NEGLIGÊNCIA
DILIGÊNCIA EXIGÍVEL
VIOLAÇÃO DE UM DEVER OBJECTIVO DE CUIDADO
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
RESPONSABILIDADE CONTRAORDENACIONAL DAS PESSOAS COLETIVAS
Sumário

I- Elemento estruturante e referencial de toda a infracção negligente é a violação de um dever objectivo de cuidado: o elemento configurador do ilícito negligente consiste, pois, na divergência entre o comportamento assumido e aquele outro que haveria de ter sido o adoptado em razão do dever objectivo de cuidado que se impunha observar.
II- O padrão aferidor da diligência exigível deve procurar-se, através de um juízo ex ante, no cuidado que é requerido na vida de relação social relativamente ao comportamento em causa. O que supõe a formulação de um juízo normativo, resultante da comparação entre a conduta que devia ter adoptado um homem razoável e prudente, inserido no âmbito de actividade, munido dos conhecimentos específicos do agente e colocado na sua posição, e a conduta que este efectivamente observou
III- Advoga-se uma interpretação extensiva do artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações - como, aliás, tem sido feito, de forma evolutiva, pela jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional (cfr. o Acórdão do TC n.º 395/2003, de 22 de julho), de modo a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas
IV- E tem a doutrina e a jurisprudência vindo também a entender que tem de haver uma maior flexibilidade na aplicação do princípio da culpa, sob pena de não ser possível imputar o facto a nenhum dos intervenientes, considerando a complexidade que caracteriza a organização empresarial hodierna
V- A LQCOA prevê no artigo 8.º a responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas em termos mais amplos do que aqueles que resultam do RGCO, consagrando que o autor da contraordenação é a pessoa coletiva, tornando, por isso, desnecessária a identificação concreta da pessoa singular que atuou
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

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-» Por decisão proferida pela Inspeção -Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, foi a arguida  …, S A condenada na coima de €24.000,00 (vinte e quatro mil euros), pela prática de contraordenação ambiental muito grave, prevista e sancionável, nos termos do artigos, 49.º, n.º1 e 184.º, n.º2 al. r), do Regime Jurídico da Proteção Radiológica, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 108/2018, de 03-12, sancionável, a título negligente, nos termos do artigo, 22.º, n.º4, da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais, aprovado pelo Lei n.º 50/2006, de 29-08, na redação aplicável, dada pelo Decreto-Lei nº. 114/2015, de 28-08.

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-» Notificada da decisão administrativa e não se conformando com a mesma, a arguida …, S A impugnou-a judicialmente

Distribuídos os autos ao Juízo Local Criminal de Leiria - Juiz 1, o recurso foi decidido por despacho proferida a 5 de setembro de 2024, que o julgou procedente decidindo nos seguintes termos:

“I. Declarar nula a decisão administrativa recorrida, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal e 58.º do Regime Geral das Contraordenações;

II. Julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogar a Decisão recorrida e absolver a recorrente …, SA da prática da contraordenação que lhe foi imputada pela INSPECÇÃO-GERAL DA AGRICULTURA, DO MAR, DO AMBIENTE E DO ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO.”

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-» Não se conformando com esta decisão, o Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

3ª.- O Tribunal a quo proferiu decisão, em sede de Questão prévia, declarando a nulidade da decisão administrativa, por considerar que ela não cumpre os requisitos formais do artigo, 58.º do Regime Geral das Contraordenações (doravante, designado como RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei 433/82, de 27-10, julgando procedente, a impugnação judicial, revogando a decisão administrativa e absolvendo a arguida, da prática da contraordenação imputada, mais determinando o arquivamento dos autos;

4ª.- Mas a decisão administrativa, no que concerne à imputação objetiva e à subjetiva, dos factos à arguida, mostra-se clara, objetiva e fundada, na mesma se descrevendo os factos respeitantes aos elementos subjetivos do ilícito contraordenacional imputado, aí constando:

Factos com relevo para a decisão Provados,: “g) A arguida exerce actividade regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali previsto para o exercício da mesma, in casu o Decreto-Lei n.º 108/2018, de 3 de Dezembro, o seu incumprimento preenche o tipo objectivo; h) Não o tendo feito, não agiu com a diligencia necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem ilicitude aos factos ou censurabilidade à sua conduta”; Fundamentação: “(…) Demonstrado nos factos provados, em concreto nas als. a) a f) que a Arguida não cumpriu com as obrigações que eram impostas no art. 49º. nº 1 al. b) do DL nº. 108/2018 e não decorrendo dos autos elementos que excluam a ilicitude dos factos ou afastem a censurabilidade da sua conduta tem-se a infração em apreço por verificada.”, “Culpa”: “No cumprimento das obrigações a que está adstrita nos termos do DL 108/2018, de 03/12, a conduta da arguida apresenta-se subsumível ao art. 15ª. alínea a) do Código Penal, aplicável ex vi do artigo 32º. do Regime Geral das Contraordenações – termos em que, tendo violado esse dever de cuidado, é sancionável a título de negligência, nos termos do art. 9º. Nº. 2 da LQCOA, na redação dada pela Lei nº. 114/2015, de 28/08”;

5ª.- Os factos descritos sob as alíneas g) e h), bem como a remissão, na fundamentação, para os factos objetivos, descritos sob as alíneas, a) a f), e fundamentação, são adequados e suficientes para ser considerada verificada a negligência com que a arguida atuou, a culpa e a ilicitude, encontrando-se concretizados, ou seja, os factos referentes ao tipo subjetivo do ilícito contraordenacional imputado à mesma, na decisão administrativa, os factos que a fundamentaram e a forma como deveria ter atuado, violando uma obrigação determinada, decisão que se apresenta compreensível para a mesma;

6ª.- Apesar de não constar da mesma decisão, a rigorosa sistematização de uma sentença, certo é que dos factos descritos sob as alíneas, g) e h), e em resultado dos factos descritos sob as alíneas a) a f), conclui-se pela verificação da negligência, pela não observância do dever de cuidado, por parte da arguida, a que estava adstrita e de que era capaz, tal como foi muito bem entendido pela mesma (recorrente), e como bem espelhado na respetiva impugnação judicial – tanto mais que sugeriu que, a ser-lhe imputada;

7ª.- Na factualidade assente como provada, pela autoridade administrativa, imputada à arguida, bem como no teor da fundamentação, na parte respetiva, encontram-se plasmados os factos integrantes dos elementos objetivos do tipo de ilícito de contraordenacional, mas ainda, os factos respeitantes aos elementos subjetivos do mesmo tipo de ilícito, com fundamentada imputação subjetiva do ilícito, à arguida, … S.A.”;

8ª.- Os elementos subjetivos resultam da violação de um dever de cuidado, sendo que, como consta da decisão administrativa, em Factos com relevo para a decisão provados: “não agindo com a diligência necessária e de que era capaz e não resultando dos autos elementos ou censurabilidade à sua conduta” pois que decorre da natureza da infração, levada a cabo pela arguida, a qual tem o dever de conhecer e respeitar as normas jurídicas em causa, constando da mesma decisão, os factos imputados à arguida, de natureza subjetiva, respeitantes à negligência e à culpa;

9ª.- A culpa, no ilícito de mera ordenação social, funda-se na violação de um certo comportamento imposto ao agente, bastando-se, assim, com a imputação dos respetivos factos, ao agente, o que também se encontra expressamente descrito na decisão administrativa;

10ª.- No que concerne à imputação subjetiva do ilícito contraordenacional, à sociedade arguida, em matéria de contraordenações ambientais, e de acordo com a previsão do artigo 8.º, da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais (e como sucede no regime geral das contraordenações - artigo 7.º, do RGCO), para que o ilícito seja imputável à pessoa coletiva, não existe necessidade de transferência da culpa e da ação, dos agentes individuais para aquela, tratando-se de responsabilidade autónoma, à qual é atribuída uma denominada, culpa própria;

11ª.- A exigência de descrição, na decisão administrativa, de factos respeitantes aos elementos subjetivos do tipo de ilícito contraordenacional reporta-se, essencialmente, à necessidade de compreensão do elemento subjetivo da contraordenação imputada, fundamentalmente, para saber se se trata de imputação, a título de dolo ou de negligência, sendo que não existe, no caso “sub judice”, qualquer dúvida de que a decisão imputa a aludida contraordenação, à arguida, a título de negligência, tal como consta do texto decisão impugnada, “preto no branco”, e do que esta nunca teve dúvida;

12ª.- Tendo a mesma revelado, ter compreendido, de forma plena, todos os factos que lhe são imputados, na decisão administrativa, e que o foram, a título de negligência, como aí consta de forma expressa e fundamentada, o que permitiu e foi mais que suficiente, para que a mesma exercesse o seu direito de defesa, atento o teor da respetiva impugnação judicial;

17ª.- Daí que, ao declarar a nulidade da decisão administrativa, mais declarando procedendo o recurso da arguida, absolvendo-a da prática da contraordenação imputada e determinando o arquivamento dos autos, ao invés de ter proferido decisão que se pronunciasse sobre o objeto do recurso de impugnação judicial da arguida ou de determinar a remessa dos autos à fase de julgamento, a decisão judicial proferida encontra-se em violação com o disposto nos artigos, 58º., 62º., nº. 1, 64º., nº. 5, 41º., nº. 1, todos do RGCO, 119º., 122º., 374º., nº. 2, e 379º., nº. 1, al. a), estes do Código de Processo Penal.

                           

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-» O recurso foi admitido, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.

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-» O arguido apresentou resposta ao recurso, …

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-» Uma vez remetido a este Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto proferiu parecer, …

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Cumprido que foi o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP, o arguido não apresentou resposta.

Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.

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II –Objeto do recurso:

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal – sendo certo que, em conformidade com o disposto no artigo 75º, nº 1 do RGCO, nos recursos dos processos de contraordenação a 2ª instância apenas conhece de direito.

No caso, tendo em conta as conclusões apresentadas pelo recorrente, são as seguintes as questões a apreciar:

1) - nulidade da sentença recorrida por omissão da fundamentação, nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º n.s 1 alínea b) do CPP, ex vi artigo 41.º n.º 1 do RGCO ex vi artigo 86.º do RJO;

2) - a (in)existência na decisão administrativa condenatória da factualidade atinente ao elemento subjetivo da contra-ordenação imputada à arguida;

3)  - em caso de ocorrência dessa omissão, qual a sua consequência jurídica.

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III – Transcrição (parcial) da decisão recorrida:

 “Questão prévia:

                Do alegado vício da decisão administrativa por omissão de factos que preenchem os elementos do tipo subjectivo de ilícito negligente que lhe é imputada à recorrente:

                Veio a recorrente sustentar o seu recurso de impugnação judicial da Decisão administrativa condenatória, em síntese, e além do mais, invocando a existência de um vício na decisão administrativa, por omissão da descrição de factos donde se possa aferir a prática da infracção de forma negligente.

                O artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO) estatui sobre os requisitos a que deve obedecer a decisão administrativa condenatória.

                …

                Como se vê, a estrutura da decisão administrativa aproxima-se, de forma muito aparentada, da estrutura da sentença penal, assente o teor do artigo 374.º do Código de Processo Penal (CPP).

                Emergindo o dever de fundamentação directamente do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), como parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito Democrático, o direito a conhecer as razões do sancionamento é comum quer ao processo criminal, quer ao processo de contraordenação.

                É certo que a lei não define qual o âmbito ou rigor de fundamentação que deve presidir à decisão administrativa de condenação e que, face à especialidade processual da contraordenação, existe algum consenso doutrinal e jurisprudencial no sentido de que, não se impõe aqui uma fundamentação com o formalismo e rigor que se exige na elaboração de uma Sentença judicial, …

                No entanto, e salvaguardando-se o devido respeito por entendimento diverso, estamos em crer que a decisão administrativa não pode deixar de indicar, de forma concreta e objetiva, os factos imputados ao agente, não satisfazendo tal exigência legal, a formulação de afirmações vagas, genéricas ou conclusivas, sob pena de não se poder considerar fundamentada a Decisão administrativa.

                A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58.º, n.º 1 do RGCO constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa da arguida e/ou recorrente, que só poderá ser efectivo com o adequado conhecimento dos factos imputadas, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que, nesse conspecto, determinem.

                A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão - sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não directa quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41.º do RGCO sobre "direito subsidiário", que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.

                Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contraordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374º, nº 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias» (sublinhado e realce nossos).

                …

                Ora, no caso concreto, e compulsados os autos, os factos constantes da Decisão administrativa impugnada (alíneas a)-h)], com reporte àquela que é base factual respeitante aos elementos subjectivos, manifestamente que inexistem, limitando-se a consignar que, e além do mais, «g) A arguida exerce actividade regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali previsto para o exercício da mesma, in casu o Decreto-Lei n.º 108/2018, de 3 de Dezembro, o seu incumprimento preenche o tipo objectivo; h) Não o tendo feito, não agiu com a diligencia necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem ilicitude aos factos ou censurabilidade à sua conduta».

                …

                Conclui-se, assim, que tal decisão não está fundamentada de facto, ou, no mínimo, é manifestamente insuficiente a fundamentação de facto, pelo que não satisfaz a exigência prevista no artigo 58.º, n.º 1, do RGCO. 

                …

                E, uma vez que os factos descritos na decisão condenatória da entidade administrativa se revelam insuficientes para a condenação, tal conduz à revogação da decisão da Autoridade Administrativa e, consequentemente, à absolvição da recorrente da prática da infracção contraordenacional que lhe é imputada – cf., neste sentido, e entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.01.2007 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07.05.2010, ambos acessíveis em www.dgsi.pt)

                Termos em que, haverá que concluir pela procedência do recurso, ficando prejudicada a análise das demais questões suscitadas no recurso de impugnação.”

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                                                                       *

            IV- Do mérito do recurso:

4.1.  - Nulidade da sentença por falta de fundamentação nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º n.s 1 alínea b) do CPP, ex vi artigo 41.º n.º 1 do RGCO ex vi artigo 86.º do RJO:

Sustenta o recorrente que a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação, já que “o Tribunal a quo não procedeu a uma operação de subsunção individualizada e distinta das condutas da Kaizen nos dois tipos contraordenacionais que lhe foram imputados

Vejamos.

Dispõe o artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa que:

«As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».

Em anotação a este normativo, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, págs. 798 e 799, que:
«… o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado direito democrático, ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso.»

E lemos no Ac TC de 408/2007, in https://www.tribunalconstitucional. pt/tc/ acordaos/20070408.html:
O dever de fundamentação além de constituir uma das fontes de legitimidade da jurisdição em geral (vide, nesse sentido, CRUZ VILLALON, em “Legitimidade da justiça constitucional e princípio da maioria”, em “Legitimidade e legitimação da justiça constitucional (Colóquio no 10.º Aniversário do Tribunal Constitucional)”, págs. 87-89, da ed. de 1995, da Coimbra Editora, e MASSIMO LUCIANI, em “Giurisdizione e Legittimazione nello Stato Costituzionale di Diritto (Ovvero: Di Un Aspetto Spesso Dimenticato del Rapporto fra Giurisdizione e Democrazia), em “Politica del Diritto”, Ano XXIX, n.º 3 (1998), págs. 376-377), é “uma garantia judiciária fundamental do cidadão no Estado de Direito Democrático” (PESSOA VAZ, em “Direito processual civil. Do antigo ao novo código”, pág. 220, da ed. de 1998, da Almedina).
Como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 55/85 (pub. no B.M.J. nº 360 (suplemento), pág. 195), citando Michele Taruffo (em “Notte sulla garanzia costituzionale della motivazione”, estudo publicado no B.F.D.U.C., vol. LV, e que impulsionou a introdução do dever de fundamen­tação no nosso texto constitucional) “a fundamentação dos actos jurisdicionais em geral, cumpre duas funções:
a) uma, de ordem endoprocessual, afirmada em leis adjectivas, e que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente;
b) e outra, de ordem extraprocessual, que apenas ganha evidência com a referência, a nível constitucional, ao dever de motivação e que procura acima de tudo tornar possí­vel um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão”

Materializando este comando constitucional, estabelece o artº 374º, nº 2, do CPP que a sentença deverá conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”.

E o artº 379º, do C.P.P. comina com a sanção da nulidade a sentença que não contiver as menções referidas no citado artº 374º, nº 2, do C.P.P..

No caso, analisada a decisão recorrida, facilmente se percebe o tribunal a quo explicitou, com a necessária transparência, embora de modo parco, as razões que o levaram à decisão jurídica adoptada.

E na verdade, o que transparece das alegações de recurso é que o recorrente discorda das razões apontadas pelo tribunal recorrido para sustentar a decisão a que chegou. Porém, saber se essas razões podem sustentar a decisão, é questão distinta da nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Improcede, por conseguinte, a invocada nulidade

4.2.  –(in)existência na decisão administrativa condenatória da factualidade atinente ao elemento subjetivo da contra-ordenação imputada à arguida:

           

            Em conformidade com a definição contida no n.º1 do art.1º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.”

            É sabido que o transcrito dispositivo fornece uma definição de contra-ordenação estruturada sob critérios formais.

Aliás, e não obstante não olvide a distinta carga axiológica que envolvem o crime e a contra-ordenação, foi justamente através de um índice conceitual-formal que o legislador operou a distinção entre ambos, em termos de à segunda categoria fazer corresponder todo o facto ilícito, típico, culposo, punível com coima (cfr. Prof. Figueiredo Dias, O movimento de descriminalização, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pg.327) e assim superando toda a divergência entre os diversos critérios substanciais avançados para a distinção. A coima, por seu turno é sempre e tão só uma pena pecuniária (cfr. art.º 17º do referido diploma) 

Deste modo, para que possa ser configurada a prática de um ilícito contra-ordenacional, qualquer que ele seja, é necessária a verificação de determinados pressupostos, a saber:

• A ocorrência de um facto (por acção ou omissão), no sentido em que só uma conduta humana traduzida em actos externos pode ser qualificada como contra-ordenação e justificar a aplicação de uma coima.

• A existência de um tipo-de-ilícito, no sentido em que, exprimindo-se a ilicitude precisamente através de tipos de ilícito, só a conduta subsumível à descrição legal do comportamento proibido poderá ser contra-ordenacionalmente relevante.

E, para que alguém possa ser pela sua prática punido, necessário se torna que tenha agido com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência (cfr. art.º 8º do diploma convocado, onde se consagra o princípio nulla poena sine culpa), sendo certo que tais conceitos se encontram previstos nos arts. 14º e 15º do Código Penal, normativos aplicáveis ao direito de mera ordenação social por força do disposto no art.º 32º do Dec.-Lei  n.º 433/82.

Ora, o tipo de ilícito contra-ordenacional pelo qual foi a arguida administrativamente condenada está previsto no DL 108/2018, de 3/12, diploma este que procura conferir tutela ao direito fundamental ao ambiente, constitucionalmente consagrado no artigo 66.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e, de forma indirecta, igualmente no artigo 9.º, al. e) onde se definem como tarefas fundamentais do Estado a defesa da natureza e do ambiente, bem como a preservação dos recursos naturais.

Assim, prevê-se no artigo 184 n.2 al r) do referido diploma, na redação vigente à data dos factos, que:

2 - Constitui contraordenação ambiental muito grave:

(…)

r) Violação dos deveres por parte dos titulares de práticas previstos no n.º 1 do artigo 49.º;

Salientamos que o diploma foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 81/2022, de 06 de Dezembro e pelo DL n.º 139-D/2023, de 29/12, punindo agora o art.º 184.º, n.º 3, alínea q) a mesma conduta como contraordenação ambiental grave, tendo evidentemente de se aquilatar, oportunamente,  sobre a aplicação da lei penal no tempo, nos termos do estabelecido no art.º 4.º, n.ºs 1 e 2, do R.G.C.O. ex vi o disposto no art.º 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 108/2018 e no art.º 2.º, n.º 1, do Código Penal. A descrição típica da conduta proibida continua idêntica, note-se, em face dos regimes em confronto.

            Assim, e de acordo com a descrição da factualidade imputada à arguida na decisão administrativa, o dever violado pela arguida, enquanto titular de práticas que envolvam fontes radioativas seladas é o constante do art.º 49º n.º 1 al. b) do DL 108/2018, ou seja, o de “Enviar à autoridade competente, até ao dia 31 de janeiro do ano subsequente, cópia do inventário das fontes registadas nos termos da alínea anterior, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil, quando aplicável”

            A alínea a) deste normativo estipula como dever “Manter atualizado um inventário de todas as fontes sob a sua responsabilidade, bem como da respetiva localização, transmissão e transferência, e disponibilizar essa informação para inspeção quando tal for solicitado pela autoridade competente;”

De facto, pela relevância que em si mesmo assume no contexto da ordenação social estrategicamente delineada, o acto de exposição planeada, de exposição existente e de exposição de emergência a radiações ionizantes, considerando os perigos dele resultantes, foi ele próprio sujeito a determinadas formas de controle administrativo, a um conjunto de mecanismos de gestão, notificação rápida e informação, para a proteção de membros do público aos riscos de exposição as quais, não sendo cumpridas ou não tendo sido observadas, determinam, na ausência de uma qualquer causa justificativa ou desculpante, a ilicitude do facto praticado,.

Para além da verificação dos elementos objectivos, a possibilidade de, em razão da prática de determinada conduta, imputar ao agente a responsabilidade contida no tipo contra-ordenacional depende ainda, como supra vimos, da verificação dos elementos subjectivos correspondentes ao ilícito considerado, sendo aqui que reside o busílis da questão.

De facto, entendeu que a decisão administrativa não continha a imputação do respetivo elemento subjetivo e, por esse motivo, absolveu a arguida.

Sem razão, como infra se demonstrará.

Vejamos que é a título de negligência que a contra-ordenação é imputada à arguida, ao abrigo do disposto no art.º 9º n.º 2 da LQCOA e 32º do RGCA.

Elemento estruturante e referencial de toda a infracção negligente é, como é sabido,  a violação de um dever objectivo de cuidado: o elemento configurador do ilícito negligente consiste, pois, na divergência entre o comportamento assumido e aquele outro que haveria de ter sido o adoptado em razão do dever objectivo de cuidado que se impunha observar.

Conforme vem sendo consensualmente entendido em matéria de infracções penais - entendimento este transponível, no essencial, para o domínio dos ilícitos contra-ordenacionais - , o dever objectivo de cuidado estrutura-se em dois planos: postula por um lado, um cuidado interno, um dever de representar ou prever o perigo para o bem jurídico tutelado e de valorar correctamente esse perigo, o seu processo causal e as suas consequências; manifesta-se, por outro lado, num cuidado externo, ou seja, num dever de  adoptar uma conduta adequada a evitar esse perigo, quer omitindo acções perigosas, quer actuando prudentemente em situações que, pese embora perigosas, são toleradas pela ordem jurídica (risco permitido), quer recolhendo, aquando da adopção de uma conduta de risco, os conhecimentos que permitam empreender essa actividade com segurança (vide, por todos, Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ªed., pg.525).

E, uma vez que o conceito de cuidado a que se refere o dever em causa é ele próprio objectivo, o padrão aferidor da diligência exigível deve procurar-se, através de um juízo ex ante, no cuidado que é requerido na vida de relação social relativamente ao comportamento em causa. O que supõe a formulação de um juízo normativo, resultante da comparação entre a conduta que devia ter adoptado um homem razoável e prudente, inserido no âmbito de actividade, munido dos conhecimentos específicos do agente e colocado na sua posição, e a conduta que este efectivamente observou (vide neste sentido e por todos, Ac. da RE de 14 Janeiro 2014, Processo nº 297/05.0 GTSTR.E1 e da RP, de 26-10-2024, Processo:305/15.6GAVLC.P, ambos in www.dgsi.pt)

Este juízo normativo é integrado por dois elementos: um elemento intelectual, segundo o qual é necessária a consideração de todas as consequências da acção que, num juízo razoável (objectivo), eram de verificação previsível (previsibilidade objectiva), e outro valorativo, segundo o qual só será contrária ao direito a conduta que vai além da medida socialmente adequada (risco permitido) (cfr. Muñoz Conde, Teoria General del Delito, 1984, pg.68, 71s.)

Ora, declara-se na decisão administrativa que “a arguida exerce a atividade regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito para o exercício da mesma, in casu, o DL 108/2018, de 3/12” e que “não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz”

Entende contudo o juiz a quo que “os factos constantes da Decisão Administrativa afiguram-se vagos, imprecisos e conclusivos, não descrevendo, de forma concretizada o preenchimento dos elementos do tipo subjectivo da infração contraordenacional que é imputada à aqui recorrente.”

Não indica no entanto aquilo que, no seu entender, a entidade administrativa deveria ter dito e não disse.

E, na realidade, nada omitiu a entidade administrativa: diz que a arguida, podendo e devendo conhecer os deveres a que estava obrigada no exercício da sua atividade, não os cumpriu, podendo e devendo ser capaz de os cumprir, que é o mesmo que dizer que ela não observou os deveres mínimos de diligência e cuidado a que estava legal e regulamentarmente obrigada, enquanto entidade exploradora licenciada, e de que era capaz, agindo de forma imprudente e descuidada.

Tal é bastante para concluir que a atitude documentada no ilícito típico praticado descritos nos factos provados se poderia classificar de descuidada ou leviana, o que apenas se não faz pela circunstância de, no domínio das contra-ordenações, a culpa não surgir, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética dirigida à pessoa e à atitude interna do agente, mas sim, e decisivamente, como uma “imputação do facto à responsabilidade social do seu autor”. (Prof. Figueiredo Dias, op. cit., pg.331). Apesar de a responsabilidade contraordenacional não prescindir da culpa, esta é totalmente distinta da culpa penal.

Não ignoramos que a arguida, aqui, é uma pessoa coletiva e não uma pessoa física, trazendo-se por isso à colação o disposto no artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações.

Advoga-se uma interpretação extensiva deste normativo - como, aliás, tem sido feito, de forma evolutiva, pela jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional (cfr. o Acórdão do TC n.º 395/2003, de 22 de julho) - de modo a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas (neste sentido, Parecer do Conselho Consultivo da PGR 06-05-2013 e votado a 10-07-2013,  homologado por despacho da conselheira procuradora-geral da república e jurisprudência nele citada e ainda o Ac. da RL de 12-01-2023, Processo:741/21.9Y4LSB. L2-9, in www.dgsi.pt.).    

E tem a doutrina e a jurisprudência vindo também a entender que tem de haver uma maior flexibilidade na aplicação do princípio da culpa, sob pena de não ser possível imputar o facto a nenhum dos intervenientes, considerando a complexidade que caracteriza a organização empresarial hodierna.

Na doutrina vemos Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Regime Geral das Contraordenações”, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 58 a defender que a responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva é autónoma, não dependendo de uma conexão com o facto de uma pessoa física, nem da responsabilização cumulativa de uma pessoa física.

Para responsabilizar a pessoa coletiva é suficiente que a conduta seja praticada ou determinada em seu nome por órgão juridicamente vinculante da vontade coletiva, sendo irrelevante a circunstância de não se ter identificado o nome do titular do órgão ou representante a quem seja atribuída pessoalmente a conduta da pessoa coletiva.

A imputação da infração à pessoa coletiva resulta de se considerar autor desta o sujeito que tiver violado (por ação ou por omissão) a proibição legal ou o dever jurídico cuja violação a lei comina com contraordenação, solução que é coerente com o facto de no Direito contraordenacional a ilicitude não assentar numa censura ético-jurídica mas sim na violação de um dever legal.

(cfr. também neste sentido, o Parecer da PGR acima citado e, na jurisprudência, por todos, o Ac. RC de 13-10-2021, Processo:3682/20.3T9LRA.C1 e o Ac.  RL de 12.01.2021, Processo: 741/21.9Y4LSB.L2-9, ambos in www.dgsi.pt)

De resto, a LQCOA prevê no artigo 8.º a responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas em termos mais amplos do que aqueles que resultam do RGCO, consagrando que o autor da contraordenação é a pessoa coletiva, tornando, por isso, desnecessária a identificação concreta da pessoa singular que atuou.

Desta forma, concluímos que nada falta na descrição da conduta da arguida para que lhe possa ser imputada a contra-ordenação acima referida, estando asseguradas as garantias de defesa constitucionalmente impostas (art. 32º, nº10 da Constituição da República Portuguesa).

(na jurisprudência, em casos similares, cfr Ac. RG de 26-02-2020, Processo: 453/18.0T8VLN.G2  e de 17-10-2023, Processo: 483/21.5T8VLN.G1, da RE de 15-12-2016, Processo: 95/16.5T8GDL.E1)

Aliás, a própria arguida nem sequer invocou tal questão no seu recurso de impugnação (note-se, até, que no Artº 23º, relativamente à primeira infracção, referiu expressamente não ter agido com dolo ou com negligência...), tendo a mesma sido oficiosamente suscitada e apreciada pelo tribunal a quo. Ao invés, e como bem nota o recorrente nas alegações de recurso juntas aos autos, a arguida demonstra ter compreendido a imputação feita na decisão administrativa e defendeu-se dela, dizendo (além do mais) que não cumpriu o dever porque entendeu que o disposto na lei não lhe era aplicável.

Desta forma, considerando-se suficientemente descritos na decisão administrativa os factos relativos aos elementos subjetivos da infração, há conceder razão ao recorrente Ministério Público e determinar a revogação da sentença recorrida, porquanto a decisão administrativa não padece da nulidade que ali lhe é apontada (nos termos conjugados dos arts. 374º, nº2 e 379º, nº1, al. a), ambos do CPP, ex vi do art. 41º do RGCO).

Em consequência devem os autos prosseguir em primeira instância para apreciação do mérito do recurso de impugnação judicial.               

E, nesta medida, fica prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos do recurso.

V- Decisão:

Pelo exposto, acordam as Juízas da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o douto recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos em primeira instância para apreciação do mérito do recurso de impugnação judicial deduzido pela arguida.

                                                           *

Sem tributação (art. 92º, nº1, do RGCO e arts. 513º, nº1 e 514º, nº1, a contrario, ambos do CPP).

*

                                                     Coimbra, 20 de novembro de 2024


Sara Reis Marques

(Juíza Desembargadora Relatora)

 Sandra Ferreira

 (Juíza Desembargadora Adjunta)

   Ana Carolina Cardoso – voto de vencida

  (Juíza Desembargador Adjunto)



(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)


Voto vencida, entendendo existir lacuna no apuramento dos factos necessários à decisão de direito, nos termos do art. 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, que, não sendo suprível, determinaria a absolvição da arguida neste processo.

Na verdade, conforme deixámos já expresso nomeadamente nos nossos Acórdãos de 7.4.2023 (recurso 411/20.0T8CVL.C1) e 10.5.2023 (recurso 181/22.2T9SCD.C1), perante o acervo factual provado não é possível imputar à arguida pessoa coletiva as condutas em causa, face à exigência plasmada no art. 7º, n.º 2, do RGCO.

A responsabilização da pessoa coletiva exige, no domínio do direito penal e do direito contraordenacional, que o facto seja imputável à conduta ou violação de deveres de uma pessoa qualificada, detentora da qualidade de titular de órgão ou de representante da pessoa coletiva. “O juízo sobre a responsabilidade da pessoa coletiva pressupõe que se atenda ao quadro de competências da pessoa física e ao modo como elas foram concretamente exercidas” (…). Só desta forma se pode aferir da gravidade, objetiva e subjetiva, do facto, realizado em nome e no interessa da pessoa jurídica, por aqueles que têm o poder de a vincular” (Cf. Susana Aires de Sousa, “Questões Fundamentais de Direito Penal da Empresa”, pág. 109).

Ora, os factos que suportam o juízo de imputação do ilícito contraordenacional à pessoa coletiva integram o objeto do processo, pelo que têm de constar do despacho de acusação, constituindo a respetiva prova pressuposto da condenação da pessoa coletiva.

Na sentença sob recurso em lado algum se encontra identificado o ou os legais representantes da arguida/recorrente, ignorando-se qual a cadeia de responsáveis da obrigação de envio da cópia do inventário das fontes radioativas, ou seja, quem foi o autor da conduta/omissão contraordenacional em causa nos autos não sendo essencial a identificação da pessoa responsável em concreto, mas a imputação da omissão a quem represente legalmente a sociedade). Tal imputação factual mostra-se imprescindível à imputação (orgânica) da ação ou omissão à pessoa coletiva, e na sua ausência não poderá revelar-se minimamente indiciado o preenchimento do pressuposto exigido pela 2ª parte do n.º 2 do art. 7º do RGCO (praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções).

Na realidade, a pessoa coletiva só poderá ser responsabilizada por uma contraordenação se existir conexão entre a atuação ou omissão geradora da ilicitude por parte do órgão, agente, representante ou trabalhador e as suas funções no âmbito da prossecução do objeto da pessoa coletiva. É fundamental para a imputação da contraordenação à pessoa coletiva que o representante naquela situação concreta tenha atuado por causa das suas funções.

O que não sucede no caso de que nos ocupamos, em que os factos são em exclusivo imputadas à empresa arguida, sem estabelecer qualquer ligação entre os factos ilícitos e um seu representante – remetendo uma maior fundamentação para as decisões anteriormente proferidas pela subscritora acima referidas.

Ana Carolina Cardoso