I. Não admite recurso ordinário em 2.º grau, para o Supremo Tribunal de Justiça, acórdão da Relação, proferido em recurso que, revogando decisão da 1.ª instância que aplicou pena suspensa, decreta prisão efetiva em medida não superior a 5 anos.
II. O Tribunal Constitucional tem decidido uniformemente que não é enferma de inconstitucionalidade esta interpretação da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal.
I - Relatório:
A arguida AA foi condenada em 1.ª instância, pela prática, como autora material e em concurso efetivo de um crime de exposição ou abandono, p. e p. no artigo 138.º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do CP, na pena de 4 anos de prisão e de um crime de abuso de confiança agravada, p. e p. no artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do CP, na pena de 3 anos de prisão.
Em cúmulo jurídico destas penas parcelares foi condenada na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, acompanhada de regime de prova assente em plano individual de reinserção social.
A suspensão da execução da pena ficou ainda condicionada à entrega pelo arguido: ---
- à demandante “Associação de Desenvolvimento da ..., Instituição Particular de Solidariedade Social”, a quantia de € 2.987,04 e juros de mora, relativos à indemnização fixada a favor da mesma, comprovando nos autos ter efetuado a entrega transcorridos que sejam 3 meses sobre o trânsito em julgado da condenação;
- à Delegação da ... da Cruz Vermelha Portuguesa o montante de € 2.500,00, comprovando nos autos haver efetuado essa entrega transcorridos que sejam 6 sobre o trânsito em julgado da decisão;
- à Casa do Povo de ... a quantia de € 2.500,00 comprovando a entrega transcorrido que seja 1 sobre o trânsito em julgado da decisão.
Não se conformando, recorreu o Ministério Publico para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 11 de setembro de 2024, concedeu provimento ao recurso, condenando a arguida na pena de 5 anos de prisão efetiva.
Inconformada, interpôs a arguida AA recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Recurso que não foi admitido por despacho de 21 outubro de 2024, com fundamento no disposto nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), 433.º e 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, referindo-se que ficou prejudicada a apreciação da invocada inconstitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, por não ser esta a redação aplicável ao caso.
Acrescentando-se, que quanto à redação vigente da citada alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, (conferida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), única que releva para o caso, os acórdãos do Tribunal Constitucional referidos pela recorrente não são aqui aplicáveis, valendo-se do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 104/2020, de 12.02, que se debruçou sobre questão similar à dos presentes autos, concluindo pela não verificação da inconstitucionalidade normativa do artigo 400º, n.º 1, alínea e), do CPP.
A recorrente apresentou extensa reclamação do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, invocando jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente os acórdãos 324/2013 e 595/2018, para depois e, em síntese, deduzir as seguintes inconstitucionalidades: -----
-“a inconstitucionalidade da interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade de cinco anos, quando o tribunal de 1.ª instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, ou pena de prisão suspensa na sua execução, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da CRP)”
-“a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que inovatoriamente face a uma condenação em pena de prisão mas suspensa na sua execução ocorrida em 1.ª instância e que condena a arguida em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n,º 20/2023, de 21 de fevereiro, por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal, consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição”.
Refere ainda, para o recurso ser admitido, o disposto no artigo 29.º, n.º 6, da CRP que consagra a possibilidade de revisão de uma decisão penal condenatória que seja injusta, da forma como a lei o vier a definir, estabelecendo, assim, o direito de recorrer de todas as decisões injustas e não somente em determinados casos que permitem a revisão extraordinária das decisões, como sucede com o artigo 449.º do CPP, onde não se encontram elencados todos casos de decisões injustas do ponto de vista do arguido.
1. No que é relevante, para o conhecimento da reclamação, a arguida foi condenada em 1.ª instância, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, pela prática dos crimes acima referidos.
Em recurso, o Tribunal da Relação revogou a decisão recorrida na parte em que suspendeu a execução da pena, condenando a arguida na mesma pena única de 5 anos de mas de prisão efetiva.
2. O critério de admissibilidade do recurso penal ordinário para o STJ reporta-se à pena concretamente aplicada, ou seja, à pena em que a arguido foi condenada na decisão recorrida.
A recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432.º do CPP, dispondo a alínea b) do n.º 1 que se recorre “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.
Deste preceito destaca-se a alínea e) do n.º 1 que consagra a irrecorribilidade dos “acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1ª instância”.
No caso, não se verifica a exceção prevista na parte final do preceito transcrito. A arguida foi condenada em 1.ª instância. O acórdão recorrido revogou a suspensão da pena.
Assim sendo, tendo em conta que a arguida foi condenada em pena não superior a 5 anos de prisão, o recurso é inadmissível, ao abrigo das referidas disposições legais.
3. Invoca a reclamante jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente os acórdãos n.ºs 324/2013 e 595/2018.
Todavia, o primeiro destes arestos incidiu sobre a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, com referência à norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), ambos os preceitos citados do CPP, na redação da Lei n.º 40/2007.
Mas, aquela primeira norma adjetiva não foi aplicada nesta decisão nem no despacho reclamado. E, pelo outro lado, a segunda norma processual penal foi alterada, logo de seguida, pela Lei n.º 20/2013, acrescentando-lhe a parte final, ainda vigente, com o seguinte texto “ou pena de prisão não superior a 5 anos”, precisamente para deixar sem suporte a fundamentação em que aquela decisão de inconstitucionalidade se tinha amparado.
O segundo dos referidos arestos foi muito claro, aplicando-se somente à situação que contempla, consistente na reversão de absolvição da 1.º instância em inovatória condenação em recurso em pena de prisão efetiva.
O que, evidentemente, não é o caso dos autos. Repetindo-se que a arguida foi condenada na 1ª instância em pena de prisão com execução suspensa.
Acresce que com a alteração operada pela Lei n.º 94/2021 de 21/12, que entrou em vigor um 21 de março de 2022, a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, passou a permitir o recurso para o STJ quando o arguido foi absolvido em 1ª instância e condenado na Relação, daí já não fazer sentido apelo àquela jurisprudência.
4. A reclamante, no que aqui cabe conhecer, deduz a inconstitucionalidade do artigo 400. °, n.º 1, alínea e), na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro do CPP, no sentido de não ser admissível recurso, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP.
Mas sem razão.
O n.º 1 do artigo 32.º da CRP inscreve o direito ao recurso como uma garantia de defesa do processo criminal, impondo que seja assegurado ao arguido o direito ao reexame por uma instância superior de qualquer decisão judicial contra ele proferida no processo penal.
O Ministério Público recorreu peticionando que fosse determinada a não suspensão da pena de prisão aplicada.
À arguida foi facultado o contraditório que exerceu, respondendo a pugnar pela improcedência do recurso do Ministério Público.
Foi-lhe, pois, garantida a facultade de esgrimir os argumentos que entendeu em defesa da sua tese e também em defesa da confirmação da condenação decretada em 1ª instância.
Teve, pois, possibilidade de se defender como entendeu da reversão da pena suspensa em pena de prisão efetiva. Com o que ficou assegurado no processo o seu direito constitucional e legal de defesa incluindo o direito de recurso, que efetivamente exerceu.
A reclamante pretende que seja reconhecido o direito a um terceiro grau de jurisdição aos condenados em 1.ª instância em pena de prisão com execução suspensa que a Relação, em recurso, determina seja de privativa da liberdade independentemente da medida da pena aplicada, interpretando restritivamente o artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP que limite a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de acórdão da Relação proferido em recurso de decisão condenatória, a penas superiores a 5 anos de prisão efetiva.
5. Incidindo sobre questão similar, o Tribunal Constitucional, na decisão sumária n.º 375/2019, confirmada pelo referido acórdão n.º 104/2020, citado no despacho reclamado, motivando o julgamento da não inconstitucionalidade, expendeu: “no caso de recurso de decisão de primeira instância condenatória, que tenha aplicado pena não privativa da liberdade e em que o recorrente Ministério Público e/ou Assistente pugnem perante a Relação pelo agravamento daquela, o objeto do recurso encontra-se perfeitamente delimitado, balizando-se a possível decisão do mesmo dentro de apertados limites: (…).
Nestes casos, existe uma efetiva reapreciação do segmento da decisão condenatória relativo às consequências do crime, cujos termos, âmbito e consequências, são perfeitamente antecipáveis pelo arguido. O objeto do recurso e os assinalados limites intrínsecos e extrínsecos à decisão a tomar pelo tribunal superior no julgamento daquele, permitem concluir que a faculdade de responder ao recurso, prevista no artigo 413.º do Código de Processo Penal, assegura um efetivo exercício do direito de defesa, permitindo ao arguido expor perante o tribunal superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa, em termos idóneos a persuadir o julgador da sua justeza e a influenciar o curso do seu processo decisório.”
Reafirma-se na decisão em citação “que o respeito pelo direito ao recurso não significa que o legislador esteja constitucionalmente vinculado a assegurar a impugnabilidade pelo arguido de todas as decisões condenatórias proferidas em recurso, mesmo quando imponham reação sancionatória privativa da liberdade e imediatamente exequível. Constitui entendimento consolidado do Tribunal que o direito ao recurso, assegurado pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, não garante ao arguido um segundo grau de recurso em matéria penal, assistindo ao legislador democrático margem de liberdade na modelação do acesso por via de recurso ao tribunal judicial supremo, enquanto via de prossecução de outros direitos e interesses constitucionalmente tutelados, como sucede com a própria eficácia do sistema penal, que tem como condição a emissão de um julgamento final e definitivo em tempo razoável”.
Concluindo-se: “é certo que o julgamento do recurso comportou um agravamento da posição processual do arguido relativamente ao antes decidido, mas daí não decorre uma situação de indefesa do sujeito processual, constitucionalmente proibida. No âmbito do recurso da decisão condenatória proferida em 1.ª instância, ciente da pretensão de modificação da reação penal e da natureza fundamentalmente substitutiva do julgamento proferido pela 2.ª instância, pôde o arguido, para além de refutar os argumentos do recorrente, perspetivar as eventuais consequências sancionatórias - à semelhança com o que acontece frequentemente no momento da apresentação na 1.ª instância da contestação e rol de testemunhas (artigo 315.º do CPP), ou nas alegações orais proferidas em audiência de julgamento (artigo 360.º do CPP) - e desse modo influenciar decisivamente o julgamento do recurso.
No quadro em presença, a limitação das garantias de defesa, na dimensão do exercício do direito ao recurso e do acesso a um terceiro grau de jurisdição, não se mostra desrazoável ou desproporcionada, em atenção ao interesse público relevante prosseguido pelo legislador democraticamente legitimado, impondo-se afastar a violação do artigo 32.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, ou outros parâmetros de constitucionalidade”.
6. Decisão em linha com a jurisprudência daquele Tribunal. Incidindo sobre a aplicação do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, a caso como o dos autos, no acórdão n.º 101/2018, de 21 de fevereiro, decidiu “não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, interpretado no sentido de ser irrecorrível o acórdão proferido, em recurso, pelo Tribunal da Relação que aplique pena privativa da liberdade não superior a cinco anos, revogando a suspensão da execução de pena de prisão decretada pelo tribunal de primeira instância.”
Jurisprudência que o Tribunal Constitucional tem reafirmada, como sucedeu, mais recentemente, no Acórdão n.º 884/2023 que confirmou a Decisão Sumária n.º 641/2023 que decidiu “não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 94/2021, de 21.12, interpretada no sentido de não ser admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que, reapreciando a decisão da 1.ª instância que condenou o arguido numa pena de substituição (suspensão da execução da prisão), apliquem ao arguido uma pena de prisão efetiva”.
7. Por fim, a reclamante apela ao artigo 29.º, n.º 6, da CRP, para que o recurso seja admitido.
A citada norma constitucional dispõe que: “os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos”, não tendo materialmente que ver com a discussão processual do regime dos recursos ordinários.
8. Nestes termos, indefere-se a reclamação apresentada pela arguida AA.
Custas pela reclamante fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.
Notifique-se.
I. Não admite recurso ordinário em 2.º grau, para o Supremo Tribunal de Justiça, acórdão da Relação, proferido em recurso que, revogando decisão da 1.ª instância que aplicou pena suspensa, decreta prisão efetiva em medida não superior a 5 anos.
II. O Tribunal Constitucional tem decidido uniformemente que não é enferma de inconstitucionalidade esta interpretação da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal.
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Nuno Gonçalves