SUSPENSÃO DE EXECUÇÃO DA PENA
PRORROGAÇÃO IMPLÍCITA DO PERÍODO DA SUSPENSÃO
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
PRONÚNCIA SOBRE O CUMPRIMENTO DA PENA EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário

I- Não obstante se tenha inscrito na escola de condução e comparecido em algumas aulas teóricas, em 14/6/2021, 15/6/2021 e 17/6/2021, deixou de o fazer desde então e a licença de aprendizagem expirou em 14/6/2023 sem que tenha requerido provas de exame. O arguido não apresentou qualquer justificação (junto do processo ou da DGRSP), desconhecendo-se o seu atual paradeiro. Estamos, assim, perante uma atitude particularmente censurável, de persistente descuido, leviandade e desprezo pela condição de suspensão de execução da pena, que não pode deixar de ser qualificada de grosseira e de repetida.
II- Tendo a sentença transitada em julgado em 30/6/2021 e datando a decisão recorrida de 16/5/2024, e tendo durante todo esse período o Tribunal averiguado do cumprimento pelo arguido do dever que lhe foi imposto, houve claramente uma implícita prorrogação do período da suspensão, sendo que nem sequer nesse prazo o arguido cumpriu tal dever.
III- Uma vez decretada a revogação da suspensão da pena de prisão, o Tribunal tem de se pronunciar sobre a possibilidade de a pena ser cumprida em regime de permanência na habitação.
IV- Ora, a decisão recorrida não se pronunciou sobre tal questão, pelo que o Tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia, gerador de irregularidade que é de conhecimento oficioso, por este Tribunal de recurso.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

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-»  O arguido … foi condenado, por sentença datada de 31-05-2021 e transitada em julgado, pela prática, a 21 de Março de 2021, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Dec. Lei 2/98 de 3 de janeiro, por referência aos artigos 121.º a 123.º, do Código da Estrada, numa pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano e condicionada à sujeição a exame teórico e prático de habilitação para conduzir, a comprovar nos autos até ao termo do período da suspensão.

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No mesmo processo foi proferida, em 16.05.2024, decisão que revogou a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido fora condenado, determinando o cumprimento pelo arguido da pena de 10 meses de prisão ao abrigo do disposto no artigo 56.°, n.° 1, alíneas a) e b) e n.° 2, do Código Penal

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-» Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o arguido, motivando o recurso, que apresenta as seguintes conclusões: (transcrição)

B-O Tribunal a quo, proferiu o douto despacho, através do qual considera que, o condenado violou infringiu grosseira e repetidamente os deveres que lhe foram impostos, pelo que, se impõe a revogação da suspensão da pena de prisão, nos termos do disposto do art.º 56/1, al. a) e nº 2, do Código Penal

C - O arguido sustenta que não se verificam preenchidos os requisitos do mencionado normativo, razão pela qual se justificará o presente recurso.
D - Apesar do teor do douto despacho em impugnação, o certo é que, o arguido se inscreveu na Escola de Condução …, tendo frequentando as aulas tóricas até ao dia 17-06-2021, já depois de condenado por sentença.

F- a situação financeira do arguido, à data da prolação da sentença, era muito débil, que impunha a adoção de medidas urgentes para prover o sustento do agregado familiar;
G-O arguido para lá de se encontrar na situação de desempregado, não tinha qualquer expetativa profissional que lhe pudesse perspetivar melhor futuro, …
H-Por isso, tudo indica que o arguido rumou a França à procura de melhores condições de vida.
I- Ter-se-á esquecido das obrigações a que está sujeito por via do Termo de Identidade e Residência. Ou, ter-se-á convencido que, havendo sentença, as condições resultantes da aplicação do TIR teriam terminado.
J -O arguido iniciou o cumprimento da condição para que pudesse beneficiar da suspensão da pena. Isto é, iniciou a frequência das aulas teóricas, o que demonstra ter interiorizado a douta decisão.
K- Esta realidade deixa-noscom a seguinte dúvida: terá o arguidoincumprido por desrespeito dadecisão ou, porque se convenceu, erradamenteque, com aprolação dasentença, terminam as imposições resultantes do TIR?
L-Será que, não tendo o arguido respondido às diversas notificações, nem recebido as cartas registadas que foram endereçadas pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, mas tendo iniciado o cumprimento da condição para que pudesse verificar-se a suspensão da pena, com a inscrição na escola de condução é suficiente para considerar estarem violados, de forma groseira e repetida, os deveres que lhe foram impostos, que importem a revogação da suspensão da execução da pena de prisão?
M- Parece-nos que não. Pode até acontecer, por múltiplas razões possíveis, que o arguido não tenha qualquer responsabilidade por essa falta de resposta às notificações que lhe foram dirigidas para a morada do TIR, não se encontrando demonstrado nos autos tal realidade factual, não há segurança para proferir decisão tão importante como revogar a suspensão da execução da pena de prisão.
N- O incumprimento da resposta às notificações e à consequente inscrição na Escola de Condução para se sujeitar a exame teóricoe prático de habilitaçãopara conduzire comprovar nos autos até ao termo do período da suspensão, pode ter resultado, tanto da falta de compreensão do período durante o qual produz efeitos o TIR, como pode ter ocorrido por manifesta e necessária necessidade de sair daquela habitação e procurar emprego.
O- Donde, não resulta demonstrado dos autos que, o incumprimento das condições da suspensão se manifestem ser de forma “grosseira ou repetidamente”.

P- Salvo melhor e respeitável entendimento, poderia o douto Tribunal ter optado por aplicar o disposto no artigo 55º do CP, designadamente, prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, nos termos previstos pelo artigo 55º/ aliena d) do CP.

Q-Violou o douto Tribunal a quo, o disposto pelo art.º 56º/1 al a) e nº 2 e o artigo 55º, alínea d) ambos do CP.
                    

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            O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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-» Ao recurso respondeu o Ministério Público …

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Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, …

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            Cumprido que foi o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP, não foi dada resposta.

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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.

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II – questões a decidir.

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir prende-se com saber se, à data da prolação do despacho recorrido, estavam verificados os pressupostos da revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

III – Factos relevantes para a decisão do recurso:


A) O recorrente foi condenado, no âmbito dos presentes autos, por sentença datada de 31-05-2021, transitada em julgado a 30-06-2021, pela prática a 21 de março de 2021, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, por referência aos artigos 121.º a 123.º, do Código da Estrada, numa pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano e condicionada à sujeição a exame teórico e prático de habilitação para conduzir, a comprovar nos autos até ao termo do período da suspensão.
B) Decorrido o período de suspensão, por despacho de 6/7/2022, foi o arguido notificado, bem assim como a sua Ilustre Defensora, para juntar aos autos em dez dias comprovativo da sujeição a exame teórico e prático de habilitação para conduzir.

O arguido nada disse no prazo concedido.
C) Em cumprimento de despacho judicial proferido a 11/10/2022, oficiou-se ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes I.P. (I.M.T.) para que informasse se existir registo de carta de condução titulado pelo arguido, tendo a informação sido negativa.
D)  A Escola de condução …, veio informar que o arguido frequentou aulas aulas no módulo comum de segurança rodoviária e de Teórica comum, até ao dia 17-06-2021.
E) Foi designada data para a inquirição do arguido, mas este, apesar de regularmente notificado na morada constante do termo de identidade e residência, não compareceu à diligência, nem justificou a sua falta.

A diligência foi adiada com vis a apurar a nova morada do arguido.
F) Apurada  nova morada e agendada nova diligência de inquirição do arguido, esta não se realizou porque não não foi possível notificar pessoalmente o arguido, que teria emigrado para França.
G) A Direção Geral dos Assuntos Consulares, informou desconhecer o paradeiro do arguido.
H)  Foi agendada nova diligência de audição do arguido e este, regularmente notificado na morada indicada no TIR, não compareceu novamente à mesma.
I) Foram novamente realizadas pesquisas para apurar do paradeiro do arguido e oficiou-se à Escola de Condução de … para que informasse se o arguido se sujeitou a exame teórico-prático de habilitação de conduzir e, na afirmativa, em que data.
J) …
K) Agendada nova data para a audição do arguido e determinada a sua notificação por contacto pessoal, esta não foi possível na medida em que não foi encontrado em Portugal.
L) Após, foi novamente solicitada à Direção Geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas informação sobre se o arguido se encontra registado em algum Consulado Português, designadamente em França e, na afirmativa, qual a sua morada e foi oficiado ao gabinete do SIRENE com vista à localização do paradeiro do arguido.

Nenhuma informação se obteve.
M) A 18/12/2023, o MP promoveu no sentido da revogação da suspensão da execução da pena de prisão e consequente cumprimento da pena de 11 meses de prisão.
N) Notificada o arguido do teor da referida promoção, veio este requerer que se oficiasse  à Direção Regional de Mobilidade e Transportes do Centro para que esta informe se o arguido é detentor da licença para conduzir ou se em algum momento se sujeitou a exame teórico e prático com vista à obtenção da licença de condução.
O) A instâncias do Tribunal, o  IMTT veio informar que a carta de condução do arguido foi cancelada e que, a 11-06-2021, foi requerida Licença de Aprendizagem para a categoria B, que já expirou a 14-06-2023, sem que tenha sido requerido provas de exames.
P)  O Ministério Público renovou a sua anterior promoção e, notificado que foi o Ilustre Defensor do arguido, pugnou pela não revogação da suspensão da execução da pena por não se encontrar demonstrado que o arguido tenha infligido grosseira e repetidamente os deveres ou regras impostas.
Q) Solicitou-se à DGRSP a elaboração de relatório social atualizado relativamente ao arguido.
R) A DGRSP veio informar que o arguido faltou às convocatórias remetidas e não contactou a equipa e ainda que já não reside na morada indicada nos autos desde há cerca de 1 ano.
S) Notificados os sujeitos processuais para se pronunciarem, mantiveram as suas anteriores pronúncias.
T) Em 19/4/2023 foi proferido despacho judicial com o seguinte teor:

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        No caso dos autos, transcorrido o período da suspensão da execução da pena de prisão, verifica-se que o arguido não cumpriu com a condição imposta na sentença transitada em julgado, isto é, a sujeição a exame teórico e prático de habilitação para conduzir, a comprovar nos autos até ao termo do período da suspensão.

        Notificado por diversas vezes para esclarecer tal situação, o arguido nada disse, conforme se explanou melhor supra.

Após a condenação nos presentes autos, demonstrou o arguido falta de colaboração na execução da pena substitutiva, ao ter faltado injustificadamente às convocatórias deste tribunal e da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais por forma a aferir dos motivos de incumprimento da condução imposta, não dando conta da sua alteração de morada por referência ao termo de identidade e residência.

        O tribunal fez inúmeras diligências para apurar o paradeiro do arguido, as que se revelaram sempre infrutíferas.

        Conforme se mencionou, o arguido não cumpriu a obrigação imposta como condição da suspensão, alterou a sua morada sem aviso prévio e falta a todas as convocatórias encetadas.

        Designada por três vezes data para audição do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 495.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, tendo sido feitas diligências no sentido de notificar o arguido para ser ouvido neste Tribunal, o que não foi possível, por não ter sido encontrado, sendo desconhecido o seu paradeiro.

        Ora, quer a impossibilidade de contactar o arguido, quer o facto de não ter cumprido a condição imposta, sem apresentar qualquer justificação para tal, demonstram com toda a clareza que as finalidades que estiveram na base da suspensão da execução da pena de prisão não lograram ser alcançadas, pois que, não obstante a iminência da pena de prisão, o arguido não cumpriu as condições impostas e ausentou-se sem que tenha comunicado para onde, sendo de momento desconhecido o seu paradeiro.

        Destarte, entende o tribunal que as finalidades da punição se mostram irremediavelmente frustradas, obstando a que o tribunal se socorra da aplicação do artigo 55.º do Código Penal em detrimento da opção da revogação da suspensão que, como se disse, constitui a ultima ratio, tanto é que a sentença foi proferida oralmente com o arguido presente, sabendo que o impacto das condenações assume diferente proporção caso sejam ou não comunicadas presencialmente aos arguidos, ao que acresce que a situação atual do arguido, que não veio aos presentes autos apresentar qualquer justificação para o seu comportamento relapso.

        Destarte, e em face da conduta assumida pelo arguido, que injustificadamente se coloca numa situação de incumprimento, entende o tribunal que através da manutenção da suspensão conforme decretada em sede de sentença, já não é possível alcançar as finalidades da punição, esperando que o arguido altere a sua postura, e, consequentemente, seja merecedor de um oportunidade para cumprir o regime imposto.

        …

        Efetivamente o arguido inscreveu-se na escola de condução e frequentou aulas teóricas, contudo, o dever imposto era o de se sujeitar a exame teórico e prático de habilitação para conduzir a comprovar nos autos até ao termo do período da suspensão, o que não sucedeu.

        Ainda que se cogite que o arguido tenha emigrado para França na busca de novas oportunidades e de emprego, o certo é que tal sempre será uma mera hipótese, porquanto o arguido, tal como era seu dever, nada comunicou ao tribunal nesse sentido.

        Destarte, qualquer das medidas previstas no artigo 55.º do Código Penal se afiguram, pois, insuficientes face à postura do arguido, não constituindo alternativa viável à ressocialização do mesmo e demais finalidades da punição.

        O facto de o arguido alterar a sua morada do termo de identidade e residência e nenhuma justificação prestar para o não cumprimento do dever imposto na sentença, revela a sua postura de indiferença perante a ordem jurídico-penal, não sendo suficiente a simples censura do facto e a ameaça de prisão para que o mesmo adotasse uma conduta conforme ao direito.

Face ao exposto, ao abrigo do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, decide-se revogar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA e, em consequência, determinar o cumprimento da pena de 10 (dez) meses de prisão em que foi condenado nos presentes autos.”

IV- Apreciando o mérito do recurso:

A suspensão da execução da pena de prisão, prevista no artigo 50º do Código Penal tem como pressuposto material de aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, que conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente.

Subjacente à suspensão da execução da pena de prisão está sempre “a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda” (Jorge de Figueiredo Dias, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, 1993, 344).

E o Tribunal da condenação, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, que foi o que aconteceu no caso em apreço.

Esses deveres ou regras de conduta podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento, o que significa que o conteúdo da pena de suspensão da execução da prisão está sujeito, dentro dos limites legais, mesmo independentemente de incumprimento do condenado, a uma cláusula “rebus sic stantibus” (artigos 51.º, n.º 3, 52.º, n.º 3 e 54.º, n.º2, do C. P).

Verificando-se uma situação de incumprimento das condições da suspensão,  haverá que distinguir duas situações: uma primeira, quando no decurso do período de suspensão, o condenado, com culpa, deixa de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta, ou não corresponde ao plano de readaptação, podendo o tribunal optar pela aplicação de uma das medidas previstas no artigo 55.º do CP (a saber: fazer uma solene advertência; exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação; prorrogar o período de suspensão) e outra segunda, quando no decurso da suspensão, o condenado, de forma grosseira ou repetida, viola os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de readaptação, ou comete crime pelo qual venha a ser condenado e assim revele que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por intermédio desta, ser alcançadas, a suspensão é revogada (artigo 56.º, n.º 1, do C. Penal).

A revogação da suspensão só se impõe, nos termos da al. a) do nº 1 do art. 56º do Código Penal quando o condenado infrinja grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de reinserção e cumulativamente revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, infirmando-se definitivamente o juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro.

As causas de revogação da suspensão da execução da pena de prisão “não devem, de facto, ser entendidas com um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão. O arguido deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da pena”– cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, editora: Rei dos Livros em anotação ao art.º 56º

Impõe-se, por isso, uma especial exigência na indagação e apreciação de todos os factos e circunstâncias susceptíveis de relevar na aferição da possibilidade de manutenção ou não do juízo de prognose favorável relativo ao comportamento que o condenado irá de futuro adoptar.

Ou seja, mesmo em caso de infracção grosseira e repetida aos deveres e às regras de conduta (podendo já configurar-se a previsão do art. 56º, nº 1, al. a), do CP), há que ponderar sempre, e previamente, a viabilidade da manutenção da ressocialização em liberdade.

A este respeito, lembra o Ac RE de 08-03-2018, Processo: 2207/13.1GBABF-A.E:

Os princípios da intervenção mínima do direito penal, da proporcionalidade e da necessidade da pena cobrem todo o iter aplicativo, todo o processo de determinação da sanção, que é uma actividade judicialmente vinculada, na expressão de Figueiredo Dias e de Anabela Rodrigues. Esta vinculação perdura até à extinção da sanção aplicada, no processo, ao condenado. Assim, a revogação da suspensão da prisão é a consequência máxima para o incumprimento culposo, e este sentido de ultima ratio retira-se também da evolução histórica do preceito legal em causa.”

Paulo Pinto de Albuquerque n Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, págs. 201 e 202, esclarece que a infração grosseira “não tem de ser dolosa, sendo bastante a infração que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade (…) A colocação intencional do condenado em situação de incapacidade de cumprir as condições da suspensão constitui violação grosseira dessas condições” enquanto a infração repetida “é aquela que resulta de uma atitude de descuido e leviandade prolongada no tempo, isto é, que não se esgota num acto isolado da vida do condenado, mas revela uma postura de menosprezo pelas limitações resultantes da sentença condenatória”.

Ainda segundo a mesmo autor “O critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado. Com efeito, a condição prevista na parte final da al. b) do n.º 1 (”e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”) refere-se a ambas as causas de revogação da suspensão previstas nas duas alíneas

Naturalmente que a formulação deste juízo apenas é possível após a recolha dos elementos indispensáveis para o efeito, sem deixar de ter em consideração, por um lado, que a prisão constitui sempre a ultima ratio e, por outro, que nessa avaliação não podem ser postergados os direitos constitucionais do contraditório e da audiência do arguido consagrados no art. 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.

Na doutrina, André Lamas Leite, in “A suspensão da Execução da Pena Privativa de Liberdade sob Pretexto da Revisão de 2007 do Código Penal, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. II, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, pág. 620 e 621, defende que:

"…, a exigência constitucional do exercício do contraditório (art. 32º, nº 2, in fine) e as previsões normativas dos artigos 61º, nº 1, al. b), e 495, nº 2, ambos do CPP, só admitem a conclusão de que é obrigatório que o tribunal, antes de determinar a revogação da suspensão de execução da pena privativa de liberdade, envide todos os esforços necessários à audição do condenado."

Ora, no caso dos autos, é irrefutável o incumprimento pelo arguido dos deveres impostos.

Quanto à causa do incumprimento, o arguido não a indicou e ausentou-se da morada do TIR sem dar conhecimento ao Tribunal da nova morada.

Não obstante as múltiplas diligências feitas pelo Tribunal, o paradeiro atual do arguido permanece desconhecido, o que inviabiliza, quer a sua audição presencial, quer a obtenção de informação sobre as suas atuais condições de vida.

Seguimos o entendimento plasmado no Ac RG de 06-03-2017, Processo: 182/11.6GAFAF.G1:

“se o condenado, notificado para comparecer nos termos e para os efeitos do disposto no art. 495º, n.º 2, faltar à diligência, sem qualquer justificação, e não se mostrar possível assim a sua audição por razões a si imputáveis, será de seguir o princípio estabelecido no n.º 4 do art. 185º da Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro, relativamente ao incidente de incumprimento da liberdade condicional, situação em que também se exige a audição presencial, e segundo o qual "A falta injustificada do condenado vale como efetiva audição para todos os efeitos legais."

Ou seja, no caso em apreço, o contraditório fez-se através da notificação do defensor do arguido, que não indicou causa para o incumprimento do arguido.

No despacho recorrido, a Exma. Juíza a quo considerou não restarem dúvidas de que o condenado incumpriu as obrigações que lhe foram impostas como condição da suspensão da pena, concretamente a de se sujeitar a exame teórico e prático de habilitação para conduzir infirmando, dessa forma, o juízo de prognose favorável de que beneficiou aquando da condenação, frustrando as finalidades de ressocialização que estiveram na base da suspensão da execução.

Afigura-se-nos inteiramente correta essa avaliação.

Com efeito, não obstante se tenha inscrito na escola de condução e comparecido em algumas aulas teóricas, em 14/6/2021, 15/6/2021 e 17/6/2021, deixou de o fazer desde então e a licença de aprendizagem expirou em 14/6/2023 sem que tenha requerido provas de exame. O arguido não apresentou qualquer justificação (junto do processo ou da DGRSP), desconhecendo-se o seu atual paradeiro.

Estamos, assim, perante uma atitude particularmente censurável, de persistente descuido, leviandade e desprezo pela condição de suspensão de execução da pena, que não pode deixar de ser qualificada de grosseira e de repetida.

Houve claramente da parte do condenado, ao longo de vários anos, uma vontade consciente e intencional de não cumprir o dever que lhe foi imposto, demonstrando não estar minimamente empenhado em habilitar-se a conduzir e, dessa forma, promover a sua ressocialização.

Em suma: o arguido agiu com culpa e demonstrou uma atitude deficitária ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta e incapacidade de alterar de forma consistente as suas opções de vida e de passar a pautar a sua vida pela conformidade ao direito, manifestamente desaproveitando a oportunidade que lhe tinha ido concedida com a suspensão da execução da pena de prisão.

Acresce que, tendo a sentença transitada em julgado em 30/6/2021 e datando a decisão recorrida de 16/5/2024, e tendo durante todo esse período o Tribunal averiguado do cumprimento pelo arguido do dever que lhe foi imposto, houve claramente uma implícita prorrogação do período da suspensão, sendo que nem sequer nesse prazo o arguido cumpriu tal dever.

Assim, e como bem concluiu a decisão recorrida, está demonstrado que as finalidades de ressocialização que estiveram na base da decisão de suspender a execução da pena não puderam, por esta via, ser alcançadas, mostrando-se inequivocamente frustradas, pelo que não restava outra solução que não a de revogar a suspensão da execução da pena ao abrigo do disposto no art. 56º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

Desta forma, não se mostra violado nenhum dos normativos indicados pelo recorrente no recurso interposto

Porém, a verdade é que o Tribunal a quo se esqueceu do disposto no artigo 43º, nº 1 do Código Penal, na redação dada pela Lei nº 94/2017, de 23 de agosto, onde se lê que:

Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:

 a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;

 b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80º a 82º;

c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no nº 2 do artigo 45º”.

A este respeito, escreveu-se no Ac RP de 07.03.2018, Processo: 570/15.9GBVFR-A.P1, in www.dgsi.pt:

“…

Com as alterações introduzidas pela Lei nº 94/2017 de 23/08, o regime agora previsto no artigo 43º do Código Penal passou a constituir não só uma pena de substituição em sentido impróprio, mas também uma forma de execução ou de cumprimento da pena de prisão.

Por isso, admite-se agora expressamente que, revogada a pena não privativa da liberdade (em cuja tipologia se enquadra a pena de prisão suspensa na sua execução), a pena de prisão não superior a dois anos possa ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir (artigo 43º nº 1 al. c) do Código Penal).

A nova lei traduz o entendimento generalizado de que as penas curtas de prisão devem ser evitadas por não contribuírem necessariamente para a ressocialização efetiva do condenado. Foi, inclusivamente, na senda desse pensamento, que se procedeu à abolição da prisão por dias livres e do regime de semidetenção, alterando-se (através da ampliação do respetivo campo de aplicação) o regime de permanência na habitação.”

Ou seja, uma vez decretada a revogação da suspensão da pena de prisão, se esta não for superior a dois anos, tem o Tribunal de se pronunciar sobre a possibilidade de a pena de prisão aplicada a título principal ser cumprida em regime de permanência na habitação, podendo, naturalmente, concluir não estarem verificados os respetivos pressupostos.

A decisão recorrida não se pronunciou sobre tal questão, pelo que o  Tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia.

Diz-nos o STJ, no Ac. n.º 1/2024, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 02-02-2024, que o  despacho de revogação da pena substitutiva de suspensão de execução da pena não tem um caráter complementar ou integrador da sentença condenatória.

Escreve-se no referido aresto: “A sentença condenatória não está suspensa, é efetiva, completa e de execução imediata; é a execução da pena de prisão, de duração definitivamente determinada, que é suspensa, em razão da escolha de uma pena substitutiva. Com efeito, sendo a condenação em pena de substituição, a sua medida bem como a medida da pena de prisão que substitui estão definidas pela sentença, sendo aquela, apenas, revogada em incidente processual de incumprimento.

Deste modo, afastando a aplicação ao caso do disposto no artº 379 do CPP e não estando a apontada omissão legalmente tipificada como nulidade processual (cf. arts. 119º e 120º do mesmo diploma legal, a contrario), concluímos que estamos perante um vício gerador de irregularidade, sujeito ao regime do art.º 123º do CPP

A irregularidade em causa contende com direitos fundamentais do arguido,   designadamente o de ver jurisdicionalmente apreciada, se cabível ao caso, uma forma de cumprimento da pena menos atentatória da sua liberdade, constitucionalmente fundado no princípio da necessidade, proporcionalidade e adequação e no princípio da preferência pelas reacções criminais não privativas da liberdade (cfr. art. 18º, nº2, da CRP).

Por esse motivo, afeta a validade do despacho proferido e é, nessa medida, suscetível de conhecimento oficioso pelo tribunal ad quem.

De facto, o «[…] o n.º 2 do citado art. 123º, prevê uma válvula de escape, admitindo a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, obviamente limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se. Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente.

Porém, se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já a irregularidade pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição.”- neste sentido, cfr. o Ac. da RG de 21.11.2016, Proc. nº 42/13.6GBVRL-C.G1, citado no Ac. da RG de 2022-01-24, Proc. 52/18.7GAAMR-B.G e, ainda o Ac. RP 24-04-2024,  Proc. 8/21.2GBPFR.P1, in www.dgsi.pt.     

Assim, passaremos a suprir a apontada irregularidade, dado que os autos dispõem de todos os elementos necessários para o efeito, dizendo que, uma vez que se desconhece o paradeiro do arguido e respetivas condições de vida, é de todo inviável que a pena em que foi condenado seja cumprida em regime de permanência na habitação, nos termos do referido art.º 43º do CP

Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais considerações, é de concluir pela improcedência do recurso.


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IV. Decisão:

Pelo exposto, acordam as juízas desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, confirmando a decisão recorrida.

                                                           *

Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça. [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].

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Notifique.

                                                Coimbra, 20/11/2024


(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Sara Reis Marques

(Juíza Desembargadora Relatora)

Maria Alexandra Guiné

 (Juíza Desembargadora Adjunta)

Cristina Branco

 (Juíza Desembargadora Adjunta)