Não abusou do seu direito de liberdade contratual o terceiro que celebrou contrato de compra e venda com o promitente-vendedor, sabendo que as frações compradas tinham sido objeto de contrato-promessa anterior que o promitente-vendedor não tencionava cumprir, não podendo, desse modo, considerar-se o seu comportamento ilícito com o fundamento de que excedeu manifestamente os limites impostos pelos bons costumes.
Acordam, em audiência, os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:
*
“Classalegre – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., propôs a presente acção declarativa, sob a forma comum, contra AA e Morais & Morais, Imobiliária, Lda., pedindo que:
1.º Seja declarado nulo, por simulado, o negócio de compra e venda das três frações autónomas, realizado entre a 1.ª e a 2.ª Ré, e titulado pela escritura pública de compra e venda junta com este articulado sob a forma de doc. n.º 13;
2.º Sejam ambas as Rés condenadas a reconhecerem como inteiramente válido e vigente o contrato-promessa de compra e venda junto com a petição inicial sob a forma de doc. n.º 1; 3.º Sejam ambas as Rés condenadas a reconhecerem que a aqui Autora sucedeu na posição contratual e, concomitantemente, em todos os direitos de que os primitivos promitentes-compradores estavam investidos decorrentes da celebração do contrato-promessa e do registo provisório de aquisição feito com base no contrato-promessa de alienação;
4.º Seja declarado o incumprimento definitivo, por culpa imputável a ambas as Rés, da promessa feita pela primeira Ré no contrato-promessa celebrado;
5.º Procedendo a execução específica do contrato, que por esta ação se pretende ver declarada e reconhecida, sejam ambas as Rés condenadas a ver emitida – o que expressamente se requer – a declaração substitutiva da declaração negocial da primeira Ré, que transmita para a Autora o direito de propriedade sobre as três frações melhor identificadas neste petitório;
6.º Sejam condenadas a reconhecer que o registo provisório celebrado a favor dos primitivos promitentes compradores seja convertido em definitivo, a favor da aqui Autora, fazendo retroagir os efeitos do registo de aquisição à data da feitura daquele registo provisório;
7.º Seja reconhecido e declarado que ambas as Rés agiram de mé e, como tal, não pode a segunda Ré ser considerada terceiro de boa fé, pelo que deverá ser anulada a alienação das frações a favor da segunda Ré;
8.º Seja a Autora considerada, em termos registrais, como proprietária das três frações, desde a data do registo provisório feito em nome dos primitivos promitentes-compradores;
A título subsidiário:
9.º Seja a 1.ª Ré condenada a indemnizar a Autora na quantia de € 94 618,00, na qual se inclui o aumento do valor da coisa, objetivamente determinado pelo valor oferecido à primeira Ré pela aquisição das respetivas frações, os juros de mora já vencidos e a devolução do sinal prestado;
10.º Seja ainda a primeira Ré condenada no pagamento de juros de mora vincendos, calculados à taxa legal de 4%, a incidir sobre o capital de 94 000,00€, até integral e efetivo pagamento;
Ainda a título subsidiário e para o caso da improcedência dos pedidos anteriores:
11.º Sejam ambas as Rés solidariamente condenadas a indemnizarem a Autora na quantia de € 54 355,00, na qual se inclui o aumento do valor da coisa, objetivamente determinado pelo valor do preço declarado por ambas as Rés na escritura de compra e venda que celebraram, os juros de mora já vencidos e a devolução do sinal prestado;
12.º Sejam ainda ambas as Rés condenadas no pagamento de juros de mora vincendos, calculados à taxa legal de 4%, a incidir sobre o capital de € 54 000,00, até integral e efetivo pagamento;
Ainda a título subsidiário e para o caso da improcedência dos pedidos anteriores:
13.º Sejam ambas as Ré solidariamente condenadas a indemnizarem a Autora na quantia de € 28 184,00, na qual se inclui o dobro do valor do sinal prestado e os juros de mora já vencidos;
14.º Sejam ainda ambas as Rés condenadas no pagamento de juros de mora vincendos, calculados à taxa legal de 4%, a incidir sobre o capital de € 28 000,00, até integral e efetivo pagamento.
Alegou, em síntese, que por escrito datado de 12 de março de 2021, a 1.ª Ré prometeu vender a BB e a CC, ou a quem estes viessem a indicar, pelo preço de € 140 000,00, três frações autónomas, contiguas entre si, duas pertencentes ao prédio constituído em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º ...5 e outra ao prédio urbano, também constituído em propriedade horizontal, descrito na mesma Conservatória sob o n.º ...4.
Conforme previsto, os promitentes-compradores entregaram à 1.ª Ré a quantia de € 14 000,00, a título de sinal e antecipação do pagamento do preço que seria devido aquando da celebração do contrato prometido, a ter lugar em data a acordar entre ambas as partes, ou, na falta de acordo, a indicar pelos promitentes-compradores, no prazo de 210 dias.
No referido contrato-promessa, foi prevista uma cláusula em que a 1.ª Ré autorizou que, previamente à celebração do contrato prometido, os promitentes compradores realizassem obras nas frações, obrigando-se a entregar-lhes, para esse efeito, a chave das mesmas.
Na sequência, os referidos promitentes-compradores celebraram, com a Autora, por escrito de 5 de abril de 2021, um contrato pelo qual cederam a esta a respectiva posição contratual, o que foi comunicado à 1.ª Ré através de carta registada com aviso de recepção datada de 9 de abril de 2021.
Ainda no mês de abril de 2021, os promitentes-compradores acederam às frações, para darem início às obras que nelas pretendiam realizar, sucedendo que, dias mais tarde, quando ali se deslocaram, foram impedidos de entrar pela GNR, chamada ao local a mando da Ré.
Perante o comportamento da Ré, os promitentes-compradores decidiram proceder ao agendamento do contrato definitivo, dando conhecimento à Ré, que não compareceu no dia e local agendados para o efeito. Repetiram novamente o procedimento sem sucesso.
Os promitentes-compradores receberam, entretanto, uma carta da Ré a dizer-lhes que tinha uma proposta de compra das fracções pelo preço de € 220 000,00, pelo que, sentindo ter sido enganada por eles, anulava o contrato-promessa. O conhecimento desta intenção de não cumprir levou-os a procederem ao registo provisório da aquisição, nos termos previstos no art. 92/1, g), do Código do Registo Predial. Passaram, assim, a beneficiar da reserva de lugar dada por este, a qual se transmitiu à Autora por aplicação extensiva do disposto no art. 101/2, f), do mesmo diploma.
Já depois de realizado esse registo, foi celebrada uma escritura pública em que um terceiro, agindo na invocada qualidade de gestor de negócios da 1.ª Ré, declarou vender à 2.ª Ré, que declarou comprar, pelo preço de € 180 000,00, as referidas frações. Esta compra e venda, entretanto ratificada pela 1.ª Ré, constitui um ato simulado, posto que as partes não tiverem a intenção de transmitir a propriedade sobre as frações autónomas, mas apenas impedir o recurso, pela Autora, à execução específica do contrato-promessa.
Citadas, as Rés contestaram.
A 1.ª Ré disse, em síntese, que celebrou o contrato-promessa em estado de erro quanto ao valor das frações autónomas, o qual foi induzido, de forma dolosa, pelo promitente-comprador BB; de qualquer modo, nunca consentiu na cessão da posição contratual dos promitentes-compradores, pelo que este ato é ineficaz em relação a si, nada lhe podendo ser exigido pela Autora; não ocorreu a tradição das frações para os promitentes-compradores, mas apenas a tentativa destes se apossarem delas pela força; o registo da aquisição provisória não atribui natureza real ao contrato-promessa e, como quer que seja, tal registo caducou por o ato aquisitivo não ter sido registado nos seis meses subsequentes.
Concluiu pedindo, ademais da improcedência da ação, em sede reconvencional:
1.º A título principal, seja declarada a anulação do contrato-promessa de compra e venda articulado no art. 1.º da petição, com as consequências legais, nomeadamente, a obrigação de restituição por parte da Ré à Autora do valor do sinal recebido (€ 14 000,00);
2.º Subsidiariamente, para a hipótese figurada no articulado que determinou a intervenção dos chamados BB e CC, deve ser declara a anulação do mesmo contrato promessa articulado no art. 1.º da petição, com as legais consequências, nomeadamente, a obrigação para a Ré de restituir a estes o valor recebido de sinal (€ 14 000,00).
Para efeitos do último pedido, pediu a intervenção, em posição subsidiária à da Autora, enquanto Reconvinda, dos referidos BB e CC.
A 2.ª Ré, por seu turno, disse, em síntese, que a cessão da posição contratual dos promitentes-compradores para a Autora não pode ser oposta a esta, que a não autorizou, apenas permitindo que os promitentes-compradores se fizessem substituir por outrem no contrato prometido; sendo alheia ao contrato-promessa não lhe pode ser imputada qualquer responsabilidade decorrente do incumprimento deste; agiu de boa fé, na convicção de que o registo provisório da aquisição a favor dos promitentes compradores iria caducar. No mais, impugnou, por desconhecimento, o alegado pela Autora.
Em reconvenção, pediu a condenação da Autora no pagamento de: uma indemnização, pelos danos patrimoniais decorrentes da propositura e pendência da presente ação, em montante a liquidar em momento ulterior; uma compensação de € 5 000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos com a propositura e pendência da presente acção, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da notificação do pedido reconvencional até efectivo e integral pagamento.
A Autora replicou, impugnando o alegado pela Rés em suporte dos pedidos reconvencionais e concluindo como na petição inicial.
Por despacho de 7 de abril de 2022, foi admitida a intervenção principal, como reconvindos, em posição subsidiária relativamente à Autora, dos referidos BB e CC que, uma vez citados, declararam fazer seus os articulados apresentados pela Autora.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, em que se admitiu o pedido reconvencional formulado pela 1.ª Ré e rejeitou o da 2.ª, com fundamento na não verificação dos requisitos previsto no art. 266/2 do CPC. No mais, afirmou-se tabularmente a verificação dos pressupostos processuais.
Seguiu-se a delimitação dos termos do litígio e o enunciado dos temas da prova.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“1. Julgar parcialmente procedente a ação e, em consequência,
1.1. Condenar as Rés, AA e Morais & Morais, Imobiliária, Lda., a reconhecerem como inteiramente válido e vigente o contrato promessa de compra e venda junto com a petição inicial sob a forma de doc. n 1;
1.2. Condenar ambas as Rés, AA e Morais & Morais, Imobiliária, Lda., a reconhecerem que a aqui Autora, Classalegre –Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., sucedeu na posição contratual e, concomitantemente, em todos os direitos de que os primitivos promitentes compradores estavam investidos decorrentes da celebração do contrato promessa;
1.3. Declarar o incumprimento definitivo, por culpa imputável a ambas as Rés, AA e Morais & Morais, Imobiliária, Lda., da promessa feita pela primeira Ré no contrato-promessa celebrado;
1.4. Condenar ambas as Rés, AA e Morais & Morais, Imobiliária, Lda., em regime de solidariedade, a indemnizarem a Autora, Classalegre – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., na quantia de € 28 000,00 (vinte e oito mil euros), correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescida de juros de mora, à taxa legal prevista no art. 559 do Código Civil, vencidos desde 30 de abril de 2021 e vincendos até integral e efetivo pagamento;
1.5. Absolver as Rés, AA e Morais & Morais, Imobiliária, Lda., do demais peticionado pela Autora, Classalegre – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda.;
2. Julgar a reconvenção deduzida pela Ré AA improcedente e, em consequência, absolver a Autora, Classalegre – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., e os intervenientes, BB e CC, dos pedidos formulados.
3. Condenar a Autora, Classalegre – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., e as Rés, AA e Morais & Morais, Imobiliária, Lda., no pagamento das custas da ação, na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixam em 2/3 para a primeira e 1/3 para as segundas ( já na redação dada pelo despacho de retificação datado de 03-02-2023); 4. Condenar a Ré AA no pagamento das custas da reconvenção.
Registe e notifique.
Transitada, comunique à CRP para cancelamento do registo da ação.”
Inconformados com esta decisão, vieram a A e a 2ª R, respectivamente, interpor recursos de apelação, o primeiro a título principal e a segunda a título subordinado.
A A. rematou, assim, as suas conclusões:
“ (…)
TRIGÉSIMA QUINTA: Considera, assim, a recorrente, atento o exposto, ter demonstrado a simulação do negócio realizado em abril de 2021, o que a ser reconhecido, como se espera, levará à procedência do pedido principal formulado pela autora nos presentes autos e à consequente procedência da execução específica peticionada, por se mostrarem verificados os seus requisitos, como se alcança do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 23 de maio de 2017, em que foi Relatora Maria João Areias, no processo 431/16.4T8LRA-A.C1.”
A 2ª R finalizou o seu recurso subordinado com as seguintes conclusões:
(…)
38 - Pelo que, in casu, houve incorreta interpretação e aplicação dos artigos 798.º, 808.º, n.º 1, 406.º, n.º 2, 442.º, n.º 2, 483.º, 334.º, 490.º, 497.º e 559.º do Código Civil, pois a 2.ª Ré é alheia ao contrato promessa de compra e venda, o incumprimento definitivo do contrato promessa ocorreu por culpa imputável à 1.ª Ré, o contrato promessa somente tem efeitos inter partes, sendo a 2.ª Ré terceira em relação ao mesmo, não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual para que haja obrigação de indemnizar por parte da 2.ª Ré, não houve qualquer abuso de direito na sua atuação, não houve instigação, auxiliação pela 2.ª Ré em qualquer ato ilícito, não podendo a mesma ser condenada no pagamento de qualquer indemnização à Autora, nem sequer em termos solidários, muito menos no pagamento de quantia correspondente ao dobro de sinal quanto a um contrato promessa em que não interveio, nem sequer em juros.
39- Por tudo acima exposto, deve o presente recurso subordinado ser julgado procedente e a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva a 2.ª Ré dos pontos 1.1, 1.3 e 1.4 da sentença.”
A Relação, porém, julgou improcedentes ambas as apelações e confirmou a decisão recorrida.
Inconformada, a 2.ª Ré/Recorrente MORAIS & MORAIS, IMOBILIÁRIA, LDA, interpôs recurso excepcional, com fundamento no art. 672º, nº 1, als. a) e. b) do CPC, formulando as seguintes conclusões:
“1- O presente recurso é admissível no âmbito da revista excecional, nos termos a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.
2- A alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil prevê a admissibilidade do Recurso de Revista quando “esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
3- No caso em apreciação nos presentes autos, mormente com a decisão proferida em 1.ª Instância e bem assim, a proferida pelo Acórdão recorrido, foi a 2.ª Ré/Recorrente condenada a reconhecer como inteiramente válido o contrato promessa de compra e venda junto com a petição inicial sob a forma de doc. n.º 1, a declarar o incumprimento definitivo por culpa imputável às Rés, AA e Morais & Morais, Imobiliária, Lda, da promessa feita pela primeira Ré no contrato promessa celebrado; condenar ambas as rés, AA e Morais & Morais, Imobiliária Lda, em regime de solidariedade, a indemnizar a Autora, Classalegre – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda, a quantia de €28.000,00 (vinte e oito mil euros), correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescido de juros de mora, à taxa legal prevista no art. 559º do Código Civil, vencidos desde 30 de abril de 2021 e vincendos até integral e efetivo pagamento.
4- No caso sub judice discute-se questão de extrema importância, de evidente e notória complexidade e que é de interesse geral na boa aplicação do direito que consiste em saber se terceiro relativamente a um contrato promessa de compra e venda com efeitos obrigacionais que foi incumprido pela promitente vendedora pode ser responsável pelo incumprimento e pode ser responsável solidariamente no pagamento de indemnização, correspondente ao dobro do sinal prestado e juros.
5- Trata-se de uma questão que tem muita divergência doutrinal, que embora não seja do desconhecimento da jurisprudência, é de extrema e particular relevância, por forma a acautelar os interesses dos cidadãos e a sua liberdade contratual, uma vez que atenta a sua complexidade na subsunção jurídica é passível de diversas interpretações.
6- Na doutrina há controvérsia acerca da responsabilidade civil ou não de terceiro por lesão de direito de crédito, pois há: a) doutrina que nega a eficácia externa das obrigações, assente na conceção clássica da relatividade dos direitos de crédito, que apenas podem ser violados pelas partes, em contraposição com os direitos reais que são oponíveis erga omnes (como por exemplo, Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 2.ª Ed., Coimbra, 1963, págs. 48 a 51, Vaz Serra, Responsabilidade de Terceiros no não-cumprimento das Obrigações, BMJ, n.º 85, pág. 352, E. Santos Júnior, Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, Coimbra, 2003, págs. 413 e ss e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª ed., Coimbra, 2000, págs. 172 e 174-175); b) Há doutrina que admite a eficácia externa das obrigações com a consequente responsabilização de terceiro (como por exemplo Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, Lisboa, 1975/76, págs. 599-603 e Ensaios sobre os pressupostos da responsabilidade civil, CCTF, Lisboa, 1972, pág. 138, nota 100 e Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, I, Lisboa, 1990, págs. 252 e ss) e c) há, ainda, uma posição intermédia que defende a responsabilização de terceiro apenas quando atue em abuso de direito.
7- Por se tratar de uma questão de grande complexidade, de relevância jurídica, que é do interesse geral na boa aplicação do direito e atenta a controvérsia doutrinal existente afigura-se necessário a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para evitar dissonâncias interpretativas, para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam não há dúvidas que se trata de uma questão de especial relevo jurídico, cuja apreciação por este Supremo Tribunal de Justiça se mostra necessária para uma melhor aplicação do direito.
8- Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, sempre se dirá que a alínea b) do n.º1 da mesma disposição legal prevê a admissibilidade da Revista quando “estejam em causa interesses de particular relevância social", uma vez que estamos perante uma situação que põe em causa a eficácia do direito e em dúvida a sua credibilidade, abrangendo-se aqui casos em que há um invulgar impacto na situação da vida que as normas jurídicas em apreço visam regular.
9- Na situação em apreço constitui interesse de particular relevância social saber se terceiro relativamente a um contrato promessa de compra e venda com efeitos obrigacionais que foi incumprido pela promitente vendedora pode ser responsável pelo incumprimento e pode ser responsável solidariamente no pagamento de indemnização, correspondente ao dobro do sinal prestado e juros.
10- Estamos perante situação e questão que além de relevo jurídico e de grande controvérsia doutrinal tem relevo social, sociocultural e socioeconómico, uma vez que, por exemplo, além de afetar os interesses pessoais da aqui Recorrente, afeta também interesses mais vastos, como a legítima confiança de agentes económicos ou de terceiros que veem uma boa oportunidade de negócio perante um contrato promessa de compra e venda com efeitos obrigacionais que foi incumprido pelo promitente vendedor.
11- Saliente-se que ocorrem nos dias de hoje incumprimentos de contrato promessa de compra e venda por parte dos promitentes vendedores e perante uma situação em que terceiro que é alheio a esse contrato promessa poder ter algum tipo de responsabilidade leva a que se gere na sociedade um grande alarme social com profundos sentimentos de inquietação, que até minam por completo a tranquilidade da generalidade de pessoas.
12- Pelo que, trata-se de uma questão merecedora de proteção, que deve ser apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que a sua apreciação é de extrema relevância para a justeza das decisões judiciais perante os cidadãos e da manutenção da ordem jurídica.
13- O Acórdão Recorrido veio confirmar a sentença proferida em 1.ª instância, sem voto vencido, sem fundamentação essencialmente e o mesmo ao decidir julgar improcedente a apelação da 2.ª Ré, aqui Recorrente, e a aqui Recorrente ter sido condenada nos pontos 1.3 e 1.4, ou seja, no incumprimento definitivo por culpa também a si imputável da promessa feita pela 1.ª Ré no contrato-promessa celebrado e na condenação, em regime de solidariedade, a indemnizar a Autora, Classalegre – Sociedade de Mediação Imobiliária Lda, na quantia de 28.000,00€ (vinte e oito mil euros), correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescido de juros de mora, à taxa legal prevista no art. 559 do Código Civil, vencidos desde 30 de abril de 2021 e vincendos até integral e efetivo pagamento, viola lei substantiva, por erro de interpretação e aplicação das normas aplicáveis, nos termos do disposto na al. a) do artigo 674.º do Código de Processo Civil, concretamente dos artigos 410.º, n.º 1, 798.º, 808.º, n.º 1, 397.º, 406.º, n.º 2, 442.º, n.º 2, 483.º, 334.º, 490.º, 497.º e 559.º do Código Civil.
14- Os factos provados impõem uma diversa solução de direito, senão vejamos, no que diz respeito ao contrato promessa estabelece o n.º 1 do artigo 410.º do Código Civil que “À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, excetuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato promessa”, podendo este ter efeitos obrigacionais ou eficácia real e in casu o contrato promessa tinha efeitos meramente obrigacionais, ou seja, efeitos inter partes (cfr., Ac. do STJ, de 11 de março de 1997, in CJ, Ano V, Tomo I, 1997, pág. 144 e Ac. STJ, de 08 de maio de 1991, processo 0799792, in www.dgsi.pt devidamente transcritos na motivação do recurso e que aqui se dão por reproduzidos para todos os devidos efeitos legais).
15- Os artigos 798.º e 808.º, n.º 1 do Código Civil foram incorretamente interpretados e aplicados no que diz respeito à condenação da Recorrente, atento ao facto de esta não fazer parte do contrato promessa de compra e venda, ser alheia ao mesmo, de o contrato ter efeitos meramente obrigacionais e efeitos inter partes, de a 1.ª Ré por si e voluntariamente e sem qualquer intervenção da Recorrente ter decidido de forma expressa incumprir a sua obrigação (conforme também resulta dos factos provados n.ºs 31 a 42), não havendo qualquer responsabilidade da Recorrente contratual ou extracontratual.
16- Do disposto nos artigos 410.º, n.º 1, 798.º e 808.º, n.º 1 do Código Civil e atentos os factos dados como provados, somente a 1.ª Ré deveria ter sido condenada no incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda e não a 2.ª Ré/Recorrente e somente a 1.ª Ré deve ser condenada a pagar indemnização à Autora decorrente do dobro do sinal no valor de 28.000,00€ e juros.
17- Além disso, o Acórdão Recorrido ao manter a sentença de 1.ª instância merece censura, pois ao decidir pela eficácia externa das obrigações com a consequente responsabilização de terceiro (Recorrente) pelo incumprimento do contrato promessa e em pagamento de indemnização correspondente ao sinal em dobro e juros também efetuou incorreta interpretação e aplicação dos artigos 397.º, 406.º, n.º 2, 442.º, n.º 2, 483.º, 334.º, 490.º, 497.º e 559.º do Código Civil.
18- Conforme se referiu na conclusão n.º 6, a qual se dá aqui por reproduzida para todos os devidos efeitos legais há controvérsia doutrinal, que é de extrema relevância jurídica e social, quanto à responsabilidade de terceiro por lesão de direito de crédito e in casu, ao contrário do constante no Acórdão Recorrido deveria ter procedido à aplicação da doutrina dominante, doutrina tradicional que nega a eficácia externa das obrigações.
19- Resulta da jurisprudência dos Tribunais superiores que: I) É tradicional e prevalecente na doutrina portuguesa a teoria que nega a eficácia externa das obrigações, assente na clássica concepção da relatividade dos direitos de crédito que, no contexto contratual, apenas podem ser violados pelas partes, em contraposição com os direitos reais que são oponíveis era omnes. II) Não sendo de acolher, em regra, a teoria da eficácia externa das obrigações ao abrigo da qual se poderá imputar a terceiro a violação do direito de crédito do Autor, no apertado circunstancialismo dos requisitos da responsabilidade delitual, só se poderia concluir pela culpa de terceiro, na frustração contratual do direito do Autor se se puder afirmar que a sua atuação foi dolosa, visando deliberadamente a frustração desse interesse” (Cfr., Ac. do STJ, de 20 de setembro de 2011, in www.dgsi.pt).
20-O contrato promessa de compra e venda que foi celebrado com a 1.ª Ré e que houve cessão de posição contratual para a Autora tem efeitos meramente obrigacionais, não estando a 2.ª Ré vinculada ao mesmo, motivo pelo qual os artigos 397.º e 406.º, n.º 2 do Código Civil não podem ser interpretados no sentido de admitir a teoria da eficácia externa das obrigações, motivo pelo qual devem ser interpretados e aplicados no sentido da aplicação da teoria da eficácia interna das obrigações (efeitos entre as partes), o que determina a absolvição da 2.ª Ré/Recorrente nas partes da decisão sob os pontos 1.3 e 1.4 da sentença de 1.ª instância e mantido pelo Acórdão Recorrido.
21-Mesmo que se considerasse que in casu não é aplicável a doutrina tradicional, da eficácia interna das obrigações, sempre se dirá que o Ac. Recorrido ao decidir como decidiu violou normas substantivas, incorrendo na errada interpretação e aplicação dos restantes artigos supra mencionados, ou seja, dos artigos 442.º, n.º 2, 483.º, 334.º, 490.º, 497.º e 559.º do Código Civil.
22-Dispõe o n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação” e para haver lugar a responsabilidade civil é fundamental que se encontrem preenchidos, cumulativamente, os seus pressupostos, ou seja, a) O facto; b) A ilicitude; C) A imputação do facto ao lesante; d) dano; e) Um nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr., no mesmo sentido, ALMEIDA COSTA, Obrigações, 4.ª, 364; JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, Vol. I, Almedina, 8.ª Ed.1994, pág. 533).
23-No que diz respeito ao abuso de direito consagra o artigo 334.º do Código Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
24-O instituto do abuso de direito “possui virtualidades quer permitem salvaguardar os casos mais graves, em que a conduta de terceiro se mostra particularmente chocante, escandalosa e censurável” (cfr., nesse sentido, Ac. do STJ, de 19 de março de 2002, in CJ, Ano X, Tomo I, 2002, PÁG. 142).
25-O n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil estabelece que “Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, atem aquele a faculdade de exigir o dobro do sinal que prestou (…)”.
26-Dispõe o artigo 490.º do Código Civil que “Se forem vários os autores, instigadores ou auxiliares do ato ilícito, todos eles respondem pelos danos que hajam causado” e o n.º 1 do artigo 497.º do Código Civil estabelece que “Se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidaria a sua responsabilidade”.
27-O artigo 559.º do Código Civil consagra que: “1 – Os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são os fixados em portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças e do Plano.2–A estipulação de juros à taxa superior à fixada nos termos do número anterior deve ser feita por escrito, sob pena de serem apenas devidos na medida dos juros legais”.
28-Na situação em apreço, ao contrário do Acórdão Recorrido, não se encontram preenchidos os pressupostos de responsabilidade civil extracontratual, a fim de ser atribuída responsabilidade à aqui Recorrente pelo incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda e responsabilidade por indemnização à Autora, nem sequer a Autora alegou factos em sede de petição inicial, como era sua obrigação, a fim de ser atribuída essa responsabilidade, muito menos os provou.
29-Conforme decorre dos factos provados e da motivação do presente recurso foi a 1.ª Ré que decidiu por si, voluntariamente , incumprir o contrato promessa de compra e venda e sem qualquer interferência da 2.ª Ré/Recorrente e esta em momento algum teve conduta que foi ilícita, culposa, geradora de danos, inexistindo nexo de causalidade entre os factos e os danos.
30-Dos factos dados como provados até verificamos o contrário, que a atuação da 2.ª Ré decorreu dentro dos ditames da boa fé, não tendo ultrapassado os limites da liberdade contratual (cfr., factos provados n.ºs 43 a 58, 66 a 70).
31-É certo que, a 2.ª Ré/Recorrente aquando a celebração da escritura de compra e venda tinha conhecimento da existência de um registo provisório de aquisição, mas não se pode considerar daí qualquer responsabilidade para a 2.ª Ré, nem ter os efeitos pretendidos pelo tribunal recorrido, uma vez que é completamente alheia ao contrato promessa de compra e venda celebrado entre a 1.ª Ré e os Intervenientes e alheia ao contrato de cessão de posição contratual, nunca tendo falado com a 1.ª Ré, nem a conhece, tendo o negócio sido celebrado por intermédio da mediadora imobiliária ERA e, portanto, não teve a Recorrente qualquer intervenção, nem instigou ou auxiliou o incumprimento do contrato promessa de compra e venda por parte da 1.ª Ré.
32-Além de que, a Recorrente sabia é que era um registo provisório que caducava em seis meses e quando foi efetuada a ratificação do negócio pela 1.ª Ré tal registo estava caducado, por culpa não imputável à 2.ª Ré/Recorrente, tendo esta sempre atuado de boa fé, no âmbito da sua atividade comercial e económica e tendo em conta o princípio da liberdade contratual, onde adquiriu as frações autónomas, pago o preço das mesmas, tendo inclusive já vendido duas frações autónomas e prometido vender a outra fração autónoma (cfr., factos provados n.ºs 49 a 58, 66 a 70, documentos juntos com o requerimento de 12 de setembro de 2022, extrato bancário junto aos autos por requerimento de 27 de setembro de 2022, ofício do novo banco que confirma o depósito do cheque do valor de 180.000,00€).
33-Acresce que, ao contrário do constante na sentença recorrida, perante o incumprimento definitivo do contrato promessa por parte da 1.ª Ré a execução específica do contrato não é possível(cfr., nesse sentido Ac. do STJ, de 5 de março de 1996, processo n.º 087846, in www.dgsi.pt, Ac. do TRP, de 28 de março de 2017, processo n.º 1974/12.4TBMAI.P2, in www.dgsi.pt e no mesmo sentido Ac. do TRL, de 11 de outubro de 2018, processo n.º 25293/15.5T8LSB.L1-6, in www.dgsi.pt) e sendo um contrato com efeitos obrigacionais não poderá obter eficácia real por via do registo da ação (cfr., Ac. do STJ, de 20 de janeiro de 2009, in www.dgsi.pt).
34-Ao contrário do constante no Acórdão Recorrido em momento algum a Recorrente abusou do seu direito de liberdade negocial, nem sequer Autora alegou factos na petição inicial referentes ao instituto do abuso do direito, nem os logrou provar, salientando-se, ainda, que a Recorrente atuou antes de acordo com o princípio da liberdade contatual, uma vez que se dedica à atividade de compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim (cfr., facto provado n.º 58) e no âmbito da liberdade contratual e de boa fé, efetuou uma proposta final para a aquisição das três frações autónomas, que foi aceite pela 1.ª Ré, no valor de 180.000,00€ (cento e oitenta mil euros), valor este que em termos de mercado é justo, sendo um valor superior até ao constante no contrato promessa de compra e venda junto com a petição inicial sob o doc. n.º 1 e, portanto, não pode decorrer daí qualquer ato ilícito, nem culposo, muito menos gerador de danos.
35-A Recorrente sempre atuou de boa fé, no âmbito da sua atividade comercial, em claro cumprimento das normas legais, adquiriu as frações autónomas, pagou o preço das mesmas e a existência do registo provisório de aquisição não afasta a boa fé da 2.ª Ré, salientando-se que em momento algum a 2.ª Ré atuou em abuso de direito, mas de boa fé e dentro dos limites da liberdade contratual.
36-A atuação da Recorrente não foi ofensiva da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante, não houve uma atuação com o propósito de prejudicar quem quer que seja, muito menos os Autores, tendo a Recorrente visado satisfazer um interesse próprio atendível, de obter vantagens ou utilidades económicas para si e, portanto, o Acórdão Recorrido merece censura quando refere também que a Recorrente abusa do seu direito à liberdade negocial e não é pelo facto de a Recorrente ter adquirido as frações autónomas que abusa de direito (cfr., nesse sentido, Ac. do STJ, de 11 de março de 1997, in CJ, Tomo I, págs. 145 e 146, transcrito na motivação do recurso e cuja transcrição se dá por reproduzido para todos os devidos efeitos legais).
37-O Acórdão Recorrido também merece censura, uma vez que não se pode aceitar que haja uma responsabilidade solidária da 2.ª Ré/Recorrente no pagamento de 28.000,00€ correspondente ao sinal em dobro quando não faz parte do contrato promessa de compra e venda, quando não houve, como não podia haver incumprimento de contrato promessa da sua parte, por não ter recebido qualquer sinal, nem haver lugar à aplicação in casu dos artigos 483.º, 334.º, 490.º, 497.º, 442.º, n.º 2 e 559.º do Código Civil.
38-Não se encontram in casu verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, nem o instituto do abuso de direito, nem a Autora os alegou, nem logrou provar e, como tal, os danos decorrentes da frustração do contrato promessa de compra e venda não são imputáveis à 2.ª Ré/Recorrente, devendo ser absolvida na parte em que a condenou no incumprimento definitivo por culpa a si também imputável da promessa feitapela1.ªRéno contrato promessa celebrado e na parte em que a condenou, em regime de solidariedade, a indemnizar a Autora na quantia de 28.000,00€ correspondente ao dobro do sinal, e dos juros.
39-Assim, o Tribunal ao ter decidido como decidiu violou o disposto nos artigos 410.º, n.º 1, 798.º, 808.º, n.º 1, 397.º, 406.º, n.º 2, 442.º, n.º 2, 483.º, 334.º, 490.º, 497.º e 559.º do Código Civil, devendo as mesmas ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de não haver qualquer responsabilidade da Recorrente no incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda, de não se verificar os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, não ter havido qualquer abuso de direito na atuação da Recorrente, de a Recorrente não ser responsável no pagamento de indemnização à Autora da quantia de 28.000,00€ correspondente ao dobro do sinal prestado, nem de juros.
40-Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e o Acórdão Recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva a 2.ª Ré/Recorrente dos pontos 1.3 e 1.4 da parte decisória da sentença de 1.ª instância, mantida pela Relação.
TERMOS EM QUE, DEVE O RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, CONSIDERAR-SE QUE O ACÓRDÃO RECORRIDO VIOLA LEI SUBSTANTIVA POR INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DE NORMAS APLICÁVEIS, NOS TERMOS DA AL. A) DO ARTIGO 674.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, DEVENDO O MESMO SER REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE DECLARE A AÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE E ABSOLVA A RECORRENTE DOS PEDIDOS CONSTANTES DOS PONTOS 1.3 E 1.4 DA DECISÃO DE 1.ª INSTÂNCIA, MANTIDOS PELA RELAÇÃO, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS DAÍ ADVENIENTES. (…)”
Não houve contra-alegações.
A Formação ajuizou assim:
“ (…)
No caso trazido a Juízo, discute-se a questão de saber se o terceiro (2ª Ré) que, sabendo da existência de um crédito contratual (o anterior contrato promessa que foi incumprido pela 1ª Ré e com as consequências conhecidas nesses casos: do pagamento do dobro do sinal), contribua para o respetivo não cumprimento (foi com a 2ª Ré que a 1ª ré efetuou a escritura pública de compra e venda das frações anteriormente prometidas vender, tornando-se impossível de cumprir o contrato promessa, e disso sabia a 2º ré), deve ser responsabilizado civilmente por esse incumprimento.
A questão em discussão prende-se, no essencial, com a matéria atinente à eficácia externa das obrigações e aos pressupostos de que depende a responsabilização de terceiro pelo incumprimento de direito de crédito alheio.
Conquanto esta matéria não encerre qualquer ineditismo, na medida em que foi já objeto de apreciação por parte deste Supremo Tribunal de Justiça, a verdade é que inexiste uma amostra jurisprudencial suficientemente expressiva que se constitua como referencial decisório a ter em consideração em litígios futuros.
Pronunciaram-se sobre esta matéria, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27-01-2022 (Processo n.º 6296/20.4T8GMR.S1), de 21-01-2016 (Processo n.º 2429/07.4TBSTB.L1.S1), de 03-02-2009 (Processo n.º 3135/08), de 28-04-2009 (Processo n.º 526/09) e de 01-10-2009 (Processo n.º 118/2000.S1).
Ademais, esta matéria é intrincada e implica o recurso a operações exegéticas de complexidade superior, tendo em especial consideração que naquela confluem institutos múltiplos como o da boa-fé, o do abuso do direito e a matéria em torno dos deveres de proteção e do princípio da liberdade contratual.
Ora, a complexidade a que se fez referência conjugada com a circunstância de não existir uma amostra jurisprudencial recente relevante permite concluir que se justifica a intervenção atualizadora deste Supremo Tribunal de Justiça numa matéria que se coloca não raras vezes aos nossos Tribunais.
A intervenção deste Supremo Tribunal de Justiça justifica-se, assim, atenta a relevância jurídica da matéria em debate, daí que fica prejudicada a apreciação do invocado fundamento atinente à relevância social.
III. DECISÃO
Pelo exposto, admite-se a revista excecional.
Notifique. … “
Cumpre decidir.
Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:
1. A 1.ª Ré nasceu no ..., tendo nacionalidade..., cf. documento 1 com a contestação da 1.ª Ré, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
2. Viveu sempre naquele País.
3. Pelas apresentação 15 e 16, de 9 de fevereiro de 2005, foi inscrita, a favor da 1.ª Ré, a aquisição, em partilha extrajudicial, da aquisição do direito de propriedade sobre a frações autónomas identificadas pelas letras A e B do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º...08, conforme documentos 12.1 e 12.2 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
4. Pela apresentação 14, da mesma data, foi inscrita, a favor da 1.ª Ré, a aquisição, em partilha extrajudicial, da aquisição do direito de propriedade sobre a fração autónoma identificada pela letra B do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...08, conforme documento 12.3 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
5. Por escrito de 8 de julho de 2020, a 1.ª Ré celebrou com a sociedade V...Lda., titular da franquia da Era Imobiliária no concelho de ..., um contrato de mediação imobiliária com vista à venda das três frações identificadas, pelo preço de € 225 000,00, tendo tal contrato a duração de 12 meses, em regime de exclusividade, e prevendo o pagamento da remuneração da mediadora do momento da celebração do contrato-promessa, conforme documento 3 com a contestação da 1.ª Ré, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
6. Os chamados BB e mulher CC tiveram conhecimento da intenção da primeira ré em vender as três frações autónomas, todas elas destinadas a comércio, sitas na freguesia da ...), do concelho da ....
7. No princípio do mês de março de 2021, a 1.ª Ré foi contactada, por telefone, por DD, comercial da Autora, que lhe disse trabalhar para uma franchisada da Remax e ter um cliente interessado na compra das frações.
8. No dia 7 de março de 2021, BB entrou em contacto, através do telefone, com a 1.ª Ré e manifestou-lhe a sua intenção de comprar as referidas lojas comerciais.
9. A 1.ª Ré disse-lhe que tinha as frações à venda, através da agência Era da ..., pelo preço de € 225 000,00.
10. O BB afirmou à Ré que as lojas não valiam mais de € 140 000,00, dizendo-lhe ainda que tinha conhecimento do mercado imobiliário e que, pouco tempo antes, tinha comprado uma loja em Braga por € 120 000,00.
11. A 1.ª Ré respondeu-lhe que teria de pensar.
12. No dia 10 de março de 2010, o BB voltou a contactar a 1.ª Ré, sempre pelo telefone, perguntando-lhe se já tinha tomado uma decisão e insistindo que o preço por ela pedido era demasiado alto.
13. A Autora disse-lhe aceitar com o preço proposto de € 140 000,00.
14. Naquela data, a 1.ª Ré tinha agendada uma cirurgia ao joelho direito para o dia 29 de março de 2021, sendo previsto um período de recuperação de três meses, com realização de fisioterapia e a necessidade de ajuda de terceira pessoa, o que a deixava ansiosa e preocupada.
15. A 12 de março de 2021, o BB enviou à 1.ª Ré, por WhatsApp, a minuta do contrato-promessa, em formato PDF, para que esta, depois de o examinar e analisar, imprimisse duas vias, rubricasse, assinasse e de seguida remetesse por correio postal os originais, que seriam depois assinados pelos promitentes-compradores.
16. A referida minuta era do seguinte teor:
“1.ª outorgante: AA (…), residente em (…)..., doravante designada por Promitente-Vendedora. 2.ºs Outorgantes: BB, e mulher CC (…), doravante designados por Promitentes-Compradores. Considerando que: A 1.ª outorgante é dona e legítima possuidora das seguintes frações autónomas: a) Fração autónoma designada peça letra B, composta de r/c esquerdo, destinada a comércio (…), descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...4-B (…); Fração autónoma designada peça letra A, composta de r/c direito, destinada a comércio (…), descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...4-A; Fração autónoma designada peça letra B, composta de r/c esquerdo, destinada a comércio com a garagem n.º 10, descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...5-B, é celebrado de boa-fé e reciprocamente acordado o presente contrato-promessa de compra e venda que se rege pelas seguintes cláusulas:
1.ª Objeto
1. Pelo presente contrato, a Promitente-Vendedora, na referida qualidade de única e legítima proprietária do imóvel acima identificado, promete vender livre de ónus e encargos, hipotecas e responsabilidades, sejam de que natura forem, e livre de qualquer tipo de ocupação, arrendamento, servidão, comodato ou qualquer outro que limite a posse, ocupação, fruição, função e utilidade, devoluta de pessoas e bens, aos Promitentes-Compradores, ou a quem estes vierem a indicar, que prometem comprar, os imóveis identificados supra.
2. (…) 3. (…)
2.ª Preço e condições de pagamento
1. O valor da aquisição é de € 140 000,00, que será liquidado da seguinte forma: a) o valor de € 14 000,00, é entregue, no dia da apresentação deste contrato assinado pela 1.ª outorgante aos 2.ºs outorgantes, a título de sinal e princípio de pagamento, por transferência bancária para o IBAN (…), conta titulada pela Promitente-Vendedora; b) o restante valor de € 126 000,00, será pago na outorga da escritura por cheque bancário.
3.ª Escritura pública ou DPA
1. A escritura de compra e venda ou documento particular autenticado será outorgada, e logo que se encontre reunida toda a documentação para o efeito necessária, em dia, hora e local a acordar pelas partes ou, na falta de acordo, em dia, hora e local a indicar pelos Promitentes-Compradores à Promitente-Vendedora, através de carta registada ou outro meio equivalente, expedida com pelo menos 15 dias de antecedência, no prazo de 210 dias, sendo da responsabilidade da vendedora todas as despesas havidas com tal facto, bem como, com a extinção ou a extinção ou cancelamento de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades que, eventualmente, onerem os imóveis ora prometidos vender. 2. Findo o prazo enunciado, sem que a escritura pública tenha sido celebrada, poderá haver resolução do presente contrato, salvo se a delonga estiver relacionada com qualquer prazo suplementar à avaliação bancária ou crédito habitação.
4.ª Incumprimento do contrato
1. Em caso de incumprimento definitivo e culposo imputável aos Promitentes-Compradores, confere-se à promitente-Vendedora o direito de resolver o presente contrato e optar por fazer suas todas as importâncias recebidas a título de sinal e princípio de pagamento, ficando totalmente livre de poder vender a terceiros o imóvel identificado no respetivo introito, salvo se optar por exercer o direito de execução específica previsto no ponto 4 da cláusula 4.ª
2. Os Promitentes-Compradores têm o direito, em caso de incumprimento definitivo deste contrato, imputável à Promitente-Vendedora, a exigir a restituição em dobro das quantias entregues a título de sinal e princípio de pagamento.
3. A existência de sinal passado, não afasta a possibilidade de o Promitente não faltoso requerer, em alternativa, a execução específica nos termos do art. 830 do Código Civil.
5.ª Benfeitorias
1. A 1.ª outorgante autoriza os 2.ºs outorgantes a realizar, a partir da presente data, as obras que entender, entregando uma chave do imóvel para o efeito.
2. (…) 3. (…) 6.ª (…)7.ª Notificações
1. Todas as notificações que venham a revelar-se necessárias fazer na vigência do presente contrato, serão feitas para as moradas das Partes indicadas.
2. (…)
3. O envio de carta registada com aviso de receção para a morada dos Promitentes-Compradores ou para a Promitente-Vendedora será prova bastante para demonstrar que se efetuou qualquer notificação, ou seja, se realizou a interpelação daquela para a realização da escritura, sendo este o caso”, tudo conforme documento 1 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.”
17. A 1.ª Ré imprimiu aquele ficheiro e apôs a sua assinatura no final, no espaço destinado à assinatura da 1.ª outorgante, manuscrevendo ainda o n.º do seu cartão de cidadão e a data de validade do mesmo, tudo conforme documento 1 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
18. No dia 24 de março de 2021, o BB recebeu as duas vias do contrato-promessa de compra e venda devidamente rubricadas e assinadas pela primeira 1.ª Ré, na qualidade de promitente-vendedora.
19. Depois de rubricar e de assinar o contrato, em conjunto com CC, no dia 29 de março de 2021, o BB remeteu uma das vias originais à 1.ª Ré.
20. Procedeu ainda à transferência, para a conta indicada pela Autora, da quantia de € 14 000,00.
21. No dia 22 de março de 2021, o BB contactou a 1.ª Ré, através de WhatsApp, para que lhe fosse entregue a chave das frações, tendo-lhe esta sugerido que as levantasse na agência Era da ....
22. O BB respondeu-lhe que seria preferível deixar as chaves noutro local que não a agência da Era.
23. Ainda no mesmo dia, sempre através de WhatsApp, a 1.ª Ré questionou o BB sobre se trabalhava na Remax, ao que este respondeu que estava a comprar particularmente e não a mediar um negócio, tudo conforme documento 7 com a contestação da 1.ª Ré, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
24. O BB marcou então uma reunião com o gerente da V...Lda., EE, dizendo-lhe ter um cliente interessado na aquisição das frações e propondo-lhe a partilha da comissão, o que este recusou.
25. A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à atividade comercial de mediação imobiliária, que tem como sócios aqueles BB e CC, desempenhando esta última as funções de gerente, cf. documento 5 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
26. Por escrito datado de 5 de abril de 2021, denominado “Contrato de cessão de posição contratual”, BB e CC, como 1.ºs outorgantes, e a Autora, representada por aquela CC, na qualidade de gerente, declararam celebrar e reciprocamente aceitar “o presente contrato de cessão de posição contratual, o qual se rege pelas cláusulas seguintes e, no que for omisso, pela legislação aplicável:
1.ª Por contrato-promessa de compra e venda celebrado em 12 de março de 2021, os 1.ºs outorgantes prometeram comprar a AA (…) que, por sua vez, prometeu vender àqueles as seguintes frações autónomas: (…)
2.ª Pelo presente contrato, os 1.ºs contratantes ceder à 2.ª contratante, que ora lha toma por cessão, a posição contratual que aqueles detêm no contrato-promessa referido na cláusula anterior, com todos os seus direitos e obrigações.
3.ª – 1. O preço da ora contratada cessão da posição contratual é de € 140 000,00, equivalente ao preço previso pela aquisição das três frações objeto do contrato-promessa celebrado. 2. A 2.ª contratante obriga-se a liquidar à promitente-vendedora AA, no ato da celebração da escritura definitiva do contrato de compra e venda, a quantia de € 126 000,00; e até à celebração desse contrato definitivo a liquidar aos 1.ºs contratantes a quantia de € 14 000,00 que estes entregaram àquela promitente-vendedora a título de sinal, aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda.
4.ª Com a presente cessão, a 2.ª contratante ocupará a posição que os 1.ºs contratantes detinham no contrato-promessa de compra e venda, assumindo a titularidade de todos os seus direitos e obrigações como dele constantes (…)”, tudo conforme documento 2 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
27. No dia 9 de abril de 2021, BB e CC enviaram à 1.ª Ré, para a morada por ela indicada no contrato-promessa, uma carta registada com aviso de receção do seguinte teor: “(…) Vimos, portanto, pelo presente comunicar-lhe, conforme n.º 1 da cláusula 3.ª do contrato-promessa de compra e vende entre nós celebrado, que a escritura se encontra agendada para o dia 3 de maio de 2021, pelas 14 horas, no Cartório Notarial da Dra. FF (…) Aproveitamos também para lhe comunicar, conforme o n.º 1, da cláusula 1.ª do dito contrato-promessa, que cedemos a nossa posição contratual a Classalegre – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda. (…)”, conforme documento 3 com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
28. No dia 20 de abril, o referido BB acedeu às frações autónomas.
29. Não tendo chaves para esse efeito, rebentou as respetivas fechaduras, procedendo depois à sua troca.
30. Também nesse dia, a 1.ª Ré enviou, através de WhatsApp, uma mensagem ao BB a mencionar que teve conhecimento que entraram na loja e que tal configurava um ato de vandalismo.
31. Enviou ainda, pela mesma via, a fotografia de uma carta, por si assinada, datada de 10 de abril de 2021, do seguinte teor: “Após análise ponderada ao contrato que assinei convosco no dia 26 de março passado, chego à conclusão que não posso vender-vos as frações aí mencionadas. 1. Tenho um contrato de mediação assinado em regime de exclusividade com uma empresa de mediação imobiliária. 2. Está à venda por € 225 000,00. 3. O Sr. BB quando me ligou disse-me que nunca iria vender as lojas por aquele preço e fez-me uma proposta de € 140 000,00. 4. Ligou-me várias vezes, insistentemente, pressionou-me para assinar o contrato. 5. No dia 26 de abril recebo um telefonema da empresa de mediação a informar que tem um cliente para as lojas e que oferece € 220 000,00. 6. Senti-me enganada e ludibriada pelo Sr. BB e D. CC. 7. Eu estou em ... há muitos anos e não entendo bem português, pelo que se aproveitaram da minha ignorância e honestidade e pressionaram-me de tal maneira até que eu assinasse. Resolvi anular o contrato que assinei convosco, que nunca recebi assinado da vossa parte, e devolver-vos o sinal que depositaram na minha conta. Se tenho um cliente que me oferece € 220 000,00, não posso ficar a sentir-me enganada e manter um contrato que me foi imposto” tudo conforme documento 7 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
32. Na mesma data, a pedido da Ré, foram trocadas as fechaduras das frações.
33. Ainda no dia 20 de abril de 2021, a 1.ª Ré transferiu para a conta bancária do BB a quantia de € 14 000,00.
34. No dia 22 de abril de 2021, o BB enviou à 1.ª Ré uma mensagem, através de correio eletrónico do seguinte teor: “(…) A respeito do alegado ato de vandalismo e da falta de autorização para entrar nas lojas, sugeria que (…) lesse a cláusula 5.ª do contrato-promessa de compra e venda, que autoriza expressamente a realização das obras, a partir da data da celebração do contrato. Assim sendo, somos a sugerir a V. Exa. que se abstenha de impedir a realização das obras, sob pena de vir a ser responsabilizada por todos os prejuízos que o atraso na execução das obras venha a acarretar. (…) O que realmente se verifica é que V. Exa. quer aproveitar-se do facto de, alegadamente, poder ter um outro interessado na aquisição das lojas, disposto a pagar um preço superior, mas isso não é, obviamente, motivo para considerar resolvido o contrato. Como tal, estando o contrato-promessa subordinado à execução específica (…), o contrato terá de ser necessariamente cumprido (…) Aliás, informamos que, por carta registada com a/r, datada de 9 de abril d 2021, comunicamos a V. Exa. que a escritura definitiva de compra e venda está agendada para o próximo dia 3 de maio, pelas 14 horas, no Cartório Notarial da Dra. FF (…) Nessa comunicação (…) também comunicamos que cedemos a nossa posição contratual à sociedade Classalegre – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda. (…) Como tal, esta sociedade assumiu a posição de promitente-compradora no negócio”, tudo conforme documento 8 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
35. O original da carta referida em 31 foi recebido pelo BB, via correio, no dia 26 de abril de 2021.
36. Ainda no dia 22 de abril de 2021, o BB voltou a transferir para a conta bancária indicada pela 1.ª Ré a quantia de € 14 000,00.
37. Agendada a escritura para o dia 3 de maio de 2021, pelas 14 horas, no Cartório Notarial da Dra. FF, a 1.ª Ré não compareceu, conforme documento 9 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
38. Nesse mesmo dia o BB deslocou-se às frações, onde foi impedido de entrar pela GNR, na sequência de participação feita pela 1.ª Ré.
39. No dia 4 de maio de 2021, o BB enviou uma mensagem de email à 1.ª Ré do seguinte teor: “(…) Não obstante se depreender das V. comunicações, uma enviada sobre a forma de carta e outra sob a forma de mensagem, que não é seu propósito comparecer para outorgar a escritura definitiva de compra e venda, ainda assim, por cautela e prevenção, somos a conceder uma nova oportunidade para comparecer à escritura. Assim, concedemos a V. Exa. um prazo suplementar para a realização da escritura, que se mostra agendada para o próximo dia 25 de maio de 2021 às 14 horas, no mesmo Cartório Notarial (…) Mais informo que se V. Exa. não comparecer novamente à escritura, o V. comportamento será tido como manifestação de vontade de não quer realizar voluntariamente a escritura definitiva de compra e venda, o que nos permitirá lançar mão do instituto da execução específica, através de ação judicial a intentar contra V. Exa.”
40. Idêntica comunicação foi enviada à 1.ª Ré, por carta registada com aviso de receção e através da DHL, no dia 5 de maio de 2021, tudo conforme documentos 10.1, 10.2 e 10.3 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
41. Pela apresentação 193, de 16 de abril de 2021, foi inscrita, na CRP de ..., como provisória por natureza – art. 92/1, g), do CRP –, a aquisição, a favor de BB e CC, do direito de propriedade, tendo como causa a compra a AA, do direito de propriedade sobre as frações autónomas identificadas em 3. e 4., conforme documentos 12.1, 12.2 e 12.3 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
42. Em meados de maio de 2021, a Autora recebeu uma carta da 1.ª Ré, dirigida à sua gerência, do seguinte teor: “Serve esta para acusar a receção da vossa carta. Por esta estão a marcar uma escritura relativa ao contrato-promessa de compra e venda que outorguei com os Srs. BB e mulher. Tive já oportunidade de comunicar àqueles senhores que lamento muito quanto me enganaram para levar a ter assinado um contrato que, se fosse devidamente esclarecida, nunca o teria feito. E mais lamento por serem duas pessoas que estão ligadas ao negócio de mediação da compra e venda e, por isso, têm um dever especial de esclarecer e informar as pessoas com quem lidam (…)”, tudo conforme documento 11 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
43. A 2.ª Ré teve conhecimento que a Era estava a promover a venda e angariar compradores para as frações autónomas identificadas.
44. O seu gerente procedeu ao agendamento de visita às indicadas frações autónomas, a qual veio a ser realizada nos inícios do mês de abril de 2021, na presença de uma consultora da Era. O gerente da 2.ª Ré entendeu que o preço pedido (€ 225 000,00) era elevado, atento o estado das frações, que implicava a realização de obras.
45. No dia 5 de abril de 2021, fez proposta, junto da mediadora Imobiliária ERA, para aquisição das frações autónomas pelo valor global de € 170 000,00, tendo assinado a ficha de reserva.
46. Tendo-lhe sido transmitido pela imobiliária que a 2.ª Ré não aceitava o valor proposto, efetuou uma proposta de € 180 000,00, que foi aceite pela 1.ª Ré.
47. Na mesma altura, foi também transmitido, pela referida empresa de mediação imobiliária, que a 1.ª Ré tinha sido submetida a intervenção cirúrgica, que se encontrava em convalescença e que não podia de imediato deslocar-se a Portugal, em virtude de residir em ....
48. Atenta a sua condição de saúde referida e os impedimentos decorrentes da pandemia Covid 19, não podendo a 1.ª Ré deslocar-se ao Consulado para outorga de procuração, foi decidido a celebração da escritura pública de compra e venda com gestor de negócios, a qual foi agendada para o dia 30 de abril de 2021.
49. Por escritura pública lavrada no dia 30 de abril de 2021, no Cartório Notarial da Dra. GG, HH, na qualidade de gestor de negócios da 1.ª Ré, declarou vender à 2.ª Ré, representada pelo seu gerente II, pelo preço global de € 180 000,00, “que dela já recebeu”, as frações autónomas identificadas em 1. e 2..
50. O mesmo HH declarou, no mesmo ato, que: sobre as referidas frações “se encontra registada uma aquisição provisória por natureza pela apresentação ...3, de 16 de abril de 2021, cujo contrato prometido não será outorgado”; “o preço foi pago hoje, antes da celebração deste ato através do cheque n.º ...42, sacado sobre a CEMG.
51. No mesmo ato, o referido II declarou, na indicada qualidade, comprar as frações para a sua representada, tudo conforme documento 13 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
52. Pela apresentação n.º ...25, de 3 de maio de 2021, foi registada, como provisória por natureza – art. 92/1, f), e art. 92/2, b), do CRP – a aquisição, a favor da 2.ª Ré, tendo como causa a compra à 1.ª Ré, do direito de propriedade sobre as frações autónomas identificadas em 1. e 2., conforme documentos 12.1, 12.2 e 12.3 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
53. No dia 29 de outubro de 2021, por instrumento lavrado e arquivado sob o n.º 24 a folhas 49 do competente maço no Cartório Notarial da Dr.ª GG, foi ratificada, pela 1.ª Ré, a gestão de negócios, cf. documento 2 com a contestação da 2.ª Ré, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
54. Para pagamento do preço de € 180 000,00, a sociedade V...Lda.., emitiu o cheque n.º ...42, sobre a CEMG, com data de 30 de abril de 2021.
55. Esse cheque foi depositado pela 1.ª Ré, na conta n.º ...06, da agência de ... do Novo Banco, no dia 5 de novembro de 2021.
56. Nos dias 3 de novembro, 4 de novembro e 21 de dezembro de 2021, a 2.ª Ré transferiu para a V...Lda., as quantias de € 130 000,00, € 10 000,00 e € 40 000,00, para a reembolsar da quantia despendida nos termos referidos em 55.
57. A 2.ª Ré é uma empresa que se dedica à atividade de compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim; Administração dos imóveis próprios, incluindo o seu arrendamento; Indústria de construção civil e empreitadas de obras públicas; Consultoria para os negócios e a gestão; Comércio de veículos automóveis, peças e acessórios, bem como a sua importação e exportação; Comércio de veículos automóveis, peças e acessórios, bem como a sua importação e exportação, com caráter habitual e intuito lucrativo, cf. documento 1 apresentado com a contestação da 2.ª Ré, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
58. Aquando do facto referido em 50 a 52, o gerente da 2.ª Ré tinha conhecimento de que estava vigente o registo feita pela apresentação 193 e de que o mesmo respeitava a um contrato-promessa celebrado pela 1.ª Ré relativamente às frações autónomas.
59. Sabia também que a 1.ª Ré não tinha a intenção de cumprir esse contrato-promessa.
60. Agiu na convicção de que a existência do registo não obstava à aquisição das frações, posto que aquele estava condenado à caducidade.
61. Pela apresentação ...80, de 13 de setembro de 2021, foi inscrita na CRP, quanto às três frações identificadas, como provisória por natureza – art. 92/1, a), e 2, b) – e dúvidas, a petição inicial da presente ação, cf. certidões prediais apresentadas a 19 de outubro de 2021, sob a ref. ...55, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
62. O despacho de qualificação da Exma. Sra. Conservadora é do seguinte teor: “Provisória por natureza nos termos da alínea b) do n.º 2 do art. 92 do CRP, em virtude de o registo correspondente ser incompatível com o registo provisório da inscrição ap. ...3 de 16/04/2021, o qual deverá ser cancelado ou aguardar-se pela sua caducidade. Com efeito, os registos de aquisição respeitam de per si a cada adquirente, não podendo ser retificados ou atualizados a novos adquirentes (como aparentemente se requer nos pedidos da alínea f) e h) da petição inicial). O disposto no art. 101/1, g), do CRP respeita ao registo da promessa de alienação previsto no art. 2.º/1, f), do mesmo Código (e não ao registo de aquisição com base em contrato-promessa, a que se refere o art. 47/4 do mesmo Código, e a que corresponde a referida ap. ...3 de 16/04/2021”, cf. ofício da CRP apresentado a 19 29 de setembro de 2021, sob a ref. ...89, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
63. Por averbamento de 2 de novembro de 2021, o registo feito pela apresentação ...26 foi convertido em definitivo.
64. Pelo mesmo averbamento, foi removida a provisoriedade por natureza fundada no art. 92/2, b), do CRP, do registo feito pela apresentação ...80, cf. certidões prediais apresentadas como documentos 3, 4 e 5 com a contestação da 2.ª Ré, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
65. Por escritura pública de 19 de novembro de 2021, II, na qualidade de gerente da 2.ª Ré, declarou vender a JJ, que no mesmo ato declarou comprar, pelo preço de € 126 000,00, as frações autónomas identificadas pelas letras A e B do prédio descrito na CRP de ... sob o n.º ...5, supra identificadas, cf. documento 6 com a contestação da 2.ª Ré, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
66. O facto referido no ponto anterior foi inscrito na CRP através da apresentação ...63, de 19 de novembro de 2021, como provisório por natureza – art. 92/2, b), do CRP, cf. documentos 5.2 e 5.3 com a contestação da 2.ª Ré, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
67. Do escrito datado de 27 de maio de 2021, intitulado Contrato-Promessa de Compra e venda, consta que II, na qualidade de gerente da 2.ª Ré, promete vender a KK, pelo preço de € 80 000,00, a fração autónoma identificada pela letra B do prédio descrito da CRP sob o n.º ...4.
68. Esse escrito foi assinado, no final do texto, pelo gerente da 2.ª Ré.
69. Também no final do texto, foi manuscrito o nome KK, tudo conforme documento 7 com a contestação da 2.ª Ré, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
Não foram considerados provados os seguintes factos:
1. A 1.ª Ré e o gerente da 2.ª Ré não quiseram vender e comprar, respetivamente, as frações identificadas.
2. Emitiram as declarações plasmadas na escritura transcrita nos pontos 50 a 52 com a intenção, entre ambos acordada, de evitarem que a Autora adquira a propriedade de tais frações através da execução específica do contrato-promessa.
3. A 1.ª Ré domina mal a língua portuguesa escrita.
4. Tem dificuldades na língua falada.
5. Não entendeu o alcance e sentido do texto da minuta transcrita no ponto16.
6. Recorreu ao Google Translator para o traduzir de português para inglês.
7. No dia 29 de março de 2020, a 1.ª Ré recebeu uma chamada da V...Lda. a dar-lhe conta de uma pessoa interessada na compra das frações pelo preço de € 220 000,00.
8. A 1.ª Ré comunicou de imediato esse facto ao BB, que lhe respondeu tratar-se de um bluff, pois ninguém ofereceria aquele preço pelas frações.
9. As frações têm um valor de mercado nunca inferior a € 180 000,00.
10. Os promitentes-compradores estavam cientes desse facto.
11. A 1.ª Ré acreditou que, conforme lhe foi transmitido pelo BB, o valor das frações não era superior a € 140 000,00.
12. Só por isso aceitou assinar a minuta do contrato-promessa transcrita em 16.
13. O facto referido no ponto 67 foi praticado pelo punho de KK.
14. A aquisição por este KK está dependente de financiamento bancário.
15. O negócio ainda não se realizou porque a instituição bancária recusa-se a celebrar escritura de compra e venda com hipoteca enquanto a presente ação se encontrar pendente.”
O Direito.
Atendendo às conclusões formuladas pela recorrente e ao teor do acórdão proferido pela Formação, o objecto do presente recurso assenta na apreciação da questão de saber se a 2.ª ré, ora recorrente, terceiro em relação ao contrato-promessa celebrado entre a autora e a 1.ª ré, sabendo da existência desse vínculo contratual e tendo contribuído para o respectivo não cumprimento (foi com a 2.ª ré que a 1.ª ré celebrou a escritura pública de compra e venda das fracções anteriormente prometidas vender), deve ser responsabilizada civilmente por esse incumprimento.
O objecto do presente recurso relaciona-se, assim, com a questão da eficácia externa das obrigações e dos pressupostos de que depende a responsabilização de terceiro que prejudica a satisfação do direito de crédito alheio.
Como é sabido, a doutrina clássica ou tradicional parte do carácter relativo do direito de crédito, defendendo que este tipo de direito subjectivo não pode ser violado por terceiros, uma vez que estes não têm o dever geral de os respeitar, ao contrário do que sucede com os direitos absolutos. Trata-se de uma concepção que, no nosso direito positivo, parte não apenas do disposto no art. 406º, nº 2, do CC segundo o qual, em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei, mas também de uma interpretação restritiva do nº 1 do art. 483º do CC que consagra a responsabilidade civil extracontratual, quanto ao termo “direito de outrem” no sentido de o mesmo abranger apenas os direitos absolutos, em relação aos quais existe um dever geral de respeito, e não os direitos relativos como os direitos de crédito. Segundo a mesma doutrina, o art. 798º do CC, relativo à responsabilidade obrigacional e à violação do direito de crédito, restringe ao devedor a responsabilidade obrigacional.
Na defesa desta posição, podem ver-se, na jurisprudência, por exemplo, o Ac. STJ de 19.3.2009, proc. n.º 370/09, publicado em www.dgsi.pt.; e na doutrina, Cunha Gonçalves em Tratado de Direito Civil, XII, Coimbra, Coimbra Editora, 1937, págs. 743 e segs., citado por Menezes Leitão, em Direito das Obrigações, vol. I, 16.ª ed., Coimbra, Almedina, 2022, pág. 94).
No pólo oposto, uma segunda posição, aceita, porém, a eficácia externa das obrigações, defendendo que o dever geral de respeito de não lesar os direitos alheios também abrange os direitos de crédito, realizando uma interpretação declarativa do n.º 1 do art. 483.º do CC considerando que o termo “direito de outrem” deve ser interpretado de forma a abranger todos os direitos subjectivos, incluindo os direitos relativos- e, dentro dos direitos relativos, os direitos de crédito. Esta doutrina da eficácia externa das obrigações foi acolhida, por exemplo, nos Acs. STJ de 21.1.2016, proc. n.º 2429/07.4TBSTB.L1.S1 e de 29.1.2019, proc. n.º 1563/16.4T8AMT.P1.S2, ambos publicados em www.dgsi.pt. Na doutrina, defenderam esta posição da eficácia externa das obrigações, Galvão Telles, em Direito das Obrigações, 7.ª ed., pág. 20 e Santos Júnior em “Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito”, Coimbra, 2003. Este último num estudo pormenorizado sobre o tema, para apresentação como dissertação de doutoramento, concluiu que: “o direito de crédito, como. direito subjectivo que é, tem ínsita em si a exclusividade do titular, o credor, na actuação do bem - a prestação; é-lhe inerente a ideia de exclusão de terceiros no aproveitamento do bem. A actuação do bem, dada a natureza deste, o ser uma prestação, implica, por definição, a actividade do devedor, a actividade de prestar, a que se encontra vinculado; mas a exclusão de terceiros postula, por definição, a oponibilidade do direito, a sua afirmação perante terceiros, o poder de exigir que estes o respeitem, não interferindo. A estes resulta, pois, um dever geral de respeito em relação ao direito de crédito, como em relação a quaisquer direitos subjectivos.”(ob. cit. pág. 581). Porém, acrescenta: “Afirmada a oponibilidade do direito de crédito a terceiros, significativa de a estes resultar um dever geral de respeito, nós defendemos que essa oponibilidade, como a oponibilidade de quaisquer direitos subjectivos, é uma oponibilidade virtual ou in potentia, a sua passagem a oponibilidade efectiva ou in actu, estando dependente de alguma condição (ob. cit., págs. 581-582). E, prossegue, a condição dessa oponibilidade efectiva do direito de crédito em relação a terceiros é o conhecimento efectivo do crédito por terceiros “porque, ao contrário de outros direitos subjectivos, que, em razão do bem sobre que incidem, são cognoscíveis a terceiros, podendo beneficiar de uma publicidade natural ou, mesmo, de uma publicidade organizada, os direitos de crédito, em razão do bem sobre que incidem – para mais, regendo aí, amplamente, o princípio da autonomia privada -, como regra, ou em geral, não são cognoscíveis, não se revelam a terceiros, não beneficiando de publicidade natural ou organizada.” (ob. cit. pág. 582). É assim, possível, de acordo com esta construção, a lesão do crédito por terceiros, desde que estejam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil subjectiva e aquiliana, exigindo-se uma acção dolosa do terceiro que, conhecedor do direito de crédito, intencionalmente contribui para a sua violação, afastando-se, assim “o receio de uma proliferação de acções de responsabilidade por interferência e o receio da inerente paralisação da iniciativa económica” (ob. cit., pág. 583).
Mais recentemente, porém, o STJ tem vindo a adoptar uma posição intermédia, que se tem apresentado como maioritária na jurisprudência deste Tribunal, a qual, negando o efeito externo das obrigações e não aceitando a existência de um dever geral de respeito dos direitos de crédito, sustenta, ainda assim, a responsabilidade do terceiro pela violação de direitos de crédito em casos de abuso do direito, designadamente no exercício da sua liberdade de contratar ou da sua autonomia privada.
São exemplo da consagração dessa posição os Acs. do STJ de 19.3.2002 , proc. n.º 512/02, de 29.5.2012, proc. n.º 3987/07.9TBAVR.C1.S1 e, ainda, de 11.12.2012, proc. n.º 165/1995.L1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt. Este acórdão, que aprecia um caso, com semelhanças com o caso presente, referiu: “a doutrina do efeito interno das obrigações não é entendida de forma pura, reconhecendo-se que a interferência de terceiros na esfera negocial pode assumir aspectos que ultrapassam os limites da liberdade contratual. Quando tal sucede, o comportamento do terceiro interferente poderá ser passível de censura à luz dos princípios da boa fé ou do abuso do direito, verificados os pressupostos da responsabilidade civil.” E foi o que sucedeu no caso apreciado por esse aresto, em que “verificado que a ré adquirente de uma Quinta, objecto de contratos-promessa de lotes para construção celebrados com a ré alienante, tinha conhecimento desses negócios, abusa do direito da liberdade contratual se adquirindo o prédio provoca conscientemente o incumprimento de tais contratos.” Também na doutrina esta posição foi adoptada por Manuel de Andrade, em Teoria Geral das Obrigações, 2.ª ed., pág. 53, Vaz Serra em Responsabilidade de Terceiros no não-cumprimento das Obrigações, BMJ, n.º 85, págs. 354-356, Antunes Varela, em Das Obrigações em Geral, I, 10.ª ed., págs. 177 e 178, Almeida Costa, em Direito das Obrigações, 12.ª ed., págs. 96 e ss. e RLJ nº 3936, pág. 130 e segs, Rui de Alarcão, em Direito das Obrigações, Coimbra, 1983, págs. 88-89, Sinde Monteiro em Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Almedina, 1989, págs. 185 e segs. e Menezes Leitão, em Direito das Obrigações, vol. I, 16.ª ed., págs. 96-97.
Cremos que é a posição intermédia que deve ser sufragada.
Com efeito, não existe um dever geral de respeito em relação aos direitos de crédito, pois, como já apontava Manuel de Andrade (ob. cit., pág. 52) no domínio do anterior Código, tal corresponderia a transformar as obrigações em direitos reais, pelo que se “deveria admitir quanto a elas o princípio do numerus clausus, que rege para estes últimos direitos (…); tanto mais que a lei não estabelece aqui – nem seriam praticáveis em escala apreciável – as garantias de forma e de publicidade a que está subordinada a constituição dos direitos reais”.
Porém, defendia Manuel de Andrade (ob. cit., pág. 53) que, em alguns “casos particularmente escandalosos —quando o terceiro tenha tido a intenção ou pelo menos a consciência de lesar os credores da pessoa directamente ofendida ou da pessoa com quem contrata — é que poderá ser justificado quebrar a rigidez da doutrina tradicional. Porventura poderá servir-nos aqui a teoria do abuso de direito, entendida em largos termos (…). De qualquer modo (e sobre isso não há divergências, a não ser quanto à ofensa do próprio crédito em si mesmo) será necessário, pelo menos, que o terceiro tenha conhecimento da existência do direito lesado. “ O autor dá o exemplo de “o terceiro (que, por exemplo, compra uma coisa cuja venda já fora prometida a outrem pelo agora vendedor) saber que a pessoa com quem contrata não indemnizará o credor prejudicado com esse contrato.”
Também para casos em que o terceiro contrate com o devedor em termos incompatíveis com o crédito preexistente, forçando ou incentivando ao incumprimento, entende Menezes Cordeiro que não é aplicável o art. 483º, n.º 1, uma vez que não existe desde logo ilicitude pois o dever geral de respeito não teria esse alcance (Tratado de Direito Civil VI, 2ª edição, pág. 427). Nestes casos, defende o mesmo autor o recurso à figura do abuso de direito, nos mesmos termos da posição intermédia acima referida, que tem vindo a ser adoptada pela jurisprudência do STJ e pela doutrina acima citada. A este propósito refere Menezes Cordeiro: “o terceiro poderia sempre contratar com o devedor: quando o faça, exerce a sua liberdade contratual. Mesmo quando atinja direitos alheios, não há a ilicitude, explicitamente exigida pelo artigo 483.º/1. Repare-se: para que o artigo 483.º/1 funcione, não basta que se atinjam direitos alheios: é necessário que isso suceda ilicitamente e, ainda, com culpa. O abuso do direito retira a "licitude" de quem exerça a sua liberdade contratual. Recorde-se que o abuso do direito é uma locução tradicional para exprimir os valores fundamentais do ordenamento, veiculados, em cada caso concreto, pelo princípio da boa-fé. Se o terceiro age defrontando a confiança, ou em venire contra factum proprium ou, ainda, só para prejudicar o credor, em desequilíbrio no exercício, comete abuso. Cessa a liberdade contratual: o seu ato passa a ser ilícito. Verificados os demais pressupostos, entre os quais a culpa, temos responsabilidade civil” (ob. cit, pág. 428). Exemplificando, figura um contrato-promessa entre duas pessoas em que o terceiro contratou com o promitente-vendedor, depois de ter penetrado no círculo dos promitentes aí obtendo informações privilegiadas ou induzido o A. a não cumprir, caso em que haverá abuso de direito e, provada a culpa, dever de indemnizar.(ob. cit. pág. 429)
Também para reagir a casos em que o terceiro contribui decisivamente para o não cumprimento de um contrato prévio, Nuno Pinto Oliveira sustenta “a aplicação autónoma do princípio da proibição do abuso do direito, construindo-o como terceira cláusula delitual, a somar à do art. 483.°, n.º 1, 1.ª parte (violar ilicitamente e com culpa o direito alheio) e à do art. 483.°, n.º 1, 2.ª parte (violar [ilicitamente e com culpa] normas de protecção)”.” (Princípios do Direito dos Contratos, 2011, pág. 1004; cfr. neste sentido, Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações). No Ac. STJ de 30.4.2019, proc. 261/14.8TBVCD.P1.S1, de que o mesmo autor foi relator, sublinha que a responsabilidade de terceiro pela violação do direito de crédito deve ser uma responsabilidade por dolo, “no sentido de o lesante querer a lesão do crédito como consequência directa, necessária ou eventual da acção [Santos Júnior, op. cit., pág.. 510]”.
Em “Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações”, Coimbra Editora, de 2011, a pág. 217, Brandão Proença, refere, por sua vez: “ Temos por certo que a afirmação da relatividade dos créditos não pode excluir a exigência de uma determinada ética de comportamento, sindicável pela consciência social, face aos danos (do incumprimento, da perda de transmissão da sua posição activa) que a interferência dos terceiros pode causar e que uma mera responsabilidade do devedor (a existir) do devedor pode não acautelar devidamente. Sem descaracterizar a essência da relação creditória( que só pode ser violada, em rigor, pelo devedor, através do seu incumprimento) é possível “couraçar” o contrato e responsabilizar todos aqueles que, conhecendo o crédito, exerçam uma liberdade de actuação desonesta, incorrecta e de má fé, ou seja, para prejudicar o credor, instigando, por ex,, o devedor ao incumprimento a troco de contrapartidas avultadas (…) E continua adiante, a pág. 218: “ … entre aproveitar as potencialidades sancionatórias do abuso do direito, convertido ,hic et nunc , num critério de controlo de uma “liberdade censurável”, de um poder de iniciativa negocial exercido contra a boa-fé e os “bons costumes “ ou enveredar por uma duvidosa interpretação ampla do art. 483º, 1 (amálgama direitos absolutos /direitos relativos ) e acrescentar a relatividade a característica da oponibilidade, a partir da afirmação de um dever geral de respeito por qualquer posição jurídica, parece-nos mais adequada ao nosso sistema a primeira opção. (…).. O contrato não deixa assim de criar encargos para os terceiros que conhecendo os créditos existentes (entrega de coisa, de celebração de contrato etc.) serão responsabilidades por agir sem rectidão, com intenção ou consciência do prejuízo, mesmo abstracto, causado ao credor.”
Também Menezes Leitão, em Direito das Obrigações, volume I, 16ª edição, a págs. 93 e segs., se pronuncia a favor da solução intermédia, reservando, porém, a responsabilização de terceiro para casos excepcionais, em que o terceiro” exerça a sua liberdade de contratar em termos por tal forma disfuncionais aos dados do sistema jurídico, que se tenha que considerar estar perante um exercício inadmissível de posições jurídicas “, indicando, por exemplo, “o caso de o credor se encontrar numa grande situação de dependência em relação à prestação não haver ninguém em condições de a realizar e o terceiro, com o fim de lesar o credor convence o devedor a não cumprir a obrigação” ( pág. 97).
Ou seja: apesar de a concepção adoptada do abuso de direito ser a objectiva, nenhum autor propõe o recurso a esse instituto, independentemente da culpa, da censurabilidade. Exige-se, designadamente – e com isto se concorda - que o “terceiro tenha tido a intenção ou pelo menos a consciência de lesar os credores da pessoa directamente ofendida ou da pessoa com quem contrata” (Manuel de Andrade, ob. cit. 53) ou que aja “com intenção ou consciência do prejuízo, mesmo abstracto, causado ao credor (Brandão Proença, ob. cit., pág.. 218.). Dentro da posição intermédia, do recurso ao abuso de direito, entende-se, assim, que para que possa ser responsabilizado é necessário que o terceiro tenha consciência do prejuízo que pode causar ao credor. O que significa que, como se assinala no supracitado acórdão do STJ de 30.4.2019, a responsabilidade do terceiro é (deve ser) sempre uma responsabilidade por dolo e só por dolo (compreendendo-se dentro do dolo não só o dolo directo com as modalidades do dolo necessário e dolo eventual). Deste modo se afasta, pois, a responsabilidade por negligência (que se considera prejudicar o livre desenvolvimento dos negócios).
Feito este excurso, vejamos os factos.
Ficou provado que foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda que teve por objecto as fracções autónomas, sendo o contrato celebrado entre a 1.ª ré, como promitente-vendedora, e BB, e mulher CC, como promitentes-compradores, os quais cederam posteriormente a sua posição contratual à aqui autora.
Os referidos promitentes-compradores registaram provisoriamente a seu favor a aquisição do direito de propriedade sobre as referidas fracções, por compra à 1.ª ré, por apresentação de 16 de abril de 2021.
Sucede que na vigência daquele contrato-promessa, por escritura pública lavrada no dia 30 de abril de 2021, um gestor de negócios da 1.ª ré declarou vender à 2.ª Ré, por um preço superior ao que tinha sido objecto do contrato-promessa acima referido, as mesmas fracções autónomas. Nesse mesmo acto foi declarado pelo gestor de negócios que sobre as referidas frações “se encontra registada uma aquisição provisória por natureza pela apresentação 193, de 16 de abril de 2021, cujo contrato prometido não será outorgado”.
A 1.ª ré, por instrumento notarial, ratificou a referida gestão de negócios.
Mais se provou que quando ocorreu a referida venda dos prédios à 2ª ré, o gerente desta tinha conhecimento de que estava vigente o registo feita pela apresentação 193 e de que o mesmo respeitava a um contrato-promessa celebrado pela 1.ª Ré relativamente às fracções autónomas. Sabia também que a 1.ª Ré não tinha a intenção de cumprir esse contrato-promessa e agiu na convicção de que a existência do registo não obstava à aquisição das frações, posto que aquele estava condenado à caducidade.
Nos termos do art. 334º, nº 1 do CC, “ é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito”.
Ora, parafraseando o citado Ac. STJ de 30.4.2019, verifica-se que, não existindo no caso nenhuma ligação especial entre a autora e a 2ª ré, deve considerar-se excluída a violação dos limites impostos pela boa fé.
Também não se afigura que a 2ª ré (terceiro), ao celebrar o contrato-promessa, tenha excedido os limites impostos pelo fim económico e social do direito de o fazer,.
Subsistirá assim, e apenas, a possibilidade de violação dos bons costumes.
Tem-se entendido que o conceito de bons costumes designa o conjunto das regras morais aceites pela consciência social ou o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento (cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Juridica, volume II, 1974, pág.. 341, Mota Pinto, Teoria geral do Direito Civil, 4ª edição, pág. 559), apelando-se, assim, para as concepções ético-jurídico dominantes na colectividade (Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, volume I, 3ª edição, pág. 297). Sobre o tema, escrevem Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, em Teoria Geral do Direito Civil, 9ª edição, a pág. 280 , que “como limite ao exercício lícito de direitos subjetivos , os bons costumes implicam uma referência para critérios éticos supra-legais, para as coordenadas éticas regentes na sociedade e na ordem social (…). mas essa referência é feita também para uma eticidade, para a natureza das coisas, enquanto entia moralia, para a realidade social, para os usos e costumes sedimentados na prática.” Por isso, os bons costumes não se podem dissociar da “moral social dominante num determinado momento e numa determinada sociedade” (cfr. o mesmo autor, em Ordem Pública, Bons Costumes e Validade, publicado na Revista nº 2 do Supremo Tribunal de Justiça).
É verdade que, no caso que nos ocupa, a 2ª ré tinha conhecimento de que existia um contrato-promessa celebrado pela 1ª ré com a autora. Como assim, não podia deixar de ter a consciência de que, com o seu comportamento de celebrar a escritura de compra e venda com a 1ª ré, promitente-vendedora, podia estar a contribuir para o incumprimento do contrato-promessa e, com dolo eventual, a lesar o direito de crédito da autora.
Porém, em caso de incumprimento do contrato-promessa, por causa que lhe seja imputável, a lei obriga aquele que recebeu o sinal à restituição do mesmo em dobro (art. 442º, nº 2 do CC).
O prejuízo que resulta do inadimplemento do contrato para quem constituiu o sinal (a autora) é, pois, sancionado pela lei, não se estando, portanto, perante um caso em que a lesão do direito de crédito da autora não tem qualquer ressarcimento. Aliás, Manuel de Andrade, que, no domínio da eficácia externa das obrigações, reservava o recurso ao abuso de direito para os casos particularmente escandalosos, dava apenas o exemplo de “o terceiro (que, por exemplo, compra uma coisa cuja venda já fora prometida a outrem pelo agora vendedor) saber que a pessoa com quem contrata não indemnizará o credor prejudicado com esse contrato”. Não é o nosso caso: nada foi alegado no sentido de que a 2ª ré tenha ficado ciente da possibilidade de a 1ª ré não tencionar indemnizar a autora nos termos do art. 442º, nº 2 do CC.
Por outro lado, não ficou provado que o contrato-promessa, que dizia respeito a lojas, se destinasse a colmatar uma situação de premente necessidade de alguém e que disso a 2ª ré tivesse consciência.
Parece-nos, por isso, que, no contexto apurado, em que a autora não ficou privada da reparação da lesão do seu direito de crédito, as concepções ético-jurídico dominantes na nossa sociedade não ditarão ou imporão a condenação da 2ª ré, solidariamente com a 1ª ré, no pagamento da indemnização correspondente à restituição de sinal em dobro. Cremos que a sociedade não exigirá, ainda, neste caso, a responsabilização de terceiro pelo incumprimento do contrato-promessa sem eficácia real por ele concausado ao adquirir o prédio ao promitente-vendedor (que já não quer cumprir o contrato-promessa), desde que não haja evidências, como é o caso, de que o promitente-comprador não vai ser ressarcido pelo promitente-vendedor incumpridor nos termos da lei.
Assim, não se nos afigura que a 2ª ré tenha abusado do seu direito de liberdade contratual (art. 405º do CC) e que o seu comportamento possa ser considerado ilícito com o fundamento de que excedeu manifestamente os limites impostos pelos bons costumes.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em conceder a revista, revogar o acórdão recorrido nos pontos 1.3 e 1.4 da parte decisória da sentença mantida pela Relação, na parte em que se reportam à 2º ré recorrente e absolver esta dos correspondentes pedidos, formulados em 4º, 13º e 14º da petição.
Custas pela recorrida.
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Lisboa, 26 de Novembro de 2024
António Magalhães
Manuel Aguiar Pereira
Jorge Arcanjo