CONTRATO-PROMESSA
CONTRATO DEFINITIVO
CULPA IN CONTRAHENDO
ABUSO DO DIREITO
OCUPAÇÃO DE IMÓVEL
BOA FÉ
FRAÇÃO AUTÓNOMA
DANOS PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
FALTA DE ENTREGA
INTERESSE CONTRATUAL NEGATIVO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
PROPOSTA DE CONTRATO
FORMA LEGAL
Sumário


I - Para que estejamos perante uma declaração que possa ser qualificada como proposta contratual, é necessário: a) que se trate de uma declaração recipienda b) que ela manifeste uma intenção inequívoca da celebração de um certo contrato; c) que contenha, pelo menos, os elementos essenciais específicos do contrato a celebrar, d) que revista a forma legal para a validade do contrato.
II - Se uma entidade bancária comunicar ao administrador de uma insolvência que está receptiva a autorizar o cancelamento das hipotecas que incidem sobre determinadas fracções autónomas, objeto de contratos-promessa celebrados pelo insolvente, que identifica, mediante certa contrapartida, e nas quais incluiu uma fração que já é sua propriedade, por a haver adquirido em execução fiscal, e o administrador comunicar a todos os promitentes compradores que a entidade bancária manifesta «a intenção de proceder ao cumprimento dos contratos de promessa dos credores que invocaram o direito de retenção com o respetivo cancelamento das hipotecas», tal situação não configura, por parte da entidade bancária, uma proposta de promessa de venda quanto a essa sua fracção, dirigida aos promitentes compradores da mesma.
III - A ampliação da matéria de facto, levada a efeito, oficiosamente, pela Relação nos termos do disposto no art.º 662.ºn.º 2 c) do CPC, não pode constituir violação do princípio do contraditório, pois as provas em que a Relação se baseou para proceder à ampliação da matéria de facto foram sujeitas a esse contraditório, já que produzidas em audiência de julgamento. Tão pouco constitui uma decisão surpresa já que incide sobre facto alegado pela parte.
IV - A Autora, nas circunstâncias do caso concreto analisado, incorre em manifesto abuso de direito ao peticionar uma indemnização por danos causados em consequência da demora na entrega da fracção autónoma em discussão, pois que excede manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico do direito que invoca.
V - Através da responsabilidade pré-contratual tutela-se a confiança de cada uma das partes. fundada em que a outra conduza as negociações segundo a boa-fé; e, por conseguinte, as legítimas expectativas que a mesma lhe crie, não só quanto à validade e eficácia do negócio, mas também quanto à sua futura celebração.
VI - O dano a ser ressarcido ao abrigo do art.º 227.º do C.C. é o resultante do interesse contratual negativo, ou seja, deve colocar-se o lesado na situação em que estaria, se não tivesse chegado a depositar uma confiança, afinal frustrada, na celebração de um contrato válido e eficaz.

Texto Integral


Acordam na 7.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I - RELATÓRIO

CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS S.A moveu acção declarativa de condenação contra:

AA e mulher

BB, todos melhor identificados nos autos, pedindo a condenação destes na entrega de uma fracção autónoma que lhe pertence, bem como no pagamento de uma indemnização em consequência da demora nessa entrega, equivalente ao valor que obteria se a fração estivesse colocada no mercado de arrendamento, desde a citação até ao momento da sua entrega.

Alegou para tanto, em síntese, que a propriedade do imóvel se encontra inscrita a seu favor, por lhe ter sido adjudicada no âmbito de uma execução fiscal, em que foi executado CC. Após a referida aquisição foram encetadas negociações entre a Autora e os ora Réus, tendo em vista a aquisição por estes do imóvel dos autos, as quais, porém, não foram bem sucedidas.

A referida fracção encontra-se, assim, ocupada pelos Réus contra a vontade da Autora.

Os Réus contestaram e deduziram reconvenção alegando que existe uma promessa de venda do dito imóvel por parte da Autora para com os Réus e, face ao incumprimento dessa promessa, pediram que o tribunal se substituísse à Autora e declarasse a transmissão da titularidade do direito de propriedade da fração da Autora para os Réus, improcedendo a acção.

Subsidiariamente, para o caso de se entender pela improcedência destes pedidos, pedem que a Autora seja condenada a indemnizar os Réus no montante de € 65.476.00, por violação do princípio da boa-fé, ínsito no artigo 227º do Código Civil, acrescida dos juros legais contados desde a notificação para replicar até integral pagamento.

Na 1.ª instância foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

«A) Julgar a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, consequentemente, declarar a sociedade “CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS S.A.”, titular do direito de propriedade sobre a fração autónoma, designada pela letra “L”, destinada a habitação, correspondente ao Rés do Chão Esquerdo, com o aparcamento n.º 62, do prédio urbano, sito nas ..., inscrita na respetiva matriz sob o art.º 1639.º (…);

B) Absolver AA e mulher, BB, do mais peticionado pela “CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS S.A.”;

C) Julgar procedente, por provado, o pedido reconvencional deduzido por AA e mulher, BB e, consequentemente, determinar a transmissão para a titularidade destes do direito de propriedade referido em A), mediante o pagamento à “CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS S.A.”, da quantia de €21.882,00 (vinte e um mil oitocentos e oitenta e dois euros), a depositar à ordem dos autos, no prazo de 10 (dez) dias, a contar do trânsito em julgado, com junção ao processo do respetivo comprovativo em igual prazo;

D) Condenar a “CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS S.A.” no reconhecimento da titularidade, pelos Réus, do direito de propriedade cuja transmissão foi determinada em C), devendo, em consequência, entregar aos mesmos a fração autónoma identificada em A), no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença, livre e devoluta de pessoas e de bens;

E) Condenar a “CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS S.A.” no pagamento das custas inerentes ao presente processo, por às mesmas ter dado causa (cfr. art.º 527.º, do Cód.Proc.Civil).»

Inconformada com esta decisão, a CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS SA interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra que julgou o recurso procedente, revogou parcialmente a sentença recorrida e, por consequência:

1 - Condenou os Réus a entregar à Autora a fração «L», melhor identificada nos factos provados, livre de pessoas e coisas.

2 - Julgou o pedido reconvencional improcedente e absolveu a Autora do mesmo.

3 - Julgou procedente o pedido de ampliação da matéria de facto nos termos que ficaram expostos no acórdão;

4 - Condenou os Réus a pagar à Autora a quantia que se apurar em posterior liquidação, até ao limite do pedido, a título de valor locativo da fração (renda), desde a citação dos Réus até à entrega do imóvel.

5 - No mais, manteve a decisão recorrida.

Inconformados, desta vez os Réus, vêm interpor recurso de REVISTA para este STJ, formulando as seguintes conclusões:

«1 - A declaração negocial vale com o sentido que um declaratório normal, colocado na posição de real declaratório, possa deduzir do comportamento do declarante (artigo 236º do C.C.), prevalecendo nos negócios gratuitos o menos oneroso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir a um maior equilíbrio das prestações (artigo 237º do C.C).

2 - Na interpretação de uma declaração negocial no âmbito de uma situação de vida complexa desde logo no que se refere aos intervenientes envolvidos (diversos incluindo a entidade bancária, administrador de insolvência, credores da insolvência) às matérias em discussão já em inúmeros de processos judiciais entre essas partes e às possíveis e imprevisíveis consequências e decisões jurídicas e financeiras, não pode ter-se em atenção apenas e tão-somente uma interpretação do sentido literal de uma comunicação mas, aliás como é invocado no douto acórdão sobre recurso, também a realidade histórica do caso, a lógica e regras da experiência e a presunção de boa fé da proposta, no sentido de ser interpretada como conduzindo a um equilíbrio maior ou menor de prestações.

3 - Neste enquadramento, a comunicação da autora referida e reproduzida no ponto 17 dos factos provados não pode ser interpretada e compreendida sem a conjugar com a realidade histórica envolvente e os princípios referidos. Com efeito,

4 - Interpretada de forma isolada e no seu sentido literal, resulta da mesma que as suas consequências seriam:

- o promitente-comprador obrigava-se a pagar à autora o preço em falta (descontando o sinal já pago) constante do contrato promessa.

-a autora autorizava o cancelamento das hipotecas.

5 - Com o que a autora tinha benefício patrimonial, recebendo os valores dos preços remanescentes em falta a pagar pelos promitentes compradores, mas os promitentes compradores não tinham qualquer benefício direto, para compensar a prestação/obrigação proposta de pagamento do remanescente do preço em falta.

6 - Partindo do inequívoco pressuposto que essa comunicação e proposta está imbuída de boa fé, é manifesto na perspetiva de qualquer declaratório normal, medianamente instruído, diligente e sagaz, que a mesma encerra em si de forma implícita ou mesmo “expressamente implícita”, a contrapartida da transmissão da propriedade do bem constante do contrato promessa para os promitentes compradores,

7 - não podendo sequer colocar-se a hipótese de um declaratório normal a interpretar de outra forma porquanto se não fosse na base dessa contrapartida tal proposta não teria qualquer sentido, equilíbrio de prestações e racionalidade e boa fé. Aliás,

8 - Propondo-se a autora/recorrente, assumir-se como credora dos preços remanescentes a pagar em contrato-promessa e por imóveis que identifica, a conclusão e interpretação normal, lógica e racional do declaratório é a de que a mesma autora/recorrente assume por si e para si ou terceiros as correspondentes obrigações igualmente emergentes dos contratos promessa, em especial a principal que é a transmissão da propriedade do bem para os promitentes compradores, que pagaram o seu preço.

9 - Estando incluído no rol dos contratos promessa e bens uma fração autónoma que a autora/recorrente já havia adquirido anteriormente em execução fiscal por € 73.500.00, quando o valor remanescente a pagar no contrato promessa era de €21.822.00, esta proposta e interpretação dos réus e demais destinatário e julgador não deixa de ser racional tendo presente a realidade histórica, nomeadamente a dada como provada nos pontos 13, 15 e 22, porquanto à data da comunicação os réus tinham pendente impugnação de lista de credores onde reclamavam o crédito sobre a fração em causa de €130.936,60, cujas consequências jurídicas, em caso de procedência, levariam a que a autora/recorrente não viesse a receber de volta a quase totalidade do preço da compra que efetuou, como resulta do teor do documento nº 21 junto á P.I., nem o remanescente do preço a pagar no contrato promessa em que os réus foram outorgantes relativamente à fração “L”,

10 - com que tinha comprovado beneficio imediato e sem risco (mais vale um pássaro na mão do que dois a voar como resulta de avisado adágio popular),

11 - pelo que os réus tinham todas as razões para interpretar a comunicação da autora -ponto 17 dos factos provados - nos termos supra referidos.

12 - Acresce que, a credibilizar e fundar ainda mais esta interpretação dos réus, tendo a autora adquirido na execução fiscal (doc.21- junto à P.I.) duas frações autónomas, do rol constante da comunicação da autora reproduzido no ponto 17 dos factos provados não consta a outra fração, “Q”, relativamente à qual o respetivo promitente comprador não invocou no processo de insolvência o direito de retenção,

13 - nem se pode invocar ou admitir o argumento de que a autora incluiu na sua comunicação a fração “L” por erro ou lapso, o qual era cognoscível , nomeadamente para os réus, atenta à realidade histórica, desde logo porque a realidade histórica supra referida leva precisamente à conclusão contrária.

14 - Que assim se formou a convicção dos réus nomeadamente quanto às contrapartidas ou vantagens para a autora da sua proposta resulta da segunda parte do teor do doc. nº 13 junto à contestação, dado por reproduzido no ponto 19 dos factos provados, onde os réus lembram que correm termos diversos processos judiciais e que o acordo implicaria a cessação destes processos,

15 - e tendo sido manifestamente com este sentido e alcance que o senhor administrador de insolvência interpretou a comunicação da autora, tendo os réus assim interpretado a comunicação da autora e tendo posteriormente o próprio Tribunal de primeira instância assim interpretado essa mesma comunicação, de forma alguma se pode afirmar e aceitar que tal erro era cognoscível, muito menos que a interpretação dos réus tenha sido formada “… com base numa interpretação própria, subjetiva, que servia os seus interesses, mas que não se sustentava na realidade histórica que eles conheciam.” ,

16 - quando muito aceitar uma situação de dúvida, que não foi sanada por qualquer meio de prova e que, assim, deverá levar à conclusão da inexistência de qualquer erro atento o facto de incumbir à autora a prova de que essa inclusão da fração “L” na sua comunicação foi um erro e sobre a existência do mesmo não ter produzido qualquer prova. Depois,

17 - tendo o senhor administrador de insolvência interpretado a comunicação da autora nos termos que constam na comunicação dada como reproduzida no ponto 16 dos factos provados, nunca, em momento, articulado processual, ofício extraprocessual ou lugar algum, até hoje, a autora alegou e muito menos provou que o teor do ofício ou comunicação do Sr. Administrador de insolvência de 5 de setembro de 2011, no que corresponde à sua interpretação, não correspondesse à verdade e sua vontade ou contivesse qualquer erro de interpretação, e seria curial e adequado que o tivesse feito se assim fosse,

18 - sendo que se imporia que tal viesse a ocorrer de acordo com os ditames da boa fé, e não tendo ocorrido sendo curial que se venha a concluir pela veracidade da imputação de vontade que consta dessa comunicação do senhor administrador da insolvência aos réus.

19 - Conclui-se, assim, que a comunicação da autora dada por reproduzida no ponto 17 dos factos provados, interpretada e comunicada aos réus pelo senhor administrador de insolvência nos termos dados por reproduzidos no ponto 16 dos factos provados e conforme ponto 18 dos factos provados, que teve a aceitação dos réus nos termos dados por reproduzidos no ponto 19 dos factos provados, configura por parte da autora e no enquadramento e com a interpretação supra referidos, uma proposta de promessa de venda da fração “L” quanto a essa fração, dirigida aos réus, promitentes compradores no contrato promessa que está na base de todo este processo e dos demais processos referidos nos pontos 12 a 19, 21 e 22 dos factos provados,

20 - que legitima o recurso à execução especifica em caso de incumprimento, tal como doutamente decidido em primeira instância, implicando assim que seja julgada improcedente a ação e procedente a reconvenção nos precisos termos da douta sentença de primeira instância e como tal devendo ser julgado procedente o presente recurso de revista e revogado o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra objeto dos autos, repristinando-se a douta sentença de primeira instância.

21 - Conforme resulta do disposto nos pontos 23 e 24 dos factos provados a licença de utilização na fração “L” foi solicitada, obtida e custeada pelos réus e em nome do réu marido contra tudo o que é a lógica processual normal, porque resultou das comunicações referidas em 23 os factos provados a admissão por parte da autora de concretização do contrato promessa referido nas conclusões anteriores desde que existisse licença de utilização,

22 - pelo que a recusa da autora em cumprir a sua promessa e até em, com base na licença de utilização que induziu os réus a tirar na base dessa promessa, peticionar indemnização por rendas quando nunca poderia peticionar sem essa licença, constitui em todo o circunstancialismo de facto descrito nos factos provados e neste recurso, manifesto abuso de direito, devendo levar igualmente e por esta razão à reposição da douta sentença de primeira instância com improcedência da ação e procedência da reconvenção.

23 - A ampliação da matéria de facto dada como provada com o aditamento do facto “«A fração “L” é suscetível de ser arrendada por certa quantia monetária mensal».” sem que tal aditamento tenha sido objeto do recurso da autora, oficiosamente, sem que aos réus tenha sido dada a oportunidade de contraditório e com relevo decisivo para uma condenação dos réus, sem que tenha sido produzida prova idónea e ainda para mais sem possibilidade de recurso desta decisão para o STJ, constitui uma decisão surpresa, nula por excesso de pronúncia (artigo 615º nº1 al. d) do CPC), como tal devendo ser declarada.

Foram violados, entre outros os artigos 236º, 237º, 334º, 350º, 410º e 830º, todos do Código Civil e 3º nº 3, 662º nº1 e 2, 635 nºs 3 e 4 e 639º todos do CPC.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra e confirmando-se a douta sentença de primeira instância, assim fazendo vossas Excelências e a costumada justiça.»


*


A Recorrida CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS SA apresentou contra alegações nas quais pugna pela improcedência do recurso e consequente confirmação do acórdão recorrido.

II - OS FACTOS

Vêm provados das instâncias, os seguintes factos:

1 - Mostra-se inscrito a favor de Caixa Geral e Depósitos S.A., NIPC .......46, com sede na Av. ..., em ..., na Conservatória do Registo Predial de ..., pela Ap. ..25, de 2010/05/27, o direito de propriedade sobre a fração autónoma, designada pela letra «L», destinada a habitação, correspondente ao Rés do Chão Esquerdo, do prédio urbano, sito nas ..., inscrita na respetiva matriz sob o art.º 1639.º e descrita na referida Conservatória sob o n.º ..19/......11-L.

2 - A inscrição favor de Caixa Geral e Depósitos S.A., da fração autónoma identificada em «1-», teve como causa uma adjudicação, do dia 7.04.2010, em execução fiscal, onde foi executado CC.

2/A - No momento da inscrição da fração «L» a favor de Caixa Geral e Depósitos S.A., não existiam ónus e encargos registados ou pendentes sobre o prédio.

3 - Até à adjudicação referida em «2-», o direito de propriedade sobre a fração autónoma identificada em «1-» mostrava-se inscrito a favor de CC.

4 - No dia 7.07.2003, CC, na qualidade de proprietário, e a sociedade C..., Lda, na qualidade de sociedade construtora e DD, na qualidade de garante, declararam, por escrito, sob a denominação de “Contrato Promessa”, o constante do doc. n.º 1, junto com a contestação (fls. 45 a 48), cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido;

5 - No dia 16.07.2003, a sociedade C..., Lda., na qualidade de promotora de edificação e promitente vendedora e AA, na qualidade de promitente comprador, declararam, por escrito, sob a denominação de “Contrato de Compra e Venda”, o constante do doc. n.º 2, junto com a contestação (fls. 48v. a 49v.), cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido;

6 - O denominado “apartamento A2” com “aparcamento n.º 62” no acordo escrito referido em «5-», corresponde à fração autónoma identificada em «1-».

7 - Em cumprimento do acordo referido em «5-», AA entregou à sociedade C..., Lda, as quantias de € 21.823,00 (vinte e um mil oitocentos e vinte e três euros) no dia 17.07.2002; € 21.822,50 (vinte e um mil oitocentos e vinte e dois euros e cinquenta cêntimos) no dia 19.09.2002; e € 21.822,80 (vinte e um mil oitocentos e vinte e dois euros e oitenta cêntimos) no dia 13.04.2004;

8 - Como acordado por AA e a sociedade C..., Lda., no dia da escritura de compra e venda aquele deveria entregar a esta a quantia de €21.822,00 (vinte e um mil oitocentos e vinte e dois euros);

9 - A escritura referida em «8-» não foi celebrada, assim como não foi paga a importância de €21.882,00 (vinte e um mil oitocentos e oitenta e dois euros).

10 - AA e mulher, BB, passaram a viver na fração identificada em «1-», em data anterior à referida em «2-», tendo, para tal fim, formalizado contratos de fornecimento de água e de eletricidade.

11 - A sociedade C..., Lda, não concluiu a construção a que se obrigara no acordo escrito referido em «4-».

12 - CC foi declarado insolvente por sentença proferida no âmbito do processo n.º 21/10.5..., do Tribunal Judicial de ....

13 - No processo referido em «12-», AA e mulher, BB reclamaram o crédito de €130.936,60 (cento e trinta mil novecentos e trinta e seis euros e sessenta cêntimos) e invocaram o direito de retenção sobre a fração autónoma identificada em «1-»

14 - No processo referido em «12-», o Sr. Administrador da Insolvência não reconheceu o crédito referido em «13».

15 - No dia 16.08.2010 AA e mulher, BB deduziram no processo referido em «12-» impugnação à lista de credores reconhecidos pelo Sr. Administrador de Insolvência;

16 - No dia 5.09.2011 Caixa Geral e Depósitos S.A., na qualidade de credor hipotecário do prédio identificado em «1-», remeteu ao Sr. Administrador da Insolvência referida em «12» a comunicação junta como Doc. n.º 12, da contestação (fls. 76v), com este teor:

«Ex.mo Senhor

Dr. EE

Ilustre Administrador da Insolvência

Assunto: Proc. n.º 21/10.5...Tribunal Judicial de ...

Executado: CC

Ex.mo Sr. Doutor

Vimos pelo presente meio informar V. Exa. que a Caixa Geral de Depósitos, S. A., se encontra receptiva a autorizar o cancelamento das hipotecas que incidem sobre as seguintes fracções apreendidas – BD, U, BF, T, BR, AI, AQ, Bj, CC, AA, AT, BM, BL, AS, C, Z, AB, AP, D, BO, N, BT, BN, AM, BU, BC, AO, AJ, V, AD, BS, BA, BH, R, CB, L, AL, BI, AU, NA, BV, F, AX, CA, S, B, M, CB, BP, BG, X, A, J, E, G, (todas da descrição ..., ...) – desde que esta Caixa receba no mínimo os valores correspondentes à diferença entre os preços convencionados e os sinais entregues ao promitente vendedor, com exclusão das benfeitorias.

Consequentemente, requer-se a V. Exa. se digne diligenciar junto dos promitentes-compradores em causa no sentido de averiguar da disponibilidade dos mesmos, para a proposta desta Caixa. Solicita-se, ainda, se digne não promover, para já, qualquer venda das frações em causa (…)» (1)

17 - No dia 5.09.2011 o Sr. Administrador da Insolvência referida em «12-», remeteu a AA e mulher BB, na pessoa do seu ilustre mandatário, a comunicação junta como Doc. n.º 11, da contestação (fls. 76), com o seguinte teor:

«EE (…), administrador de insolvência, (…) vem enviar a V. Exa., na qualidade de mandatário de credor que invocou direito de retenção, posição da CGD manifestando a intenção de proceder ao cumprimento dos contratos de promessa dos credores que invocaram o direito de retenção com o respetivo cancelamento das hipotecas (caso receba no mínimo valores correspondentes à diferença entre os preços convencionados e sinais entregues – com exclusão de benfeitorias):

Das frações indicadas pela CGD, em anexo, encontram-se incluídos os credores que invocaram os direitos de retenção de contrato promessa celebrado com a firma “C..., Lda” (…).

Fica V. Exa. notificado na qualidade de mandatário dos credores que invocaram direitos de retenção, para até dia 25/09/2011, se pronunciar sobre a proposta apresentada pela CGD para cumprimento dos contratos-promessa celebrados com o pagamento do valor da diferença entre os preços acordados e os sinais entregues pelos promitentes compradores (…).»

18 - A comunicação do Sr. Administrador da Insolvência referida em «17-», assentou na comunicação que lhe foi remetida pela Caixa Geral e Depósitos S.A., referida em «16-».

19 - No dia 9.09.2011 AA e mulher, BB, por intermédio do seu ilustre mandatário, remeteram ao Sr. Administrador da Insolvência e ao ilustre mandatário da Caixa Geral de Depósitos S.A., as comunicações juntas como Docs. n.º 13, da contestação (fls. 77 e 77v.), com este teor:

● «De AA

BB (…)

Aos (…)

«Assunto: Aquisição da fracção L (R/C esquerdo) do prédio (…)

Em resposta ao teor da proposta apresentada pela CGD, (…), vimos por este meio confirmar que estamos dispostos a aceitar as condições de compra da fracção “L” e correspondente aparcamento 62 agora apresentadas pela CGD, ou seja, o pagamento no acto da escritura, contra o expurgo das hipotecas e livre de quaisquer ónus, encargos e responsabilidades, da quantia de €21.882,00.

Esta quantia corresponde ao diferencial entre o valor total de compra de €87.290,00 constante do contrato promessa de compra e venda, e a quantia de €65.467,00 já paga até à data, não levando em conta ou deduzindo qualquer valor a título de benfeitorias. (…).»

20 - No dia 9.01.2012 a Caixa Geral e Depósitos S.A., remeteu a AA e mulher, BB a comunicação junta como Doc. n.º 14, da contestação (fls. 78), com o seguinte teor:

« (…)

Assunto: N/ Proc. UL 2010559 – Manifestação de interesse na aquisição da fracção autónoma designada pela letra “L” (…).

Acusamos a recepção da carta de V. Exa. (…)

Na sequência do mesmo (…) vimos pela presente informar que admite-se submeter à apreciação superior a venda do mesmo nas seguintes condições:

Preço de referência - €110.000.00 (cento e dez mil euros);

Sinal no montante de (…);

Restante com a outorga (…)

Com obtenção de Licença de Utilização a cargo do comprador.

A presente proposta é válida até 20 de janeiro de 2012 (…)

Salientamos que, caso não estar interessado em comprar os imóveis nos moldes explicitados, deverá proceder à desocupação do mesmo, devendo este ficar livre e devoluto de pessoa e bens e proceder à consequente entrega das respetivas chaves, na Agência (…)»

21 - No dia 19.03.2012 pela Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante ATA) foi remetida a AA a comunicação junta como Doc. n.º 15, da contestação (fls. 79), com este conteúdo:

«(…) Processo execução n.º ..............93 e apenso

Exmo. Sr.

Fica por este meio notificado, na qualidade e possuidor do prédio urbano – fracção autónoma designada pela letra “L”, (…), que após venda judicial por meios de proposta em carta fechada, foi o mesmo adjudicado.

Assim sendo, fica igualmente notificado para no prazo de 10 (dez) dias proceder à entrega da chave do referido imóvel junto deste serviço de Finanças, sob pena de não o fazendo (…)»

22 - No dia 5.04.2013, foi proferida decisão no processo referido em «12-» que julgou improcedente a impugnação à lista de credores apresentada por AA;

23 - Entre os dias 23.04.2013 e 13.11.2013 o ilustre mandatário de AA e mulher, BB e o ilustre mandatário da Caixa Geral e Depósitos S.A., realizaram as comunicações descritas no Doc. n.º 17, da contestação (fls. 80v.), cujo conteúdo é o seguinte:

● «(…) 13 de novembro de 2013 (…)

Exmo. Sr. FF

Na sequência dos contatos anteriores e como me comprometi, deverei ter a licença de utilização da fracção de meu cliente (L) da Sexta-feira, dia 15, dado hoje ter sido realizada vistoria (…)»

●«From: FF

(…) April 24, 2013 (…)

Dr. GG: Eu atrever-me-ei a sugerir atuação da Caixa no sentido de vender o andar ao seu cliente pelo preço remanescente, mas só quando tal venda for possível. FF.»

24 - Na sequência das comunicações referidas em «23-», AA solicitou junto da Câmara Municipal de ..., a emissão de Alvará de Utilização para a fração autónoma identificada em «1-»;

25 - Por decisão de 14.11.2013 foi emitido o Alvará de Utilização n.º 86/2013 para a fração autónoma identificada em «1-».

26 - Na sequência da comunicação descrita no Doc. n.ºs 19 (fls. 81v. e 82), da contestação, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, a Caixa Geral de Depósitos S.A. dirigiu a AA a comunicação descrita no Doc. n.º 20, da contestação (fls. 84.), cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;

27 - Entre os dias 12.05.2020 e 22.06.2020 o ilustre mandatário AA e mulher, BB e a Caixa Geral e Depósitos S.A., realizaram as comunicações descritas no Doc. n.º 10 e 11, da Petição Inicial (fls. 27 a 29v..), cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;

Foi aditado pelo acórdão recorrido o seguinte facto:

A fração “L” é suscetível de ser arrendada por certa quantia monetária mensal.


*


Foi dado como “não provado” o seguinte:

“Que o valor locativo da fração “L” seja de 485,00 euros mensais.”

III - O DIREITO

Corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art.º 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art.º 679º, todos do CPC).

As questões a apreciar são as seguintes:

1 - Saber se existe uma promessa de venda do imóvel por parte da Autora aos Réus, qual o conteúdo dessa promessa e um eventual incumprimento pela Autora do acordado, com a consequente condenação desta no reconhecimento da transmissão da titularidade do direito de propriedade para os Réus.

2 - Nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art.º 615 n.º 1 alínea d) do CPC)

3 - Abuso de direito por parte da Autora

4 - Responsabilidade pré-contratual

1 - Antes de entrar na análise da questão que constitui o cerne do litígio a resolver nestes autos, importa focarmo-nos no enquadramento fáctico subjacente:

Como resulta da factualidade dada como assente, o presente litígio tem origem no contrato promessa de compra e venda outorgado, em 17-07-2003, entre os Réus e a sociedade C..., Lda tendo por objecto a fracção autónoma aqui em discussão (Cfr. factos provados números 4-6).

Por conta do preço acordado, os Réus pagaram a quantia total de €65.468,30, ficando por pagar a quantia de €21.822,00 que, de acordo com o contrato promessa, deveria ser paga na data da realização da escritura de compra e venda. (vide factos n.º 7 e 8).

A escritura nunca chegou a ser realizada. Entretanto, CC, proprietário do lote onde a C..., Lda se propôs construir um empreendimento imobiliário, foi declarado insolvente, por sentença proferida no âmbito do processo n.º 21/10.5....Neste processo, os ora Réus vieram a reclamar o crédito de €130.936,60 (relativo ao incumprimento do contrato promessa) e invocaram o direito de retenção sobre a fracção autónoma prometida vender que os Réus passaram a habitar. Porém, o Sr. Administrador da Insolvência não reconheceu o crédito referido. (vide factos 12.º, 13.º, e 14.º).2

Entretanto, em 07-04-2010, no âmbito de uma execução fiscal instaurada contra o referido CC, a fracção prometida vender aos Réus foi adjudicada à Caixa Geral de Depósitos, SA que passou a ser a proprietária do imóvel. (factos 1 e 2)

Sucede que, em 05-09-2011, a Caixa Geral de Depósitos, na qualidade de credor hipotecário do prédio no qual se insere a fracção autónoma aqui em discussão nos autos, remeteu ao Administrador de Insolvência a comunicação com o teor seguinte e que consta do ponto 16 dos factos provados:

«Vimos pelo presente meio informar V. Exa. que a Caixa Geral de Depósitos, S. A., se encontra receptiva a autorizar o cancelamento das hipotecas que incidem sobre as seguintes fracções apreendidas – BD, U, BF, T, BR, AI, AQ, Bj, CC, AA, AT, BM, BL, AS, C, Z, AB, AP, D, BO, N, BT, BN, AM, BU, BC, AO, AJ, V, AD, BS, BA, BH, R, CB, L, AL, BI, AU, NA, BV, F, AX, CA, S, B, M, CB, BP, BG, X, A, J, E, G, (todas da descrição ..., ...) – desde que esta Caixa receba no mínimo os valores correspondentes à diferença entre os preços convencionados e os sinais entregues ao promitente vendedor, com exclusão das benfeitorias.

Consequentemente, requer-se a V. Exa. se digne diligenciar junto dos promitentes-compradores em causa no sentido de averiguar da disponibilidade dos mesmos, para a proposta desta Caixa. Solicita-se, ainda, se digne não promover, para já, qualquer venda das frações em causa (…)»

E dando cumprimento a essa solicitação da Caixa Geral de Depósitos, o Administrador de Insolvência remeteu, no dia 05-09-2011, aos Réus, na pessoa do seu Mandatário, a comunicação com o seguinte teor:

EE (…), administrador de insolvência, (…) vem enviar a V. Exa., na qualidade de mandatário de credor que invocou direito de retenção, posição da CGD manifestando a intenção de proceder ao cumprimento dos contratos de promessa dos credores que invocaram o direito de retenção com o respetivo cancelamento das hipotecas (caso receba no mínimo valores correspondentes à diferença entre os preços convencionados e sinais entregues – com exclusão de benfeitorias):

Das frações indicadas pela CGD, em anexo, encontram-se incluídos os credores que invocaram os direitos de retenção de contrato promessa celebrado com a firma “C..., Lda” (…).

Fica V. Exa. notificado na qualidade de mandatário dos credores que invocaram direitos de retenção, para até dia 25/09/2011, se pronunciar sobre a proposta apresentada pela CGD para cumprimento dos contratos-promessa celebrados com o pagamento do valor da diferença entre os preços acordados e os sinais entregues pelos promitentes compradores (…)

E, assim, chegámos ao nó górdio da questão:

Qual o significado e valor jurídico daquela proposta realizada pela Caixa Geral de Depósitos? Poderemos interpretar aquela comunicação no sentido defendido pelos Recorrentes, ou seja, que “(…) na perspectiva de qualquer declaratário normal, medianamente instruído, diligente e sagaz, [que] a mesma encerra de forma implícita ou mesmo «expressamente implícita», a contrapartida da transmissão da propriedade do bem constante do contrato promessa para os promitentes compradores”?

Será que podemos concluir, como concluem os Recorrentes na conclusão 8.ª, no sentido de que «propondo-se a autora assumir-se como credora dos preços remanescentes a pagar em contrato-promessa e por imóveis que identifica, a conclusão e interpretação normal, lógica e racional do declaratório é a de que a mesma autora assume por si e para si ou terceiros as correspondentes obrigações igualmente emergentes dos contratos promessa, em especial a principal que é a transmissão da propriedade do bem para os promitentes compradores, que pagaram o seu preço»?

Na verdade, a primeira instância acolheu este entendimento, dando razão aos aqui recorrentes, dizendo:

“(…) em face do conteúdo dos doc. n.º 11 e 12,juntos à contestação, entende-se que, de facto, a CGD apresentou ao Réu uma proposta contratual, a qual não pode ter qualquer outro sentido lógico senão o que lhe foi dado pelo Sr. AI e devidamente comunicado ao Réu e por este em consonância interpretado”.

Será assim?

Desde logo, desta afirmação do Tribunal de 1.ª instância já se divisa a distinção entre aquilo que foi comunicado pela CGD e a comunicação que foi feita pelo Administrador de Insolvência que não se limitou a comunicar o teor da proposta da CGD, mas elaborou, desde logo, a sua interpretação dessa mesma proposta.

Com efeito, a CGD informou que estava receptiva a “ (…) a autorizar o cancelamento das hipotecas que incidem sobre as seguintes fracções apreendidas – BD, U, BF, T, BR, AI, AQ, Bj, CC, AA, AT, BM, BL, AS, C, Z, AB, AP, D, BO, N, BT, BN, AM, BU, BC, AO, AJ, V, AD, BS, BA, BH, R, CB, L, AL, BI, AU, NA, BV, F, AX, CA, S, B, M, CB, BP, BG, X, A, J, E, G, (todas da descrição ..., ...) – desde que esta Caixa receba no mínimo os valores correspondentes à diferença entre os preços convencionados e os sinais entregues ao promitente vendedor, com exclusão das benfeitorias.”

A CGD apenas falou em “cancelamento das hipotecas”, sendo o Administrador de insolvência quem comunicou aos Réus que aquela entidade teria manifestado “a intenção de proceder ao cumprimento dos contratos de promessa dos credores que invocaram o direito de retenção com o respetivo cancelamento das hipotecas”.

Contudo, tal demonstra, desde já, que foi essa a interpretação feita pelo Administrador de Insolvência relativamente à proposta da CGD, interpretação que coincide com aquela que foi feita pelos Réus, de tal modo que estes responderam afirmativamente à proposta, como consta do ponto 19 dos factos provados, comunicando, em 09-09-2011, o seguinte:

Em resposta ao teor da proposta apresentada pela CGD, (…), vimos por este meio confirmar que estamos dispostos a aceitar as condições de compra da fracção “L3 e correspondente aparcamento 62 agora apresentadas pela CGD, ou seja, o pagamento no acto da escritura, contra o expurgo das hipotecas e livre de quaisquer ónus, encargos e responsabilidades, da quantia de €21.882,00.

Esta quantia corresponde ao diferencial entre o valor total de compra de €87.290,00 constante do contrato promessa de compra e venda, e a quantia de €65.467,00 já paga até à data, não levando em conta ou deduzindo qualquer valor a título de benfeitorias.”

Não obstante esta resposta, em 9 de janeiro de 2012, a Caixa Geral de Depósitos remeteu nova carta aos Réus por meio da qual comunicou que admitia proceder à venda do imóvel, mas pelo preço de € 110.000,00 devendo ainda ficar a cargo dos compradores a obtenção da licença de utilização. Os Réus efectivamente diligenciaram pela obtenção da licença de utilização da fracção que foi emitida em 14-11-2013 (vide facto 25.º).

Desta sequência de factos, cremos poder concluir que, subjacente à proposta da CGD, comunicada em 05 de setembro de 2011, estava a intenção não só de efectivamente autorizar o cancelamento das hipotecas que incidiam sobre as fracções apreendidas, mas encontrar uma solução integrada que contemplasse os interesses de todas as partes envolvidas. Por um lado, a CGD conseguiria reaver, pelo menos parcialmente, o valor com que tinha financiado o empreendimento imobiliário. Por outro lado, os promitentes compradores das fracções apreendidas para a massa falida, apenas aceitariam pagar o restante preço dessas fracções, mediante a contrapartida de adquirirem a respectiva propriedade. Porém, como é evidente, essa solução integrada teria de ser encontrada no âmbito da insolvência, pois a CGD não poderia manifestar “a intenção de proceder ao cumprimento dos contratos de promessa”, dado que não era a promitente vendedora, mas sim a credora hipotecária. Por conseguinte, é neste contexto que a proposta da CGD terá de entender-se, no sentido de viabilizar a transmissão da propriedade das fracções para os respectivos promitentes vendedores, desde que estivessem disponíveis para pagar à CGD a parte que faltava do preço acordado com a promitente vendedora.

Só desse modo os promitentes compradores iriam aceitar pagar o restante preço de um imóvel, na situação de apreendido para a massa insolvente. E assim se compreende, igualmente, o motivo pelo qual a CGD solicitava ao Senhor Administrador de Insolvência que não promovesse “para já, qualquer venda das fracções em causa”.

Porém, não podemos deixar de observar que, em 05-09-2011, data do envio da comunicação ao Administrador de Insolvência, a CGD era proprietária da fração “L” em questão nestes autos, pelo que, no que a esta respeita, não fazia sentido equacionar a possibilidade de cancelamento de qualquer hipoteca, até porque a mesma havia sido adquirida em execução fiscal e, por isso, livre de ónus e encargos. Por isso, também não poderia a mesma ser objeto de venda pelo Senhor Administrador de Insolvência, pelo que igualmente, quanto a esta, não fazia sentido a parte final da comunicação em que se lê: “Solicita-se, ainda, se digne não promover, para já, qualquer venda das frações em causa”.

Então, assim sendo, só podemos concluir que a inclusão da fracção L no rol de fracções mencionadas na comunicação ora em análise, só ocorreu por engano pois, claramente, em relação à fracção L, não assentava o teor da proposta constante daquela comunicação, nem o cancelamento de hipoteca que não existia, nem o pedido ao Administrador de Insolvência de não proceder à venda que, obviamente, não podia realizar.

Nestas condições, em relação à fracção L, nunca poderia interpretar-se tal comunicação como uma promessa de venda. De resto, a haver uma promessa de venda sempre a mesma teria de ser apresentada, directamente, aos compradores e não como ocorreu neste caso, por interposta pessoa, através do Administrador de insolvência.

Acompanhamos, assim, o acórdão recorrido ao considerar não existir qualquer dúvida “no sentido de que a declaração de vontade emitida pela CGD não alude a uma possível venda da fração «L», mas sim ao cancelamento da hipoteca que, segundo declarava a CGD (erradamente, porque a fração «L» já era propriedade sua), incidia sobre a dita fração.”

É certo que, nos termos do art.º 236.º do Código Civil, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.”

Porém, não nos situamos no âmbito da interpretação de uma declaração negocial, mas sim num momento prévio.

Na verdade, «para que estejamos perante uma declaração que possa ser qualificada como proposta contratual, é necessário: a) que se trate de uma declaração recipienda b) que ela manifeste uma intenção inequívoca da celebração de um certo contrato; c) que contenha, pelo menos, os elementos essenciais específicos do contrato a celebrar, salvo se, para o tipo contratual em causa, a lei dispensar algum (…) d) que revista a forma legal (ou convencional, se a houver) para a validade do contrato»4 . Ou seja, tal como refere o acórdão recorrido, existe uma proposta contratual quando, “preenchidos os requisitos formais, o mero «sim», a mera declaração de aceitação da proposta pela contraparte constitui o último ato necessário e suficiente para gerar o acordo vinculativo”.

Ora, no caso em apreço, da leitura dos termos da comunicação da CGD, resulta por demais evidente que a mesma está longe de manifestar “uma intenção inequívoca de celebrar qualquer contrato”. Tal comunicação apenas tem o objectivo de “informar” que a Caixa Geral de Depósitos, S. A., se encontra receptiva a autorizar o cancelamento das hipotecas (…)desde que esta Caixa receba no mínimo os valores correspondentes à diferença entre os preços convencionados e os sinais entregues ao promitente vendedor, com exclusão das benfeitorias. A CGD requer ainda ao Administrador de insolvência para este “diligenciar” junto dos promitentes-compradores em causa no sentido de averiguar da disponibilidade dos mesmos, para a proposta desta Caixa.”

Assim, certo que não estamos perante uma proposta contratual, a referida comunicação evidencia uma vontade de iniciar um processo negocial, a realizar no âmbito do processo de insolvência, em que a Autora se disponibiliza para viabilizar a transmissão da propriedade das fracções para os promitentes compradores, autorizando o cancelamento das hipotecas que incidem sobre as mesmas, desde que os valores correspondentes ao valor do preço, ainda por pagar por cada um deles, lhe seja pago.

Contudo, como já se referiu, este processo negocial não seria aplicável aos Réus, pois a fracção L, habitada por estes, tinha sido adquirida pela CGD, em processo de execução fiscal e já livre de ónus e encargos.

Sucede que, em 9 de janeiro de 2012, a Caixa Geral de Depósitos remeteu nova carta aos Réus por meio da qual comunicou que admitia proceder à venda do imóvel, mas pelo preço de € 110.000,00 devendo ainda ficar a cargo dos compradores a obtenção da licença de utilização.

Como realça o acórdão recorrido, verifica-se da sequência dos factos que a pretensão inicial, objetivamente manifestada pela CGD, foi apenas a de promover o cancelamento das hipotecas incidentes sobre as frações, não a de vender as frações, as quais à excepção da fração «L», não eram sua propriedade.

Só quando os Réus, influenciados pela comunicação do Sr. administrador, falam em comprar a fração é que a CGD lhes diz que admite vendê-la, mas por 110 mil euros, “desde que os Réus obtenham a licença de habitação.”

Ora, a partir deste momento é que se inicia verdadeiramente um processo negocial com vista à aquisição do imóvel pelos Réus e, em consonância com as condições exigidas pela Autora, aqueles diligenciaram pela emissão da licença de utilização, o que ocorreu em 2013.

Processo negocial que acabou por não conduzir á concretização do negócio, como resulta patente dos autos.

Contudo, de tudo o que fica exposto, impõe-se concluir que nunca chegou a constituir-se uma promessa de venda do imóvel por parte da Autora aos Réus, pelo que fica prejudicada a questão do respectivo incumprimento.

Improcedem, pois, as conclusões de recurso relativamente a esta matéria.

2 - Concluem os Recorrentes que “a ampliação da matéria de facto dada como provada com o aditamento do facto «A fração “L” é suscetível de ser arrendada por certa quantia monetária mensal» sem que tal aditamento tenha sido objeto do recurso da autora, oficiosamente, sem que aos réus tenha sido dada a oportunidade de contraditório e com relevo decisivo para uma condenação dos réus, sem que tenha sido produzida prova idónea e ainda para mais sem possibilidade de recurso desta decisão para o STJ, constitui uma decisão surpresa, nula por excesso de pronúncia (artigo 615º nº1 al. d) do CPC), como tal devendo ser declarada”.

A este propósito cumpre relembrar que a Autora formulou pedido de indemnização para ressarcimento dos danos sofridos pela ocupação ilegítima do imóvel, por parte dos Réus. Alegou nos artigos 7.º e 13.º da petição inicial que, se tivesse a posse do imóvel em causa, poderia colocá-lo no mercado de arrendamento e obter uma renda mensal de, pelo menos, € 485.000 mensais, valor do prejuízo que alegou estar a causar-lhe a não restituição do imóvel pelos réus, pedindo a condenação dos réus a pagar- lhe esse valor, desde a citação e até á efetiva entrega do imóvel.

Ora, perante esta realidade, a Relação verificou que esta factualidade era relevante para a apreciação da causa, mas não tinha sido levada, nem ao elenco dos factos provados, nem aos “não provados.”

Por isso, com base no disposto no art.º 662.º n.º 2 alínea c) , a Relação deve , mesmo oficiosamente, «c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;».

E assim, discorreu a Relação: “Como resulta desta norma, se do processo constarem já os elementos probatórios necessários, não haverá lugar à anulação porque o tribunal da Relação conhecerá da matéria. [Neste sentido, Abrantes Geraldes quando refere que «…a anulação da decisão da 1.ª instância apenas deve ser decretada se do processo não constarem todos os elementos probatórios relevantes. Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas» - Recursos em Processo Civil, Novo Regime. 2.ª Edição, Almedina 2008, pág. 296].”

Por conseguinte, a ampliação da matéria de facto, levada a efeito, oficiosamente, pela Relação tem respaldo legal no supra citado artigo 662.º do CPC pelo que não tem fundamento a alegação de uma violação do princípio do contraditório, pois as provas em que a Relação se baseou para proceder à ampliação da matéria de facto foram sujeitas a esse contraditório, já que produzidas em audiência de julgamento.

Quanto à alegação de “não ter sido produzida prova idónea”, constitui matéria de que este Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer, conforme dispõe o art.º 674.º n.º 3 do CPC.

Como é evidente, não pode constituir uma decisão surpresa a ampliação da matéria de facto, ao abrigo do disposto no art.º 662.º do CPC. Desde logo porque a lei processual civil prevê tal decisão e, por outro lado, porque como ficou referido, a mesma incidiu sobre facto alegado e sobre o qual foi produzida prova em audiência.

Improcede, pois, a invocada nulidade por excesso de pronúncia.

3 - Os Réus referem na conclusão 22.ª o seguinte:

“(…) a recusa da autora em cumprir a sua promessa e até em, com base na licença de utilização que induziu os réus a tirar na base dessa promessa, peticionar indemnização por rendas quando nunca poderia peticionar sem essa licença, constitui em todo o circunstancialismo de facto descrito nos factos provados e neste recurso, manifesto abuso de direito, devendo levar igualmente e por esta razão à reposição da douta sentença de primeira instância com improcedência da ação e procedência da reconvenção”.

Em face desta conclusão formulada pelos Réus, importa apreciar a questão de saber se, em face de todo o circunstancialismo de facto descrito, a Autora incorre em manifesto abuso de direito ao peticionar a indemnização por danos causados em consequência da demora na entrega da fracção autónoma em discussão, “equivalente ao valor que obteria se a fração estivesse colocada no mercado de arrendamento, desde a citação até ao momento da sua entrega”.

Vejamos:

Estabelece o art.º 334.º do Código Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

«Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça.

Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos.»5

“O excesso deve, no entanto, ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites.

A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável.

Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfego jurídico.”6

“Uma das modalidades do abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.”7

A proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte.

Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural.8

Pois bem, é a luz das expostas linhas definidoras desta figura jurídica tão fulcral do direito civil, que se deve apreciar se, no caso concreto, a factualidade apurada aponta para a existência de um direito que é exercido pela Autora de forma incompatível com os princípios da boa fé, colidindo com um sentido de justiça dominante na nossa sociedade.

Importa para tanto, retornar à comunicação dirigida pela Caixa Geral de Depósitos ao Administrador de Insolvência e a que se refere o ponto 16.º dos factos provados, objecto de análise no ponto 1.

Concluímos, é certo, que tal comunicação não integra uma promessa de venda por parte da CGD, apesar da interpretação que da mesma fez o Sr. Administrador da Insolvência e que suscitou a resposta dos Réus no sentido constante do ponto 19.º, pelos motivos já explanados acima. Ainda assim, concluímos também que “a referida comunicação evidencia uma vontade de iniciar um processo negocial, a realizar no âmbito do processo de insolvência, em que a Autora se disponibiliza, para viabilizar a transmissão da propriedade das fracções para os promitentes compradores, a autorizar o cancelamento das hipotecas que incidem sobre as mesmas, desde que os valores correspondentes ao valor do preço, ainda por pagar por cada um deles, lhe seja pago.”

Os ora Recorrentes reconhecem que já conheciam que a fracção “L” tinha sido adquirida pela Autora.

Porém, uma vez que tinham ainda pendente, no processo de insolvência, a sua reclamação de crédito decorrente da sua qualidade de promitentes compradores, neste contexto, pelo menos, era legítima a expectativa por parte dos Réus de que, no processo negocial que era proposto pela CGD, viessem a ter um tratamento de igualdade em relação aos demais promitentes compradores, não obstante essa diferente situação jurídica da fracção “L”, relativamente às demais.

E, por isso, à semelhança do que era proposto a todos os promitentes compradores, os Réus aceitaram pagar a quantia de € 21.882,00, remanescente do preço acordado pela compra da fracção, decorrendo desse pagamento, na sua expectativa que era a dos demais, a aquisição da propriedade da fracção.

Sucede que os Réus viriam a ser confrontados com o facto de a sua situação jurídica ser diferente dos demais promitentes compradores, pela circunstância de, quanto à sua fracção, a mesma ter passado para a titularidade da CGD. E assim, prosseguiu um longo processo negocial com vista à aquisição da fracção pelos Réus, que, pelo facto de a referida fracção, entretanto, ter sido adquirida pela Autora, determinou um fortalecimento do poder negocial da Autora em detrimento dos Réus.

E, assim, esse fortalecimento do poder negocial da Autora por um lado e o enfraquecimento do poder negocial dos Réus, por outro, conduziu a que o processo negocial tenha demorado desde pelo menos Janeiro de 2012 até 2020 (vide ponto 27.º dos factos provados).

Nas circunstâncias, o longo iter negocial mostra-se idóneo a gerar nos Réus uma legítima expectativa de conclusão do negócio, sobretudo quando a Autora fez depender essa conclusão da realização de diligências que o Réu executou, no sentido de obter documento imprescindível para a realização da escritura de compra e venda. E, efectivamente, tal como consta dos factos 24.º 25.º o Réu diligenciou e veio a obter a emissão do alvará de utilização relativo à fracção “L”. Neste contexto, é razoável a expectativa dos Réus de que, mais tarde ou mais cedo, viesse a solucionar-se a situação altamente gravosa para os Réus que consiste no facto de terem outorgado, em 2003, um contrato promessa de compra e venda de uma fracção por conta do qual pagaram 75% do preço acordado, vendo-se confrontados , em 2020, com a impossibilidade de adquirir a casa, com perda de tudo o que pagaram.

E é perante este quadro factual, considerando todo o descrito contexto e iter negocial que nos parece claramente incompatível com o sentido de justiça vigente na nossa sociedade, que perante uma posição tão desfavorável dos Réus estes tenham ainda de pagar uma indemnização à Autora pela ocupação do imóvel.

Com efeito, esta posição jurídica e económica desfavorável dos Réus radica na declaração de insolvência de CC de quem a Autora era credora hipotecária. Porém, a Autora conseguiu minimizar o impacto negativo dessa insolvência no seu crédito, uma vez que logrou reaver, pelo menos parcialmente, o valor com que tinha financiado o empreendimento imobiliário. Tal aconteceu, nalguma medida à custa dos Réus, dado que estes nada recuperaram e tudo perderam.

Não podemos, pois deixar de concluir que o comportamento da Autora ao exigir esta indemnização pela ocupação abusiva do imóvel, colide com as exigências de uma correcta actuação, frustra a confiança dos Réus de que o seu caso teria um tratamento equivalente aos dos demais promitentes compradores, conflitua com elementares regras éticas de respeito pelos direitos da contraparte e cava um profundo desequilíbrio nas posições económico-jurídicas das partes.

Respondemos, assim, afirmativamente, à questão que no início formulámos:

A Autora incorre em manifesto abuso de direito ao peticionar a indemnização por danos causados em consequência da demora na entrega da fracção autónoma em discussão, pois que excede manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico do direito que invoca.

Assim sendo, procedem nesta parte as conclusões de recurso, improcedendo o pedido de indemnização formulado pela Autora.

4 - Ainda na conclusão 22.º, os Réus referem o seguinte:

a recusa da autora em cumprir a sua promessa (…), constitui em todo o circunstancialismo de facto descrito nos factos provados e neste recurso, manifesto abuso de direito, devendo levar igualmente e por esta razão à reposição da douta sentença de primeira instância com improcedência da ação e procedência da reconvenção”.

Com efeito, os Réus deduziram pedido reconvencional, nos seguintes termos:

Subsidiariamente, para o caso de se entender pela improcedência destes pedidos, pedem que a Autora seja condenada a indemnizar os Réus no montante de € 65.476.00, por violação do princípio da boa-fé, ínsito no artigo 227º do Código Civil, acrescida dos juros legais contados desde a notificação para replicar até integral pagamento.”

A Relação veio a julgar o “pedido reconvencional improcedente”, ou seja, na totalidade dos pedidos principal e subsidiário.

Do que já ficou exposto em 1. resulta a improcedência do pedido principal reconvencional.

Importa, assim, analisar se a alegada violação do princípio da boa-fé por parte da Autora, gerou na esfera jurídica dos Réus o direito à peticionada indemnização.

Com efeito, estipula o art.º 227.º n.º 1 do Código Civil que todo aquele que “negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.

Sanciona-se assim, a responsabilidade por culpa na formação dos contratos (culpa in contrahendo) 9.

Através da responsabilidade pré-contratual tutela-se a confiança fundada de cada uma das partes em que a outra conduza as negociações segundo a boa- fé; e, por conseguinte, as legítimas expectativas que a mesma lhe crie, não só quanto à validade e eficácia do negócio, mas também quanto à sua futura celebração.

No caso em análise, estamos perante a ruptura das negociações que estavam a ser conduzidas no âmbito da compra e venda de um imóvel. “Neste caso, a indemnização visa colocar o lesado na situação em que estaria se não tivesse acreditado, sem culpa, na boa fé ou actuação correcta da contraparte. É o que se chama dano negativo ou de confiança. Pode ele assumir relevância tanto sob o aspecto da afectação de valores já existentes na titularidade do lesado (dano emergente), como a respeito de vantagens que o mesmo deixou de auferir, ou porque não celebrou outros negócios que dependiam da conclusão do que se frustrou ou porque a expectativa deste desviou a sua actividade de outras direcções possíveis (lucro cessante).”10

O dano a ser ressarcido ao abrigo do art.º 227.º do C.C. é o resultante do interesse contratual negativo, ou seja, deve colocar-se o lesado na situação em que estaria, se não tem chegado a depositar uma confiança, afinal frustrada, na celebração de um contrato válido e eficaz.11

Ora, não só não estão provados, como nem sequer foram alegados factos susceptíveis de fundamentar a atribuição à Autora da obrigação de indemnizar com fundamento em responsabilidade pré-contratual. Desde logo, não foram alegados danos resultantes do referido interesse contratual negativo.

Tal ónus competia aos Réus, nos termos do disposto no art.º 342.º do Código Civil.

Nestas condições terá de improceder o pedido reconvencional formulado também nesta vertente, baseada na responsabilidade pré-contratual.

IV - DECISÃO

Por tudo o que fica exposto, acordamos na 7.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso de revista e, consequentemente, revogar o acórdão recorrido na parte em que “condenou os Réus a pagar à Autora a quantia que se apurar em posterior liquidação, até ao limite do pedido, a título de valor locativo da fração (renda), desde a citação dos Réus até à entrega do imóvel”, absolvendo os Réus desse pedido.

No mais, mantém-se o acórdão recorrido.

Custas por Recorrentes e Recorrida, na proporção de ½ para cada.

Lisboa, 27 de novembro de 2024

Maria de Deus Correia (relatora)

Maria de Fátima Gomes

Nuno Ataíde das Neves

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1. A Relação alterou a ordem dos factos provados 16 e 17 da sentença. O facto 16 passou a ser o 17 e o facto 17 passou a ser o 16.

  Para proporcionar uma apreensão mais fácil dos factos provados 16, 17, 19, 20, 21 e 23, reproduziu o teor dos documentos aí mencionados, porquanto na sentença da 1.ª instância apenas se remetia para o respetivo conteúdo.

2. Certamente para tal decisão não será estranho o facto de o insolvente CC não ser o promitente vendedor. A promitente vendedora é a C..., Lda.e foi a esta que os Réus pagaram as quantias acordadas no contrato promessa (facto provado nº 7.). Contudo, a fracção autónoma prometida vender aos Réus, fazia parte da massa insolvente visto que a titularidade da mesma ainda não tinha passado para a C..., Lda, por força do contrato celebrado entre esta e o insolvente.

3. Sublinhado nosso.

4. Código Civil Anotado (Coord. de Ana Prata), Vol. I, Almedina, 2017, p.283.

5. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol.I, p.296.

6. Baptista Machado, RLJ, Ano 119, P.171 APUD Acórdão do STJ de 20-04-2021, Processo 7268/18.4T8LSB-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

7. Vide Acórdão do STJ de 20-04-2021, já citado.

8. Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-01-2013,Processo 600/06.5TCGMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt

9. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª edição, Almedina, p.298-301.

10. Idem. P.310.

11. Mota Pinto, Teoria Geral, 3.ª edição, p.443.