I - A nulidade da acusação por falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança é uma nulidade relativa, dependendo o seu conhecimento de arguição por parte dos interessados no prazo supletivo de 10 dias, do artigo 105.º, n.º 1, do C.P.P.
II - A falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança pode ainda conduzir à rejeição da acusação aquando do saneamento do processo, mas nesta fase não como causa de nulidade, mas como motivo de rejeição, de conhecimento oficioso, como resulta do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea c), do C.P.P.
III - Depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença o juiz não pode conhecer do mérito da acusação, rejeitando-a ou alterando-a, apenas lhe sendo permitido conhecer de questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa, que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc…) ou adjectiva (incompetência do tribunal, desistência de queixa, ilegitimidade, etc.), acerca das quais não tenha havido decisão e de que possa desde logo conhecer.
IV - Aquela falta de narração de factos não pode ser integrada em julgamento, ao abrigo do artigo 358.º do C.P.P., e deve ser conhecida na sentença.
V - Não sendo aceitável que se exija da vítima de violência doméstica, quando os comportamentos são reiterados e se prolongam ao longo dos anos, que fixe o dia concreto em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente, a descrição fáctica sempre terá que ter alguma concretização, de forma a que seja possível localizar as imputações no tempo e no espaço com suficiente precisão, ainda que por referência apenas ao ano, a algum momento festivo, a algum acontecimento, com mais ou menos significado, porque o arguido tem o direito a conhecer os concretos factos em que assenta a imputação do crime, para os rebater e, desse modo, se poder defender, exercendo o seu direito ao contraditório, constitucionalmente garantido no artigo 32.º, n.º 5, da C.R.P.
VI - A solução tem de ser encontrada caso a caso, tendo o tribunal que ponderar se a factualidade descrita tem a densidade suficiente para permitir uma defesa eficaz por parte do arguido, sendo que no crime de violência doméstica, e dadas as suas particularidades, apenas deverão ser tidas como não escritas as descrições que não contenham qualquer referência temporal que permita localizar os concretos episódios e, bem assim, o período em que perduraram, na medida em que podendo o crime em apreço (também de trato sucessivo) passar pela prática de múltiplos comportamentos reiterados que se prolongam no tempo, nele é também decisiva a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente.
VII - A ofendida destinatária de mensagens enviadas pelo arguido pode facultá-las ao OPC para efeitos da investigação criminal do crime de que se diz vítima, trata-se de prova válida, integrando tais mensagens prova documental, sujeita às regras de apreciação dos mesmos estabelecidas na lei.
VIII - Uma vez que não existiu nenhuma extracção de dados do telemóvel da ofendida não havia que cumprir o formalismo dos artigos 187.º a 189.º C.P.P. e também não havia que reduzir a auto tais mensagens, ao abrigo do artigo 275.º, pois não se tratou de “diligências de prova levadas a efeito no decurso do inquérito”, “denúncia” ou “atos a que se referem os artigos 268º, 269º e 271º do Código de Processo Penal”.
IX - A declaração de desistência da queixa por parte da vítima de crime de ameaça agravada não tem que ser relevada em sede de medida concreta da pena.
X - Sendo a vítima a proprietária e possuidora do computador adquirido pela sua mãe, a entrega de uma quantia por parte do arguido à mãe da vítima para a substituição do computador que ele danificou não preenche a condição estabelecida nos n.ºs 2 e 3 do artigo 206.º do Código Penal.
1. No processo comum singular, com o NUIPC 76/22.0GBPCV … foi proferida sentença, em 04-12-2023 [referência 92840405].
Inconformado com a decisão, interpôs recurso o arguido …
Por este Tribunal da Relação de Coimbra foi proferido acórdão … com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, acordam os juízes da 4º Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em, por omissão de pronúncia, declarar nula a sentença recorrida e, em consequência, determinam a baixa dos autos à primeira instância para que aí seja proferida nova sentença que supra a omissão apontada, depois de reaberta a audiência para que ali seja exercido o contraditório.»
Os autos baixaram à primeira instância e, ali, foi proferida nova sentença em … com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, julgando a acusação pública procedente, por provada, decide-se:
10.1) Condenar o arguido … pela prática, como autor material e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b), n.º 2, alínea a), n.ºs 4 e 5, Código Penal, numa pena de 3 (três) anos de prisão;
10.2) Suspender a pena de prisão fixada em 8.1.) pelo período de 3 (três) anos, suspensão essa sujeita às seguintes condições:
10.2.1) a regime de prova assente num plano de reinserção social a incidir, entre o mais que for conveniente para a ressocialização do arguido, na aquisição de competências sociais básicas direcionadas para a prevenção de comportamentos de agressão por violência doméstica e na frequência de programa relacionado com violência de género (conjugal) e filial, o qual deverá incluir o dever e as regras de conduta fixadas infra, a executar e vigiar pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (artigos 50.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5, 53.º e 54.º do Código Penal);
10.2.2) à regra de conduta de frequência de consultas de psiquiatria e/ou psicoterapia e tratamento necessário à condição de saúde mental do arguido (artigo 52.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3 do Código Penal);
10.2.3) às regras de conduta de afastamento do arguido da ofendida …, da sua residência ou local de trabalho e/ou estudo, bem como a proibição de contactos com a ofendida, por qualquer meio (artigo 34.º B, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, e artigo 52.º, n.º 2, do Código Penal).
10.3) Condenar o arguido … na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida …, a qual inclui o afastamento da residência ou do local de trabalho e/ou estudo daquela, por um período de 3 (três) anos, nos termos do artigo 152.º, n.ºs 4 e 5, do Código Penal;
10.4) Condenar o arguido … pela prática, como autor material e sob a forma consumada, de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal, numa pena de 100 (cem) dias de multa;
10.5) Condenar o arguido … pela prática, como autor material e sob a forma consumada, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153 n º 1 e 155 n º 1 alínea a) do Código Penal na pessoa de … numa pena de 110 (cento e dez) dias de multa;
10.6) Condenar o arguido … pela prática, como autor material e sob a forma consumada, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153 n º 1 e 155 n º 1 alínea a) do Código Penal na pessoa de … numa pena de 110 (cento e dez) dias de multa;
10.7) Em cúmulo jurídico das penas de multa referidas em 7.4, 7.5 e 7.6, condenar o arguido … numa pena única de multa de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros) …
10.8) Arbitrar uma indemnização à vítima …, nos termos do artigo 21.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, no valor de €4.000,00 (quatro mil euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal e anual de 4,00% (ou outra que venha a estar em vigor), desde a data da prolação da sentença até efetivo e integral pagamento»
2. Inconformado com a decisão, interpôs recurso o arguido …
O Recorrente formulou as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
3. O tribunal recorrido errou na aplicação do direito aos factos.
4. O n.º 3 do artigo 283.º C P Penal prescreve que o acusador deve narrar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, descrevendo lugar, tempo e modo de execução.
5. Perscrutando a peça acusatória não resulta que o Ministério Público tenha dado cumprimento ao ensejo legislativo de descrição do lugar, tempo e modo de execução.
6. Dos pontos 2 a 27 da acusação resulta que nenhum dia concreto foi indicado. Nem um !!! Apenas uma janela temporal de 4 (quatro) meses, durante a qual o arguido vem acusado de praticar actos subsumíveis no crime de violência doméstica.
7. No que tange aos pontos 33 a 36, apesar de tal conduta não resultar quer em concreto quer em abstracto a prática de qualquer crime, não vem indicada uma única circunstância de lugar. Não vem, pois referenciado o que, estamos em crer, seria o mais simples, a localização do evento.
8. Perante estes factos – enfocada, aqui, não, tanto na falta ou na dificuldade de prova, mas sim, na falta da sua dimensão temporal e/ou espacial, a impedir um cabal e efectivo direito de defesa e de contraditório - não só o arguido fica impedido de se defender, convenientemente, mas também, o Tribunal fica impossibilitado de aferir do “pedaço de história” que efectivamente lhe cumpre apreciar.
…
10.Tais pretensos factos, contidos nos pontos 2 a 27 e 33 a 36 da acusação, hão-se se ter como irrelevantes e carecidos de substrato que permitam integrar um qualquer tipo legal de crime e, mormente o de violência doméstica, por preterição em absoluto do direito de defesa do arguido.
11.Pelo que vem exposto deverão, pois, ser eliminados dos factos provados os pontos 2.1.2 a 2.1.26 e 2.1.32 a 2.1.34 da sentença recorrida.
12.A douta sentença recorrida violou o disposto nos art.º 283º n.º 3 do CPP e 32º n.º 1 da CRP.
13.O recorrente impugna a matéria de facto dada como provada sob os pontos 2.1.2 a 2.1.26, atento o manifesto erro de julgamento.
…
37. A condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica, deriva de manifesto erro de julgamento, não só tendo presente a desconsideração dos depoimentos acima reproduzidos bem como os infra referenciados, mas, também, pela total imponderação das regras da experiência comum e do normal acontecer, tudo com referência ao Homem médio.
38.Resultou demonstrado em julgamento que após terem terminado a relação, a ofendida e o arguido, por iniciativa daquela, continuaram a sair, a frequentar festas e, pasme-se, a manterem relações de cariz sexual.
…
40.A sentença recorrida padece do vício decorrente da insuficiência da matéria de facto dada como provada.
41.Os factos dados como provados nos pontos 2.1.35, 2.1.36, 2.1.50, 2.1.61, 2.1.62, e 2.1.63 estão sustentados em prova proibida e, como tal, nula. Resulta da sentença e da acusação que o suporte probatório para os descritos factos são as mensagens enviadas pelo arguido à ofendia através da plataforma WhatsApp e juntas aos autos a fls. 114 e contracapa (ponto 6 da prova documental da Acusação)
42.Com efeito, o que se encontra junto aos autos e serviu de suporte probatório para dar como provada a descrita factualidade são print’s de mensagens remetidas pelo arguido à ofendida.
43.Sucede que, ao abrigo do rito processual vigente impunha-se, para que pudessem ser valoradas, que tais mensagens fossem transcritas e reduzidas a auto, sob pena de nulidade.
44.Neste vector, importa fazer a distinção entre as transcrições das mensagens, que são meios de prova, e a extração das mensagens do telemóvel, que constituem um meio de obtenção da prova. No caso dos autos, as mensagens foram extraídas pelo OPC do telemóvel da vítima ( meio de obtenção de prova) mas não foram objecto de transcrição ( meio de prova).
45.As provas nulas são proibidas, ou seja, não têm efeitos no processo, pois está em causa o efeito dissuasor das proibições de prova, pretendendo-se evitar o sacrifício dos direitos, liberdades e garantias das pessoas por parte das autoridades judiciárias, órgãos de Policia Criminal e, inclusive, particulares, pelo que as mensagens escritas obtidas da forma descrita não podem ser utilizadas no processo, não podendo, por isso, servir para fundamentar qualquer decisão. Tal prova, processualmente, não existe...
46.Para além da nulidade do referido acto, a prova ilicitamente obtida inquina os actos que dela dependeram e os que afectou, o que se verificou face a toda a prova produzida em audiência de julgamento no presente processo.
47.A proibição do uso do referido meio de prova não perde força apesar do arguido ter confessado o envio de alguns SMS à ofendida cujo concreto teor não identificou, por dele não se recordar.
…
50.Os factos dados como provados sob os números 2.1.35, 2.1.36, 2.1.50, 2.1.61, 2.1.62, e 2.1.63 estrão sustentados em prova proibida e, em consequência, alterando-se a decisão quanto à matéria de facto, deverão ser considerados como NÃO PROVADOS.
51.A sentença recorrida violou os art.º 126º n.º 1 e 3, 275º, 187º, 188 e 189º do CPP e art.º 32º n.º 8 da CRP.
52.Ainda que não se entenda que as SMS constituem prova proibida, o que apenas por cautela de patrocínio se pondera, importa considerar que as mensagens (não se recordando o arguido do seu concreto teor) resultam de um ímpeto de raiva.
53.Diz-nos a experiência e o conhecimento da natureza humana que um quadro de traição conjugal despoleta normalmente sentimentos exacerbados, que passam pela mágoa, o orgulho ferido, o ressentimento, a revolta, a vontade de desforço e até o ódio.
54.Acresce que, as mensagens foram enviadas em Agosto de 2022 e a relação de namoro havia terminado em Janeiro do mesmo ano.
55.O envio das mensagens não pode, desta sorte, configurar o crime de violência doméstica.
…
58.O envio de mensagens, movidas por um quadro de comoção e sem que já existe há seis meses uma relação de namoro entre o arguido e a ofendida não permite concluir pela existência de maus tratos conforme vêm sendo entendidos na jurisprudência e doutrina, ou seja, enquanto situações de pura humilhação e desprezo pela pessoa da ofendida
…
65.No que tange ao crime de dano, o dano foi integralmente reparado. A douta sentença recorrida fez, desta sorte, uma errada aplicação do direito ao desconsiderar o estatuído no artigo 206º n.º 2 do CP.
66.A pena deverá ser especialmente atenuada.
67.A sentença recorrida violou os artº 206º n.º 2, 72º e 73º do CP.
…
69.A sentença recorrida violou o DL 401/82 de 23 de Setembro e o art.º 344º do CPP.
…
3. Ao recurso interposto pelo arguido respondeu o Ministério Público, …
4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto, emitiu parecer, …
5. Não foi apresentada qualquer resposta ao aludido parecer.
6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea c) do citado código.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso.
…[1], …
Atentas as conclusões formuladas pelo Recorrente, as questões a decidir são as seguintes:
a) – Eliminação dos pontos 2.1.2 a 2.1.26 e 2.1.32 a 2.1.34 da matéria de facto provada por conterem matéria vaga, genérica e conclusiva [conclusões 1. a 12.]
b) – Erro de julgamento a determinar que sejam dados como não provados os pontos 2.1.2 a 2.1.26, 2.1.27, 2.1.28, 2.1.32 a 2.1.34, 2.135, 2.136. 2.1.37 a 2.1.59, 2.1.61 a 2.1.63 e o aditamento de matéria de facto que indica [conclusões 13. a 51.]
c) – Violação do princípio “in dúbio pro reo” [conclusão 60.]
d) – Errada qualificação jurídica dos factos [conclusões 52. a 59.]
e) – Medida das penas [conclusões 64. a 69]
2. Da decisão recorrida.
A sentença proferida pelo Tribunal a quo é do seguinte teor (transcrição dos segmentos pertinentes ao objeto do recurso):
«2. Fundamentação de facto
…
2.2. Factos não provados
…
2.3. Da análise crítica das provas e convicção
…
Acresce que as mensagens juntas aos autos correspondentes às conversas que o arguido encetou com a ofendida via Whatsapp e dos quais resultam alguns dos factos dados como provados – particularmente as palavras que o mesmo lhe dirigiu - alicerçam igualmente as declarações prestadas pela ofendida, constituindo prova válida, apesar da exibição dessas mensagens não terem sido consentidas pelo arguido.
…
Desde logo, há que ter em consideração que, os presentes autos, os prints das mensagens juntos aos mesmo e, os quais de resto, constam de um relatório de informação de fls. 254 a 258, não dizem respeito a mensagens obtidas mediante a apreensão de qualquer computador ou telemóvel do arguido, mas, pelo contrário, tratam-se de mensagens que a ofendida apresentou à entidade policial como emitidas pelo arguido e recebidas no seu (dela) telemóvel.
…
Na realidade, não foi nenhuma autoridade processual que, violando as regras da aquisição da prova, nomeadamente as definidas nos artigos 187º e 189º do Código do Processo Penal, procedeu, de seu livre arbítrio, sem autorização do juiz de instrução criminal, à interceção das comunicações feitas via WhatsApp.
Diferentemente, foi a destinatária/recetadora das mensagens de WhatsApp que, por seu motu próprio, as apresentou à autoridade policial, limitando-se esta a tomar registo da denúncia nos termos em que formulada.
Nos termos do artigo 125.º do Código de Processo Penal, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
…
Assim, se os dados são apresentados por quem os detém ao órgão de polícia criminal, e entregues voluntariamente para junção aos autos, então não há qualquer pesquisa informática, nem apreensão de dados informáticos; à semelhança do que sucederia com qualquer objeto físico entregue para junção a inquérito, os dados são neste caso adquiridos processualmente mas não através de pesquisa informática (busca), nem através de apreensão.
E como tal, não faz sentido convocar para tais casos o regime da pesquisa informática, nem da apreensão de dados informáticos.
Ora, foi precisamente através de uma entrega voluntária que os WhatsApp agora em causa foram adquiridos processualmente, aquisição que dispensava qualquer intervenção de qualquer autoridade judiciária.
Resumindo dir-se-á que a aquisição processual das mensagens de WhatsApp em causa foi efetuada por entrega voluntária e sem pesquisa informática, não supondo, por conseguinte, qualquer intervenção de autoridade judiciária.
Subscrevendo Pedro Verdelho (Apreensão de Correio Electrónico em Processo Penal, in RMP, Ano 25.º, 2004, p. 157 e ss.), entende-se que as mensagens deixam de ter a essência de uma comunicação em transmissão para passarem a ser antes uma comunicação já recebida, que terá porventura a mesma essência da correspondência», em nada se distinguindo de uma «carta remetida por correio físico». E tendo sido já recebidas, «se já foram abertas e porventura lidas e mantidas no computador (ou no telemóvel, acrescenta-se) a que se destinavam, não deverão ter mais proteção que as cartas em papel em que são recebidas, abertas ou porventura guardadas numa gaveta, numa pasta ou num arquivo», visto o disposto no artigo 194.º, n.º 1, do Código Penal.
Assumindo esta equivalência à correspondência e levando em linha de conta o respetivo regime decorrente da norma ínsita no artigo 179º do CPP, não podemos descurar que uma tal disposição protege toda a correspondência enquanto ela não for aberta pelo seu destinatário – o que não foi o caso, nos presentes autos.
Aliás, mesmo no caso de gravações, tem-se admitido como válida a prova obtida através da intromissão nas telecomunicações sem consentimento do seu titular desde que se mostre imprescindível, atentas as circunstâncias do caso concreto, designadamente, se ocorrer causa de justificação, consistente numa legítima defesa – obter testemunho do crime praticado pelo arguido para o enfrentar e obstar a que prossiga na agressão - ou num direito de necessidade (probatório) - agir para obter prova para o perseguir criminalmente (neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, datado de 25.11.2014, no processo n.º 187/10.4ZRLSB.E1, do Tribunal da Relação do Porto, datados de 06.11.2019, no processo n.º 457/17.0PAVFR.P1, e de 27.06.2018, no processo n.º 277/15.7GCETR.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 22.10.2019, no processo n.º 8033/18.4T8SNT-A.L1-7, do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 10.07.2013, no processo n.º 907/10.7TAGRD.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Assim concluímos que as mensagens de WhatsApp juntas aos autos e carreadas para os mesmos pela ofendida, não constituem meio proibido de prova.
Acresce a isto que, tais mensagens de WhatsApp não constituindo um meio proibido de prova ao abrigo do artigo 126 º do Código do Processo Penal, o facto de não estarem reduzidas a auto por força do disposto do artigo 275 º do Código do Processo Penal como alega o arguido em sede de julgamento – apesar do relatório de informação de fls. 254 a 258 – estão em CD junto aos autos.
A referência de CD juntos aos autos, contendo dados das mensagens de WhatsApp está claramente descrita no despacho da acusação.
Por outro lado, dispõe o artigo 12-A da Lei 280/2013, de 26 de agosto (na sua redação atual conferida pela portaria 86/2023, de 27 de março), que:
“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a apresentação de peças processuais e documentos em suporte físico implica a sua digitalização pela secretaria do tribunal.
2 - Podem não ser digitalizados pela secretaria, sendo arquivados e conservados nos termos da lei, os documentos: a) Cujo suporte físico não seja em papel.”
E por conseguinte, não se verifica qualquer necessidade e/ou imposição legal de redução a auto das mensagens de WhatsApp que a ofendida carreou para os autos nos termos do artigo 275 º do Código do Processo Penal, não só porque as mesmas não resultaram de qualquer apreensão de correspondência, mas porque, estando as mesmas documentadas em CD, é desnecessária essa redução a documento escrito, não se verificando pois qualquer nulidade nos termos do artigo 189 º e 190 º do Código do Processo Penal.
…
3. Enquadramento Jurídico-Penal dos factos
…
O crime de violência doméstica é um crime específico uma vez que o agente ativo do crime não é um “quem” anónimo, mas sim um “quem” dotado de certas e determinadas – específicas – qualidades que, in casu, lhe advêm da posição que mantém em relação à própria vítima – relação de respeito em termos conjugais.
…
A conduta inerente ao crime, considerando que cada conduta poderá, por si mesma, constituir vários tipos de crime, terá que revestir-se de alguma gravidade, resultante da natureza e circunstâncias da ofensa ou da sua reiteração. Esta gravidade acrescida – que se espelha, desde logo, na diferente moldura penal face aos tipos de injúria, difamação ou ofensa à integridade física – encontra-se claramente subjacente à construção normativa do crime. É certo que a lei não mais exige a reiteração da conduta, como sucedia com o anterior artigo 152.º do Código Penal. …
As condutas materiais perpetradas pelo arguido preenchem quer o conceito de “maus tratos físicos” quer o conceito de “maus-tratos psicológicos” previstos na referida norma, os quais se podem consubstanciar em “humilhações, vexames, insultos, ameaças” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 07.10.2009, proferido no processo n.º317/05.8GBPBL.C2, na base de dados da D.G.S.I.; cfr. ainda, na mesma base de dados e do mesmo tribunal, o acórdão de 06.01.2010, proferido no processo n.º 583/07.4TATMR.C1).
De facto, o arguido ofendeu a honra e consideração da ofendida, imputando-lhe qualidades desvaliosas, ameaçou-a, agrediu-a fisicamente, embora sem consequências físicas, maltratou-a.
Os factos provados são expressivos da conduta possessiva e obsessiva do arguido, que manteve uma conduta agressiva e persecutória perante a ofendida, quer no domicílio da mãe da ofendida, quer no domicílio do próprio ofendido, sendo que, pelo menos um desses episódios ocorreu na presença da mãe da ofendida.
A dignidade da vítima ficou afetada com a conduta do arguido, em particular uma fase da sua vida que precisava, apenas, do seu apoio, amor e carinho, pois muitos desses factos ocorreram numa fase da vida da vítima na qual a mesma não tinha sequer atingido a maioridade.
Dos factos provados, dúvidas não restam a este tribunal que se reconduzem os episódios descritos ao fenómeno sociológico que o artigo 152.º do Código Penal pretende evitar e que corresponde às intenções político-criminais que lhe subjazem.
…
3.1.2 Do crime de dano
…
Está em causa no crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, nº 1, do CP, que reveste natureza semi-pública (cfr. seu nº 3), dependendo o respetivo procedimento de queixa.
…
Com a incriminação contida no normativo legal em apreço, o legislador propõe-se tutelar a propriedade, incluindo, o conceito penal de “propriedade”, o poder de facto sobre a coisa, com fruição das utilidades da mesma.
Por que assim é, ofendido no crime de dano é a pessoa proprietária, possuidora ou detentora legítima da coisa (cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, de 27.04.2011, proferido no processo 456/08.3GAMMV e disponível em www.dgsi.pt: “No crime de dano, p. e p. no artigo 212º, nº 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113º, nº 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição”).
…
O objeto da ação é uma coisa corpórea alheia, podendo esta ser móvel ou imóvel.
…
No caso vertente, provou-se que o arguido desferiu diversos murros no computador portátil que a ofendida utilizava para estudar e arremessou o mesmo contra uma mesa e contra a parede, até o partir e de seguida abriu o interior do computador portátil, onde se encontrava o respetivo disco rígido, o arguido desferiu diversas pancadas no mesmo até ficar todo partido.
Da conduta do arguido resultou um computador destruído, sendo necessária a sua substituição porquanto o mesmo se tornou imprestável ao desempenho das suas funções, perdendo a sua utilidade ao deixar de funcionar como computador, tendo este consubstanciado-se no objeto da violência do arguido, tendo com o seu comportamento atentado contra a substância da coisa.
…
Resultou ainda provado que o arguido entregou à mãe da ofendida, a quantia de € 600,00 (seiscentos euros) com vista a reparar o dano causado.
Todavia, e face ao que ficou explanado supra, quem apresentou queixa nos presentes autos foi a ofendida … na qualidade de possuidora e detentora legítima do referido computador, e não a sua mãe, ainda que tivesse sido esta a adquirir o computador em causa, sendo indiscutivelmente aquela a titular do direito de queixa na medida em que é a mesma a ofendida considerando-se ofendido o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (cfr. artigos 113º, nº 1, do Código Penal e artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do Código do Processo Penal), não resultando provado nos autos, que esta tenha recebido qualquer quantia a título de reparação.
…
3.1.3 Do crime de ameaça agravado
…
No crime de ameaça, a conduta típica deve gerar insegurança, intranquilidade ou medo no visado, de modo a condicionar as suas decisões e movimentos dali em diante, o que não acontecerá se a ameaça for de um mal a consumar no momento, na medida em que, ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal que constitui o seu objeto, sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado, não ficando o visado condicionado nas suas decisões e movimentos (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 20.12.2006, no processo n.º 064555320. disponível em www.dgsi.pt).
Ameaçar corresponde, portanto, ao ato de prometer ou pronunciar um mal futuro, de anunciar a intenção de causar, no futuro, um facto maléfico injusto, seja para bens pessoais, como a vida, a integridade física e a liberdade, seja para bens patrimoniais.
…
No caso vertente, não há dúvidas que o arguido praticou o crime de que vinha acusado contra …, bem como praticou o crime de que vinha acusado contra ….
De facto, do teor das mensagens de WhatsApp que o arguido enviou à vítima de modo a que … e … das mesmas fossem conhecedoras - e as quais o mesmo assumiu serem da sua autoria-, é possível ler em relação a … o seguinte: “Eu mato-vos as duas suas putas de merda”; “Quando apanhar a outra … já lhe faço a folha”. “Vais ver o que acontece a ti e à tua amiga” “já sei onde a tua amiga …mora e trabalha.
É também verdade que, resultou provado nos presentes autos que … no seu depoimento, manifestou a sua vontade de desistir da queixa que apesentou contra o arguido.
…
Todavia, tem, entretanto, assumido entendimento maioritário, a que aderimos que o crime de ameaça agravada atualmente tem natureza pública e, por conseguinte, não admite desistência de queixa.
…
Pelo exposto, o Tribunal não admitiu a desistência da queixa apresentada …
Em relação a …, resulta do teor dessas mesmas mensagens o seguinte: «A tua prima …está fodida»; «Avisa-a»; «Ela vai ver quem é que está a ameaçar»; … «Ela pode chamar a polícia e eu posso enviar uma bala na cabeça dela bem antes disso acontecer»; «Tu não me conheces imagina só ela»; «Ela que pense bem nas probabilidades. Que avalie as hipóteses. Estão todas do meu lado»; «Não tenho nada a perder e um homem sem nada a perder é muito perigoso»; «Um homem sem nada a perder é um homem sem medo»
…
4. Da determinação da pena principal e das penas acessórias
4.1. Da pena principal
…
4.1.1. Da aplicação do Regime Especial para Jovens
…
Este regime, cujo conhecimento pelo tribunal constituiu um poder-dever vinculado, não é, contudo, de aplicação automática, pelo que o tribunal só se socorrerá dele quando tiver “sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado”, na terminologia da lei (artigo 4.º), devendo apreciar, em cada caso concreto, a personalidade do jovem, a sua conduta anterior e posterior ao crime, a natureza e modo de execução do crime e os seus motivos determinantes, bem como a sua situação pessoal, familiar e sócio-profissional …
No caso vertente, mesmo considerando que o arguido não tem antecedentes criminais, a verdade é que, atentas as suas condições pessoais, o desvalor da ação e da personalidade manifestada nos mesmos, entende o tribunal que a atenuação referida não favorecerá a sua reintegração na sociedade.
…
4.1.2 Da medida da pena principal
…
3. Apreciação do recurso.
3.1. Da eliminação dos pontos 2.1.2 a 2.1.26 e 2.1.32 a 2.1.34 da matéria de facto provada por conterem matéria vaga, genérica e conclusiva.
Nas conclusões 1. a 12., do seu recurso, invoca o Recorrente a nulidade da acusação por não narrar de forma circunstanciada os factos (tempo, lugar e modo de execução), reportando-se à factualidade descrita nos pontos 2 a 27 e 33 a 36, correspondentes, na sentença, aos pontos 2.1.2. a 2.1.26. e 2.1.32 a 2.1.34.
Considera que foi violado o disposto no artigo 283º nº3 do Código de Processo Penal e que foi violado o seu direito de defesa, e por isso, o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
A matéria de facto que está em causa é a seguinte:
2.1.2. A partir do ano 2018, em data não concretamente apurada, o arguido …, e na sequência de discussões encetadas por si, começou a perpetrar maus tratos físicos e psicológicos sobre ….
2.1.3. Assim, e em datas não concretamente apuradas, mas seguramente ocorridas entre janeiro de 2018 e agosto de 2022, o arguido, com uma frequência, pelo menos, quase diária, e na sequência de discussões encetadas por si, apelidou … de «puta», «vaca nojenta», «putona», «lixo» e «filha da puta».
2.1.4. Nessas ocasiões, o arguido desferiu diversos murros, pontapés, cabeçadas, puxões de cabelo e empurrões no corpo de ….
2.1.5. Em datas não concretamente apurada, mas por diversas ocasiões, ao longo do namoro, o arguido disse a … que lhe iria encostar uma faca ao pescoço, e que a espetava na garganta, e, bem assim, que um dia lhe daria um tiro com uma caçadeira que tinha em casa e que se matava de seguida.
2.1.6. Em virtude desses comportamentos agressivos e intimidatórios, … tentou por diversas vezes, e desde 2018, terminar a relação de namoro com o arguido, não tendo conseguido até janeiro de 2022, …
2.1.7. No ano de 2018, em data não concretamente apurada, o arguido e … encontravam-se na residência daquele, …, estando a vítima a mexer no seu próprio telemóvel.
2.1.8. Ao ver que … não lhe estava a prestar atenção, o arguido queixou-se à vítima que esta estava a ignorá-lo.
2.1.9. Nessa sequência, foram ambos para o quarto do arguido, e, uma vez ali dentro, aquele retirou o telemóvel da mão de …, disse-lhe que o estava a ignorar e, em ato contínuo, desferiu um murro no corpo da vítima.
2.1.10. No ano de 2018, em data não concretamente apurada, na residência da vítima, … encontrava-se a estender roupa, quando o arguido, sem que nada o fizesse prever, desferiu um murro na face da vítima.
2.1.11. Em datas concretamente apuradas, mas que ocorreram entre final de 2017/início de 2018 e dezembro de 2021, o arguido, por diversas ocasiões, valendo-se da sua superioridade física, obrigou a vítima a ter relações sexuais vaginais consigo, colocando o seu corpo sobre o de …, e, nessa sequência, introduzindo o seu pénis ereto no interior da vagina da vítima, aí o friccionado, até ejacular.
2.1.12. Em data não concretamente apurada, mas ocorrida no ano de novembro ou dezembro de 2021, em …, o arguido e … dirigiram-se, no veículo automóvel daquele, para um descampado.
2.1.13. Aí chegados, o arguido, que se encontrava no lugar do condutor, propôs à vítima, que se encontrava no lugar do pendura, a realização de relações sexuais naquele momento, no interior do veículo, ao que … respondeu que não o queria fazer.
…
2.1.20. Ato contínuo, e persistindo no seu propósito, o arguido colocou-se sobre o corpo de …, que se encontrava deitada no lugar traseiro dos passageiros, e, valendo-se da sua superioridade física, introduziu o seu pénis ereto no interior da vagina de …, aí o friccionado, até ejacular.
2.1.21. Em data não concretamente apurada, mas ocorrida no mês de novembro ou dezembro de 2021, o arguido e … encontravam-se na residência do arguido, sozinhos, no quarto deste.
2.1.22. Querendo aproveitar essa circunstância, o arguido propôs a … a realização de relações sexuais, tendo esta respondido que não queria fazê-lo.
2.1.23. Nessa sequência, o arguido, sentindo-se contrariado, desferiu um golpe, de forma não concretamente apurada, na barriga de …, que se encontrava sentada num sofá, tendo abandonado o quarto e deixado a vítima a chorar.
2.1.24. Momentos depois, o arguido regressou ao quarto, e quando viu que a vítima tinha parado de chorar, aquele começou a despir-se à frente de …, dizendo diversas vezes a esta que tinha de o fazer.
…
2.1.26. Nesse instante e persistindo no seu propósito, o arguido colocou-se sobre o corpo de…, que se encontrava sentada no sofá, e, valendo-se da sua superioridade física, introduziu o seu pénis ereto no interior da vagina de …, aí o friccionado, até ejacular.
(…)
…
Se bem percebemos, vem o Recorrente, por um lado, arguir a nulidade da acusação por violação do disposto no artigo 283º nº3 do Código de Processo Penal e, por outro lado, considerando ter sido violado o seu direito de defesa, que a factualidade que indica, por genérica quanto ao tempo, modo e lugar, se tenha por não escrita.
Quanto à nulidade da acusação.
A acusação é uma peça processual fundamental repercutindo-se em todo o posterior desenrolar do processo.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-09-2010[2]:
«Sabida a importância de que a acusação se reveste para o subsequente desenrolar do processo, cujo objecto define e fixa, delimitando os poderes de cognição do tribunal (efeito correntemente designado como vinculação temática do tribunal, que implica a inalterabilidade, fora dos limites apertados das disposições dos arts. 358º e 359º, do objecto do processo), e as inerentes implicações com as garantias de defesa do arguido – uma das quais é, irrecusavelmente, a de lhe ser possibilitado o conhecimento antecipado, em toda a sua extensão, dos factos que lhe são imputados e da respectiva incriminação, de forma a poder organizar de forma adequada a sua defesa e exercer o direito do contraditório - pressupostas pelo processo equitativo e que o processo criminal tem de assegurar»
«(… a dedução da acusação deva revestir-se do maior cuidado, pelas repercussões que tem na tramitação ulterior. Uma acusação mal deduzida pode comprometer irremediavelmente o tratamento que o direito substantivo comina para um determinado comportamento humano.» – Cfr. Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”13ª edição, Coimbra, 2002, pág. 576570-571).
Na verdade, o legislador submeteu a dedução da acusação a requisitos muito precisos e rigorosos.
Assim, de acordo com o n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal:
“A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
g) A data e assinatura».
A sanção para a acusação que omita “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, é, pois, a nulidade.
A nossa lei processual penal estabelece um regime taxativo das nulidades – artigos 118.º, n.º 1, 119.º, n.º 1, e 120.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal.
…
Pode, pois, concluir-se que a nulidade prevista na alínea b) do n.º3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, por não ser cominada expressamente como insanável nesta disposição legal ou em qualquer outra, é uma nulidade relativa, dependente de arguição nos termos do artigo 120.º do Código de Processo Penal.
No que respeita ao prazo de arguição, uma vez que a situação em apreço não se enquadra em nenhuma das situações previstas no n.º 3 do artigo 120.º, teria de ser efetuada no prazo geral supletivo de 10 dias, previsto no artigo 105.º.
A verificar-se a arguida nulidade, tratar-se-ia de nulidade sanável a ser arguida no prazo de dez dias a contar da notificação da acusação[3].
Coloca-se a questão de saber se, não tendo sido arguida nos termos referidos, a deficiência da acusação traduzida em não conter a narração de factos nos termos definidos no artigo 283º nº3 alínea b) do Código de Processo Penal, tal deve ser conhecido no âmbito do despacho a proferir ao abrigo do artigo 311º do Código de Processo Penal, oficiosamente ou ao abrigo do disposto no artigo 338º nº1 do Código de Processo Penal.
Ora, o que é de conhecimento oficioso não são as nulidades da acusação, mas sim os vícios estruturais graves da acusação, a omissão total dos conteúdos obrigatórios.
Como vimos, a nulidade de acusação é sanável.
Consequentemente, “(…) se não for deduzida por algum dos interessados no prazo legalmente estabelecido, perante a autoridade judiciária competente, não pode ser conhecida enquanto tal em momento posterior, nomeadamente ao abrigo do disposto no art. 311.º, nº1 ou no art. 338.º, n.º1, ambos do CPP”[4].
O que acontece é que a falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança pode ainda conduzir à rejeição da acusação como resulta do disposto no artigo 311º, nº2, alínea a) e nº3, alínea c), do Código de Processo Penal.
Mas nesta fase de saneamento do processo, a falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena surge, não como causa de nulidade, mas como motivo de rejeição, de conhecimento oficioso.
Ultrapassada a fase de saneamento, aquela falta de narração de factos não pode ser conhecida ao abrigo do disposto no artigo 338.º do Código de Processo Penal, proferido despacho a receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, não pode, depois, o juiz proferir outro despacho a rejeitá-la.
Depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença o juiz não pode conhecer do mérito da acusação, rejeitando-a, alterando os factos ou a sua qualificação jurídica. Apenas lhe é permitido conhecer de questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa (artigo 338.º, n.º 1 do CPP), que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc…) ou adjetiva (incompetência do tribunal, desistência de queixa, ilegitimidade, etc.), acerca das quais não tenha havido decisão e de que possa desde logo conhecer.[5]
Mas se aquela falta de narração de factos não pode ser conhecida ao abrigo do disposto no artigo 338.º, ela pode (deve) ser conhecida na sentença.
Na sentença, é sabido que a falta de descrição, na acusação, dos elementos constitutivos do crime não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal - Cfr. vg. o Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2015, publicado no D.R. nº 18/2015, S.I., de 27-1-2015.
Como se assinala no acórdão do Tribunal da Relação de Évora identificado na nota (4):
«Ultrapassado o momento legalmente definido para a rejeição da acusação (art. 311.º do CPP), fica precludida tal possibilidade [de arguição da nulidade da acusação], o que, aliás, é conforme com o estabelecimento legal de fases e momentos próprios para o saneamento do processado, a partir dos quais fica precludida a possibilidade de invocar a infracção cometida e os efeitos produzidos pelo acto processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos.
No caso vertente, a acusação tornou-se definitivamente apta para suportar a acção penal em julgamento e os vícios previstos no nº3 do art. 311.º (incluindo a al. d)), apenas relevarão na apreciação do mérito da causa (e já não enquanto vício formal lesivo da validade da acusação), de acordo com o regime processual aplicável em audiência e o direito substantivo igualmente aplicável».
Revertendo ao caso dos autos, o arguido não arguiu a referida nulidade da acusação perante a autoridade judiciária competente no prazo legal.
Podia ainda ter invocado aquela falta de narração de factos perante o juiz de instrução como fundamento para o pedido de instrução para a não comprovação da acusação[6], mas não o fez.
A acusação foi recebida ao abrigo do disposto no artigo 311.º do Código de Processo Penal, não tendo sido rejeitada por manifestamente infundada, nomeadamente por falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena.
Consequentemente, nesta fase, a alegada nulidade, mostra-se, há muito, sanada.
De todo o modo, sempre se dirá que, contrariamente ao pretendido pelo Recorrente a acusação nunca poderia ser qualificada de nula.
Na verdade, e como veremos infra, embora a acusação contenha alguns segmentos genéricos, mostram-se os mesmos minimamente balizados no tempo e no espaço, sendo certo que, após esse tipo de “enquadramento” concretiza diversos episódios no espaço e no tempo.
Aquela acusação contém, assim, a narração de um núcleo de factos fundamentadores da aplicação de uma pena ao arguido, que resultaram provados e que constavam todos eles da acusação pública.
Improcede, pois, a arguida nulidade da acusação.
Se é certo que tal alegação não consubstancia qualquer uma das causas de nulidade da sentença, previstas no artigo 379º do Código de Processo Penal, vejamos assiste razão ao Recorrente na pretendida eliminação da matéria de facto descrita nos pontos 2.1.2. a 2.1.26. e 2.1.32 a 2.1.34. dos factos provados.
Ora, nos termos do artigo 374º, nº2, do Código de Processo Penal, a fundamentação da sentença consiste, nomeadamente, na enumeração dos factos provados e não provados.
No caso vertente, tal enumeração ocorreu.
Porém, é indiscutível que na seleção da matéria de facto, seja provada ou não provada, o Tribunal deve restringir-se à menção de verdadeiros acontecimentos factuais/naturalísticos, comportamentos concretos, localizados no tempo e no espaço, não podendo quedar-se na referência a generalidades, juízos de valor ou conceitos de direito, pois que, neste caso, por não estarmos em presença de FACTOS, tais asserções devem ser excluídas do acervo factual relevante.
Uma das questões frequentemente colocadas em sede de recurso de decisões de condenação pela prática de crime de violência doméstica e a de saber qual o grau de precisão e concretização factual, designadamente temporal e espacial, que se exige para a integração de tal ilícito, no qual a reiteração e a intensidade da ação do agente está no centro da sua definição e se vai prolongando ao longo de muitos anos, sem esquecer em que medida é que tal se compatibiliza com o direito de defesa do arguido (artigo 32º da CRP).
É também desta forma que o Recorrente coloca a questão sobre a qual ora nos debruçamos.
Ainda que o crime de violência doméstica possa consumar-se com um único ato, situação em que a sua localização temporal e espacial se torna mais facilitada, outras existem em que tal tipo legal de crime se consubstancia em inúmeros atos que se prolongam por muitos anos, décadas até, o que torna difícil, bastante mesmo, a sua concretização espacial e temporal.
E se é certo que não é aceitável que se exija da vítima quando os comportamentos são reiterados e se vão prolongando ao longo dos anos que fixe/memorize o dia concreto em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente, até porque todos sabemos que em face do contexto conflituoso em que ocorrem, pese embora o essencial fique gravado na memória da vítima, sempre escapam alguns pormenores, como por exemplo, a data ou o concreto local, a verdade é que a descrição fáctica sempre terá que ter alguma concretização, de forma a que seja possível localizar as imputações no tempo e no espaço com suficiente precisão, ainda que por referência apenas ao ano, a algum momento festivo, a algum acontecimento, com mais ou menos significado.
Com efeito, para além do direito à tutela penal que assiste à vítima, o arguido tem o direito a conhecer os factos imputados, os concretos factos em que assenta a imputação do crime em apreço, para os rebater e, desse modo, se poder defender, exercendo o seu direito ao contraditório, constitucionalmente garantido (artigo 32º, nº5, da Constituição da República Portuguesa).
Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados/imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos porquanto isso não apenas impede um eficaz exercício do direito de defesa, como impede o exercício do contraditório ínsito naquele.
Assim, não são factos suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado.
Como salientou o Acórdão do STJ de 21.02.2007[7]: “I - O princípio ou cláusula geral estabelecido no n. 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objeto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender.”.
Feitas estas considerações, a solução terá de ser encontrada caso a caso, ponderando se a factualidade descrita, designadamente em termos espácio-temporais, tem a densidade suficiente para permitir uma defesa eficaz por parte do arguido, ao nível do exercício do seu direito ao contraditório, sendo que, no crime em apreço, tendo presente as particularidades que assinalamos, apenas deverão ser tidas como não escritas as descrições que não contenham qualquer referência temporal que permita localizar os concretos episódios e, bem assim, o período em que perduraram, na medida em que podendo o crime em apreço (também de trato sucessivo), passar pela prática de múltiplos comportamentos reiterados que se prolongam no tempo, nele é também decisiva a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente.
Como se referiu no acórdão do STJ, de 20/2/2019[8], “(…) a falta de elementos mais circunstanciados respeitantes à localização temporal dos maus tratos tem que ser compreendida no contexto em que este tipo de crime ocorre, em dinâmica intrafamiliar, a maioria das vezes sem a presença de outras pessoas para além do ofensor e da ofendida (…). Acresce que, perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, os episódios em concreto diluem-se na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido, um pouco à semelhança de cada árvore que vê a sua individualidade ocultada na floresta. (…)”.
Vejamos então se os factos transcritos supra e apontados pelo Recorrente consubstanciam imputações vagas e genéricas, sem qualquer concretização temporal e se, nessa medida, impediram o efetivo exercício do direito ao contraditório por parte do arguido.
Adiantando a nossa conclusão, não vislumbramos que tais pontos da factualidade contenham matéria vaga, genérica, sem qualquer concretização.
Nos pontos 2.1.2. a 2.1.6., vêm descritos comportamentos do Arguido que apenas estão balizados no tempo por referência ao período do namoro (entre 2016 e 2022), mais concretamente, a partir de 2018, altura em que a ofendida tentou terminar a relação, sem que tal fosse aceite pelo Arguido.
Essas condutas estão descritas como maus tratos físicos e psicológicos, o que constitui, efetivamente, uma referência a conceitos, mas, nos pontos subsequentes, logo vêm concretizados tais comportamentos ao afirmar-se que o arguido apelidava a ofendida de “puta”, «vaca nojenta», «putona», «lixo» e «filha da puta», bem como se descrevem condutas como murros, pontapés, cabeçadas, puxões de cabelos e empurrões bem como ameaças de morte com recurso a facas ou arma de fogo.
Assim, entendemos que o que resulta da descrição factual em causa é que, embora venha referido o conceito de maus tratos físicos e psicológicos, expressão de índole conclusiva, o certo é que tal conclusão vais buscar a sua explicitação e substrato factual nos pontos seguintes, onde se concretiza o comportamento do Arguido, indicando-se concretamente os seus modos de atuação em relação à ofendida, as palavras ofensivas que lhe dirigia, as agressões que nela praticava e as ameaças que lhe dirigia.
O mesmo ocorre, mas agora de forma mais clara ainda, no tocante à restante matéria indicada.
O episódio mencionado em 2.1.7. a 2.1.9., está pormenorizadamente descrito e situado no espaço, assim como no tempo, embora não venha indicada uma data concreta (no ano de 2018); o episódio a que se reporta 2.1.10. está igualmente situado no ano de 2018, na residência da vítima e está descrito o comportamento adotado pelo Arguido; o episódio a que se reporta 2.1.11., também está concretizado e ali se refere que se repetiu apontando-se dois momentos (final de 2017/início de 2018 e dezembro de 2021); o episódio de violência narrado em 2.1.12 a 2.1.20., está descrito de forma pormenorizada, situado no tempo (novembro ou dezembro de 2021) embora não identifique o local, descreve-o como sendo um descampado e os factos decorrem dentro ou nas imediações do automóvel onde ali chegaram ambos; ocorre exatamente a mesma concretização quanto ao tempo (novembro ou dezembro de 2021), lugar (residência do Arguido) e modo de atuação no que concerne ao episódio narrado em 2.1.21. a 2.1.26.
No que refere à atuação do arguido descrita em 2.1.32 a 2.1.34., a mesma encontra-se descrita de forma muito concreta e tem relevância, senão em si mesma, no contexto de todo o comportamento adotado pelo Arguido, tanto mais que ali se diz que a vítima lhe pedia para entrar no carro a chorar.
Em suma, não encerrando as descritas atuações, imputações genéricas, vagas, sem qualquer concretização, impeditivas de um exercício efetivo do direito ao contraditório, mas, ao invés, factos, entendidos como acontecimentos ou comportamentos da realidade em apreço, relevantes para aferir da existência dos elementos integrantes dos crimes em causa, carece de fundamento a pretendida eliminação dos pontos 2.1.2 a 2.1.26 e 2.1.32 a 2.1.34 da factualidade provada.
3.2. Do erro de julgamento a determinar que sejam dados como não provados os pontos 2.1.2 a 2.1.26, 2.1.27, 2.1.28, 2.1.32 a 2.1.34, 2.135, 2.136. 2.1.37 a 2.1.59, 2.1.61 a 2.1.63 e o aditamento de matéria de facto que indica.
…
De todo o modo, e também muito sumariamente, se dirá que compulsada a sentença em crise não se vislumbra qualquer vício da decisão relativo à matéria de facto, elencados no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal.
Passemos, pois, à impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada, a que se alude nas conclusões 13. a 51.
Estipula o artigo 410, nº1, do Código de Processo Penal:
“Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”.
Por seu turno, prescreve o artigo 412º, nº3 do mesmo diploma legal:
“Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
No seu douto recurso, o arguido, cumprindo na motivação e respetivas conclusões os requisitos legais, insurge-se contra a circunstância de o Tribunal a quo ter dado por provada a matéria de facto constante dos pontos 2.1.2 a 2.1.28. e 2.1.32 a 2.1.34, pois considera que deveria se dada como não provada, assentando esta sua pretensão, essencialmente, no facto de considerar que os depoimentos das testemunhas …, assim como as suas próprias declarações apontarem em sentido diverso daquele que foi considerado provado.
Já quanto à matéria de facto descrita em 2.1.37. a 2.1.58., (episódio ocorrido no dia 23-08-2022) o Tribunal assentou a sua convicção, apenas no teor das declarações prestadas pela ofendida, ignorando as regras de experiência comum, sendo que, neste caso, a mãe da ofendida estava presente e descreveu os factos de forma muito distinta daquela que foi dada como provada.
Indica, por referência à gravação respetiva, as passagens de tais depoimentos e declarações que, assim, impõem decisão diversa, tanto mais que, as declarações para memória futura, em que o Tribunal assentou a sua convicção, são vagas, genéricas e não circunstanciadas.
Dá cumprimento, assim, ao ónus imposto pelo artigo 412º nºs 3 e 4 do código de Processo Penal, porém, tendo este Tribunal ouvido a prova na sua totalidade, não pode concluir como o Recorrente.
Vejamos:
Como tem entendido, sem discrepância, o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP -, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer.
Porém, nessa tarefa de reapreciação da prova pelo Tribunal de recurso intrometem-se necessariamente fatores como a ausência de imediação e da oralidade – sendo que, como é sobejamente sabido, a imediação e a oralidade constituem princípios estruturantes do direito processual penal português.
Em conformidade, a ausência de imediação e oralidade - dado que o “contacto” com as provas se circunscreve ao que consta das gravações - determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] .
Com efeito, quando está em causa a questão da apreciação da prova cumpre dar a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo. Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.
Ou seja, é comumente aceite que a (re) apreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso não implica a realização de um “segundo julgamento”, agora baseado na prova gravada, em que o Tribunal ad quem aprecia toda a prova produzida e documentada em primeira instância, como se o julgamento ali realizado não existisse.
Concluindo: o artigo 412º, nº3, al. b) do CPP, ao exigir que o recorrente que impugne a decisão proferida sobre matéria de facto especifique as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, implica que o tribunal de recurso só pode (e deve) alterar aquela decisão se da análise que faz das provas documentadas indicadas pelo recorrente, em concatenação com as regras da experiência comum e da lógica, concluir que o juízo probatório levado a cabo pelo Tribunal a quo é, à luz daqueles elementos, insustentável, indefensável (porque decidiu claramente sem prova ou em indiscutível contradição com as preditas regras), revelando-se por isso “obrigatório” decidir de forma distinta.
Diferentemente, «se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está» - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1, relator João Lee Ferreira, acessível em www.dgsi.pt.
Volvendo ao caso sub judice.
Assenta o Recorrente, essencialmente, a sua discordância no facto de o Tribunal a quo ter credibilizado as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, ignorando os depoimentos que menciona, o que não seria admissível, pois estas pessoas disseram nunca ter presenciado qualquer episódio de violência ou constatado a existência de marcas de agressão, ou, até, ouvido queixas por parte da ofendida, o que seria ainda mais flagrante no caso da testemunha … que é mãe da ofendida e que com ela residia.
Ora, para além do expendido supra quanto aos limites da apreciação da decisão sobre a matéria de facto por este Tribunal de recurso, sucede que, vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio da livre apreciação da prova, vertido no artigo 127º do CPP, e não estipulando a lei qualquer limitação às declarações do ofendido, o julgador pode assentar a sua convicção nessas declarações se lhe merecerem confiança, e ainda que exclusivamente, embora não seja o caso dos autos.
Aliás, tal sucede com frequência nos casos de violência doméstica em que os factos ajuizados ocorrem amiúde no recato do lar, sem a presença de testemunhas, como é o caso dos autos em que os episódios ocorrem na residência de um ou de outro, nos respetivos quartos e sem a presença de outras pessoas, no automóvel ou através do envio de mensagens por telefone.
No caso vertente, o Tribunal conferiu credibilidade às declarações do arguido, parcialmente confessórias, e às declarações da ofendida, estas devidamente corroboradas, pelo menos em parte, pelo depoimento prestado pelas testemunhas …
Não é, pois, verdade que o Tribunal tenha assentado a sua decisão exclusivamente no teor das declarações prestadas pela ofendida.
Com efeito, depois de se referir de forma pormenorizada ao sentido das declarações prestadas pelo Arguido conclui o Tribunal a quo que: “Como resulta do exposto, o arguido confirmou parcialmente a matéria da acusação pública, embora contextualizando a mesma de acordo com a sua “verdade” pretendendo justificar a sua postura com a traição da ofendida ao mesmo tempo que também a justifica com a sua própria personalidade. Apesar do arguido não ter confirmado in totum os factos vertidos na acusação, a verdade é que a demais prova foi suficientemente segura para concluir pela verificação dos factos descritos na acusação pública.”
Por seu turno, quanto às declarações prestadas pela ofendida, depois de delas fazer uma síntese esclarecedora e que corresponde ao teor das mesmas, o Tribunal a quo, justifica a credibilidade que lhes conferiu pela seguinte forma:
“A ofendida prestou declarações para memória futura, tendo sido dispensada de prestar declarações em sede de audiência de julgamento.
As declarações para memória futura prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal e artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do Tribunal, conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2017, publicado no Diário da República n.º 224/2017, Série I, de 21 de Novembro de 2017, tendo inclusivamente sido dada como reproduzidas em sede de audiência.
O relato produzido pela ofendida é expressivo dos comportamentos que o arguido assumiu para com a mesma, tendo prestado as suas declarações de forma visivelmente emocionada, o que não lhe retirou credibilidade. Pelo contrário. A forma como a ofendida prestou as suas declarações reforça a credibilidade dos factos que a mesma relatou, por ter sido espontânea e totalmente esclarecedora relativamente aos factos em causa neste processo.
Apesar deste tribunal não ter presidido às declarações para memória futura, a verdade é que não lhe suscitou quaisquer reservas quanto à veracidade do relato produzido pela ofendida pela sinceridade que tais declarações transmitiram ao tribunal.
(…)
A ofendida realça que esses comportamentos do arguido apareciam do nada, pois que o mesmo tinha um comportamento errático que lhe criava medo.
(…)
Quanto aos episódios das relações sexuais não consentidas, a ofendida começou por dizer que no início da relação tinham relações sexuais normais entre namorados, mas que depois, quando o arguido queria ter relações sexuais e a ofendida não, havia apenas um de dois desfechos: ou lhe batia apenas; ou lhe batia e forçava na mesma a relação sexual, dizendo ainda que ela não fazia nada e que ele é que tinha de fazer tudo.
A ofendida relatou de forma calma serena e tranquila que a iniciativa do arguido acontecia quase sempre quando estavam sozinhos uma vez que, vivendo ambos com os seus respetivos progenitores nas suas respetivas casas, tendo relatado ao tribunal as duas situações mais recentes e das quais se recordava, a primeira que terá ocorrido no interior do carro num descampado, e a outra que terá ocorrido em casa do arguido.”
Mas o Tribunal não ignorou os depoimentos testemunhais, fundamentando de forma muito clara e exaustiva a sua decisão no que tange à sua credibilização, não deixando de fazer apelo às regras de experiência comum e de referir porque razão, à luz das mesmas se compreende que os factos não tenham sido presenciados por terceiros na sua esmagadora maioria.
…
Considera, ainda, o Recorrente que o Tribunal fez mau uso das regras de experiência comum na medida em que, resultando da prova que o casal, após o termo da relação continuou a relacionar-se, inclusivamente, sexualmente, tal seria incompatível, à luz daquelas regras com um comportamento agressivo como o que está descrito nos autos.
Precisamente, a experiência diz-nos que assim não é. Os afetos envolvem sempre avanços e recuos nas emoções que se sentem e expressam em relação ao “outro” com quem se teve uma relação íntima mais ou menos duradoura.
Todos sabemos que estes tipos de relações instáveis levam a sentimentos de culpa e atitudes de perdão que não resultam em verdadeiros virar de página no comportamento dos agressores.
De todo o modo, manter o contacto, seja ele de que tipo for, desde que voluntário, tratando-se de duas pessoas adultas, nada diz sobre a veracidade das declarações da ofendida nem põe em causa a sua verosimilhança de forma definitiva (e só nesse caso, este Tribunal de recurso poderia alterar aquilo que foi uma decisão baseada na livre convicção do julgador, esta, devidamente fundamentada).
…
Prosseguindo [conclusões 41. a 51.], invoca o Recorrente a nulidade da prova consubstanciada nas mensagens enviadas por si à ofendida através da plataforma WhatsApp, devendo, por isso, a matéria de facto descrita nos pontos 2.1.35., 2.1.36., 2.1.50., 2.1.61., 2.1.62. e 2.1.63. ser dada como não provada.
Alega, em síntese, que:
- Encontram-se juntos aos autos prints de mensagens enviadas pelo Arguido à ofendida através da plataforma WhatsApp;
- Para que tais textos pudessem ser valorados como prova era indispensável que os mesmos fossem transcritos e reduzidos a auto,
- As mensagens foram extraídas pelo OPC do telemóvel da ofendida, sem que tal tenha sido autorizado pelo Juiz de Instrução Criminal, o que acarreta a sua nulidade,
- A prova assim obtida é prova proibida estando absolutamente vedado o seu uso nos autos, daí o ter de se dar como não provada a indicada matéria de facto.
Vejamos, nos pontos de facto em causa consta que, em concretos dias o Arguido enviou à ofendida via Whatsapp, longas mensagens de texto, ali transcritas, contendo insultos e ameaças, estas últimas visando, para além da ofendida, outras pessoas com quem esta convivia.
Resulta dos autos que tendo o Arguido enviado estas mensagens para o telemóvel da ofendida esta se limitou a mostrá-las aos OPC e estes, depois de fazerem um print das mesmas, fizeram constar dos autos esses mesmos prints.
Em primeiro lugar, há que assinalar que o Recorrente não contesta ter sido ele a escrever e enviar estas mensagens.
Porém, considera que a sua inclusão nos autos resultou de uma operação de extração de dados do telemóvel da ofendida por parte dos OPC, a qual carecia, para ser válida, de autorização judicial, o que não ocorreu.
Vejamos.
O Recorrente parte de uma afirmação que não corresponde àquilo que resulta do processado.
Não existiu qualquer extração de dado do telemóvel da ofendida, a sujeitar às regras previstas nos artigos 187º a 189º do Código de Processo Penal, o que ocorreu foi uma entrega voluntária por parte da ofendida de documentos que tinha na sua posse, isto é, textos que lhe foram remetidos pelo Arguido. Tais textos foram remetidos informaticamente, mas poderiam tê-lo sido por outra via, por carta, por exemplo, e nada impediria o destinatário das mesmas de as facultar para efeitos de investigação criminal de um ilícito de que se diz vítima.
Este entendimento encontra-se consolidado na Jurisprudência, citando-se, a título de exemplo, nesse sentido, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-06-2022[9].
Relativamente à necessidade de redução a auto do conteúdo dessas mensagens, não se pode reconhecer razão ao Recorrente. Com efeito, não estamos em presença de “diligências de prova levadas a efeito no decurso do inquérito”, “denúncia” ou “atos a que se referem os artigos 268º, 269º e 271º do Código de Processo Penal”.
Estamos em presença de documentos a sujeitar às regras de apreciação dos mesmos estabelecidas na lei, não existindo qualquer obrigatoriedade de redução a auto por força do disposto no artigo 275º do Código de Processo Penal.
Em suma, a prova em causa não é prova proibida, antes prova válida e a sua valoração sendo permitida, foi-o de forma que não nos merece censura. Aliás, como o próprio Recorrente reconhece, admitiu em sede de audiência ser ele o autor das mesmas e ter sido do telemóvel que habitualmente usa, cujo número consta do ponto 2.1.35., que foram enviadas. Improcede, pois, o recurso, nesta parte, não tendo sido violadas quaisquer normas, nomeadamente as constantes dos artigos 126º n.º 1 e 3, 275º, 187º, 188 e 189º do CPP e art.º 32º n.º 8 da CRP.
…
Atento o exposto, considera-se fixada a matéria de facto provada e não provada, nos termos constantes da sentença recorrida.
3.3. – Da violação do princípio “in dúbio pro reo”.
Na conclusão 60. invoca o Recorrente a violação do princípio “in dúbio pro reo”.
Não fundamenta por nenhuma forma esse entendimento, o que, diga-se, vai sendo uma constante.
Assim, também não nos deteremos mais do que por prevês considerações, para dizer que o Recorrente não tem razão.
A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 32º, nº1, estabelece o comando que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa”. Nestas garantias inclui-se e emerge de modo assaz relevante o princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, nº2 do Texto Fundamental.
Por seu turno, o princípio in dubio pro reo é complementar do princípio da presunção da inocência e o seu campo de aplicação encontra-se após a conclusão da tarefa judicial da valoração da prova produzida e quando o resultado desta não é conclusivo; neste caso, por via desta regra atinente à decisão, a dúvida insanável, inultrapassável sobre os factos deve favorecer o arguido.
O princípio in dubio pro reo encerra uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
À semelhança do que sucede com os vícios consagrados no n.º 2 do artigo 410.º, em sede de recurso a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento, antes sendo um remédio jurídico …
No caso vertente, salvo o devido respeito por opinião contrária, não resulta do texto da decisão recorrida, designadamente da motivação da decisão de facto, que o Tribunal a quo tenha sido assolado por uma dúvida razoável, muito menos insanável, que o forçasse a recorrer ao princípio in dubio pro reo para dar por não provada a factualidade cujo julgamento o Recorrente discorda.
Pelo contrário, o tribunal a quo não se posicionou numa situação de dúvida quanto ao sentido da prova produzida sobre os factos em questão, sendo que o respetivo entendimento lavrado na decisão recorrida, atenta a prova produzida, é defensável face às regras da experiência comum e da lógica, que o não contrariam.
Conclui-se, destarte, que inexiste violação da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo.
3.4. - Da errada qualificação jurídica dos factos.
…
Ora, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto mostra-se decidida supra, e nos termos da mesma, tal factualidade mostra-se assente.
Ademais, nunca aquilo a que o Recorrente chama de “traição conjugal” justifica qualquer conduta violenta para com o outro. Os princípios por que se rege uma sociedade democrática em que vigora o primado do respeito pela pessoa humana e os seus direitos enquanto tal, não pode acomodar a perspetiva desculpante, avançada pelo Recorrente.
Depois, já em sede de qualificação jurídica dos factos, aduz o Recorrente que estes não configuram a prática de crime de violência doméstica, na medida em que as mensagens em causa foram enviadas num momento em que a relação de namoro já tinha terminado.
Ora, a letra da lei é muito clara sobre este aspeto e dispensa grandes considerações.
Estabelece o artigo 152º nº1 alínea b) do Código Penal:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
(…)
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;”
O ilícito em causa contempla, quer as relações existentes à data dos factos, quer as relações pretéritas - ex-cônjuges/ex-namorados - pelo que considerando os factos provados, as mensagens enviadas demonstram o caráter ilícito da conduta do Arguido, a integrar, com a demais conduta descrita, na previsão do artigo 152º do Código Penal.
Prossegue o Recorrente defendendo que do quadro geral fornecido pelos factos não resulta que existisse da sua parte uma superioridade sobre a pessoa da vítima, sendo certo que para que exista violência doméstica é necessário que existe uma relação de domínio do agressor sobre a vítima.
Como bem assinala o Ministério Público na sua douta resposta ao recurso, a jurisprudência vem evoluindo no sentido de considerar não ser aquela relação de domínio um elemento essencial ao preenchimento do ilícito em causa, como consta, a título de exemplo, do acórdão desta Relação de 22-09-2021[10] …
Relativamente à gravidade e reiteração das condutas, os factos dados como provados são eloquentes, respeitando a episódios de violência física, psicológica e sexual que não se vê como não considerar os mesmos integradores do conceito de maus tratos a que alude o artigo 152º do Código Penal.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, por inúteis, improcede o recurso, também nesta parte, confirmando-se a decisão recorrida.
3.5. – Da medida das penas.
Considerando o teor das conclusões 63. a 69., verifica-se que o Recorrente se insurge contra o facto de as penas principais, quer as aplicadas aos crimes de ameaça, quer a aplicada ao crime de dano, quer, ainda a aplicada ao crime de violência doméstica, deveriam ter sido especialmente atenuadas, nos termos do disposto no artigo 73º do Código Penal.
Assim, no que tange aos crimes de ameaça agravada, limita-se a referir que as penas deveriam ser especialmente atenuadas nos termos do disposto no artigo 72º do Código Penal.
…
O Recorrente não concretiza, por referência ao artigo 72º que invoca, se entende que está presente qualquer das circunstâncias que, exemplificativamente, ali constam como atendíveis por diminuírem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
Como assinala o Prof. Figueiredo Dias,[11] «a ideia que subjaz ao princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção.
Sublinhando o mesmo Autor que a atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excecionais em que a imagem global do facto resultante da atuação da(s) atenuante(s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo.» (sublinhado nosso)
É que, para a generalidade dos casos, ou seja, para os casos “normais”, lá estão as molduras penais normais com os seus limites máximo e mínimo próprios.
Também a jurisprudência dos nossos tribunais superiores interpreta aquela norma neste sentido citando-se, a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/06/2010[12], em cujo sumário se afirma:
“I - A atenuação especial da pena só pode ser decretada quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena – vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas.”.
Ora, transpondo para o caso vertente as normas e princípios jurídicos supra sumariamente enunciados, temos de concluir não se mostrarem minimamente verificados os aludidos requisitos.
Não se descortinam na factualidade provada factos de onde se retire que ocorre acentuada diminuição da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena. Aliás, o que resultou provado foi que o arguido atuou com dolo direto; que a ilicitude se situa num nível mediano “em face da concreta imputação dirigida pelo arguido às ofendidas e do contexto em que os factos ocorreram”, porém, não se descortina qualquer diminuição acentuada, nos termos mencionados supra.
Em suma, e sem necessidade de mais considerações, é manifesto que não ocorrem, no caso dos autos “circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.”
Por tudo o exposto, torna-se evidente que não estão reunidos os pressupostos legais de aplicação de uma atenuação especial da pena, não ocorrendo qualquer violação do disposto nos artigos 72º nº1 e nº2 e 73º do Código Penal.
Ainda no que concerne ao crime de ameaça agravada praticado na pessoa de …, sustenta o Recorrente que, tendo esta manifestado pretender desistir da queixa, tal circunstância deveria ter sido levada em consideração e a seu favor, na fixação da medida da pena[13].
Ora, a pena fixada surge adequada, tendo em conta os critérios de dosimetria legal aplicáveis, não se detetando qualquer exagero ou desadequação que cumpra corrigir. Ademais, apesar de tal circunstância não vir expressamente referida pelo Tribunal, a verdade é que considerou com fator que relevou ao nível da diminuição da ilicitude as circunstâncias que rodearam os factos, circunstâncias que terão, elas mesmas, sido motivo da manifestação da vontade de desistência da queixa.
Assim, nada há a alterar a este nível.
Prossegue o Recorrente para a defesa de uma atenuação especial da pena, agora no que concerne ao crime de dano e fazendo apelo ao disposto no artigo 206º nº2 do Código Penal.
Estabelece o artigo em causa que:
“Artigo 206.º
Restituição ou reparação
1 - Nos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1, na alínea a) do n.º 2 do artigo 204.º e no n.º 4 do artigo 205.º, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1.ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa ou do animal furtados ou ilegitimamente apropriados ou reparação integral dos prejuízos causados.
2 - Quando a coisa ou o animal furtados ou ilegitimamente apropriados forem restituídos, ou tiver lugar a reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.
3 - Se a restituição ou a reparação forem parciais, a pena pode ser especialmente atenuada.”
Por força do disposto no artigo 212º nº4 do Código Penal, tal disposição é aplicável quando está em causa a prática de um crime de dano.
O que resulta da matéria de facto transcrita é que o computador danificado não só pertencia à vítima como era ela a sua legítima possuidora.
Nessa medida, a entrega de uma quantia à mãe da vítima não preencheria a condição estabelecida no artigo 206º transcrito.
A reparação total (a impor a atenuação especial da pena, conforme nº2 do preceito) ou parcial (a permitir a atenuação especial da pena, conforme nº3 do precito) apenas releva se for feita ao ofendido, isto é, ao proprietário e/ou legítimo possuidor da coisa danificada e o que resulta da matéria de facto transcrita e não impugnada é que a vítima … era a legítima dona do computador destruído e que o mesmo, embora adquirido pela mãe, era utilizado pela vítima para estudar.
Assim, resulta claro da matéria de facto provada que, embora tivesse sido a mãe da vítima a pagar o preço do computador (o que é normal, sendo a filha estudante universitária), este pertencia e era usado pela vítima, sendo esta, nos termos da disposição legal em causa quem devia ser a destinatária de uma eventual reparação, o que não ocorreu.
Não se verificam, pois, os pressupostos da atenuação especial da pena por esta via, não tendo sido violado o disposto no artigo 206º do Código Penal.
Finalmente, apela o Recorrente para a necessidade de atenuar especialmente a pena de prisão aplicada pela prática do crime de violência doméstica, em virtude do disposto no artigo 4º do Decreto-lei nº401/82 de 23 de setembro.
…
A sentença recorrida entendeu não aplicar esta atenuação especial da pena, fundamentando a sua decisão pela seguinte forma:
«4.1.1. Da aplicação do Regime Especial para Jovens
…
No caso vertente, mesmo considerando que o arguido não tem antecedentes criminais, a verdade é que, atentas as suas condições pessoais, o desvalor da ação e da personalidade manifestada nos mesmos, entende o tribunal que a atenuação referida não favorecerá a sua reintegração na sociedade.
Na verdade, a gravidade dos factos em causa neste processo, e a personalidade impulsiva do arguido, manifestada no modo como se posicionou em audiência, numa atitude pouco humilde, muitas vezes numa atitude despreocupada de auto desresponsabilização com os factos que ouvia na audiência, querendo prestar declarações sempre depois de cada testemunha da acusação, não foram uma ocorrência fortuita ou ocasional de criminalidade, revelando, aliás, uma certa falta da consciência da gravidade dos factos por parte do arguido.
Aliás, nesse mesmo sentido vai o relatório a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, no âmbito das diligências que encetou para a elaboração do relatório social, no qual se concluiu: “Em função do exposto, apesar de não terem sido identificados fatores de risco relevantes, poderão eventualmente ser valoradas algumas características pessoais que o arguido denota, nomeadamente a impulsividade, dificuldades de autocontrolo e pouca capacidade crítica”.
Considera-se, assim, que um abrandamento sensível da reação penal não será, de acordo com um juízo razoável de prognose, benéfica para a ulterior integração social do arguido, pelo que a atenuação especial da pena sempre seria vista como uma revalidação da sua conduta.
Não se mostra, desta forma, justificada a aplicação do regime especial para jovens delinquentes previsto no Decreto-lei n.º 401/82 de 23 de setembro, decidindo-se pela sua não aplicação.»
A decisão não nos merece qualquer censura, mostrando-se devidamente fundamentada de facto e de Direito, fazendo uma correta aplicação de uns e interpretação do outro.
…
III. DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 4º Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar totalmente improcedente o recurso interposto …
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts.513º, nº1 do C.P.P. e 8º, nº9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - artigo 94º, n.º 2, do CPP)
Coimbra, 20-11-2024
Os Juízes Desembargadores
Fátima Sanches (Relatora)
Helena Lamas (1ª Adjunta)
Cândida Martinho (2ª Adjunta)
(data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)
[1] Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995, que fixou jurisprudência no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
[2] Processo nº626/08.4TAPVZ.P1, relatora, Maria Leonor Esteves
[3] No sentido de que se trata de nulidade sanável dependente de arguição cfr v.g., Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15ªed., cit, pág. 572, Leal-Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal Anotado, 2.ª edição, vol. II, pág. 139 Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Código de Processo Penal dos, Coimbra, 2009, pág. 716, o Ac. do STJ de 7-12-1994, BMJ n.º 442, pág. 76 e os Acs da Rel. do Porto de 14-12-2005, proc. n.º 0315033 , rel. Augusto Carvalho, de 6-12-2006, proc. n. 0644697, rel. Pinto Monteiro, de 11-11-2015, proc.º n.º 245/12.0GBBAO.P1, rel. Ana Bacelar, de 23-5-2012, proc.º n.º 132/06.1IDPRT.P1, rel. Airisa Caldinho e de 26-10-2016, proc.º n.º 48/13.5MAMTS-C.P1 rel. Manuel Soares e da Rel. de Évora de 10-10-2006, proc.º n.º 996/06-1, rel. João Gomes de Sousa.
[4] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10-12-2009, prolatado no âmbito do Processo nº17/07.4GBORQ.E1, relator António João Latas, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. neste sentido v.g., Vinício Ribeiro, in “Código de Processo Penal. Notas e Comentário”, 2ªed., Coimbra, 2011, pág. 867.
[6] Cfr. neste sentido, v.g. o Ac. da Rel. do Porto de 26-10-2016, proc.º n.º 48/13.5MAMTS-C.P1 rel. Manuel Soares
[7] Prolatado no âmbito do processo nº06P4341, relator, Cons.º Oliveira Mendes, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[8] Prolatado no âmbito do processo nº25/17.7GEEVR.S1, relator, Cons.º Júlio Pereira, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[9] Prolatado no âmbito do processo nº293/20.7PAVFR.P1, relator, José António Rodrigues da Cunha, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[10] Prolatado no âmbito do processo nº158/19.5GABBR.C1, relator: Jorge Jacob, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[11] In “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, págs. 302/307.
[12] Prolatado no âmbito do processo nº 449/09.3JELSB.S1 e disponível para consulta em www.dgsi.pt
[13] Vide página 94 do recurso de onde resulta, em sede de alegações, que a questão colocada não é a de uma eventual relevância desta desistência em termos de extinção do procedimento criminal, conforme foi entendido pelo Ministério Público na sua douta resposta, mas em termos de circunstância atenuante na fixação da medida da pena.