteca outorgada por Siroco - Construção Civil e Obras Públicas, SA, a favor de BANIF – Banco Internacional do Funchal, S.A (atualmente Oitante S.A., por cessão de créditos) em caução e garantia do bom cumprimento das obrigações emergentes do «Contrato de abertura de crédito para fomento à Construção» outorgado entre Banif - Banco Internacional do Funchal, SA (primeira outorgante), Gopp - Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA (segunda outorgante) e AA e BB (terceiros outorgantes ou garantes) e celebrado em 10-10-2021.
Está o mesmo contrato de abertura de crédito, - celebrado em data anterior a 01-09-2013 (data da entrada em vigor do novo CPC aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26-06) mas dado à execução em data posterior - salvaguardado quanto à sua exequibilidade formal abstrata, pelo teor do Ac. do TC n.º 847/2014, de 3-12, que veio declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do C.P.C., aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26-06, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46º, 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da CRP).
Contrato este que em relação à livrança e avales, face à sua natureza cartular, se comporta como pacto de preenchimento ou “acordos realizados” como previsto no art. 10º da LULL e que, em relação à hipoteca se destina a integrar a sua exequibilidade, nos termos do art. 50º do C.P.C. de 1961, com equivalência no art. 707º do atual C.P.C.
Prevendo este artigo que: «Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.» (sublinhado nosso).
A situação paradigmática desta previsão será, nas palavras de António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa in Código de Processo Civil Anotado Vol. II, 2ª ed. em nota 2 ao art. 703º: “a relativa ao contrato de abertura de crédito através do qual a instituição financeira admite a concessão de financiamentos até um certo montante, em determinadas condições, servindo o documento de meio de prova das cláusulas convencionadas, sem dispensar, no entanto, a posterior utilização dos fundos em proveito do beneficiário como condição da exequibilidade de tais documentos (STJ 25-3-21, 6528/18).”
Lê-se neste citado acórdão (Relatora: Maria da Graça Trigo) que:
«IV- O contrato de abertura de crédito em conta corrente dos autos prevê expressamente a forma do pedido de utilização do crédito: mediante ordens de transferência ou de pagamento dadas sob a forma escrita à instituição bancária, as quais têm de ser subscritas pela parte devedora ou por quem a represente; daqui resulta que seriam estes os documentos de suporte a juntar para que o documento particular em causa formasse um título executivo perfeito, o que no caso não se verificou.
V - Assim, considera-se não merecer censura o juízo do acórdão recorrido, de acordo com o qual, no caso dos autos, se verifica falta de título executivo, uma vez que, pelos motivos enunciados em III e IV, o mesmo não está completo.»
Analisemos, pois da exequibilidade dos títulos.
O contrato de abertura de crédito, sendo o contrato que regula os termos e condições onde se enquadram as garantias prestadas e agora dadas à execução, pela sua natureza e conteúdo, está sujeito a uma contraprestação prévia por parte do credor.
Assim, entre muitos o douto Acórdão do STJ de 08/06/2021 – Relatora: Maria Clara Sottomayor, P.1951/16.6T8ENT-A.S1, in www.dgsi.pt - «citando-se jurisprudência do mesmo Tribunal, consignou-se que o “contrato de abertura de crédito tipificado no artigo 362.º do Código Comercial é o negócio jurídico mediante o qual a instituição bancária se obriga a disponibilizar ao cliente a utilização de determinada quantia em dinheiro, durante certo período de tempo, obrigando-se este a reembolsar o banco na medida dos montantes de crédito efetivamente colocados à sua disposição – a obrigação de reembolso a cargo do creditado está diretamente ligada ao montante efetivamente disponibilizado, pelo que o banco, dando à execução essa obrigação, terá de demonstrar não só a celebração daquele contrato, mas também a prestação pela qual pôs o crédito à disposição do cliente, e ainda a utilização efetiva pelo creditado da quantia disponibilizada. (…)
Desta forma, esclarece-se, “a escritura de abertura de crédito não contém senão uma promessa de empréstimo, não constituindo, só por si, título executivo contra o creditado. A obrigação deste só surge mais tarde, no momento em que, por conta do crédito aberto, o creditado faz algum levantamento ou movimenta determinada quantia; é então que surge o empréstimo definitivo e consequentemente nasce a dívida. Por conseguinte, a prova complementar do título faz-se através de documento passado em conformidade com as cláusulas constantes do negócio jurídico, provando-se, dessa forma, que a obrigação futura, que se pretende executar, foi efetivamente constituída, isto é, que alguma prestação foi, de facto, realizada no desenvolvimento da relação contratual. Daí a necessidade de completar a escritura de abertura de crédito com a prova de que foi efetivamente emprestada alguma quantia ao creditado.”»
Em sentido idêntico o aresto da Relação de Lisboa in www.dgsi.pt de 06/06/2019 – Relatora: Teresa Prazeres Pais, P.84/10.3TBSCR-A.L1-8 -, no qual se referenciou poder-se afirmar que “o contrato de abertura de crédito é um documento particular assinado pelos executados, importando a constituição de obrigações pecuniárias a contrair no futuro, determináveis por simples cálculo aritmético, a partir dos saques – cheques, transferências – sobre a conta de depósitos à ordem associada à conta corrente. Essa determinação deveria ter sido feita pela exequente, juntando a documentação pertinente, demonstrativa dos meios concretamente utilizados pelos executados para movimentação dos fundos disponibilizados pela exequente e com discriminação dos respetivos montantes.”
Sendo o contrato de abertura de crédito um contrato consensual por via do qual um estabelecimento bancário se obriga a ter à disposição do cliente uma soma de dinheiro que este tem possibilidade de utilizar, mediante uma ou mais operações bancárias, este contrato, só por si, não é título executivo. Os atos subsequentes à abertura de crédito e complementares desta é que titulam o direito de crédito do exequente, na medida do desembolso que este tenha efetuado - como salientou o Acórdão do TRL de 03-05-2016, Relator: Rui Vouga, P. 427/13.8TBPTS-B.L1-1, in www.dgsi.pt.
Resulta de tal contrato que a obrigação dos executados embargantes está dependente de uma prestação por parte do credor.
E quando assim é, incumbe ao credor alegar e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que efetuou ou ofereceu a prestação, nos termos do atual art. 715º do CPC (com correspondência no art. 804º do CPC revogado).
Sendo a exequibilidade do título uma característica inerente ao próprio título, é forçoso que ele contenha todos os elementos que permitam definir e demonstrar com rigor os termos e o montante da obrigação exequenda.
Neste sentido tem entendido a jurisprudência que “o contrato de abertura de crédito, simples ou em conta corrente, porque admite prestações futuras, não certifica, por si só, uma dívida, necessário se mostrando a existência da apresentação de prova complementar, que está vedada no âmbito do documento particular, enquanto título executivo. Carece dos graus de certeza e segurança, próprios do título executivo, o documento dado à execução, na qual a quantia exequenda resulta da resolução do contrato e aplicação de uma cláusula penal, com a exigência de alegação e prova de factos” (Acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 10-10-2013, relatora Ana Resende, www.dgsi.pt).
In casu, a exequente apenas procedeu à junção de tal contrato acionando as garantias prestadas, tendo os executados em sede de embargos, posto em causa a transferência pela entidade creditante de qualquer quantia contratada.
Da análise do contrato, verifica-se que não existe qualquer composição efetiva, definitiva e, consequentemente vinculativa, relativamente à prestação e obrigação que a exequente invoca, não sendo, assim, tal documento, suficiente título executivo.
Logo, o contrato de abertura de crédito que suporta a ação executiva, não permite aferir com certeza e segurança qual a quantia exequenda.
O crédito da exequente não se encontra definido e, como tal, não é o contrato de concessão de crédito, por si só, exequível.
Desse modo a escritura de constituição de hipoteca, que nele se integra, não suprindo a falta de tais elementos, também não é suscetível de valer como título executivo (cit. art. 707º do CPC).
Como afirma o Ac. do TRC de 28-02-2023, P. 737/21.0T8ACB-A.C1, in www.dgsi.pt:
“A escritura pública donde apenas constam declarações dos outorgantes no sentido de constituírem uma hipoteca para garantia do pagamento de quantias que possam vir a ser devidas por força de um “contrato de financiamento” não são título executivo em ação executiva destinada a obter o pagamento de quantia certa, nos termos do art.º 701.º n.º 1 al. b) do CPC, porque essa escritura não importa na constituição ou reconhecimento duma obrigação pecuniária.
III- O contrato de abertura de crédito porque admite prestações futuras, não certifica, por si só, uma dívida, necessário se mostrando a existência da apresentação de prova complementar, que está vedada no âmbito do documento particular, enquanto título executivo.”
Bem andou, assim, o acórdão recorrido ao concluir que:
« - mediante tal contrato, a entidade bancária vincula-se, perante o cliente, em vir a tornar-se credora deste, até um determinado montante de disponibilização (com consequente contrapartida de realização de amortizações ou pagamentos por parte do cliente), não resultando, assim, do mesmo, a concreta e efetiva entrega de quaisquer montantes, mas antes uma futura vinculação a tal, no âmbito da execução do contrato ;
- quer o disposto no artº. 46º, nº. 1, alín. c), do antecedente Cód. de Processo Civil (de 1961), quer o disposto no nº. 1, do artº. 804º, do atual C.P:C. implicam que o contrato de abertura de crédito assim formalizado apenas adquira a sua completude executiva mediante prova complementar do título, através da qual se demonstre, nomeadamente mediante extratos de conta-corrente ou outros documentos bancários, que as prestações futuras nele convencionadas foram efetivamente prestadas, assim criando obrigações pecuniárias por parte do cliente ;
- o que presentemente mantém validade para os contratos de abertura de crédito formalizados nos termos da alínea b), do artº. 703º, do vigente CPC, impondo-se ao banco exequente que demonstre não só a outorga de tal contrato, mas ainda que colocou em concreto o crédito na disponibilidade do cliente e que este fez utilização efetiva da quantia disponibilizada ou creditada;
- exigindo-se, assim, que faça a prova complementar do título, através da demonstração de que a obrigação futura foi efetivamente constituída ou realizada na execução do contratualmente acordado, devendo completar a escritura de abertura de crédito com a prova real e concreta que alguma quantia monetária foi disponibilizada e utilizada pelo cliente creditado (nos termos do artº. 707º, do CPC).
O título executivo em relação à escritura de hipoteca, integrando esta o contrato de crédito que a previu, mostra-se, assim, insuficiente para valer como tal (questão de conhecimento oficioso que teria justificado uma atividade do tribunal através dum despacho de convite ao aperfeiçoamento, sob a cominação de indeferimento do requerimento executivo).
O que compromete o prosseguimento da execução contra a embargante SIROCO, Construção Civil e Obras Públicas, S.A, e, nesta sede de embargos prejudica a apreciação da decisão que no decurso dos autos decidiu contra a mesma (e demais embargantes) a inversão do ónus da prova do financiamento por parte da entidade creditante.
Conhecendo da exequibilidade do título e do ónus da prova relativamente aos avales:
Os executados AA e BB foram acionados na qualidade de avalistas de uma livrança, tendo sido igualmente outorgantes no contrato que a previu como garantia.
Constituindo a livrança título executivo, nos termos do art. 46º nº1 alª c) do CPC de 1961 e art. 703 nº 1 alª c) do CPC de 2013, face às características gerais da obrigação cambiária: literalidade, independência, autonomia e abstração.
Contudo, como ensina Carolina Cunha in Manual de Letras e Livranças, 2016, p. 125: “Sempre que o avalista e credor estejam ligados por uma convenção extracartular – seja ela anterior, contemporânea ou posterior à subscrição do título (…) estaremos em presença de relações imediatas e o conteúdo daquela convenção é invocável pelo avalista contra o credor na qualidade de meio de defesa próprio”.
Tendo o avalista intervindo no pacto de preenchimento pode ele opor ao portador as exceções que competiam ao avalizado se o título cambiário estiver no domínio das relações imediatas – cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14.12.2006, in www.dgsi.pt.
Está, assim, consolidado o entendimento de que o avalista pode excecionar o preenchimento abusivo do título se ele próprio interveio no pacto de preenchimento, cabendo-lhe, então, o respetivo ónus de alegação e prova, pois de uma exceção material se trata – Ac. TRP de 27-11-2013 P. 17489/19.7T8PRT-A.P1 in www.dgsi.pt
Quer isto dizer que, no respeitante à defesa pelos embargantes AA e BB, estamos no domínio das relações imediatas, pelo que lhes era lícito chamar à colação o não cumprimento do dever pela credora de colocar à disposição da devedora o montante financiado, que a credora perante tal título não tinha que demonstrar, face ao carácter autónomo e abstrato do título de crédito.
Como explica Carolina Cunha (obra cit., págs. 184/186), «o preenchimento abusivo apresenta duas categorias fundamentais de desconformidade por referência à vontade manifestada pelo subscritor do título cambiário. A primeira compreende as discrepâncias consubstanciadas num preenchimento injustificado ou extemporâneo, com destaque para a falta de verificação da ocorrência à qual o completamento do título estava subordinado (tipicamente, a constituição, o vencimento ou o incumprimento de um crédito no seio da relação fundamental) e para a extinção satisfatória da relação fundamental garantida pelo título. A segunda abrange as discrepâncias relacionadas com a configuração das menções introduzidas no título, com destaque para a inserção de uma quantia superior à que decorre dos “acordos realizados”.
Além de facilitar a compreensão do fenómeno, esta divisão tem consequências práticas assinaláveis: só no primeiro grupo de hipóteses a invocação bem sucedida da exceção de desconformidade significa o afastamento da pretensão cambiária; já no segundo grupo apenas conduz à reconfiguração da pretensão cambiária de modo a contê-la dentro dos limites excedidos.»
Cabendo aos embargantes avalistas o ónus da prova dos factos constitutivos dessa exceção.
Ou, dito de outra forma, cabendo-lhes o ónus da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito à quantia exequenda.
“O ónus alegacional e probatório do preenchimento abusivo impende sobre o obrigado cambiário/executado, atenta a circunstância de estarmos perante um facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito, nos termos prescritos nos artigos 342º, nº. 2 e 378º, ambos do Cód. Civil e 571º, nº. 2 e 731º, ambos do Cód. de Processo Civil”- Ac. TRL 01-07-2021 P. 736/18.0T8SNT-C.L1-2.
Assim, cabendo aos embargantes avalistas, por força das regras de distribuição do ónus da prova, a alegação e prova do preenchimento abusivo, não faz sentido atribuir-lhes esse ónus a posteriori, por força da inversão do ónus probatório imputado a comportamento destes, no suposto que originariamente não lhes cabia tal prova.
A inversão do ónus da prova em tal situação parte de um pressuposto de sentido contrário.
Cabendo aos executados avalistas a prova do preenchimento abusivo, estes, em coerência com tal ónus vieram requerer no requerimento inicial aperfeiçoado de 25-11-2020, que para comprovarem a alegação de incumprimento do financiamento “ao abrigo do preceituado no art.º 429º do CPC, seja a Embargada notificada para juntar aos autos, em prazo a designar, documentos comprovativos dos pagamentos efetuados à sociedade M...Lda., ou da libertação de fundos à sociedade GOOP. S.A., para fazer face aos pagamentos aquela devidos, no âmbito do contrato de abertura de crédito para fomento à construção, junto como doc. nº 2, com o requerimento executivo, a que os Embargantes não têm acesso e se encontram na posse da Embargada, o que fazem para prova da matéria de facto alegada (…)”.
Assumindo que lhes cabia comprovar tal facto.
Requerimento que foi deferido e ordenada a notificação da Embargada para juntar aos autos os documentos especificados pelos embargantes.
Prova que não se logrou obter, resultando dos autos a conformação posterior por parte destes embargantes quanto ao decidido.
Os embargantes estavam onerados com tal prova por força das regras gerais de distribuição do ónus da prova. Logo, o juízo de inversão que se lhe seguiu feito na sentença e invalidado pelo acórdão da Relação, ainda que por diferentes razões, assenta no pressuposto errado de que tal prova originariamente não cabia aos embargantes avalistas.
Assim, a extinção da execução dos executados avalistas decidido no acórdão da Relação dando por mal ajuizados os pressupostos em que assentou a inversão do ónus da prova, assenta, com todo o respeito, numa errada predefinição deste ónus, pelo que corrigindo tal definição, que é prévia, prejudicado fica o conhecimento da justeza dos pressupostos desse ajuizamento.
Cabendo aos embargantes avalistas a prova do preenchimento abusivo e não a tendo feito, não deve a instância de embargos ser julgada procedente quanto aos mesmos.
Não havendo lugar a inversão do ónus da prova, no que à matéria do preenchimento abusivo respeita e, não tendo este preenchimento abusivo sido provado por quem tinha o respetivo ónus, os embargantes avalistas, não podem aproveitar do imputado erro na apreciação da inversão.
Assim, os embargos devem improceder quanto aos embargantes avalistas AA e BB que, não obstante beneficiam da suspensão da execução por força da declaração de insolvência.
Termos em que a Revista merece parcial provimento, embora com diferente fundamentação jurídica da apresentada pela Recorrente.
Síntese conclusiva:
1. Ajuizar do acerto da decisão que determinou a inversão do ónus da prova em relação a uma parte, por razões atinentes à sua recusa em prestar autorização para que o banco prestasse informações bancárias atinentes a um financiamento de crédito, implica a prévia definição do seu ónus probatório.
2. Implica ainda enquadrar os ónus probatórios na causa de pedir onde se inserem os títulos levados à execução: escritura de crédito, hipoteca e livrança.
3. Sendo o contrato de abertura de crédito um contrato consensual por via do qual um estabelecimento bancário se obriga a ter à disposição do cliente uma soma de dinheiro que este tem possibilidade de utilizar, mediante uma ou mais operações bancárias, este contrato, só por si, não é título executivo. Os atos subsequentes à abertura de crédito e complementares desta é que titulam o direito de crédito do exequente, na medida do desembolso que este tenha efetuado.
4. Incumbindo, nesse caso, ao credor alegar e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que efetuou ou ofereceu a prestação, nos termos do atual art. 715º do CPC.
5. A escritura pública donde apenas constam declarações dos outorgantes no sentido de constituírem uma hipoteca para garantia do pagamento de quantias que possam vir a ser devidas por força de um “contrato de financiamento” não é título executivo bastante em ação executiva destinada a obter o pagamento de quantia certa, nos termos do art.º 701.º n.º 1 al. b) do CPC, porque essa escritura não importa na constituição ou reconhecimento duma obrigação pecuniária.
6. Sempre que o avalista e credor estejam ligados por uma convenção extracartular, seja ela anterior, contemporânea ou posterior à subscrição do título, estaremos em presença de relações imediatas e o conteúdo daquela convenção é invocável pelo avalista contra o credor na qualidade de meio de defesa próprio.
7. Cabendo aos embargantes avalistas a prova do preenchimento abusivo.
V- Deliberação
Pelo exposto, acorda-se em conceder parcialmente a revista e alterar parcialmente o acórdão recorrido, julgando nesta sede improcedentes os embargos relativamente aos embargantes AA e BB, que, não obstante mantêm a execução contra si suspensa por força da sua declaração de insolvência.
Mantendo-se o decidido quanto ao mais, nomeadamente quanto à executada SIROCO, S.A. cujos embargos se mantêm procedentes, ainda que por fundamento diferente, no caso, de insuficiência de título executivo.
Custas pela Recorrente embargada, considerando o decaimento parcial e, custas pela Recorrida embargante SIROCO, S.A., considerando o proveito, na proporção de ½ para cada parte.
Lisboa, 26 de novembro de 2024
Anabela Luna de Carvalho (Relatora)
Henrique Antunes (1º Adjunto)
Maria Clara SottoMayor (2ª Adjunta)