I - Os critérios legais para decidir da atribuição provisória da casa de morada de família (art. 931.º, n.º 7, do CPC), bem comum dos cônjuges, até à sua venda ou partilha, nos casos de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, convertido em mútuo consentimento, são os mesmos que regem a decisão quanto ao destino da casa de morada de família, nos termos conjugados dos arts. 1793.º e 1105.º, ambos do CC.
II - Estes critérios fundamentam-se na ponderação de um conjunto de fatores, como as necessidades dos cônjuges, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes, entre os quais a jurisprudência inclui, para além dos rendimentos de cada um deles, o estado de saúde dos cônjuges, a idade, a possibilidade de arranjar trabalho, a (im)possibilidade de um dos cônjuges dispor de outra casa em que possa residir sem beneficiar da mera tolerância de terceiros e o comportamento pretérito daqueles no que diz respeito ao cumprimento dos seus deveres conjugais (ac. do STJ de 17-12-2019, proferido no proc. n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1).
III - O conceito de necessidade assume-se como um conceito amplo que inclui não só aspetos materiais e financeiros, como também as necessidades psíquicas de estabilidade e de segurança das vítimas de violência doméstica.
IV - In casu, a autora padece de depressão recorrente e foi vítima de violência doméstica durante 50 anos, conforme consta da acusação do MP e de sentença de condenação transitada em julgado.
V - A cônjuge-mulher, em virtude da sua maior vulnerabilidade económica e psíquica, tem o direito de residir naquela que sempre foi a sua casa de morada de família, contribuindo a circunstância de ter sido vítima de violência doméstica para tornar mais inequívoca e óbvia a sua maior fragilidade e necessidade.
VI - A unidade do sistema jurídico impõe que o direito penal e o direito da família não sejam vistos como compartimentos estanques e que existam vasos comunicantes entre estes ramos do direito porque se dirigem a regular a mesma realidade - a vida de uma família com história de violência doméstica.
VII - Não faz sentido que no processo-crime a vítima de violência doméstica seja protegida por ser o sujeito mais frágil e que o processo cível atribua o estatuto de cônjuge mais necessitado ao agressor, adjudicando-lhe o direito de residir na casa de morada de família até à venda ou partilha.
VIII - O direito, como um todo, não pode tolerar a consolidação de uma situação de facto que teve origem na prática de um crime contra as pessoas com a gravidade da violência doméstica.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
1. AA requereu, na petição inicial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, com processo especial, que propôs Juízo de Família e Menores de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., contra o seu cônjuge, BB, que, nos termos do n.º 7 do art.º 931.º do CPC, fosse fixado um regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família, e que essa casa - sita na R. da ..., ... ... - lhe fosse atribuída.
2. O requerido opôs-se e pediu que, a final, aquela casa lhe fosse atribuída até à partilha; na resposta, a requerente reiterou o seu pedido.
Ordenada a separação dos requerimentos do processo de divórcio, a Juíza de Direito, por sentença proferida no dia 17 de Maio de 2023 – data em que, no processo principal foi declarada a dissolução, por divórcio por mútuo consentimento, do casamento contraído pelas partes – depois de observar que resultava da factualidade provada que o Requerente não dispunha de outra habitação que não seja a casa de morada de família, a qual lhe tem acautelado a necessidade de habitação, julgou improcedente o pedido da requerente, AA, e procedente o do requerente, BB, atribuindo a este o direito à utilização exclusiva da casa de morada da família.
3. Inconformada, a requerente interpõe recurso de apelação, no qual pede a revogação da sentença e a sua substituição por outra que lhe atribua a utilização exclusiva da casa de mora da família ou, subsidiariamente a renovação das suas declarações de parte e do depoimento da testemunha CC.
4. O Tribunal da Relação procedeu a alterações da matéria de facto, considerando provado que a recorrente padecia de depressão recorrente, e passando para o elenco dos factos provados aqueles que constam da acusação do MP no processo-crime de violência doméstica pendente contra o recorrido, afirmando que «Importa, pois, reconformar, correspondentemente, a decisão da matéria de facto dos pontos impugnados, julgando provado que A Requerente sofre, desde há muito, de “Perturbação Depressiva Recorrente”, que Desde o início da vida conjugal o Requerente sempre foi muito agressivo com a esposa (...) – e que Nesse dia 18 de agosto, o Requerente ameaçou a Requerente de morte (...) ameaça que já tinha proferido diversas vezes».
5. O Tribunal da Relação confirmou a sentença, julgando improcedente o recurso de apelação quanto à questão de direito relativa aos critérios de atribuição da casa de morada de família fixados no artigo 1793.º do Código Civil.
6. Novamente inconformada, a recorrente interpôs recurso de revista, que não foi admitido por despacho do Relator.
7. A recorrente, ao abrigo do artigo 643.º do CPC, apresentou reclamação, tendo a agora Relatora deferido a reclamação e admitido o recurso de revista, com o seguinte fundamento:
«3. O acórdão reclamado decidiu que o acórdão da Relação, que decidiu o fundo da questão – a atribuição da casa de morada de família – não admite recurso de revista, em síntese, por três ordens de motivos: i) estarmos perante uma situação de dupla conformidade; ii) tratar-se de uma decisão proferida num procedimento cautelar; iii) e num processo de jurisdição voluntária.
4. Os fundamentos apresentados foram os seguintes:
«No caso, o acórdão impugnado, procedeu à modificação de parte da decisão da matéria de facto, mas em inteira sintonia com a decisão da 1.ª instância, logo concluiu, de seguida, que não resulta da factualidade provada que a Requerente tenha a necessidade, atual, de habitação, pois que reside num imóvel, bem comum do casal. Quer dizer: as decisões das duas instâncias não são coincidentes – diferença que resulta unicamente da modificação pelo acórdão impugnado, de parte da decisão da 1.ª instância que fixou os factos materiais da causa – mas são inteiramente homótropas no tocante ao fundamento da improcedência do pedido de atribuição provisória da casa que foi morada da família: a desnecessidade actual da requerente, por residir num imóvel integrado no património conjugal comum, de utilização provisória daquela casa. A ratio decidendi das duas instâncias da improcedência do pedido é absolutamente homogénea. Dai vem que a apontada dissemelhança não obsta à conformidade relevante, pelo que a revista se deve por excluída em razão das duae conformes sententiae.
Em qualquer caso, uma segunda circunstância depõe também, decisivamente, no sentido da inadmissibilidade do recurso: a espécie processual em que foi proferida a decisão recorrida. O acórdão impugnado na revista sublinhou que a atribuição provisória da utilização da casa de morada da família, no contexto da acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, constitui uma providência cautelar específica desta acção. Ora, as decisões proferidas em procedimentos cautelares são irrecorríveis para o Supremo, irrecorribilidade – que não é constitucionalmente imprópria – e que se justifica, materialmente, pelo princípio da celeridade a que se encontram submetidas, mesmo na fase de recurso, as providências cautelares (art.º 371.º, n.º 2, do CPC)2. Ergo, a revista sempre seria, por esta causa de irrecorribilidade, inadmissível.
A restrição da competência decisória do Supremo à matéria de direito não deve ser entendida no sentido de que toda e qualquer questão de direito é susceptível de fundamentar o recurso de revista (art.ºs 674.º do CPC e 46.º da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto). Relativamente à admissibilidade deste recurso ordinário há que contar, desde logo, com as limitações que decorrem da teleologia do recurso de revista, que a exclui sempre que ele não possa realizar qualquer função de harmonização da aplicação da lei, o que sucede quando o critério de decisão utilizado pela Relação não seja normativo – mas individual ou concreto – como acontece, por exemplo, quando a decisão é orientada pela discricionariedade ou pela equidade. Ao contrário dos critérios normativos de decisão – que se baseiam em leis abstractas e gerais e assentam num princípio de universalização, pelo que todos os casos semelhantes devem ser decididos do mesmo modo – os critérios não normativos baseiam-se num princípio de especialidade, segundo o qual cada caso deve ser decidido atendendo às suas particulares e atribuem ao tribunal a possibilidade de decidir segundo o que se mostrar conveniente e oportuno para a prossecução de um dado interesse. A consequência do uso de critérios de decisão não normativos – que assentam na discricionariedade judiciária, é a inadmissibilidade do seu controlo pelo tribunal de revista e, portanto, a inadmissibilidade deste recurso ordinário. É o que sucede, por exemplo, nos processos de jurisdição voluntária, no tocante às decisões tomadas segundo critérios de conveniência e de oportunidade (art.º 988.º, n.º 2, do CPC).
No caso, o critério de decisão utilizado no acórdão que julgou o recurso de apelação foi, patentemente, um critério não normativo (art.º 931.º, n.º 7, do CPC). Como nesse acórdão se escreveu, a providência cautelar especifica da acção de divórcio de atribuição provisória da casa de morada da família é julgada de harmonia com critérios de conveniência e de oportunidade e foi esse critério de decisão que aquele acórdão, comprovadamente, aplicou ao decidir, depois de fazer o balanceamento dos interesses divergentes dos interessados na atribuição de interim daquela casa, que a recorrente não tem necessidade de habitar, mesmo provisoriamente, aquela casa – por ter outra apta a satisfazer as suas necessidades de habitação. A apelante reconhece, de resto, a correcção do critério de decisão selecionando e utilizado pelo acórdão impugnado, sustentando, embora, que foi mal aplicado. Mas este – eventual – erro na subsunção, i.e., no juízo de integração dos factos apurados na previsão da norma aplicável ao caso concreto, segundo um critério não normativo de decisão, escapa ou está subtraído aos poderes de controlo do tribunal de revista.
O acórdão que julgou a apelação não é, também por esta razão, impugnável através do recurso de revista».
5. Opõe a recorrente que o recurso de revista é admissível, pelas seguintes razões: i) não se verifica dupla conforme por força da alteração da matéria de facto a que procedeu o acórdão da Relação, ii) a questão de direito debatida é uma questão de legalidade; ii) existe uma contradição jurisprudencial em torno da questão da atribuição da casa de morada de família entre o acórdão recorrido e outros acórdãos proferidos pelos tribunais superiores.
6. Sobre a alteração da matéria de facto afirmou o acórdão recorrido que «Importa, pois, reconformar, correspondentemente, a decisão da matéria de facto dos pontos impugnados, julgando provado que A Requerente sofre, desde há muito, de “Perturbação Depressiva Recorrente”, que Desde o início da vida conjugal o Requerente sempre foi muito agressivo com a esposa (...) – e que Nesse dia 18 de agosto, o Requerente ameaçou a Requerente de morte (...) ameaça que já tinha proferido diversas vezes».
Ora, apesar de esta alteração da matéria de facto ter sido considerada irrelevante, pelo acórdão recorrido, para a decisão da questão de direito, tal não significa que, pelo menos potencialmente, não se verifique a possibilidade abstrata de uma decisão distinta determinada pelos factos novos que a Relação deu como provados. Não importa, para analisar a natureza essencial da modificação factual operada, a forma como a Relação a interpretou, sendo antes decisiva a potencialidade desses factos para darem lugar a uma distinta operação de subsunção e de avaliação da matéria de facto à luz dos conceitos normativos utilizados pela lei. Ora, quer a doença psíquica da reclamante, quer a circunstância de o seu então marido ter praticado agressões e ameaças de morte em relação à pessoa da sua mulher, que deram lugar a uma acusação pública por crime de violência doméstica, são factos suscetíveis de interferir com a interpretação e aplicação das normas jurídicas em litígio. Com efeito, as normas aplicáveis (artigos 1793.º e 1105.º, n.º 2, ambas do Código Civil) abrangem como fatores na decisão, para além do critério da necessidade, uma multiplicidade de fatores, costumando figurar, entre eles, na prática judiciária, a saúde do cônjuge ou ex-cônjuge e a imputabilidade da rutura do casamento, na veste de violação culposa dos deveres conjugais, maxime de crime contra a pessoa do outro.
Em face deste complexo normativo, é de considerar que a alteração dos factos se reveste de essencialidade na fundamentação da decisão, pelo que entendemos que não estamos perante uma dupla conforme, estando aberta a via para um terceiro grau de jurisdição.
7. A circunstância de a decisão recorrida ter sido proferida num processo de jurisdição voluntária, cujas decisões, quando tomadas de acordo com critérios de conveniência ou de oportunidade, não admitem recurso de revista nos termos do artigo 988.º, n.º 2, do CPC, também não é decisiva.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, nesta sede, que, tratando-se do preenchimento de conceitos normativos indeterminados, podemos estar perante uma questão de legalidade, sobretudo quando estão em causa direitos fundamentais dos indivíduos (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-12-2019, proc. n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1), onde se concluiu que «Nos processos de jurisdição voluntária, como é o caso do de atribuição de casa de morada da família, cabe no âmbito dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça a apreciação da aplicação e interpretação dos critérios normativos pertinentes para a decisão».
Assim, entendemos que estamos perante uma questão de legalidade, pelo que não se verifica o motivo de não admissibilidade do recurso de revista plasmado no n.º 2 do artigo 988.º do CPC.
8. Por último, afirma a decisão reclamada que, constituindo o presente processo uma providência cautelar de atribuição provisória da casa de morada de família, se trata de uma decisão que não admite recurso, por força do artigo 370.º, n.º 2, do CPC. E, assim, é. Todavia, esta norma admite como exceção os casos em que o recurso é sempre admissível, remetendo para a norma do artigo 629.º do CPC, que especifica quais são esses casos, incluindo, na alínea d) do n.º 2, os casos em que o acórdão recorrido está em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.
Ora, tendo a reclamante invocado no recurso de apelação a referida contradição jurisprudencial com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-04-2021, que, para uma factualidade semelhante, atribuiu, diferentemente do acórdão recorrido, o direito sobre a casa de morada de família ao cônjuge vítima de violência doméstica, não se verifica o obstáculo, consagrado no artigo 370.º, n.º 2, do CPC, à admissibilidade do recurso de revista».
7. No recurso de revista, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
«I - A Recorrente considera, na linha do arrazoado infra oferecido e naturalmente ressalvado o devido e máximo respeito pela opinião aí expressa, ter andado mal o Digníssimo Tribunal a quo ao negar provimento ao recurso interposto pela Recorrente, já que da correcta exegese das regras ínsitas nos artigos 9.º, n.º1, 1672.º, 1793.º, 2003.º, 2009.º, 2016.º, e 2016.º-A, todos do Código Civil, ressuma ser aquela o cônjuge mais fraco e mais atingido, a todos os níveis, pelo divórcio sub judice, e, consequentemente, quem mais necessita da casa de morada de família, sendo, por isso, de elementar Justiça que a mesma lhe seja, in casu, atribuída;
II - Com efeito, entende a Recorrente que, a partir do momento em que a factualidade in casu entretanto dada como provada considera serem idênticas, ou sensivelmente iguais, as necessidades dos cônjuges, se impunha fazer intervir a imputabilidade objectiva da causa da ruptura do matrimónio como critério de decisão operante (como, aliás, o Digníssimo Tribunal a quo sustenta no sumário do douto acórdão recorrido), como “factor de desempate” e, portanto, conferir o devido relevo ao comportamento pretérito de um cônjuge relativamente ao outro;
III - Mais a mais quando, como in casu sucede, a causa da ruptura do matrimónio alcança relevância penal com tamanha gravidade e que assume, nesta fase, ainda maior evidência ante o facto de, no passado dia 25 de Janeiro de 2024 e, portanto, em pleno prazo de recurso, ter transitado em julgado o douto acórdão prolatado pelo Digníssimo Tribunal da Relação de Coimbra - 5.ª Secção, no âmbito do processo que correu termos com o n.º983/22.0..., que manteve totalmente inalterada a douta sentença que condenou o Recorrido pela prática, contra a Recorrente, e no domicílio comum, do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal (cfr. certidão judicial junta como Doc. n.º1);
IV – De facto, dúvidas não remanescem de que é a Recorrenteo cônjuge mais fraco e mais atingido, a todos os níveis, pelo divórcio sub judice e, consequentemente, quem mais necessita da casa de morada de família, domicílio comum no qual, cumpre sublinhar (não por uma questão de fé e/ou de facilidade de raciocínio, mas porque assim foi dado como provado), foi a Recorrente vítima de violência doméstica e da qual foi forçada a sair na sequência de expressa recomendação das autoridades policiais e, portanto, para sua segurança [vide, neste sentido e por todos, as vítreas posições jurisprudenciais supra citadas em sede de motivação de recurso e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais (verbi gratia, o douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa em 13 de Abril de 2021, que cita, com plena pertinência in casu, o douto acórdão proferido pelo Colendo Tribunal ad quem em 17 de Dezembro de 2019, entre plúrimos outros das Relações)];
V - Destarte, manter, no plano habitacional, o status quo actual dos cônjuges, que resultou de uma fuga de casa da Recorrente naquelas específicas (e dadas como provadas) circunstâncias de facto, é premiar um agressor condenado por douta sentença transitada em julgado (in casu, o Recorrido) com a atribuição judicial da casa de morada de família na qual foi perpetrado o crime de violência doméstica pelo qual foi (e bem) condenado por douta sentença transitada em julgado e, dessa forma, a agudizar ainda mais o sofrimento da vítima (in casu, a Recorrente), que assim deixa de ser apenas vítimado Recorrido para passar a ser vítima de um sistema judicial que não só não a protege como ainda premeia o correlato agressor, permitindo que este continue a fruir de uma casa de morada de família que é, material e objectivamente, o local do crime deque foi (e bem) condenado por douta sentença transitada em julgado;
VI - A unidade e harmonia do sistema, imposta como critério interpretativo no artigo 9.º, n.º1, do Código Civil, a isso obriga (vide, nesse sentido, a posição sustentada por António Menezes Cordeiro, supra citada em sede de motivação de recurso e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais);
VII - Ademais, cumpre não perder de vista a posição sustentada por Jorge Miranda acerca da unidade de sentido, valor e de concordância prática conferida pela nossa Lei Funadmental ao sistema de direitos fundamentais (supra citada em sede de motivação de recurso e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais);
VIII - Por tudo isto, ao decidir nos moldes ora impugnados, o Digníssimo Tribunal a quo interpretou e aplicou incorrectamente, entre outras, as normas ínsitas nos artigos 9.º, n.º1, 1672.º, 1793.º, 2003.º, 2009.º, 2016.º, e 2016.º-A, todos do Código Civil, normas que deveriam ter sido interpretadas no sentido de ser a Recorrente o cônjuge mais fraco e mais atingido, a todos os níveis, pelo divórcio e, consequentemente, quem mais necessita da casa de morada de família sub judice;
IX - Ademais, ao interpretar as regras ínsitas nos artigos 9.º, n.º1, 1672.º, 1793.º, 2003.º, 2009.º, 2016.º, e 2016.º-A, todos do Código Civil, no sentido de que o facto de um dos cônjuges ser vítima de violência doméstica, cometido pelo outro cônjuge precisamente na casa de morada de família, é um critério juridicamente inoperante no âmbito da decisão de atribuição da casa de morada de família, o Digníssimo Tribunal a quo apresenta uma interpretação daquelas normas violadora do direito fundamental da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo primeiro da nossa Lei Fundamental (e fundamento da República), e, bem assim, da garantia um processo justo e equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º4, da nossa Lei Fundamental, inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos;
X - Termos em que deve o douto acórdão recorrido ser revogado, ex vi da violação de lei substantiva e, em consequência, substituído por uma decisão que, atenta a matéria de facto dado como provada e o arrazoado supra oferecido, julgue integralmente procedente o pedido de atribuição de casa de morada de família in casu deduzido pela Recorrente, atribuindo-lhe o direito à utilização exclusiva da casa de morada de família sub judice e, concomitantemente, julgue integralmente improcedente o pedido de atribuição de casa de morada de família in casu deduzido pelo Recorrido,
Assim fazendo Vossas Excelências a almejada
JUSTIÇA!»
8. O recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido, nas quais formulou, para o que aqui releva, as seguintes conclusões:
«XV.
Contudo, com respeito por opinião contrário, ter-se-á que dizer que uma interpretação, como a que a recorrente faz, do Acórdão proferido é desvirtuar o raciocínio lógico, crítico e fundamentado, por onde o douto Tribunal da Relação de Coimbra navegou, diga-se, com excelsa clareza e demonstrativa de particular sensibilidade jurídica.
XVI.
Nada há, na verdade, a apontar à clareza de raciocínio expendido pelo Tribunal da Relação que não permite que a imputação de factos consubstanciadores de violência doméstica, ao recorrente, sejam factor decisor na atribuição da casa de morada de família, num perpétuo castigo do recorrido, a extravasar o próprio processo crime onde, o mesmo, deverá receber a devida punição.
XVII.
Contudo, essa punição – tomada em local próprio - não deverá extravasar o conspecto do processo crime, sob pena de a punição do recorrente ser duplicada, triplicada em diversos aspectos da sua vida.
XVIII.
E é clareza de raciocínio jurídico, exposto pelo Tribunal da Relação que no conduz à conclusão de que a decisão proferida não deverá ser alterada, ao arrepio do defendido pela recorrente que, na verdade, discorre diversa jurisprudência, ignorando que – ao contrário do que acontece com muitos casais – recorrente e recorrido são proprietários de mais do que um imóvel, ambos aptos a suprir as necessidades de cada um.
XIX.
Na verdade, do que decorre das alegações de recurso da recorrente, mais não é que, não tendo provado que tem necessidade de habitar a casa de morada de família superior à do recorrente, salvaguarda-se da condenação pelo crime de violência doméstica, para punir o recorrente, o que não é, nem deve ser, factor orientador de “desempate”, como a recorrente faz crer.
XX.
É, portanto, irrepreensível a consideração do Tribunal da Relação, quando, doutamente, diz que o “Simplesmente – reitera-se – a atribuição da casa de morada da família não tem por fundamento final sancionar o cônjuge infractor do dever de respeito nem compensar o cônjuge vitimizado pela infracção desse ou de qualquer outro dever conjugal: o fim conspícuo da providência de atribuição – provisória ou não - da casa de morada da família é, antes, o de acudir à necessidade, objectiva e premente, de habitação experimentada pelo cônjuge mais atingido, no plano habitacional, pela dissociação conjugal..”.
XXI.
Na verdade, a recorrente não logrou demonstrar – nem na 1ª nem na 2ª instância – que dispunha de necessidade superior à do recorrido para ocupar a casa de morada de família, simplesmente pretende, com isso, puni-lo para além da punição que, em lugar próprio, já sofreu.
XXII.
E, destarte a expressiva importância que a recorrente pretende atribuir à violência doméstica, a verdade é que o factor da necessidade da casa é, decerto, o primordial e, quanto a este, a recorrente não logrou demonstrar necessidades superiores às do recorrido.
XXIII.
Muito menos demonstrou que as suas necessidades não estejam salvaguardadas mercê de habitar num imóvel, igualmente, bem comum do ex-casal.
XXIV.
Cada um deles – recorrente e recorrido – residem em imóveis, bens comuns, situação que já se manifesta, e se sedimentou, quase há dois anos, em que ambos já criaram novas rotinas, hábitos que cumprem as suas necessidades.
XXV.
Não subsistindo nenhuma razão ponderosa e justificativa que conduza a uma alteração da decisão recorrida, devendo manter-se a factualidade, provada e não provada, nos termos que, daquela, resultaram.
XXVI.
Não há, deste modo, reparo algum a fazer-se à sentença recorrida, não se verificando a violação dos normativos elencados pela recorrente, devendo, a mesma, manter-se inalterada.
Termos em que, não deverá ser admitido o presente recurso de
revistas, nos termos supra mencionados.
Caso assim não se entenda, deverá sempre ser mantida o douto
Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, julgado
improcedente o recurso apresentado pela recorrente.
Assim decidindo, farão V. Ex.as.
JUSTIÇA!»
9. A recorrente juntou ao processo, na fase de recurso, a certidão de trânsito do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito do processo n.º983/22.0..., que manteve totalmente inalterada a sentença que condenou o recorrido pela prática, contra a recorrente, e no domicílio comum, do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal.
9.1. O dispositivo dessa sentença foi o seguinte:
«1- Condenar o arguido BB pela prática, em autoria material e na forma consumada, em concurso real, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, n.º1, alínea d), da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, republicada pela Lei 12/2011, na pena de 4 meses de prisão – em cúmulo jurídico na pena de 3 anos e 2 meses de prisão;
2- Suspender a execução da referida pena de prisão, por igual período (3 anos e 2 meses), suspensão subordinada a regime de prova, mediante plano a elaborar pela DGRSP, que deverá contemplar a submissão a acompanhamento psicoterapêutico individualizado, com especial incidência no controlo da impulsividade e prevenção de comportamentos violentos;
3- Condenar o arguido a pagar à ofendida, a título de indemnização arbitrada
oficiosamente, a quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros); (…)».
10. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, a questão a decidir é a de saber se a acusação e/ou condenação do marido por violência doméstica contra a mulher influi ou não nos critérios de atribuição da casa de morada de família, ao abrigo dos artigos 1793.º, n.º 1 e 1105.º, n.º 2, do Código Civil.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
A - Os factos
Os factos provados e não provados, após o exercício pela Relação do seu poder de modificação da matéria de facto, são os seguintes:
1) Os Requerentes casaram um com o outro a ... de ... de 1969, sem convenção antenupcial.
2) Desse casamento nasceram três filhos, todos maiores de idade: DD, EE e CC.
3) O casal viveu sob o mesmo teto, na casa de morada da família fixada na Rua da ..., ..., ....
4) No dia 18 de agosto de 2022, a Autora apresentou queixa junto da PSP contra o Réu, a qual deu origem ao Inquérito n.º 983/22.0..., que corre termos no DIAP de ....
5) No dia 27 de agosto de 2022, a Autora foi aconselhada pelo OPC que registou a sua queixa, de que deveria sair de casa, o que fez, passando a residir no apartamento tipologia T1 sito na Rua do ..., ..., ..., na companhia da sua filha CC e o animal de estimação desta.
6) A casa referida em 5) é da propriedade dos Requerentes (e foi relacionada na Relação de Bens junta à Ação de Divórcio, como bem comum do casal).
7) A Requerente instaurou a 11 de outubro de 2022 contra o Requerente Ação de Divórcio sem o Consentimento do outro Cônjuge.
8) Tal Ação de Divórcio foi convolada para Ação de Divórcio Por Mútuo Consentimento, na qual foi apresentada a Relação de Bens comuns do casal, onde foi relacionado o imóvel referente à casa de morada de família e a fração autónoma onde a Requerente se encontra a residir.
9) A Requerente dorme no quarto e a sua filha CC dorme num colchão no chão da sala.
10) A Requerente aufere uma pensão de velhice no montante mensal de €329,15.
11) O Requerente aufere de montante concreto não apurado, mas superior a € 400,00 e ainda tem uma atividade empresarial (relacionada com a venda de lenha/madeira) onde auferirá outros rendimentos, cujo montante não se logrou apurar.
12) CC, filha do casal, enviou ao Requerente, seu pai, uma missiva datada de 27 de setembro de 2023, através da qual declarou que na qualidade de arrendatária da fração identificada no ponto 5) vem proceder à denúncia do contrato de arrendamento, celebrado a 1 de maio de 2018, com efeitos a partir de 31 de janeiro de 2023, e informou que, “Atendendo à alteração das circunstâncias, visto que a minha mãe não tem meios de subsistência capazes e suficientes para prover ao seu sustento, dou, sem efeito, a compensação de créditos que lhe foi comunicada por carta que lhe foi dirigida no passado dia 30 de agosto de 2022. Informo que a renda da fracção supra identificada, respeitante ao mês de setembro de 2022 foi paga à minha mãe, AA, bem como, serão liquidadas as dos meses subsequentes até janeiro de 2023 inclusive. (…)”.
13) Após a separação do casal, o Requerente ficou a residir na casa de morada de família, identificada no ponto 3.
14) A filha do casal, CC (de 43 anos de idade, ...), pagava a quantia mensal de € 300,00 a título de renda.
15) A filha do casal, CC, tem uma boa relação com a Requerente, ao contrário do que mantém com o Requerente.
16) O Requerente guarda, num estaleiro, os utensílios e máquinas de trabalho, que utilizava no seu negócio e onde guarda os utensílios respeitantes ao seu negócio de lenha.
17) Contra o Requerente, a 30 de setembro de 2022, foi deduzida Acusação Pública, no âmbito do processo crime identificado no ponto 4, ao qual foi imputada a prática de factos suscetíveis de integrar o de crime de violência doméstica, praticado no interior da casa de família do casal, e um crime de detenção de arma proibida, tendo-lhe sido apreendida uma espingarda de caça e cartuchos, estando o Requerente a aguardar julgamento sujeito a Termo de Identidade e Residência prestado e a Requerente foi inserida no programa de teleassistência.
18) A Requerente procedeu ao pagamento da fatura emitida a 17-10-2022 pelos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de ..., referente a consumos realizados entre 05-09-2022 a 11-10-2022 na casa de morada de família, no montante de €23,08.
19) A Requerente procedeu ao pagamento do montante de €17,29 por conta dos serviços de água referentes à morada de casa de família, cuja fatura foi emitida em nome da Requerente.
20) A Requerente procedeu ao pagamento de serviços eletrónicos referentes à morada da casa de família no montante de €69,56, no dia 22 de novembro de 2022, cujo recibo foi a Requerente identificada como cliente.
21) A Requerente procedeu ao pagamento do IMI, cujo limite de pagamento era 30 de novembro de 2022, referente à casa de morada de família, e cujo documento de cobrança foi emitido em nome da Requerente.
22) O Requerente a 28 de novembro de 2022 celebrou novo contrato de fornecimento de água e serviço de saneamento para a casa de morada de família uma vez que a Requerente mandou cortar tais serviços.
23) O Requerente a 24 de novembro de 2022 celebrou novo contrato com a Meo para fornecimento de serviços telefónicos/eletrónicos referentes à casa de morada de família uma vez que a Requerente mandou cortar tais serviços.
24) A Requerente sofre, desde há muito tempo, de “Perturbação Depressiva Recorrente” (Facto aditado pelo Tribunal da Relação).
Factos aditados pelo Tribunal da Relação com base na acusação do Ministério Público:
25. Desde o início da vida conjugal o Requerente sempre foi muito agressivo com a esposa e filhos
26. Desde o início do casamento que o Requerente bate na Requerente, dando-lhe murros e pontapés, atirava-lhe com objetos, tachos e copos, mandava-a contra a parede e para o chão e batia-lhe com um cinto, inclusive quando estava grávida.
27. Apertava-lhe o pescoço e tapava-lhe a boca para que a Requerente não gritasse.
28. Há mais de vinte anos que, apesar de viverem na mesma casa, não partilham quarto, cama e não têm relações sexuais.
29. O Requerente de forma agressiva obrigou a Requerente a ir para outro quarto, dizendo-lhe que ali não estava a fazer nada.
30. A Requerente dorme num quarto sozinha, com a porta fechada à chave, com medo de ser agredida e maltratada pelo Requerente.
31. Em início de junho de 2022 a Requerente foi agredida pelo Requerente, que a agarrou pelo pescoço, atirou-a contra o chão.
32. A Requerente ficou cheia de nódoas negras nas pernas, peito e pescoço.
33. Começou a gritar e a tentar fugir de casa, tendo sido impedida pelo Requerente que fechou a porta e tapou-lhe a boca para que não gritasse.
34. De seguida, tirou-lhe o telemóvel para que a Requerente não ligasse a ninguém e pedisse ajuda, só lho devolvendo três ou quatro horas depois.
35. No dia 18 de agosto de 2022, por volta das nove horas, na cozinha, o Requerente acusou a Requerente de lhe “roubar” dois mil e setecentos Euros.
36. Chamou a Requerente de puta, vaca, ameaçando-a que lhe dava um tiro, repetindo várias vezes que queria o dinheiro, desconhecendo a Requerente a que dinheiro se referia.
37. Já em meados 2019 o Requerente tinha acusado a Requerente de lhe “roubar” dois mil Euros, que tinha sido ela ou a filha CC, chamando-a puta e vaca.
38. Nesse dia 18 de agosto, o Requerente ameaçou a Requerente de morte, que lhe dava um tiro e que de seguida se matava, ameaça que já tinha proferido diversas vezes.
Factos não provados:
1 a 14. - Factos transferidos pera o elenco dos factos provados por força da decisão do acórdão recorrido quanto à matéria de facto
15. Estava em Portugal o filho de ambos que vive no ..., EE, que estava a passar férias com a sua família na residência dos Requerentes, que, perante estes factos que presenciou, insistiu com a Requerente para que fossem à PSP apresentar queixa.
16. A “Perturbação Depressiva Recorrente” recrudesceu após ter deixado a casa de morada de família
17. A Requerente para satisfação das suas necessidades básicas pediu dinheiro emprestado aos seus filhos.
18. O Requerente amanha o quintal existente na casa de morada de família.
B – O Direito
1. Está em causa, no presente recurso, um incidente de atribuição provisória do uso da casa de morada da família, bem comum do casal.
Na falta de um critério legal específico para a atribuição do uso da casa de morada de família a um dos cônjuges ou ex-cônjuges, são de ponderar, com as devidas adaptações, os critérios normativos previstos nos artigos 1105.º e 1793.º, ambos do Código Civil, que dispõem, para o que aqui releva, o seguinte:
Artigo 1105.º (Comunicabilidade e transmissão em vida para o cônjuge)
«1 - Incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, o seu destino é, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, decidido por acordo dos cônjuges, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de um deles.
2 - Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros factores relevantes.
(...)»
Artigo 1793.º (Casa de morada da família)
«1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
(...)»
O cônjuge marido, depois da separação do casal – provocada pela prática de factos integradores do tipo legal de violência doméstica contra a mulher, que culminaram na sua condenação no processo-crime – continuou a habitar a casa de morada de família, da qual a autora saiu para se proteger dos atos de violência contra si praticados, por conselho da polícia que recebeu a queixa, conforme decorre dos factos provados n.ºs 25 a 38.
A sentença de 1.ª instância, apesar de entender que o comportamento pretérito dos cônjuges pode ser critério para atribuição da casa de morada de família como fator de desempate, em situações em que a situação patrimonial de cada um deles é semelhante, entendeu que, não havendo condenação transitada em julgado do réu por crime de violência doméstica, não podia passar por cima do princípio constitucional da presunção de inocência, tendo considerado não provados os factos relativos à violência doméstica durante a constância do casamento (factos 1 a 14 da matéria de facto não provada), não ponderando assim o comportamento do réu. Por aplicação do critério da necessidade, decidiu que o uso exclusivo da casa de família cabia ao réu, uma vez que a mulher, aqui autora, residia com a filha noutro imóvel comum do casal, arrendado àquela.
Já o acórdão recorrido considerou como provados os factos que constavam na acusação do Ministério Público e que a sentença tinha considerado não provados em homenagem ao princípio da presunção de inocência.
Foi a seguinte a fundamentação de facto adotada no acórdão recorrido, à qual aderimos. pela sua correção técnico-jurídica, citando um excerto da mesma:
«A dedução da acusação pelo Ministério Público assenta, necessariamente, na existência de indícios suficientes dos factos nela imputados ao arguido, que deles resulta uma probabilidade razoável de àquele vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, ou, noutra formulação, radica na maior probabilidade de uma condenação do que de uma absolvição (art.º 283.º, n.ºs 1 e 2, do CP Penal).
Pois se já no momento em que se pode dizer da qualificação, o juízo que o Ministério Público faça sobre a verificação do crime está aberta às mesmas dificuldades e exigências que pode, analogamente, suscitar qualquer aplicação concreta do direito, menos ainda se poderá exigir uma univocidade efectiva quanto a concluir se o resultado do inquérito oferece indícios suficientes para acusar ou se, pelo contrário, não logrou confirmar a suspeita que deu origem à investigação; no que toca à suficiência de prova ou dos indícios, deve observar-se que não se trata de aceitar um menor grau de comprovação, uma mera probabilidade insegura, que seria sempre directa função de uma posição pessoal – da maior ou menor exigência que pessoalmente o Magistrado real do Ministério Público fizesse das regras de experiência ou dos critérios de probabilidade – antes se impõe também aqui uma comprovação acabada e objectiva, i.e., a mesma exigência de prova e de convicção probatória, a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final, só que o inquérito não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz de julgamento e, por isso – mas só por isso – o que seria insuficiente para a sentença, pode ser bastante ou suficiente para a acusação (desde logo porque não concorrem nesse momento elementos que anulem ou contrabalancem a força convincente dos elementos incriminadores obtidos).
Portanto, quer a acusação, quer o despacho que designa dia para julgamento contêm, necessariamente, quanto aos factos imputados ao arguido uma exigência de verdade, embora evidentemente menor que a exigida para a condenação numa consequência jurídica do crime. Mas essa exigência de verdade, conjugada com outras provas que a corroborem, é suficiente para, em processo não penal, numa avaliação prudencial da prova, assentar na realidade dos factos correspondentes – sendo certo que a decisão proferida no processo não penal – pela diferença dos princípios probatórios aplicáveis – não vincula o juiz penal (art.º 623.º e 624.º, a contrario, do CPC)».
2. Na fase de recurso, a recorrente juntou o acórdão da Relação de Coimbra, que confirmou a sentença de condenação, e respetiva declaração de trânsito em julgado. Assim, a sentença penal condenatória constitui caso julgado, nos termos do artigo 623.º do CPC, ou seja, constitui presunção – inilidível nas relações entre as partes – da existência dos factos constitutivos em que se baseou a condenação, não existindo qualquer margem para dúvida na legitimidade da transposição dos factos nela provados – coincidentes com os que constavam da acusação do MP e que tinham sido dados como provados no acórdão recorrido – para o presente processo tutelar cível.
3. O acórdão recorrido, não obstante a decisão adotada quanto à matéria de facto, continuou a entender que o cônjuge mais necessitado era o marido, não havendo por isso lugar à ponderação do seu comportamento pretérito, confirmando a decisão do tribunal de 1.ª instância que atribuiu a utilização da casa de morada de família ao cônjuge marido, considerando irrelevante para a presente decisão qualquer ideia de sanção para comportamentos culposos dos cônjuges, conforme decorre do seguinte excerto da sua fundamentação:
«Simplesmente – reitera-se – a atribuição da casa de morada da família não tem por fundamento final sancionar o cônjuge infractor do dever de respeito nem compensar o cônjuge vitimizado pela infracção desse ou de qualquer outro dever conjugal: o fim conspícuo da providência de atribuição – provisória ou não - da casa de morada da família é, antes, o de acudir à necessidade, objectiva e premente, de habitação experimentada pelo cônjuge mais atingido, no plano habitacional, pela dissociação conjugal.
(...)
Só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar a causa da dissociação conjugal; o facto de a casa constituir bem próprio de um ou de outro cônjuge; as circunstâncias em que, após a separação de facto, a casa de morada da família tenha sido ocupada por um ou por outro, elementos ou factores que, neste sentido, devem ser considerados secundários.
Em absoluto remate: o regime provisório de utilização da casa de morada da família deve ser fixado por aplicação dos mesmos factores – e com a ponderação do peso relativo que compita a qualquer deles – que relevam para decidir do seu destino. E entre estes factores, o da necessidade da casa é, decerto, o primordial».
Aplicando estes critérios ao caso concreto, entendeu o acórdão recorrido que «(...) o facto de a recorrente ter sido vitima de violência doméstica de género não é – nem deve ser – o factor conspícuo ou decisivo, muito menos automático, de atribuição, ainda que de interim, da casa de morada da família. Decerto que o apelado violou, de forma grave, o dever de respeitar a recorrente, seu cônjuge, mas é também certo que a apelante ofendeu esse mesmo dever, dado que do cônjuge que ordena o corte da prestação de serviços essenciais, como a água, saneamento e comunicações da casa de morada da família, habitada pelo outro cônjuge, se não pode dizer que respeita, com uma pontualidade religiosa, este mesmo cônjuge.
(...)
E, como se apontou, a disponibilidade, por qualquer dos cônjuges de outra casa para além daquela que constitui a casa de morada da família deve, evidentemente, pesar na decisão sobre a sua atribuição, dado que o que se trata é sempre de assegurar as necessidades habitacionais de qualquer deles.
Na espécie do recurso, quando saiu da casa de morada da família, na qual permaneceu o apelado, a apelante não ficou ao relento, tendo ido habitar um apartamento que constitui um bem comum dos cônjuges. É certo que nessa casa vive também, actualmente de modo gratuito, uma filha de ambos os cônjuges, mas ao inverso do que sugere a apelante, não foi a recorrente que foi viver para casa da filha, é antes a filha que vive na casa da apelante (e do apelado). É também certo que, dada a composição do apartamento e o facto de a apelante ocupar o único quarto, força a filha a dormir na sala. Simplesmente temos por seguro que os interesses daquela filha dos cônjuges não são atendíveis, considerada a sua idade e a sua autonomização e a inerente auto-responsabilidade pela satisfação das suas necessidades de habitação e, portanto, são inidóneos para servir de critério para se decidir a questão delicada da atribuição da casa de morada a um dos cônjuges cujos interesses são, assim, neste contexto os únicos atendíveis. De resto, os interesses daquela descendente das partes ficariam ainda mais desprotegidos se a casa de morada da família fosse atribuída à apelante, dado que, nesta hipótese, o mais natural seria que a apelado fosse viver para o apartamento o que forçaria a sua saída, dada a deterioração do relacionamento entre ambos e a consequente impossibilidade de partilha ou de coexistência numa mesma habitação, para mais com aquela tipologia».
4. Sustenta a recorrente no recurso de revista que, sendo as necessidades dos cônjuges sensivelmente iguais, impõe-se como «fator de desempate» a consideração da imputabilidade da causa do divórcio tanto mais que, no caso, os factos assumiram relevância penal com a condenação do recorrido pelo crime de violência doméstica, fundamentando-se na unidade e harmonia do sistema como critério interpretativo das normas ínsitas nos artigos 1672.º, 1793.º, 2003.º, 2009.º, 2016.º, e 2016.º-A, todos do Código Civil.
5. Alega o recorrido, por sua vez, em síntese, que aceitar que a casa fosse atribuída à recorrente por ser vítima de violência doméstica é instituir uma dupla punição que extravasa a sentença penal. Para além disto, entende que, vivendo a recorrente com a filha, não tem necessidade de habitar a casa de morada de família.
6. Vejamos.
Os critérios legais para decidir da atribuição provisória da casa de morada de família (artigo 931.º, n.º 7, do CPC), bem comum dos cônjuges, até à sua venda ou partilha, nos casos de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, ainda que convertido em mútuo consentimento, são os mesmos que regem a decisão quanto ao destino da casa de morada de família, nos termos conjugados do artigo 1793.º e 1105.º, ambos do Código Civil e que se fundam na ponderação de um conjunto de fatores, como as necessidades dos cônjuges, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes, entre os quais a jurisprudência inclui, para além dos rendimentos de cada um deles, o estado de saúde dos cônjuges, a idade, a possibilidade de arranjar trabalho, a (im)possibilidade de um dos cônjuges dispor de outra casa em que possa residir sem beneficiar da mera tolerância de terceiros e o comportamento pretérito daqueles no que diz respeito ao cumprimento dos seus deveres conjugais (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-12-2019, proferido no processo n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1).
Estes critérios são aplicáveis à fixação de um regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família, visto que, as razões justificativas dos critérios previstos nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil – a proteção do cônjuge mais fraco e carenciado – procedem, até por maioria de razão, quando está em causa a atribuição provisória da casa, desde logo porque a providência assume uma natureza antecipatória, atribuindo, embora transitoriamente, o mesmo efeito jurídico da atribuição definitiva da casa.
A aparente ausência de critérios legais para a atribuição provisória da casa de morada de família, antes da venda ou da partilha, no limite, nunca poderia conduzir a que se beneficiasse o cônjuge que obtém uma situação de facto de permanência na casa de morada de família, por exemplo, porque expulsa o outro cônjuge de casa ou pratica atos de violência contra o outro, levando-o a ter de sair da casa.
Visto isto, interpretadas as normas aplicáveis, conclui-se que, da sua formulação legal não resulta qualquer impedimento a que se considere como fator de decisão, em combinação com outros, a acusação (maxime, condenação) de um dos cônjuges por violência doméstica contra o outro, ou, por razões de equidade, a culpa de um dos cônjuges no divórcio, tal como decorre da interpretação dos conceitos indeterminados ínsitos no artigo 2016.º, n.º 3, do Código Civil, no âmbito da obrigação de alimentos entre cônjuges (cfr. Maria João Vaz Tomé, “Anotação ao artigo 2016.º”, in Clara Sottomayor (Coord), Código Civil Anotado, Livro IV, Direito da Família, 2.ª edição, 2022, p. 1116; Nuno Salter Cid, in Código Civil Anotado, ob. cit., p. 584)
Para Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira (in Curso de Direito da Família, Volume I, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016, pp. 756-757), o direito de usar a casa deve ser atribuído ao cônjuge que mais precise dela, sendo o fator principal da decisão aquilo a que chamam “a premência da necessidade”, conceito avaliado em função da situação patrimonial dos cônjuges e do interesse dos filhos. «Mas o juízo sobre a necessidade da casa não depende apenas destes dois elementos. Haverá que considerar ainda outros fatores relevantes, como a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e de outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência etc. Quando possa concluir-se, em face destes elementos, que a necessidade de um dos cônjuges é consideravelmente superior à do outro, deve o tribunal atribuir o direito de arrendamento da casa àquele que mais precisar dela; só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar outros fatores», entre os quais incluem «(...) as circunstâncias em que, após a separação de facto, a casa de morada de família tenha sido ocupada por um ou por outro dos cônjuges (...)».
Em relação ao relevo da violência doméstica para a decisão de atribuição da casa de morada de família, Maria Perquilhas e Pedro Raposo Figueiredo (“Divórcio e responsabilidades parentais”, in “Violência Doméstica –Implicações Sociológicas, Psicológicas e Jurídicas do Fenómeno”, 2.ª Edição, Centro de Estudos Judiciários, pp. 381-382), afirmam que: “Em situações de violência doméstica demonstradas no processo, o juiz pode – dir-se-á, deve – decidir atribuir a casa de morada de família, provisória e oficiosamente, ao cônjuge vítima, sempre que tal solução se mostre adequada e não coloque a vítima em maior risco».
A jurisprudência das Relações tem admitido o alargamento dos critérios de atribuição da casa de morada de família, não só à imputabilidade da rutura do casamento ou da união de facto, mas também à prática do crime de violência doméstica (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 19-12-2019, proc. N.º 1965/18, Acórdão da Relação de Évora, de 11-03-2021, proc. n.º 1337/19.0T8STB-A.E1, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 15-12-2022, proc. N.º 2784/21.3T8FAR.E1, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28-03-2023, proc. n.º 147/21.0T8CNT-A.C2 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13-04-2021, proc. n.º 1480/18.3T8LSB-A.L1-7). Este último acórdão foi invocado pela recorrente como acórdão fundamento e nele se exarou que «Um dos critérios materiais de decisão neste processo pode assentar na conduta pretérita de cada um dos cônjuges em relação ao outro, designadamente a conduta que se consubstancie na causa da rutura definitiva do casamento, bem como em violência doméstica, sendo tal critério operante quer em caso de paridade das necessidades dos ex-cônjuges quer em caso de inexistência de tal paridade».
Na jurisprudência do Supremo, já se pronunciaram sobre questão semelhante à destes autos os seguintes Acórdãos:
- Acórdão do Supremo de 17-12-2019 (proc. n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1),
«IV - No caso de paridade da necessidade de cada um dos cônjuges – circunstâncias patrimoniais e económicas semelhantes - e na ausência de filhos cujo interesse haja assim que proteger, deve atender-se a “outros fatores relevantes”.
V - São, inter alia, atendíveis, a idade, a possibilidade de trabalho e a (im)possibilidade de um dos cônjuges dispor de outra casa em que possa residir sem beneficiar da mera tolerância de terceiros.
VI - Deve também levar-se em consideração o comportamento pretérito de cada um dos cônjuges em relação ao outro, designadamente a conduta que se consubstancie na causa da rutura definitiva do casamento, que constitua fundamento do divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges. A ponderação do elemento sistemático da interpretação da lei (contexto da lei: art. 2016.º, n.º 3), nos termos do art. 9.º, n.º 1, conduz a este resultado».
Os factos tidos em conta foram os que estavam contidos na sentença de divórcio:
«“Nos presentes autos ressalta à saciedade que a vida do R. durante pelo menos os últimos quinze anos do período de coabitação conjugal, se reconduzia ao consumo de bebidas alcoólicas com excesso, à errância (não exercia qualquer actividade laboral) e ao desmando, agredindo a Autora física (desferiu um murro no braço da Autora) e verbalmente (desmandando-a de “puta do caralho” e atribuindo-lhe relações extramatrimoniais».
- Acórdão de 21-09-2021, Revista n.º 1480/18.3T8LSB-A.L1.S1, onde se sumariou o seguinte:
«O factor culpa nos casos em que as necessidades de ambos os membros do ex-casal sejam iguais ou sensivelmente iguais constitui um critério suplementar que pode ser atendido, nos termos do art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil».
7. Não procede, no caso presente, contra a ponderação do comportamento ilícito do recorrido – factos integradores do crime de violência doméstica – na decisão de atribuição da casa de morada de família, o argumento, usado no acórdão recorrido, de que também a autora teria violado, embora de forma menos grave, os deveres conjugais, dado que ordenou «o corte da prestação de serviços essenciais, como a água, saneamento e comunicações da casa de morada da família, habitada pelo outro cônjuge». Ora, tendo a autora sido vítima de um crime violento grave, que a forçou a sair de casa (facto provado n.º 5), não lhe era exigível que continuasse a contribuir para despesas correntes com serviços, que seriam apenas usufruídos pelo marido, que passou a deter o uso exclusivo da casa, daí que tenha pago as contas da luz, água e telecomunicações até novembro de 2022 (factos 18, 19 e 20), tendo o marido após essa data feito novos contratos porque a mulher tinha ordenado o corte dos serviços (factos n.ºs 22 e 23). Com efeito, não se pode comparar tal facto – o corte do fornecimento de bens essenciais – que apenas seria ilícito no plano cível, e, de todo o modo, não culposo, com a prática de um crime com a gravidade e os danos pessoais e sociais da violência doméstica.
8. Regressemos aos factos do caso.
Em primeiro lugar, importa averiguar de forma comparativa a situação patrimonial de cada um dos cônjuges.
A autora aufere uma pensão de reforma de 329, 15 euros mensais (facto provado n.º 10) e o réu tem um rendimento superior a 400 euros a que acresce um valor não apurado de rendimento proveniente de uma atividade empresarial ligada à venda de lenha (facto provado n.º 11).
A autora padece de uma depressão recorrente (facto provado n.º 24).
Após a saída da casa de morada de família, para fugir a ameaças de morte (facto provado n.º 38), a recorrente foi viver para um apartamento de tipologia T1, bem comum dos cônjuges, que estes tinham arrendado à filha (factos provados n.º 5 e 6), enquanto o réu continuou a residir na casa de morada de família cuja atribuição está agora em disputa (facto provado n.º 3).
Abrangendo o conceito de necessidade, em primeiro lugar, os rendimentos líquidos mensais dos cônjuges, temos que, apesar de ambos os cônjuges terem rendimentos baixos, a autora/recorrente apresenta uma situação deficitária na medida em que apenas aufere uma pensão de 329,15 euros, enquanto o réu beneficia de rendimentos superiores a 400 euros, a que acresce um rendimento não apurado decorrente de uma atividade empresarial. São ambos pessoas idosas e a autora padece de uma depressão recorrente e foi vítima de violência doméstica durante a constância de um casamento longo (celebrado em ... – facto provado n.º 1). Nos termos da matéria de facto provada, desde o início do casamento que o réu era agressivo com a mulher e que a maltratava física e psicologicamente, inclusive durante a gravidez, para além de lhe bater com um cinto e de a ameaçar várias vezes de morte, tendo sido uma dessas ameaças que a forçou a sair de casa (factos provados n.º 25 e 26).
Nesta factualidade, não procede o entendimento de que o marido se encontra numa situação de maior necessidade do que a autora no que à utilização da casa de morada de família diz respeito. Pelo contrário, mesmo no que se reporta estritamente à situação patrimonial, está provado que a autora aufere menor rendimento mensal (uma pensão de 329, 15 euros), uma vez que o marido ainda tem capacidade de ganho, pois exerce uma atividade empresarial. Por outro lado, o imóvel comum, arrendado à filha, e onde a mãe provisoriamente se encontra alojada (factos provados n.º 5, 6 e 9), não pode ser usado para dizer que a situação patrimonial da autora é melhor. Se o imóvel é bem comum do casal, tanto a mulher como o marido podem habitá-lo, podendo o aqui réu solicitar a denúncia desse contrato de arrendamento (que aliás a filha, entretanto, denunciou com efeitos a janeiro de 2023) para habitar o imóvel, sem depender da boa vontade da filha.
Assim sendo, a situação de necessidade da autora é superior à do réu, quer no plano económico, porque aufere de menores rendimentos, quer no plano psicológico, porque foi vítima de violência doméstica durante cerca de 50 anos e padece de uma depressão recorrente.
Resta analisar, para balancear as posições de ambos os cônjuges, o argumento pragmático em que se baseou a sentença e o acórdão recorrido, segundo o qual, residindo a autora com a filha num apartamento, bem comum do casal, a sua necessidade de habitação estava resolvida, precisando o marido de viver na casa de morada da família porque não se relacionava com a filha a quem o casal tinha arrendado o imóvel.
Ora, este argumento prova demais. Desde logo, porque, como vimos, a casa em que vive a autora é de ambos os cônjuges e qualquer um deles pode viver nela, podendo até o réu rescindir o contrato de arrendamento celebrado com a filha, caso necessite da casa para habitação própria.
Mas vejamos os factos com mais pormenor.
A autora vive numa casa, bem comum do casal, que está arrendada à filha (facto provado n.º 6) e que, portanto, ocupa por tolerância da filha, sem título para tal. Na verdade, a filha é que tem, legalmente, o gozo exclusivo do imóvel. Por outro lado, este imóvel, segundo a factualidade provada, não tem condições para que nele vivam duas pessoas, tendo a filha passado a dormir num colchão na sala para que a mãe possa ocupar o quarto (facto provado n.º 9). Se bem que o interesse da filha, por ser maior de idade e independente financeiramente, não tenha de ser ponderado nesta decisão, compreende-se que a autora não queira colocar a filha nesta situação e que queira viver numa casa mais espaçosa e com melhores condições.
A autora, devido à circunstância de ter menos rendimentos e menor possibilidade de os obter, pois vive de uma pensão de reforma situada no mínimo da escala, enquanto o réu exerce uma atividade empresarial, está mais necessitada da casa de morada de família, não lhe sendo exigível, após ter sido vítima de violência doméstica durante 50 anos, que viva em condições precárias na casa arrendada a uma filha, por mera tolerância desta. Aliás, tendo a filha procedido à declaração de denúncia do contrato de arrendamento com efeitos a janeiro de 2023 (facto provado n.º 12), nada impedirá o réu de utilizar esta casa para sua habitação, não dependendo essa possibilidade do relacionamento com a filha, como entendeu a sentença. Por outras palavras, se essa casa é bem comum do casal, tanto entra na determinação do grau de necessidade da mulher, como do marido. A proximidade maior que a mulher tem em relação a este bem resulta de mera tolerância da filha, arrendatária do imóvel e a única que tem o poder de o fruir, por força desse contrato, entretanto já denunciado pela prórpia arrendatária.
Assim, a cônjuge-mulher, autora na presente ação, em virtude da sua maior vulnerabilidade económica e psíquica, tem o direito, por ser mais carenciada e ter uma saúde psíquica frágil (padece de depressão recorrente), de residir naquela que sempre foi a sua casa de morada de família, contribuindo a circunstância de ter sido vítima de violência doméstica para tornar mais inequívoca e óbvia a sua maior fragilidade e necessidade enquanto cônjuge mais fraco que carece de proteção.
O conceito de necessidade é assim um conceito amplo que inclui não só aspetos materiais e financeiros, como também as necessidades psíquicas resultantes de a autora padecer de depressão recorrente e de ter sido durante 50 anos vítima de violência doméstica.
No presente caso, a necessidade da autora, no plano material, é ligeiramente superior em relação à necessidade do marido, e, ainda que assim não se avaliassem os factos, a circunstância de ser vítima de violência doméstica – tipo legal de crime integrado no conceito de criminalidade violenta e que as Nações Unidas consideram ser equivalente à tortura ( cfr. a Declaração de 24 de janeiro de 2008 do Comité das Nações Unidas contra a tortura a propósito o âmbito das obrigações e responsabilidades do Estado no domínio do artigo 2.º da Convenção contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes) – cria só por si uma situação de maior necessidade. Com efeito, tem de se considerar, na operação subsunção dos factos na norma, não só as necessidades materiais, mas também as necessidades psíquicas de estabilidade, conforto e segurança, que sempre serão mais bem garantidas pela ocupação da casa de morada de família.
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, de 11 de maio de 2011, conhecida por Convenção de Istambul, foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, constituindo um marco na consciencialização de que a violência de género e a violência doméstica constituem uma grave e intolerável violação dos direitos humanos fundamentais e do princípio da igualdade entre homens e mulheres. Esta Convenção, que integra o direito interno por força do artigo 8.º, n.º 2, da CRP, impõe aos Estados o dever positivo de proteção das vítimas de violência doméstica e a garantia dos seus direitos humanos fundamentais, não só em matéria criminal, mas também em matéria cível (direitos familiares pessoais e patrimoniais), devendo as normas do Código Civil ser objeto de uma interpretação conforme aos objetivos desta Convenção. A mesma orientação tinha já sido adotada pela Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que consagra medidas de proteção e assistência às vítimas de violência doméstica, adotando uma perspetiva interdisciplinar que cruza vários ramos do direito, como o direito à saúde, à segurança social, à habitação e à estabilidade de emprego.
Tem-se reconhecido que o sistema de proteção que obriga as mulheres vítimas de violência doméstica a sair de casa assume uma repercussão negativa na recuperação psicológica das vítimas em relação aos traumas vividos, bem como cria ruturas no seu projeto de vida. Para fazer face a este resultado, as ordens jurídicas europeias têm evoluído progressivamente de um sistema centrado na retirada da vítima da sua residência para o afastamento do agressor da casa de morada de família, permitindo a proteção da estabilidade da vida das vítimas num momento em que ela está particularmente posta em causa: a denúncia do crime e o pedido de divórcio. Em consequência, a Lei n.º 57/2021, de 16 de agosto, veio alargar a proteção das vítimas de violência doméstica, ampliando a medida de coação prevista no artigo 31.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, de forma a incluir não só a obrigação de o arguido «Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada da família», mas também a possibilidade de impor ao arguido da “obrigação de a abandonar”», estipulando o n.º 2 do preceito que o ali disposto mantém a sua relevância mesmo nos casos em que a vítima tenha abandonado a residência em razão da prática ou de ameaça séria do cometimento do crime de violência doméstica.
Embora não estejamos perante um processo-crime, a unidade do sistema jurídico impõe que o direito penal e o direito da família não sejam vistos como compartimentos estanques e que, pelo contrário, existam vasos comunicantes entre estes ramos do direito porque se dirigem a regular a mesma realidade – a vida de uma família com história de violência doméstica. As normas jurídicas não existem isoladamente umas das outras e o processo de aplicação do direito deve preservar a coerência e a unidade da ordem jurídica. Não faz sentido que no processo-crime a vítima de violência doméstica seja protegida por ser o sujeito mais frágil e que o processo cível atribua esse estatuto de necessidade ao agressor e retire a proteção devida à vítima, que, no caso vertente, até aufere rendimentos inferiores aos do marido.
O Direito, como um todo, não pode tolerar a consolidação de uma situação de facto que teve origem na prática de um crime contra as pessoas com a gravidade da violência doméstica.
7. Por último, para responder às contra-alegações do recorrido, há que dizer que a influência do crime de violência doméstica na determinação do grau de necessidade da autora não consiste em qualquer consequência automática da sentença de condenação proferida no processo-crime, em relação ao direito sobre a casa de morada de família, ou qualquer dupla punição do réu, mas tão-só o resultado da interpretação teleológica e sistemática do conceito de necessidade utilizado nas normas de direito da família aplicáveis ao caso e dos juízos de proporcionalidade e concordância prática inerentes à decisão judicial cível.
Assim sendo, revoga-se o acórdão recorrido e atribui-se provisoriamente a casa de morada de família à autora, agora recorrente.
8. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:
I - Os critérios legais para decidir da atribuição provisória da casa de morada de família (artigo 931.º, n.º 7, do CPC), bem comum dos cônjuges, até à sua venda ou partilha, nos casos de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, convertido em mútuo consentimento, são os mesmos que regem a decisão quanto ao destino da casa de morada de família, nos termos conjugados do artigo 1793.º e 1105.º, ambos do Código Civil.
II - Estes critérios fundamentam-se na ponderação de um conjunto de fatores, como as necessidades dos cônjuges, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes, entre os quais a jurisprudência inclui, para além dos rendimentos de cada um deles, o estado de saúde dos cônjuges, a idade, a possibilidade de arranjar trabalho, a (im)possibilidade de um dos cônjuges dispor de outra casa em que possa residir sem beneficiar da mera tolerância de terceiros e o comportamento pretérito daqueles no que diz respeito ao cumprimento dos seus deveres conjugais (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-12-2019, proferido no processo n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1).
III - O conceito de necessidade assume-se como um conceito amplo que inclui não só aspetos materiais e financeiros, como também as necessidades psíquicas de estabilidade e de segurança das vítimas de violência doméstica.
IV - In casu, a autora padece de depressão recorrente e foi vítima de violência doméstica durante 50 anos, conforme consta da acusação do Ministério Público e de sentença de condenação transitada em julgado.
V - A cônjuge-mulher, em virtude da sua maior vulnerabilidade económica e psíquica, tem o direito de residir naquela que sempre foi a sua casa de morada de família, contribuindo a circunstância de ter sido vítima de violência doméstica para tornar mais inequívoca e óbvia a sua maior fragilidade e necessidade.
VI - A unidade do sistema jurídico impõe que o direito penal e o direito da família não sejam vistos como compartimentos estanques e que existam vasos comunicantes entre estes ramos do direito porque se dirigem a regular a mesma realidade – a vida de uma família com história de violência doméstica.
VII - Não faz sentido que no processo-crime a vítima de violência doméstica seja protegida por ser o sujeito mais frágil e que o processo cível atribua o estatuto de cônjuge mais necessitado ao agressor, adjudicando-lhe o direito de residir na casa de morada de família até à venda ou partilha.
VIII - O Direito, como um todo, não pode tolerar a consolidação de uma situação de facto que teve origem na prática de um crime contra as pessoas com a gravidade da violência doméstica.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça conceder a revista e revogar o acórdão recorrido, adjudicando-se, a título provisório, a casa de morada de família à autora.
Custas da revista pelo recorrido.
Lisboa, 26 de novembro de 2024
Maria Clara Sottomayor (Relator)
António Magalhães (1.º Adjunto)
Anabela Luna de Carvalho (2.º Adjunto)