I - No nosso processo penal o tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação ou pela pronúncia, mas o princípio da vinculação temática não impede o conhecimento de novos factos e a condenação do arguido por eles em determinadas circunstâncias.
II - A comunicação da alteração não substancial dos factos, constante do artigo 358.º do C.P.P., é mero projecto ou hipótese de alteração, transmite um juízo necessariamente provisório e uma vez que, dada esta sua natureza, ela não afecta, em si mesma, os direitos do arguido, a lei não estabelece qualquer sanção para a sua omissão antes da prolação da sentença, isto quer no caso do artigo 358.º, quer no caso do artigo 359.º..
III - «a comunicação da alteração não substancial dos factos exige a indicação dos factos indiciados, mas não a concretização dos meios de prova que os determinam».
IV - Em caso de alteração de qualificação jurídica as garantias de defesa do arguido ficam satisfeitas se a comunicação contiver a indicação precisa das normas correspondentes à qualificação jurídica que o tribunal pondera vir a efectuar.
V - A alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforma o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente quanto aos seus elementos essenciais.
VI - Só depois de proferida a decisão final, onde o tribunal fixa definitivamente a matéria de facto, é que pode discutir-se a legalidade da condenação pelos novos factos ou pela nova qualificação jurídica e se ocorreu a violação do preceituado nos artigos 358.º e 359.º do C.P.P., geradora de nulidade da sentença.
VII - Em regra indicia a existência de alteração não substancial dos factos a alteração de elementos espácio-temporais, como o dia, hora ou local da prática do crime, excepto quando estas circunstâncias contendam com elementos constitutivos do tipo de crime, designadamente implicando uma alteração com relevo para o preenchimento do tipo legal de crime em apreço ou desvirtuando a realidade histórica imputada, e há alteração substancial quando a investigação feita na instrução ou julgamento resulta numa alteração da base factual da acusação.
1. … foi submetido a julgamento o arguido …, pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de violação, p. e p. pelo art. 164.º, n.º 2, al. a), do CP.
2. Realizado o julgamento[1], foi proferido acórdão no qual foi decidido, para além do mais (transcrição):
«A) – Condenar o arguido … pela prática de um crime de coacção sexual, p. e p. pelo art.º 163º, n.º 2 do C.Penal na pena de 2 (dois) anos de prisão.
B) Suspender a pena de 2 (dois) anos de prisão pelo período de 2 (dois) anos.
C) Condenar o arguido, ao abrigo do disposto nos art.os 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, 16.º n.º 2 do Estatuto da Vítima e art.82.º-A n.º 1 do Código de Processo Penal, a pagar à vítima …, a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de indemnização.
D) Condenar o demandado … a pagar ao demandante … Centro Hospitalar … pelos cuidados de saúde prestados a …, a quantia de € 112,07 (cento e doze euros e sete cêntimos), acrescida de juros vincendos, desde a data da respetiva notificação e até efetivo e integral pagamento.
E) Absolver o arguido do crime de violação, p. e p. pelo art 164º, nº2, al a) na forma tentada de que vinha pronunciado. (…)»
3. Inconformado com esta decisão, interpôs o arguido o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«Vem o recorrente, pelo presente, apresentar recurso quanto à alteração da qualificação jurídica dos factos, comunicada e decidida, respctivamente, em despacho datados de 02/11/2023 e 23/11/2023, e quanto à decisão condenatória proferida pelo tribunal a quo a 27/11/2023.
II. No que respeita à alteração da qualificação jurídica dos factos, que passou de um crime de violação agravado na forma tentada, p. e p. pelos arts 22º, 23º, 73º e 164º, nº2, al a) todos do C.Penal, para um crime de coação sexual p. e p. pelo artigo 163º, nº2 do C.P., entende o recorrente que andou mal o tribunal a quo pois, a convolação em causa, resultante duma alteração substancial dos factos, agravou a moldura penal abstractamente aplicável ao arguido, o que, ao abrigo do disposto no artigo 359.º, e uma vez que o arguido se opôs à continuação do julgamento pelo crime de coacção, o tribunal a quo não poderia ter julgado e condenado o arguido por este crime.
III. Tendo assim, o tribunal a quo interpretado e aplicado erradamente o disposto nos artigos 358º, nos 1 e 3, o art. 359º, e art.º 1º, al. f), todos do CPP.
IV. Com efeito, a al. f) do artigo 1º do CPP vem definir «alteração substancial dos factos» como “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis” , que é exactamente o que sucede com a convolação do crime de violação na forma tentada em crime de coação sexual p. e p. no nº 2 do artigo 163º do CP.
V.Além disso, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, no despacho de 23/11/2023, há alteração de factos, no caso aditamento, que contribuíram para a referida convolação, no caso, os factos 42º ao 45º dos factos provados e transcritos no acórdão recorrido.
…
VII. Por seu turno, o tribunal, por despacho de 23/11/2023 que aqui damos por inteiramente reproduzido, para os devidos e legais efeitos, decidiu o seguinte: “… Excluída a aplicação do art 359º, do CPP, o que o tribunal comunicou foi que iria proceder á alteração da qualificação jurídica. E em tais circunstâncias, o tribunal não está vinculado à qualificação jurídica que consta da acusação (art 339º, nº4, do CPP).
Tendo sido comunicada ao arguido a alteração da qualificação jurídica que se ira operar, em cumprimento do nº 3 do art 358º, do C.P.Penal, assim se asseguraram as suas garantias de defesa e o contraditório.
Termos em que se julga totalmente improcedente a arguida nulidade.”
…
X. A alteração da qualificação jurídica poderá aceitar-se como alteração não substancial dos factos da acusação quando, como resultado, não implique, designadamente, a imputação ao arguido de um crime substancialmente diverso, ou seja, quando o sentido da acusação se mantiver o mesmo, sob pena de se frustrarem todas as garantias que o objeto processual visa oferecer ao arguido.
…
XII. No caso em análise, como dissemos, há aditamento de factos novos, os quais propiciaram a convolação do crime. São eles:
…
XIII. Ademais, a convolação do crime veio agravar a moldura penal abstratamente aplicável ao arguido, pois ao crime resultante da convolação (i. é., à coacção sexual) corresponde uma moldura penal mais gravosa que ao crime pelo qual vinha o arguido acusado (com efeito, crime de violação agravado na forma tentada)
XIV. Nessa medida, estão preenchidos todos os requisitos duma alteração substancial dos factos
XV. E assim, nos termos do artigo 359º do CPP, tal convolação não podia ser tida em conta pelo tribunal a quo para efeitos de condenação.
XVI. Mais, a alteração da qualificação jurídica dos factos ocorrida depois de produzida toda a prova, como sucedeu, comprometeu irremediavelmente a estratégia de defesa do arguido, uma vez que os elementos de cada um dos crimes não são, exactamente, os mesmos, apesar do bem jurídico tutelado ser, para ambos, a liberdade e autodeterminação sexual.
…
XX. Pelas razões expostas, por forma a garantir os direitos de defesa do arguido, deveria ter sido dado cumprimento ao formalismo previsto no artigo 359º do CP, por estarmos perante um alteração substancial, nos termos previsto no artigo 1º, al. f) do CPP - «alteração substancial dos factos - aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» - e bem assim, não ser considerada a convolação do crime de violação na forma tentada em crime de coacção sexual, para efeitos de condenação no processo em curso.
…
XXII. O Tribunal a quo, uma vez que o arguido não esteve de acordo com a continuação do julgamento nas referidas condições, atenta a convolação em resultado dos novos factos, não deveria ter considerado os mesmos para efeitos de condenação nos presentes autos, devendo tão só decidir pela condenação ou absolvição do arguido pelo crime de violação na forma tentada, tal qual vinha acusado.
XXIII. Ao não decidir desta forma, além das normas já indicadas, o tribunal violou garantias constitucionais, como sendo as previstas no artigo 32º - (Garantias de processo criminal) – da Constituição da República Portuguesa.
XXIV. Pelo que, sendo dada razão ao arguido quanto ao regime aplicável à alteração da qualificação jurídica operada, nos termos que aqui se expuseram, deverão os autos baixar ao tribunal de primeira instância e aí ser proferido acórdão que substitua o entretanto proferido e que absolva o arguido da prática de um crime de violação na forma tentada, pelo qual se encontrava pronunciado.
Sem prescindir,
XXV. O despacho em causa, de 02/11/2023, é escasso no que se reporta à fundamentação da convolação pretendida, limitando-se a referir que “Da produção da prova realizada em audiência de julgamento, provou-se menos do que aquilo que consta da acusação, o que importa uma alteração da qualificação jurídica dos factos, (…)”.
…
XXVII. Comunicar ao arguido tão somente que “entende-se que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime de coação sexual p. e p. pelo artigo 163º, nº2 do C.P.”, não basta a que aquele possa apresentar a sua defesa. Pois o tribunal a quo não foi claro quanto aos factos e fundamentos que o motivam, designadamente:
- porquê que se alterou o tipo legal?
- o tribunal entendeu não se ter preenchido o tipo legal da violação, porquê?
- e quais são os factos da acusação (ou novos) que, uma vez julgados provados, preenchem o tipo legal da coacção?
- e na coacção, o porquê do preenchimento do nº 2 (e não do nº 1) do artigo 163º do CP?
…
XXXII. Ainda que não se verifique a nulidade da comunicação em causa, como acabou por decidir o tribunal a quo, sempre estaremos perante uma irregularidade que, nos termos legais, invalida o acto. Invalidade esta que, para os devidos e legais efeitos, também aqui se invoca, devendo dar-se sem efeito a convolação realizada.
XXXIII. Também por esta razão, deverão os autos baixar à primeira instância e, aí, ser substituído o despacho de convolação por outro que cumpra os pressupostos mínimos legais, designadamente de fundamentação, devendo dar-se sem efeito todos os actos posteriores àquele.
Por outro lado,
…
XXXVI. Para além de tudo quanto foi aludido supra, e sem prescindir do mesmos, sempre diremos que ocorreu um erro notório na apreciação da prova e/ou erro de julgamento com violação do princípio in dubio pro reo.
XXXVII. Ademais, a decisão recorrida está inquinada por uma deficiente subsunção jurídico-penal dos factos provados ao direito, segundo a valoração que o Tribunal a quo realizou do material probatório trazido aos autos.
XXXVIII. Por outro lado, ainda que não se verifiquem os erros acima aludidos, o tribunal a quo falhou na determinação da medida concreta da pena, que se revela excessivamente onerosa e desproporcional às exigências de prevenção que, no caso, se impõem.
…
XL. Estão em causa os factos 1º ao 28º do elenco dos factos provados reproduzidos no acórdão recorrido.
XLI. Os quais, no entendimento do recorrente e salvo opinião diversa, deveriam constar no acervo de factos não provados,
…
LX. O tribunal a quo erra na interpretação e aplicação do Direito, na medida em que subsume os factos em causa no crime de coacção previsto e punido no nº 2 do artigo 163.º do CP, quando assim não deve ser, pois que não se mostram preenchidos os elementos do tipo. Com efeito,
…
LXIII. Ora, não descurando que é nosso entendimento que, desde logo, o primeiro elemento do crime – prática de acto sexual de relevo – se não verifica, uma vez que o arguido não praticou os factos que lhe são imputados, também defendemos que o segundo elemento do tipo também não se mostra preenchido, ainda que (só para este feito e por cautela de patrocínio), se atenda aos factos considerados provados pelo tribunal a quo.
LXIV. Efectivamente, o arguido não praticou qualquer uma das três formas distintas de coagir a vítima a sofrer ou praticar o acto sexual, previstas na lei: a violência, a ameaça e o constrangimento.
LXV. Vejamos, dos factos provados não resulta a ameaça, nem que o arguido tenha tornado a assistente inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir ao acto sexual.
LXVI. Já quanto à violência física do arguido sobre a assistente, resulta dos factos provados que o arguido “agarrou-a pelo braço esquerdo, com força (…) ao mesmo tempo que a ia empurrando na direção do quarto” , “agarrou-a pelos ombros e empurrou-a om força para cima da cama”, “utilizando a força física, desapertou o fecho das calças que … vestia”, “o arguido, ao mesmo tempo que a segurava com uma das mão e com o seu próprio corpo, impedindo-a de se levantar, de forma agressiva,”…
LXVII.No entanto, das avaliações médicas a que foi sujeita a assistente, não resultaram quaisquer lesões...nem de cariz sexual, nem que, de outro modo, revelassem que o arguido a violentou, nomeadamente, para a coagir ao alegado ato sexual, pese embora esta usasse apenas uma t´shirt no momento dos factos.
LXVIII. Acresce que a assistente tinha 19 anos, à data dos factos, era uma jovem, saudável, sem quaisquer limitações físicas ou psíquicas, cheia de vitalidade.
LXIX. O arguido, por sua vez, era um idoso com 86 anos de idade, carente de cuidados de terceiros e com diversos problemas de saúde.
…
LXXI. A dúvida que levantamos é se a alegada força usada pelo arguido, ainda que se aceitasse o descrito nos factos provados (o que só para este efeito aqui se considera), mas que não se aceita, seria adequada e suficiente a vencer a resistência da assistente.
…
LXXVI. Sem prescindir de tudo quanto se expôs, chegado aqui, o recorrente entende que a pena aplicada no acórdão recorrido é manifestamente desajustada por desproporcional e excessiva às exigências de prevenção geral e especial que, ao caso, se impõem.
…
4. Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, …[2] “...
5. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer …
6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, respondeu o recorrente, reafirmando, no essencial, o teor da sua peça recursória.
7. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
1. Delimitação do objecto do recurso
…
In casu, de acordo com as suas conclusões, a discordância do recorrente dirige-se:
A. Aos despachos datados de 02-11-2023 e 23-11-2023, por considerar que
- a alteração comunicada pelo Tribunal não configurou uma alteração da qualificação jurídica mas sim uma alteração substancial dos factos, sujeita ao regime do art. 359.º do CPP, pelo que, não tendo o arguido dado o seu acordo à continuação do julgamento, os novos factos não deveriam ter sido considerados para feitos de condenação nos presentes autos;
- mesmo a ser aplicável o regime relativo à alteração da qualificação jurídica, não foi devidamente observada a comunicação prevista no art. 358.º, n.ºs 1 e 3, pois não foram transmitidos ao arguido os elementos necessários para que este pudesse exercer a sua defesa, padecendo o despacho de 02-11-2023 de nulidade por falta de fundamentação ou, ao menos, de irregularidade que invalida o valor do acto;
B. Ao acórdão condenatório, por considerar que, para além do já referido,
- padece do vício de «erro notório na apreciação da prova e/ou erro de julgamento»[3], com violação do princípio in dubio pro reo, e que devia ter sido proferida decisão absolutória;
- existe erro na «interpretação e aplicação do Direito», uma vez que não se mostram preenchidos os elementos típicos do crime de coacção sexual pelo qual vem condenado;
- a pena aplicada é manifestamente desajustada, por desproporcional e excessiva.
Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual o teor das decisões recorridas.
O despacho de 02-11-2023:
«Da produção da prova realizada em audiência de julgamento, provou-se menos do que aquilo que consta da acusação, o que importa uma alteração da qualificação jurídica dos factos, porquanto entende-se que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime de coação sexual p. e p. pelo artigo 163º, nº2 do C.P. impondo-se, assim, a convolação do crime de violação agravado na forma tentada, p. e p. pelos arts 22º, 23º, 73º e 164º, nº2, al a) todos do C.Penal, pelo qual o arguido vinha pronunciado, no referido crime.
Diante do exposto, faculta-se ao arguido o exercício do seu direito ao contraditório, nos termos do disposto no art. 358.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
Além disso, entende o tribunal vir a arbitrar uma indemnização à assistente, o que ora se comunica ao arguido a fim de se assegurar o contraditório.»
O despacho de 23-11-2023:
«Notificado do teor do despacho proferido em ata de julgamento (dia 02-11-2023) veio o Ilustre Mandatário do arguido opor-se à alteração da qualificação jurídica, em síntese, por tal alteração ocorrer depois de produzida toda a prova e ficar comprometida a sua estratégia de defesa, com a agravante de que ao crime resultante da convolação (coação sexual) corresponder uma moldura penal mais gravosa que ao crime pelo qual vinha o arguido acusado (crime de violação agravado na forma tentada).
Entende ainda que deve ser dado cumprimento ao formalismo previsto no artigo 359º do CP, por na sua perspetiva estarmos perante uma alteração substancial, nos termos do artigo 1º, al. f) do CPP.
Além disso, por não terem sido comunicados os factos “provisoriamente provados” e que sustentam a pretendida convolação e eventual condenação do arguido pelo “novo” crime, terminou arguindo a nulidade de tal despacho.
Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação ampla, se tiver sido suscitada e, depois dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
Por fim, das questões relativas à matéria de direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas.
Considera em primeiro lugar, e em síntese, que a alteração comunicada pelo Tribunal não configurou uma alteração da qualificação jurídica mas sim uma alteração substancial dos factos, sujeita ao regime do art. 359.º do CPP, pelo que, não tendo o arguido dado o seu acordo à continuação do julgamento, os novos factos não deveriam ter sido considerados para feitos de condenação nos presentes autos.
…
Afirma, por outro lado, que, mesmo a ser aplicável o regime relativo à alteração da qualificação jurídica, não foi devidamente observada a comunicação prevista no art. 358.º, n.ºs 1 e 3, pois não foram transmitidos ao arguido os elementos necessários para que este pudesse exercer a sua defesa, padecendo o despacho de 02-11-2023 de nulidade por falta de fundamentação ou, ao menos, de irregularidade que invalida o valor do acto.
E que, também por esta razão, deverão os autos baixar à primeira instância e ser esse despacho substituído por outro «que cumpra os pressupostos mínimos legais, designadamente de fundamentação», ficando sem efeito todos os actos posteriores àquele.
A propósito da discordância manifestada pelo recorrente relativamente ao “despacho” lavrado em acta dir-se-á, antes de mais, o seguinte:
O art. 358.º do CPP estabelece que:
«1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.»
Trata-se, como é bom de ver, de uma comunicação que ao Tribunal incumbe efectuar e não de um despacho – acto decisório previsto no art. 97.º do CPP.
Essa comunicação transmite um juízo necessariamente provisório que, depois de sujeito ao contraditório, por força do formalismo prescrito no mesmo preceito, terá ou não projecção na decisão da matéria de facto fixada na sentença ou acórdão que vier a ser proferido.
Dada a sua natureza provisória, a comunicação em causa não afecta, em si mesma, os direitos do arguido, pelo que bem se compreende que a lei não estabeleça qualquer sanção para a sua omissão (quer no caso do art. 358.º quer no do art. 359.º) em momento anterior ao da prolação da sentença.
Antes da decisão final, ao arguido apenas assiste o direito de se defender dos “novos factos” ou da “nova qualificação jurídica”.
Só uma vez proferida a decisão final, na qual o Tribunal fixa definitivamente a matéria de facto, poderá verificar-se se o arguido foi efectivamente condenado por esses “novos factos” ou essa “nova qualificação jurídica” e se ocorreu a violação do preceituado nos arts. 358.º e 359.º, que a lei processual penal considera constituir nulidade da sentença (cf. art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP).
Em suma, anteriormente a esse momento, não existe um acto decisório mas apenas uma comunicação, necessariamente provisória, que, em si, não afecta qualquer direito de defesa, sendo, por isso, irrecorrível[4].
O recorrente reagiu contra tal comunicação através de requerimento, no qual, em síntese, afirmava a sua discordância com a comunicação de uma alteração da qualificação jurídica, por entender estar em causa uma alteração substancial dos factos, manifestava a sua oposição a esta, e invocava padecer o despacho de nulidade por falta de fundamentação, por não terem sido comunicados os factos considerados «“provisoriamente provados” e que sustentam a pretendida convolação e eventual condenação do arguido pelo “novo” crime».
O despacho de 23-11-2023 reafirmou o seu entendimento de estar em causa apenas uma alteração da qualificação jurídica, e julgou improcedente a arguição de nulidade.
O que acima se deixou dito relativamente ao despacho que comunicou a alteração vale igualmente, mutatis mutandis, para este segundo despacho, na parte em que não reconheceu razão ao arguido quanto à natureza da alteração comunicada, por se reportar a um mero projecto ou hipótese de alteração (um mero juízo «provisório e condicional», nas palavras do acórdão do TC n.º 237/2007), que poderá, ou não, vir a concretizar-se no acórdão, e, sendo-o, poderá naturalmente ser objecto de recurso (ou de conhecimento oficioso, caso se verifique a nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP).
A questão de saber qual a natureza da alteração comunicada, com as consequências que dela poderão advir para o acórdão condenatório, serão, assim, apreciadas mais adiante, ficando para análise, em sede de impugnação do despacho de 23-11-2023, apenas a questão de saber se, ao contrário do nele decidido, alguma invalidade existia na comunicação efectuada em 02-11-2023, por via da invocada falta de fundamentação.
A este propósito, louvamo-nos no que consta do acórdão deste Tribunal da Relação de 05-06-2024, proferido no Proc. n.º 1903/18.1T9CLD.C1[5], que subscrevemos na qualidade de adjunta, e no qual se concluiu que «a comunicação da alteração não substancial dos factos exige a indicação dos factos indiciados, mas não a concretização dos meios de prova que os determinam.
Esta interpretação não viola os princípios da defesa, acusatório e contraditório consagrados no artigo 32.º, n.º 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Neste sentido, decidiu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 216/2019, citado no Acórdão n.º 73/2023, (acessível em www.dgsi.pt e www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20230073.html): «Não julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 358.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, no sentido de que a comunicação de alteração não substancial dos factos, efetuada no decurso da audiência de julgamento, não carece de ser acompanhada de referência especificada aos meios de prova indiciária em que se fundamenta».
E isto porque, lê-se naquele Aresto:
«(…) a não referência dos meios de prova em que se baseia a comunicação de novos factos indiciados, integrantes da categoria legal de alteração não substancial, traduz-se apenas numa não especificação dos mesmos, de entre todos os que, tendo sido produzidos ou sendo valoráveis em julgamento, se encontram na totalidade identificados.
Nesta perspetiva, a omissão de menção especificada não se reflete, em bom rigor, e ao contrário do que sustenta o recorrente, numa diminuição das garantias de defesa face ao que goza o arguido perante a notificação da acusação. Desde logo porque, nos termos do artigo 283.º, também a peça de acusação não carece de relacionar especificadamente os factos imputados e os meios de prova, bastando-se com a indicação em rol das testemunhas a ouvir e a indicação de outros meios de prova, sem especificação dos concretos factos, isoladamente considerados ou agrupados segundo uma qualquer classificação, a que cada fonte probatória se reporta. O mesmo acontece com o despacho de pronúncia, ao qual são aplicáveis, nessa parte, os requisitos da acusação (artigo 308.º, n.º 2, do CPP).
Mais: a comunicação a que alude o n.º 1 do artigo 358.º do CPP não incorpora um juízo, positivo ou negativo, sobre a comprovação dos factos a que se refere. Apenas exterioriza que, no estado da prova produzida em julgamento, o princípio da descoberta da verdade obriga a que o tribunal se debruce sobre uma realidade não comportada na acusação ou na pronúncia, podendo tais factos vir a ser dados como provados ou não, em função da prova que for ulteriormente produzida ou examinada. Tratam-se, pois, de factos meramente sinalizados aos sujeitos processuais, de índole precária e indiciária, porque ainda sujeitos a eventual contraprova e ao crivo da discussão contraditória em audiência.
A valoração da prova produzida e a decisão sobre a verdade dos factos imputados (os factos que integram a acusação ou pronúncia, assim como os novos factos comunicados em cumprimento do n.º 1 do artigo 358.º do CPP), ocorre apenas com a emissão da sentença ou acórdão, juízo de facto sobre o qual recai uma exigência de fundamentação especificada e tanto quanto possível completa, ainda que concisa, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374.º, n.º 2 do CPP), com cominação de nulidade do ato judicativo (artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP).
…
De facto, perante a comunicação da alteração não substancial dos factos, ainda que desacompanhada da referência aos meios de prova em que se fundamenta, a possibilidade de o arguido utilizar um prazo para preparar a sua defesa, nomeadamente arrolando novos meios de prova e proferindo alegações, a final, sobre toda a prova produzida, salvaguarda o direito do mesmo a poder pronunciar-se sobre todos os factos e questões que, direta ou indiretamente, se repercutem na pretensão punitiva do Estado e da qual ele é alvo.
Por tais razões, entendemos que a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 358.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, que ora se sindica, no sentido de que a comunicação da alteração não substancial dos factos, efetuada no decurso da audiência de julgamento, nos termos dos citados preceitos, não carece de ser acompanhada da referência aos meios de prova indiciária em que se fundamenta, não impede uma defesa eficaz do arguido, não se mostrando, por essa razão, passível de censura jurídico-constitucional, por afetação das garantias de defesa do arguido, nomeadamente por inobservância do princípio do contraditório».
Este entendimento, embora se reporte à alteração não substancial dos factos, tem aplicação, por maioria de razão, nos casos em que o Tribunal considera que não há sequer alteração de factos mas apenas de qualificação jurídica, bastando neste último caso que a comunicação contenha a indicação precisa das normas correspondentes à qualificação jurídica que pondera vir a efectuar, assim se satisfazendo as garantias de defesa do arguido.
No caso, a explicação para a comunicada alteração era, de resto, particularmente evidente, por derivar da actividade probatória desenvolvida pelo próprio arguido, nos termos já acima mencionados.
A comunicação de 02-11-2023 não padecia, por isso, de qualquer invalidade, sendo de manter o despacho de 23-11-2023, que assim decidiu.
Improcede, assim, este segmento do recurso.
Como já anteriormente escrevemos[6], «Dada a estrutura acusatória – integrada pelo princípio da investigação judicial – do nosso processo penal, o Tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação (ou pela pronúncia, tendo havido instrução).
«O objecto do processo é a acusação, enquanto descrevendo esse pedaço de vida, esse acontecimento da vida real e social, portador de uma unidade de sentido e, como tal, susceptível de um juízo de subsunção jurídico-penal. Esse é o quid que se tem de manter idêntico até à decisão final (a eadem res), não obstante as mutações que venha a sofrer.»[7]
Trata-se do princípio da vinculação temática, segundo o qual a regra é a de que esse «pedaço da vida real portador de uma unidade de sentido» deve manter-se inalterado até ao trânsito em julgado da condenação, como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem de defender-se dos factos acusados e não de outros e que apenas por esses factos poderá ser condenado.
Daí que a lei processual penal fulmine com nulidade a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação (ou na pronúncia), fora dos casos e condições previstos nos arts. 358.º e 359.º do CPP (art. 379.º, n.º 1, al. b), do CP).
Contudo, o aludido princípio da vinculação temática não pode ser entendido e aplicado com uma rigidez tal que o Tribunal fique impedido na sua actividade cognoscitiva e decisória de atender a factos que não foram objecto da acusação, sejam quais forem as circunstâncias.
Na verdade, em certas circunstâncias, e no que à fase de julgamento respeita, o legislador possibilita o conhecimento de novos factos e a condenação do arguido por eles.
Como ensina Germano Marques da Silva[8], «por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo».
Assim, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação (ou na pronúncia, se a houver), o Tribunal pode deles conhecer desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunique tal alteração ao arguido e lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, salvo se a alteração em causa tiver derivado de factos alegados pela defesa (art. 358.º, n.ºs 1 e 2 do CPP).
Se a alteração dos factos descritos na acusação (ou na pronúncia) for substancial – de acordo com o definido no art. 1.º, al. f), do CPP – já o Tribunal só poderá deles conhecer se, feita a sua comunicação, o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos e a alteração não determinar a incompetência do Tribunal, devendo ainda ser concedido ao arguido, caso este o requeira, prazo para a defesa não superior a dez dias (art. 359.º, n.ºs 1, 3 e 4 do CPP).
Nesse caso, refere Frederico Isasca[9], dá-se uma reformulação do objecto do processo, operada pelo acordo dos sujeitos processuais com vista à rápida resolução do litígio, tudo sem a menor intervenção do julgador e, portanto, sem trair o princípio do acusatório.
Na ausência desse acordo, a alteração substancial dos factos não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância, só valendo como denúncia para procedimento por novos factos se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo, no sentido de implicarem «“uma variação dos que constituem o objecto daquele processo em concreto” (TERESA BELEZA, 1999:88, e, já antes, GIL MOREIRA DOS SANTOS, 1992:614), ou, dito de outro modo, devem ainda incluir-se no âmbito do mesmo “facto histórico”»[10].
Em relação aos factos não autonomizáveis, não há qualquer procedimento, uma vez que o legislador, com a alteração ao n.º 1 do art. 359.º introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, optou claramente pelo afastamento da suspensão ou extinção da instância.
Esta orientação foi julgada conforme à CRP pelo Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 226/08[11], no qual se lê, para além do mais, que « (…) o problema da alteração, em fase de julgamento, dos factos descritos na acusação ou na pronúncia é um ponto de convergência e tensão entre os princípios do acusatório e do contraditório, por um lado, e os princípios da legalidade da acção penal, da verdade material e da celeridade processual, por outro. Mediante o novo regime, o legislador optou por conferir mais intensa realização ao princípio do acusatório, com possível sacrifício da verdade material e da legalidade.»
«“Alteração substancial dos factos” significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa. É este o sentido da definição constante do art. 1.º, n.º 1, al. f), do CPP para «alteração substancial dos factos», que se apresenta, assim, como um conceito normativamente formatado: «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».
A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
“Alteração não substancial” constitui, diversamente, uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal. A alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.»[12]
Segundo Leones Dantas[13], «hoje o processo é entendido como um todo, desde a notícia do crime que lhe marca o início até à execução da decisão que venha a ser proferida (…) e visto o processo como um todo, a questão do objecto não é pois uma questão de instrução ou do julgamento, mas uma questão de todas as fases do processo (…).
Uma das implicações do princípio da acusação é a vinculação temática do tribunal à conformação do caso submetido à sua apreciação pela entidade que a solicita.
Assim, o tribunal terá de se mover na apreciação do caso nos parâmetros que são definidos por uma entidade que lhe é estranha.
Este princípio pretende acautelar o arguido de novas imputações surgidas no âmbito da actividade do tribunal, o que lhe retiraria a possibilidade de estruturar a sua defesa em relação às mesmas.
Contudo, embora o processo penal tenha uma estrutura basicamente acusatória, ele não é um processo acusatório puro.
Daí que o legislador não tenha deixado o juiz na completa dependência dos sujeitos processuais relativamente às diligências tendentes ao esclarecimento dos factos sobre os quais irá formular a sua decisão.
(…) Ao processo penal estão subjacentes preocupações de justiça que impõe uma mais completa indagação da verdade permitindo que a versão dos factos construída no processo e a realidade se aproximem.
No fundo mais uma demonstração de concordância prática, através da qual se articulam proposições aparentemente em litígio, mas cuja concordância se impõe para a realização dos objectivos mais vastos do processo.
Conseguiu-se desta forma harmonizar os interesses da defesa do arguido e que inspiram a estrutura acusatória do processo, com a investigação da verdade material essencial a uma ideia de justiça.
Desta articulação resultam assim a fixação do objecto do processo – definindo ao tribunal um tema de investigação –, e a fixação das condições em que a conformação dos factos resultantes daquele tema pode ser alterada.
Assim, enquanto no inquérito o M.P. investiga livremente em quadro aberto, na busca de todos os elementos do acontecimento investigado susceptíveis de uma valoração jurídico-penal, na instrução e no julgamento o tribunal depara-se já com uma modelação do acontecimento resultante das peças processuais que definem o objecto do processo.
Apesar de enquadrado nesta modelação, o tribunal desencadeia diligências que podem trazer para o processo outros aspectos do acontecimento alheios àquela modelação e que podem alterar até a configuração da mesma.
O que a questão da alteração do objecto do processo vai esclarecer é precisamente definir as condições em que estes novos elementos podem ser submetidos à actividade cognitiva do tribunal e fundamentar a decisão.
Esta questão da alteração é abordada no processo penal a partir do conceito de alteração substancial dos factos (…)».
Tudo acaba, pois, por se reconduzir à definição do que seja alteração substancial dos factos, e, tendo presente o que acima já se deixou dito, mais concretamente àquilo que deve entender-se por crime diverso, sendo que o processo penal é uma realidade dinâmica (incluindo no que tange com o seu objecto), naturalmente dentro dos limites legalmente impostos.
O mesmo autor diz-nos ainda que «crime diverso deve pois ser entendido como facto processual diverso.
Por facto processual deve entender-se o acontecimento da vida valorado à luz de todas as normas jurídico-penais que no caso concorram e que justificam a aplicação ao seu autor de uma reacção criminal (…).
O conceito de alteração substancial vai assim dizer-nos quais as mudanças que aquele acontecimento pode sofrer na sua configuração sem que ponham em crise os valores essenciais do processo, nomeadamente os que se prendem com a sua estrutura e com a unidade e indivisibilidade do respectivo objecto.
Na linha do pensamento de Souto Moura diremos que o facto processual ainda será o mesmo quando o acontecimento histórico que enquadra ainda seja visto pelo comum das pessoas como sendo o mesmo.
Torna-se pois necessário que o facto inicialmente considerado e o facto resultante da alteração ainda sejam vistos no âmbito social como sendo o mesmo acontecimento (…)».
Do exposto resulta um primeiro critério a que é possível atender – verificar se o facto histórico inicialmente considerado e o facto resultante da alteração são vistos no âmbito social como sendo o mesmo acontecimento.
Conforme melhor se expôs no Acórdão do STJ de 18-07-2008[14]:
«Quando a al. f) do art. 1.º do CPP nos diz que alteração substancial dos factos é aquela que «tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites das sanções aplicáveis», e deixando de lado esta última hipótese, pensada para situações em que os factos novos representam agravantes qualificativas especiais, somos confrontados com a necessidade de estabelecer um sentido para o conceito de “crime diverso”. Só assim poderemos constatar se houve ou não alteração substancial dos factos, o mesmo é dizer, se ocorreu ou não, por essa via, uma modificação intolerável do objecto do processo.
Duas notas são de adiantar, a tal propósito:
- por um lado, o conceito de “crime diverso” terá que ter uma natureza processual e não substantiva, porque ao serviço do apuramento da alteração substancial dos factos, o mesmo é dizer, se ocorreu ou não, que por sua vez presta homenagem ao princípio acusatório, e, no fundo, serve os interesses da defesa; de tal modo que não se poderá confundir com a ideia de tipo legal de crime diverso (poderemos estar perante “crime diverso” mantendo-se o tipo legal, e poderemos não estar perante “crime diverso” pese embora a mudança de tipo);
- por outro lado, importará recorrer, na determinação do conceito, tanto a um critério normativo, jurídico-penal, como a um critério simplesmente sociológico, que se centre sobre o facto histórico ocorrido.
Haverá que apurar, como ponto de partida, com recurso a um critério normativo, se o significado jurídico-penal da primeira representação hipotética do acontecimento, confrontada com representações ulteriores, não configura a lesão de outra categoria de bem jurídico, ou seja, se não surgirá entre ambas uma relação de concurso aparente, com o que, em princípio se não estará perante um “crime diverso”.
Só que, sempre importará averiguar se o acontecimento histórico, de acordo com uma tal segunda representação do ocorrido, se distingue radicalmente da primeira versão do mesmo. No sentido de que o evento histórico será radicalmente diferente quando, numa abordagem pré-jurídica da factualidade, possamos dizer que partimos de um facto para chegar a outro que nada tem a ver com o primeiro.
Por último, será ainda com recurso a critérios não normativos, que se terá que concluir pela não diversidade do crime, nas situações em que os factos novos impliquem lesão de bens jurídicos diferentes, e portanto um concurso efectivo de crimes, designadamente ideal, mas os factos antes adquiridos para o processo formem com os novos uma “unidade natural” forte. Um pedaço de vida com a mesma imagem social, ou seja, valorado socialmente em termos muito semelhantes.»
Também no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-05-2007[15], citando Robalo Cordeiro, se aponta no mesmo caminho, referindo-se «o conceito de crime diverso é-nos dado por um critério misto normativo-social, que parte da identidade ou coincidência fundamental dos bens jurídicos – logo, dos tipos legais de crime – sem perder de vista as realidades da vida, mantendo-se por isso igualmente atento à valoração social dos factos. Assim, encontrar-nos-emos perante o mesmo crime quando os factos provados em julgamento, no seu relacionamento com os acusados, dão lugar a uma situação de concurso aparente ou de continuação criminosa, formando, com eles uma unidade em sentido jurídico-normativo (sem deixar de admitir-se que o crime possa ter-se por “diverso” quando os novos factos imprimirem ao conjunto um tónus social marcadamente distinto); e bem assim nos casos em que se mantém firme a incriminação, embora com alteração dos factos que lhe servem de apoio; alteração, entenda-se, não essencial, por forma que continuam passíveis do mesmo juízo de valoração social.»
Não sendo este critério o único a considerar, o mesmo assume uma preponderância fundamental na análise a fazer casuisticamente.
Mas avancemos mais na procura da especificação do critério teórico do que deva ser considerado um crime diverso.
Para Marques Ferreira, estaremos perante um crime idêntico «sempre que os factos conhecidos depois de fixado o objecto do processo em sentido técnico não impliquem um novo ou diferente agente criminoso nem respeitem a bens jurídicos concretamente diferentes dos referidos na acusação ou na pronúncia e, simultaneamente, tais factos se relacionem como unidade criminosa normativa [artigo 30.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal (CP)] (…).
Na tentativa de aplicar praticamente as ideias antes expostas passamos a analisar alguns exemplos de «factos novos» e respectivas propostas de solução:
(…) Os factos novos provocam alterações meramente circunstanciais do objecto do processo em sentido técnico.
Os casos mais vulgares são relativos aos factos novos que consubstanciam circunstâncias agravantes ou atenuantes de carácter geral ou modificativas especiais ou comuns. As alterações, no entanto, podem ocorrer numa infinita série de meras circunstâncias, irrelevantes sob o ponto de vista da dosimetria penal e de importância meramente contextual, tais como: tempo, lugar, temperatura, textura, cor, velocidade, etc. (…)»[16].
Para Germano Marques da Silva «o crime será o mesmo, ou melhor, não será materialmente diverso, desde que o bem jurídico tutelado seja essencialmente o mesmo. E será essencialmente o mesmo quando os seus elementos constitutivos essenciais não divergirem. “Se os novos factos puderem ainda integrar a hipótese de facto histórico descrito na acusação, podem alterar-se as modalidades de acção, pode o evento material não ser inteiramente coincidente com o modo descrito, podem alterar-se as circunstâncias e as formas de culpabilidade que o crime não será materialmente diverso, desde que a razão do juízo de ilicitude permaneça a mesma. O crime não será materialmente diverso quando apenas variarem as formas de execução do crime ou as modalidades de autoria ou comparticipação, desde que os actos acusados e apurados possam ainda reconduzir-se ao mesmo facto histórico»[17].
Por seu turno, em anotação ao art. 1.º do CPP, afirmam os Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto[18]:
«(…) cremos poder afirmar que se imputa ao arguido um crime diverso quando:
- Da referida adição ou modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo;
- Da referida adição ou modificação dos factos resulte um facto naturalístico diferente, objecto de um diferente e distinto juízo de valoração social;
- Da referida adição ou modificação dos factos resulte a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, resulte a perda da sua identidade.
O critério normativo – é disso que se trata – encontrado só fica completo quando se fizer a previsão das situações em que o arguido não teve oportunidade de se defender dos novos factos, com relevância jurídico-penal, e em que, por força dessa modificação ou aditamento de novos factos, resulte o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis ao arguido (neste sentido, Ac. RP de 23-05-2007).
Assim, e concluindo, haverá alteração substancial dos factos nos casos em que a investigação feita em sede de instrução ou audiência de discussão e julgamento resulta numa alteração da base factual da acusação. Tratando-se de uma alteração e não de inovação, o limite do poder investigatório do tribunal é fixado pela identidade do objecto do processo fixado na acusação.
Tendo por base tudo o que se expendeu, e sintetizando, haverá alteração substancial dos factos nas seguintes situações (elencadas por António Quirino Duarte Soares) (…):
- Conhecimento, em audiência, de novos factos que impliquem incriminação diversa da indicada na acusação, quer de maior, quer de menor gravidade [tratando-se de normas em concurso aparente, a hipótese é outra, pois, nesse caso, não se pode falar de crime diverso (por exemplo, convolação do crime de furto para o de receptação)];
- Conhecimento, em audiência, de elementos que constituem circunstâncias qualificativas do crime e lhe agravam o limite máximo da sanção (por exemplo, convolação de homicídio simples para o qualificado, por se ter averiguado a premeditação, não descrita na acusação);
- Conhecimento, em audiência, de factos novos que, juntos aos da acusação, integrem o tipo legal mais abrangente dentro das relações de consunção (por exemplo, convolação de furto para roubo, ou das ofensas corporais para o homicídio);
- Conhecimento, em audiência, de novas condutas criminosas integradas com as da acusação num crime continuado, e a que, isoladamente consideradas, corresponda pena de limite máximo maior do que corresponderia às da acusação;
- Conhecimento, em audiência, de novas condutas unificáveis criminalmente às relatadas na acusação pela mesma resolução criminosa, mas que contribuam para elevar o limite máximo das sanções aplicáveis (por exemplo, objecto não indicado na acusação, também furtado no mesmo local, dia e hora, e que, ao contrário dos demais, tem valor consideravelmente elevado obrigando a convolar do furto simples para o furto qualificado);
- Subida de grau no elemento ético-psicológico do crime (negligência para dolo) em que a moldura penal se agrave nos seus limites máximos;
- Alteração da forma de participação do agente (art. 26.º e ss. do CP) que implique modificação do limite máximo da pena ou das penas aplicáveis (por exemplo, da cumplicidade para qualquer das formas de autoria).
Por sua vez, haverá alteração não substancial dos factos nos seguintes casos:
- Alteração nos elementos espaço-temporais (dia, hora, local) e no objecto do crime (desde que, neste caso, a mudança de valor não implique a passagem de crime simples para o qualificado, caso em que se tratará de alteração substancial);
- Conhecimento, em audiência, de novas condutas integradas, com as acusadas, na mesma unidade de resolução e, portanto, no mesmo crime (desde que a “nova” conduta não qualifique o crime, alterando-lhe o limite máximo da sanção)
- Conhecimento, em audiência, de novas condutas criminosas integradas num crime continuado com as da acusação (desde que a moldura penal que lhes cabe, como condutas isoladas, não seja mais grave do que a que caberia à mais grave das já constantes da acusação);
- Subida de grau no elemento ético-psicológico doloso ou negligente do crime (dolo eventual para o necessário, ou deste para o directo ou negligência inconsciente para a consciente);
- Alteração na forma de participação do agente (art. 26.º e ss. do CP) que implique modificação do limite máximo da pena ou penas aplicáveis (modificação da forma de autoria, ou desta para a cumplicidade)».[19]
Como se pode constatar, mais uma vez é seguido um critério em que expressamente se entende a alteração nos elementos espácio-temporais, tais como dia, hora ou local da prática do crime como constituindo alterações não substanciais de factos.
Temos para nós que essa será, efectivamente a regra, excepto quando essas circunstâncias possam contender com elementos constitutivos do tipo de crime, designadamente implicando uma alteração com relevo para o preenchimento do tipo legal de crime em apreço ou desvirtuando a realidade histórica que vem imputada aos arguidos.
Em cada caso haverá que determinar se ocorre uma alteração de factos e se, ocorrendo alteração – que a lei permite, nos referidos moldes – é substancial ou não substancial, desencadeando, perante essa definição, os mecanismos legais previstos para assegurar o exercício dos direitos de defesa.
Para ocorrer uma alteração dos factos é necessário que aos factos constantes da acusação ou da pronúncia outros se acrescentem ou substituam, ou, pelo contrário, se excluam alguns deles.»
No caso sub judice, o que sucedeu é que foram dados como não provados factos sem os quais não pode configurar-se o crime de violação cuja tentativa vinha imputada ao arguido.
E tal aconteceu em resultado da estratégia da defesa, que já no RAI alegava, para além do mais, que padecia de disfunção eréctil que o impedia de ter relações sexuais, e que requereu na contestação a realização de perícia destinada «à comprovação da disfunção eréctil do arguido, bem como, à avaliação deste para alcançar e/ou manter uma erecção», visando afastar a imputação do crime pelo qual vinha pronunciado, o de violação, na forma tentada.
Deferido o requerido e realizado o exame em causa, veio a ser dado como não provado que «Que o arguido tivesse exibido o pénis ereto com vista a introduzi-lo na vagina da ofendida» e «que o arguido tivesse agido com o propósito de manter com AA relações sexuais de cópula e que apenas não logrou concretizar este ato, designadamente em face da resistência oferecida pela ofendida.»
Ou seja, relativamente ao crime que vinha imputado ao recorrente, o que foi dado como provado foi, claramente, um minus relativamente ao que constava na acusação, e tal não acarretou qualquer prejuízo para a estratégia da defesa, sendo aliás dela decorrente (o que afasta a necessidade de qualquer comunicação de alteração factual (cf. art. 358.º, n.º 2, do CPP).
Mas não é contra essa alteração factual que o recorrente se insurge.
Os «factos novos» a que expressamente alude, alegando que determinaram uma alteração substancial dos factos, são os constantes dos pontos 42.º a 45.º da matéria de facto provada.
Ora, tais «factos» em nada relevaram para a condenação do arguido.
Na verdade, não são mais do que a reprodução parcial do conteúdo de documentação clínica, ou seja, de elementos probatórios, que o Tribunal entendeu incluir nos factos provados[20], e que apenas serviram para, conjugados com o teor dos depoimentos de CC (médico, assistente graduado sénior, Director de Serviço da Urologia), e da queixosa[21], fundamentar a sua convicção relativamente aos factos que vieram a ser dados como não provados[22].
Tais «factos», repete-se, são absolutamente irrelevantes para a integração dos elementos típicos do crime de coacção sexual pelo qual o recorrente foi condenado, cuja verificação se basta com a factualidade descrita nos pontos 1 a 28 da matéria provada (ou mais propriamente, nos seus pontos 16 a 28), que já constava da acusação, para a qual remeteu o despacho de pronúncia (e da qual apenas foram excluídos os segmentos que foram dados como não provados, nos termos já referidos).
É que, como ensina Figueiredo Dias[23], a violação é «a forma mais grave da coacção sexual», sendo, como quer que se conforme o seu desenho típico e o seu âmbito de protecção, «apenas uma especialização da coacção sexual do art. 163º-1, constituindo esta, por isso, verdadeiramente o tipo fundamental (…). Não é consequentemente correcto – nem sistemática nem teleologicamente – “opor” ou “cindir” os tipos de coacção sexual e de violação, como se o cerne do primeiro residisse no “acto sexual de relevo” e o do segundo em coisa diferente, a saber, a “cópula” (…): a cópula é obviamente, ela também, um acto sexual de relevo para efeitos do disposto no art. 163º (…); só que particularizada pela lei no art. 164º por força da sua natureza especial.»[24]
Uma vez que o crime de violação se apresenta como lex specialis, «em princípio, por conseguinte, a punição por violação consome (…) as coacções sexuais que devam considerar-se integrantes do processo que conduziu à violação.»[25]
E, mais adiante[26], a propósito da tentativa de violação, sublinha que «numa boa parte dos casos em que a violação não venha a consumar-se persistirá, em todo o caso, a punibilidade do agente pelo crime do art. 163º (se na execução da tentativa ele houver cometido actos sexuais de relevo), ainda que a tentativa possa encontrar-se a coberto da impunibilidade por desistência (…) Disse-se já supra § 16 que se a violação ficar pelo estádio da tentativa a punibilidade por coacção sexual pode persistir. Isto porém não significa que entre a tentativa de violação e a coacção sexual interceda uma relação de concurso efectivo, mas só de concurso legal; restando saber ser o agente deve ser punido por aquela tentativa ou pela coacção sexual consumada. Em abstracto, a tentativa de violação é menos punida que a coacção sexual consumada e não existem razões para que se dê nesta hipótese prevalência ao crime de violação, tanto mais quanto o crime de coacção sexual funciona aqui como tipo fundamental (“consunção impura”: cf. sobre o conceito EDUARDO CORREIA II 207). Ao menos em via de princípio, por isso, deverá o agente ser punido pela coacção sexual consumada.»
É uma situação desta natureza que ocorre no caso dos autos: arredada a verificação da tentativa do acto sexual de relevo «cópula», considerou-se que subsistiam – sem necessidade de qualquer adição de factos – os demais actos sexuais de relevo cuja prática foi dada como provada, e que os mesmos integram o tipo fundamental da coacção sexual, na forma consumada.
Ora, como bem observa o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu Parecer, «Como resulta da contestação apresentada pelo agora recorrente, a sua estratégia de defesa (ou pelo menos uma das suas estratégias de defesa) passou pela alegação e demonstração de que sofria de disfunção eréctil, com dificuldade/impossibilidade de ter uma ereção e de conseguir uma penetração/cópula (o que levou aos factos provados nºs. 42 a 45 do acórdão recorrido), pelo que a decisão do Tribunal, ao afastar a situação de cópula, dando-a como não provada, veio ao encontro do por ele pretendido, não podendo agora o mesmo vir alegar que foi uma decisão surpresa, com a qual não contava, com prejuízo do exercício dos seus direitos de defesa, sob pena de podermos mesmo estar perante uma situação de “venire contra factum proprium”1[27].
O arguido não poderia deixar de prever, para o caso da sua tese prevalecer, que sempre poderia subsistir a agressão sexual que perpetrou sobre a vítima/ofendida, mediante violência, ainda que sem “tentativa de cópula” dada a sua “incapacidade”, e de para ela precaver a sua defesa.»
Em suma, não houve introdução, no elenco da matéria de facto dada como provada no acórdão sob recurso, de qualquer factualidade nova relevante (e muito menos capaz de surpreender a defesa), susceptível de se tratada, sequer, como alteração não substancial dos factos (que impusesse, também por esse motivo, o cumprimento do disposto no art. 358.º, n.º 1, do CPP[28]), e muito menos, naturalmente, como alteração substancial dos factos.
O arguido não foi condenado por factos diversos dos que constavam da acusação nem houve alteração do objecto do processo.
Apenas se operou uma alteração da qualificação jurídica[29], que foi devidamente comunicada, em cumprimento do disposto no n.º 3 do art. 358.º do CPP, assim se assegurando as garantias de defesa do arguido e o contraditório, não tendo sido violada qualquer norma legal ou princípio constitucional.
Não se observa, pois, a nulidade do acórdão prevista na al. b) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, improcedendo, também nesta parte, o recurso interposto.
…
No caso, apesar de na sua peça recursória se referir a erro notório na apreciação da prova e/ou erro de julgamento, o que se constata é que o recorrente só nas conclusões identifica os pontos da matéria de facto que, em seu entender, foram incorrectamente julgados e, apesar de aludir às declarações da assistente e aos depoimentos das demais testemunhas, não esboça qualquer tentativa de dar cumprimento ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, pois que não especifica as passagens concretas de quaisquer declarações ou depoimentos prestados em audiência de julgamento por referência aos suportes técnicos da respectiva gravação, que imponham decisão diversa, o que desde logo impossibilita que este Tribunal proceda a uma reapreciação ampla da matéria de facto, ficando os seus poderes de cognição circunscritos à matéria de direito e à apreciação dos vícios previstos nas als. do n.º 2 do art. 410.º do CPP, que terão de resultar do texto da decisão recorrida.
…
…[32].
…ª[33].
…[34].
…[35]
…[36].
…
…[37]
…[38].
Daí que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1.ª instância naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja, quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 374.º, n.º 2 do CPP[39].
Exigindo-se a convicção do julgador sobre a prática dos factos da acusação para além da dúvida razoável e radicando o princípio in dubio pro reo na mesma dúvida razoável, este situa-se no âmago da livre apreciação da prova, constituindo como que o “fio da navalha” onde se move a missão de julgar. Convicção “para lá da dúvida razoável” e “dúvida razoável” legitimadora do princípio in dubio pro reo limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova de apreciação vinculada e da livre apreciação dos restantes em conformidade com o critério do art. 127.º do CPP, sujeitos ambos à mesma exigência de legalidade da prova e da sua apreciação motivada e crítica, da objectividade, racionalidade e razoabilidade dessa apreciação.
No mesmo sentido podem ver-se diversos autores, designadamente Rodrigues Bastos[40], que refere que ao juiz «…não é permitido julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, mas antes se lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se expressará na correspondente motivação», Cavaleiro de Ferreira[41], que escreve que «o julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no direito probatório», e ainda Germano Marques da Silva[42]: «O juízo sobre a valoração da prova faz-se em diversos níveis. Num primeiro dependente da imediação, nele intervindo elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo intervindo as declarações e induções que realiza o julgador a partir de factos probatórios, que hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios de experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”».
De entre abundante jurisprudência quanto a tal matéria, quer das Relações quer do Supremo Tribunal de Justiça, cita-se apenas, pela sua particular clareza, o proferido por este último Tribunal em 23-04-2009, no âmbito do Proc. n.º 114/09 - 5.ª[43]: «(…) a avaliação da decisão é a resposta, enquanto remédio jurídico, para incorrecções e ilegalidades concretamente assinaladas. Não um novo apuramento global do acontecido, ou a reapreciação do objecto do processo, porque a garantia do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, antes visando, apenas, a detecção e correcção de pontuais, concretos, e em regra excepcionais, erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da dita matéria de facto.
…»
…
Por outro lado, também nada obsta a que a convicção do Tribunal se funde num único depoimento, desde que o mesmo ofereça credibilidade bastante.
Nas sábias palavras de Bacon: «os testemunhos não se contam, pesam-se»[44], não vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio testis unus, testis nullus.
E – apesar de não ser o caso – não é decisivo para se poder concluir pela realidade dos factos descritos na acusação ou na pronúncia que haja provas directas do seu cometimento pelo arguido, designadamente que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticá-los ou que o próprio arguido os assuma expressamente.
Condição necessária, mas também suficiente, é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa, dentro do que é lógico e normal, de que os factos se passaram da forma ali narrada.
Ou seja, dentro do quadro probatório global a apreciar existem, para além da prova directa, «os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções[45].
…
A fundamentação da decisão recorrida, no exame crítico da prova, explica, de forma detalhada e clara, os motivos pelos quais os elementos de prova foram, conjugadamente, valorados no sentido em que o foram, sendo perfeitamente inteligível o itinerário cognoscitivo que conduziu o tribunal, que beneficiou da oralidade e da imediação, à convicção alcançada, com suporte na regra estabelecida no art. 127.º do CPP, não se mostrando violado qualquer princípio, norma legal ou regra da experiência na apreciação da matéria de facto, não merecendo, por isso, qualquer reparo a formação dessa convicção.
…
Ora, atendo-nos ao texto decisório, e só a esse podemos atender, basta uma leitura atenta da fundamentação da convicção sobre a matéria de facto constante do acórdão recorrido para verificar que a matéria factual que o recorrente questiona … resultou com clareza das declarações da assistente … e dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas que foram julgadas credíveis … em conjugação com os elementos documentais vertidos nos autos, ali se explicando exaustivamente os motivos pelos quais assim sucedeu, resultando por demais evidente que a convicção do Tribunal não se sustentou unicamente nas declarações da queixosa (ao contrário do que o recorrente alega).
…
Sendo inequívoco que a prova tem como função a demonstração da realidade dos factos (art. 341.º, n.º 1, do C. Civil[46]) ela não pressupõe, como vem afirmando a melhor jurisprudência, uma certeza absoluta, lógico-matemática, bastando que ela permita alcançar «um grau de certeza que as pessoas mais exigentes reclamariam para dar como verificado um certo facto» ou que permita afastar toda a dúvida razoável: não qualquer dúvida, mas a dúvida fundada em razões adequadas.
Como se reafirma no acórdão do STJ, proferido em 23-11-2017 no Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5[47], «Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».
Na verdade, contrariamente ao que o recorrente sustenta, não se vislumbra que o Tribunal tenha violado o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP, ou o princípio in dubio pro reo, sua emanação processual.
«O princípio da presunção de inocência é antes de mais um princípio natural, lógico, de prova. Com efeito, enquanto não for demonstrada, provada, a culpabilidade do arguido não é admissível a sua condenação. Por isso que o princípio da presunção de inocência seja identificado por muitos autores com o princípio in dubio pro reo, e que efectivamente o abranja, no sentido de que um non liquet na questão da prova deva ser sempre valorado a favor do arguido»[48].
Acerca do princípio in dubio pro reo, diz Maia Gonçalves[49]: «este princípio estabelece que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o réu. É um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário».
Também o Prof. Figueiredo Dias refere que «um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido»[50].
Importará ainda acentuar, relativamente ao princípio in dubio pro reo, que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, a sua violação deverá resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios.
…[51].
…[52], …
Ora, conforme resulta da fundamentação da convicção aduzida no texto da decisão recorrida, não se suscitou ao Tribunal – nem deveria ter suscitado, perante a prova produzida – um estado de dúvida séria que convocasse a aplicação daquele princípio e que conduzisse, por isso, à pretendida absolvição, pelo que não ocorreu qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
Tudo isto para concluir como começámos, ou seja, que é perfeitamente perceptível o percurso lógico que levou o Tribunal recorrido, que beneficiou da oralidade e da imediação, a dar como provados os factos susceptíveis de integrarem o cometimento pelo arguido do crime pelo qual foi condenado.
E que o fez sem que as suas conclusões sejam ilógicas ou inaceitáveis, não se podendo afirmar que um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, facilmente se dê conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou de que foram desrespeitadas regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.
A decisão mostra-se coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para suportar uma segura solução de direito.
Não ocorre, pois, qualquer dos vícios elencados no n.º 2 do art. 410.º do CPP, ao contrário do que afirma o recorrente.
O que sucede é que este discorda da convicção formada pelo Tribunal, considerando que houve uma errada apreciação da prova disponível, mas tal, a existir, configuraria um erro de julgamento, só sindicável através de uma impugnação alargada, envolvendo a análise de elementos estranhos ao texto da decisão e a reapreciação da prova gravada, via que, como acima se referiu, não foi a seguida.
A matéria de facto terá de considerar-se, assim, definitivamente fixada nos termos em que o foi pelo Tribunal recorrido, improcedendo também este segmento do recurso.
Sustenta, em síntese, que não se verificam os elementos típicos do crime de coacção sexual p. e p. pelo art. 163.º, n.º 2, do CP, desde logo porque não praticou os factos que lhe são imputados mas também porque, mesmo a manterem-se os factos tais como foram dados como assentes, não exerceu sobre a assistente violência, ameaça ou constrangimento, não sendo a força alegadamente por si utilizada suficiente para vencer a resistência daquela.
Conclui pela sua absolvição do mencionado crime, da qual decorre não haver lugar a indemnização da assistente.
…
… (2[53]) … (3[54]).
…(4[55]).
…
…(5[56]).
…
Diremos, antes de mais, que, não tendo a pretensão do recorrente de ver substancialmente alterada a matéria de facto merecido acolhimento por parte deste Tribunal, a apreciação da correcção da qualificação jurídica terá de fazer-se à luz da factualidade fixada pelo Tribunal a quo.
O recorrente não questiona a subsunção dos actos praticados, descritos na factualidade provada, concretamente nos seus pontos 22 a 24, ao conceito de actos sexuais de relevo (no qual indubitavelmente se integram), limitando-se a negar que tivesse utilizado violência adequada a vencer a resistência da vítima, invocando a propósito, ter a assistente 19 anos e ele próprio 86 anos de idade e padecer de vários problemas de saúde.
Ora, no caso concreto, os factos assentes evidenciam que o recorrente, com vista a praticar os actos sexuais ali descritos, começou por agarrar a assistente pelo braço esquerdo, com força, enquanto a ia empurrando na direcção do quarto de dormir; já aí, agarrou-a pelos ombros e empurrou-a para cima da cama, obrigando-a a deitar-se; apalpou os seios daquela e acto contínuo, utilizando a força física, «desapertou o fecho das calças que … vestia, após o que tentou despi-las, puxando-as para baixo, o que não conseguiu em face da resistência oferecida por aquela, que esbracejava e mexia as pernas, tentando libertar-se do arguido que estava deitado sobre si; ainda assim, o arguido, ao mesmo tempo que a segurava com uma das mãos e com o seu próprio corpo, impedindo-a de se levantar, de forma agressiva, conseguiu introduzir a outra mão no interior das calças e cuecas da ofendida … e esfregou a sua vagina, enquanto a beijava na boca»; e a dado momento «retirou a mão do interior das cuecas de …, desapertou as calças que vestia, exibindo o pénis, momento em que esta, porque o arguido, nesse momento, estava a fazer menos força sobre o seu corpo, conseguiu, com uso de violência física, designadamente esbracejando e mexendo as pernas de forma agressiva, afastar o arguido de cima de si e fugir a correr em direção à porta da rua».
Perante estes factos, não vemos como duvidar de que a violência empregue pelo recorrente foi significativa e persistente, manifestamente suficiente e idónea para vencer a resistência física da assistente, que só se conseguiu libertar e fugir num momento em que aquele exercia menos força sobre o seu corpo.
Ou seja, tendo presente a factualidade provada, é evidente que se mostram verificados os elementos objectivos e subjectivos do crime de coacção sexual pelo qual o recorrente vem condenado, na sua forma agravada, prevista pelo art. 163.º, n.º 2, do CP.
Uma vez que não se perfila qualquer causa de justificação da ilicitude dessa conduta ou de exclusão da sua culpa, o recorrente incorreu na prática do ilícito criminal pelo qual vem condenado.
Não ocorre, em suma, qualquer fundamento para a pretendida absolvição e não merece reparo a qualificação jurídico-penal operada no acórdão condenatório.
Improcede, pois, também este segmento do recurso.
…
…[57], …
…
Depois de enunciar os critérios que presidem à determinação da medida da pena, o Tribunal sobre ela se pronunciou, em concreto, …
Verifica-se, assim, que, relativamente à determinação da medida concreta da pena a aplicar, foram devidamente tomadas em consideração as elevadas exigências de prevenção geral e sopesadas as – menos significativas – necessidades de prevenção especial.
Foi ponderado o grau de ilicitude dos factos, que é elevado, a intensidade do dolo (directo) com que o arguido actuou e a (significativa) gravidade das suas consequências, bem espelhadas nos factos assentes, tudo redundando num relevante grau de culpa.
Em sentido favorável ao recorrente, atenuando as necessidades de prevenção especial, foi tida em conta a ausência de antecedentes criminais e a sua idade, sem deixar de se valorar as suas demais condições pessoais, nada mais avultando a seu favor, posto que não evidenciou qualquer espírito crítico ou capacidade de autocensura.
Apesar de a fundamentação da medida concreta da pena não ser exuberante, não foi omitida a valoração de circunstâncias que, nos termos do art. 71.º do CP, depusessem a seu favor, não se vislumbrando, nem o recorrente concretizando, alguma outra que, nesta sede, devesse ter sido considerada.
Ponderados todos os elementos reunidos nos autos, em conformidade com o disposto no art. 71.º, n.º 2, do CP, e tendo em consideração que a medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, às quais cabe, em última análise, a função de determinação da medida da pena dentro dos limites supra assinalados, constata-se que a pena, situada pouco acima do ponto mínimo da respectiva moldura penal abstracta, foi fixada de forma proporcional e adequada, mostrando-se ajustada à culpa concreta do agente, não carecendo de qualquer intervenção correctiva por parte deste Tribunal[58].
…
Fixada a pena, o Tribunal ponderou ainda, como se lhe impunha, a questão da suspensão da sua execução, e optou pela aplicação de tal pena de substituição, por considerar ser possível formular um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do recorrente, matéria que não vem questionada.
Mantendo-se a condenação do recorrente pela prática do ilícito criminal, subsiste a sua responsabilidade civil nela fundada, improcedendo por isso a sua pretensão de absolvição do pedido de indemnização civil, que peticiona apenas por força da absolvição criminal.
Perante tudo o que se deixa exposto, é de julgar o recurso totalmente improcedente.
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, …, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, ambos do CPP, 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa).
Notifique.
[1] No decurso do qual foi comunicada ao arguido uma alteração da qualificação jurídica.
[2] 2 in ob cit. pág. 447
[3] Apesar de a fls. 41 da sua motivação e na conclusão LVIII aludir às als. a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, em lugar algum invoca o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pelo que a mencionada referência à al. a) decorrerá de manifesto lapso de escrita.
[4] Cf., neste sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-09-2010, proferido no Proc. n.º 1511/04.PBSXL.L1.5, da Relação de Évora de 31-05-2011, proferido no Proc. n.º 26/09.9ZRLSB.E1, e da Relação do Porto de 20-05-2015, proferido no Proc. n.º 266/11.0TAVFR.P1, todos in www.dgsi.pt.
[5] In www.dgsi.pt.
[6] V. g., no acórdão desta Relação de Coimbra de 22-03-2023, Proc. n.º 791/16.7PBLRA.C1, ibidem.
[7] Cf. Acórdão do STJ de 17-09-2009, Proc. n.º 169/07.3GCBNV.S1 - 5.ª, ibidem.
[8] Curso de Processo Penal, tomo III, Verbo, 2.ª edição, pág. 273.
[9] Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 2.ª edição, pág. 200 e ss..
[10] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, UCE, Lisboa 2009, pág. 913.
[11] In www.tribunalconstitucional.pt.
[12] Cf. o Acórdão do STJ de 21-03-2007, Proc. n.º 24/07 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[13] In Revista do Ministério Público, Ano 16.º, Julho-Setembro 1995, n.º 63, págs. 89-107.
[14] Proferido no Proc. n.º 102/08 - 5.ª, in www.dgsi.pt.
[15] Proferido no Proc. n.º 605/07 - 1, ibidem.
[16] In Da alteração dos factos objecto do processo penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano I, Fasc. 2, Abril – Junho 1991, Aequitas, Editorial Notícias, págs. 228-232.
[17] In Curso de Processo Penal, Vol. I, Editorial Verbo, 2000, pág. 382.
[18] Código de Processo Penal, Comentários e Notas Práticas, Coimbra Editora, 2009, págs. 24-25.
[19] Vejam-se, a propósito, na jurisprudência do STJ, os Acórdãos de 21-03-2007, Proc. n.º 24/07 - 3.ª, de 16-01-2008, Proc. n.º 4565/07 -3.ª, de 03-04-2008, Proc. n.º 4827/07 - 5.ª, de 17-09-2009, Proc. n.º 169/07.3GCBNV.S1 – 5.ª, todos in www.dgsi.pt.
[20] Tal como refere na fundamentação da convicção: «- Informação clinica de fls 405 e 406 cujo teor se reproduziu nos factos dados como provados, no tocante às consequências da cirurgia e à disfunção erétil.»
[21] Como se explica na fundamentação da convicção, a propósito desse depoimento: «Não se lembra se o pénis dele estava ereto (daí o ter-se dado como não provado este facto, associado à demais prova produzida)».
[22] Ali se lê: « No tocante à disfunção eréctil do arguido decorrente da prostetomia total a que foi sujeito há uns anos e que lhe incontinência urinária e impotência sexual ou mais concretamente que o impede de ter ereção, tal circunstância levou a que se desse como não provados os factos atinentes à exibição do pénis ereto e com vista a introduzi-lo na vagina da ofendida e os respeitantes à atuação do arguido com o propósito de manter com AA relações sexuais de cópula.» e «Os factos como não provados resultaram do acima exposto, quanto à disfunção erétil do arguido, a que se fez referencia no local próprio».
[23] Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 445-446.
[24] Note-se que a redacção do art. 163.º, n.º 1, a que o Prof. Figueiredo Dias aqui se referia corresponde à do actual n.º 2 do preceito, introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 06-09.
[25] Ob. cit., pág. 458.
[26] Ob. cit., págs. 473-474.
[27] 1 Cfr. o disposto no artº. 358º nº 2 do CPP.
[28] Como é sabido, não é toda e qualquer alteração de factos que assume o relevo processual suficiente para desencadear a necessidade de comunicação a que alude o art. 358.º, n.º 1, do CPP: a lei fala em alteração com relevo para a decisão da causa.
Vinício A. P. Ribeiro, em anotação ao art. 1.º do Código de Processo Penal (Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, pág. 73), esclarece que «A jurisprudência dos Tribunais superiores tem sido constante no entendimento de que, não há alteração, substancial ou não, para os efeitos dos arts. 358.º e 359.º do CPP, quando os factos considerados provados representam um minus relativamente aos da acusação e nenhuns novos são introduzidos – cfr. Ac. STJ, de 3.4.1991, CJ, tomo II, pág. 17; Ac. STJ, de 5.7.2001, proc. n.º 4000/00-3.ª, SASTJ n.º 53, 62; Ac. STJ, de 7.11.2002, proc. n.º 3158/02-5.ª, SASTJ n.º 65, 67; Ac. STJ, de 12.11.2003, proc. n.º 1216/03-3.ª; SASTJ, n.º 75,93.» (Extracto do Ac. RP de 14 de Junho de 2006, Proc. 0612048, Rel. Borges Martins).(…) Nesta conformidade podemos assentar que a comunicação prevista no citado art. 358.º, apenas tem lugar quando se tratar de uma alteração não substancial relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa.
Mas quando é que isso sucede?
Para o efeito tem-se considerado que não existe uma alteração dos factos integradora do art. 358.º, quando a factualidade dada como provada no acórdão condenatório consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação ou na pronúncia, por não se terem dado como assentes todos os factos aí descritos – Ac. TC n.º 330/97 [DR, II Série 1997/Julho/03]».
Também não há alteração alguma de factos quando na sentença são descritos os mesmos factos da acusação ou da pronúncia, mas com uma formulação distinta, ou quando se explicitam, pormenorizam ou concretizam factos (já narrados sinteticamente na acusação ou na pronúncia) que não sejam relevantes para a tipificação ou para a verificação de qualquer agravante qualificativa.»
[29] «Na al. f) do art. 1º do CPP classifica-se como alteração substancial dos factos, em contraste com a alteração não substancial, aquela que envolva imputação de crime diverso ou o agravamento da moldura penal. Ponto é, no entanto, que se verifique uma alteração de factos, pois quando os factos se mantêm intocados, e apenas se procede a uma qualificação jurídica diversa da que constava da acusação, essa alteração é equiparada pelo legislador à alteração não substancial dos factos – n.º 3 do art. 358º do CPP» – cf. Ac. do STJ de 13-02-2008, Proc. n.º 213/08 - 3.ª, in www.dgsi.pt.
[30] Cf., designadamente, Acs. do STJ de 15-02-2007, Proc. n.º 3174/06 - 5.ª, de 14-03-2007, Proc. n.º 617/07 - 3.ª, de 23-05-2007, Proc. n.º 1405/07 - 3.ª, de 11-07-2007, Proc. n.º 1416/07 - 3.ª, e de 27-07-2007, Proc. n.º 2057/07 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[31] Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2.ª Ed., pág. 341, precisa que o requisito da notoriedade se afere «pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.» No mesmo sentido se pronuncia o Senhor Conselheiro Pereira Madeira, em anotação ao Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1359: «Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta. Porém, a ser assim, com um alcance tão restrito, o preceito acabaria por perder grande parte do seu interesse prático, acabando afinal por deixar encobertas, situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum. Impor-se-á, assim, uma leitura algo mais abrangente que não acoberte situações de julgamento erróneo não inteiramente escancaradas à observação do homem comum, todavia, que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente aplicada. Certo que o erro tem que ser «notório». Mas basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das percepções do homem comum – e sopesado à luz das regras da experiência. (…)»
[32] Cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 6.ª edição, págs. 67 e ss.
[33] Ibidem.
[34] «A divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal é irrelevante, de acordo com jurisprudência há muito firmada – cf. Acs. do STJ de 19-09-1990, BMJ 399.º/260; de 21-06-1995, BMJ 448.º/278 (a versão do recorrente sobre a valoração da prova não integra o vício do erro notório); de 01-10-1997, Proc. n.º 876/97 - 3.ª; de 08-10-1997, Proc. n.º 874/97 - 3.ª; de 06-11-1997, Procs. n.ºs 666/97 e 122/97, de 18-12-1997, Procs. n.ºs 47325 e 930/97, Sumários de acórdãos do STJ, Vol. II, págs. 156, 158, 216 e 220; de 24-03-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247; de 19-01-2000, Proc. n.º 871/99 - 3.ª; e de 06-12-2000, Proc. n.º 733/00. Ou, como se dizia no Ac. de 18-12-1997, Proc. n.º 701/97, Sumários, ibidem, pág. 220, a convicção do tribunal não pode ser tida por errada apenas porque as partes, eventualmente, valoram a prova de modo diverso.» - cf. Ac. do STJ de 04-12-2008, Proc. n.º 2507/08 - 3.ª, ibidem. E mais recentemente no acórdão do STJ de 01-07-2020, Proc. n.º 39/11.0GAPNF.P1.S2 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de acórdãos), no qual se reafirma que «a prova é apreciada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade que julga, conforme art. 127.º, do CPP, e não de acordo com a apreciação que dela fazem os destinatários da decisão.»
[35] Cf. Acs. do STJ de 17-03-2004, Proc. n.º 2612/03 - 3.ª, e de 23-02-2011, Proc. n.º 241/08.2GAMTR.P1.S2 -3.ª, ambos in www.dgsi.pt.
[36] Cf. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, vol. I, pág. 202.
[37] Cf. Ac. do TC n.º 198/2004, de 24-03-2004, in www.tribunalconstitucional.pt.
[38] Cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, págs. 233-234.
[39] Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, págs. 126-127, que, por sua vez, cita o Prof. Figueiredo Dias.
[40] In Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 221.
[41] In Curso de Processo Penal, vol. I, Reimpressão da Universidade Católica.
[42] In Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, págs. 126-127.
[43] In www.dgsi.pt.
[44] Psicologia do Testemunho, in Scientia Iuridica, pág. 337.
[45] Como se refere no Ac. do STJ de 11-11-2004, proferido no Proc. n.º 3182/04 - 5.ª, in www.dgsi.pt, «O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção.»
[46] Na ausência de uma definição de conteúdo similar à presente neste preceito, no âmbito da jurisdição penal e de processo penal a prova pode ser entendida como «o acto ou complexo de actos que tendem a formar a convicção da entidade decidente sobre a existência ou inexistência de uma determinada situação factual», refere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1993, pág. 81.
[47] In www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[48] Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª ed., pág. 105.
[49] Em anotação ao art. 126.º do Código de Processo Penal, 9.ª ed., pág. 320.
[50] In Direito Processual Penal, 1.º Vol., pág. 213.
[51] Cf. entre muitos outros, os Acs. do STJ de 08-07-2004, Proc. n.º 1121/04 - 5.ª, de 30-03-2005, Proc. n.º 552/05 - 3.ª, de 22-10-2008, Proc. n.º 215/08 - 3.ª, de 27-05-2009, Proc. n.º 484/09 - 3.ª, e de 07-04-2010, Proc. n.º 2792/05.1TDLSB.L1.S1 - 3.ª, todos in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[52] Proferido no Proc. n.º 117/08.3PEFUN.L1.S1 - 5.ª, ibidem.
[53] 2 in ob cit. pág. 447
[54] 3 Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal, 2º Vol., 2ª ed., pág. 230.
[55] 4 Ac RP de 07.10.09, www.dgsi.pt
[56] Proc nº 1067/19.3PVNG.P1 in www.dgsi.pt
[57] In www.dgsi.pt.
[58] Importará, nesta matéria, não esquecer as limitações que se colocam à controlabilidade do quantum exacto de pena, em sede de recurso, que já no acórdão de 25-11-2004 (Proc. n.º 3991/04 - 5.ª, in www.stj.pt Jurisprudência/Sumários de acórdãos) o Senhor Conselheiro Carmona da Mota assinalava: «Colocada a questão da «controlabilidade em via de recurso do procedimento de determinação da pena», na certeza de que o tribunal de recurso (seja a Relação, seja o Supremo), quando se trate de «recurso [de revista] limitado às questões de direito» («no caso do tribunal supremo ou mesmo das relações, quando se tenha verificado renúncia ao recurso em matéria de facto»), «conhecerá de todas as questões de que possa conhecer, de acordo com os poderes processuais de que dispõe» e se conclua pela não desproporcionalidade da quantificação operada no tribunal de instância e pela sua não desconformidade com as regras de experiência, restará, pois, a pronúncia (do tribunal de recurso) sobre a justiça do «quantum exacto da pena», aspecto este, porém, em que o recurso se mostra algo «inadequado para o seu controlo». Não porque essa controlabilidade deva imputar-se a outro tribunal (intermédio) de recurso, mas, exactamente, por - em recursos limitados às questões de direito - ser incontrolável – dentro dos estreitíssimos limites da margem de liberdade do julgador ante os parâmetros definidos no topo pela culpa, na base pelas exigências de prevenção geral e, no espaço intermédio, pelas exigências de prevenção especial e de ressocialização do criminoso – a justiça dessa «exacta quantificação». E isso porque, depois de controladas [e julgadas correctas] as operações de determinação da pena, não restará ao tribunal ad quem (a Relação ou o Supremo), num recurso limitado às correspondentes questões de direito, senão verificar se a quantificação operada nas instâncias, respeitando as respectivas «as regras de experiência», se não mostra «de todo desproporcionada». Aliás, «o Código assume claramente os recursos como remédios jurídicos» e não como «meio de refinamento jurisprudencial», pois que «o julgamento em que é legítimo apostar como instrumento preferencial de uma correcta administração da justiça é o de primeira instância»». Antes, ainda, v.g., o acórdão do STJ de 29-01-2004, proferido no Proc. n.º 1874/03 - 3.ª, in www.dgsi.pt, reafirmando entendimento reiterado desse Tribunal e, após, o acórdão do STJ de 27-05-2009, proferido no Proc. n.º 484/09 - 3.ª, ibidem, com indicação de vasta jurisprudência no mesmo sentido.