JUNÇÃO DE DOCUMENTOS COM O RECURSO
MARCHA DE URGÊNCIA DE VEÍCULO
PENA ACESSÓRIA
Sumário

I - É inadmissível a junção de documentos pelas partes em fase de recurso após o encerramento da audiência de julgamento.
II - A marcha de urgência de veículo não justifica, nem pressupõe, que o condutor deixe de observar as regras do Código da Estrada, nomeadamente se for susceptível de colocar em perigo outros condutores ou peões, não justificando tal marcha todas as infrações e perigos que sejam criados.
III - Sendo aplicável à determinação da pena acessória os critérios legais de determinação da pena principal, deve, em princípio, verificar-se alguma proporcionalidade entre ambas, não obstante a sua finalidade visar, essencialmente, prevenir a perigosidade do agente.

Texto Integral

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…, foi decidido (transcrição):

a) Condenar o arguido …, pela prática de dois crimes de homicídio por negligência, previstos e punidos, pelo artigo 137.º,n.ºs 1 e 2 do Código Penal, cada um deles, na pena parcelar de 18 (dezoito) meses de prisão;

b) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares descritas em a) – artigo 77º, n.º1 e 2 do C.P. - condenar o arguido …, na pena única de 2 ( dois) anos de prisão;

c) Suspender, ao abrigo do artigo 50.º, n.ºs 1 e 5 do Código Penal, a execução da pena de prisão aplicada pelo período de 2 (dois) anos;

d) Condenar o arguido …, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 18 (dezoito) meses, nos termos dos artigos 69º, n.º 1, alínea a), e nº2 do Código Penal, devendo o arguido apresentar a respetiva carta de condução, no prazo de dez dias, após o trânsito em julgado da sentença, na secretaria deste tribunal ou em qualquer posto policial.


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2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido …, formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem integralmente):

1. O presente Recurso incide sobre o erro e incorreto julgamento em matéria de fato e matéria de Direito.

2. Os pontos abordados neste recurso são:

- Impugnação sobre a decisão proferida sobre a matéria de fato ou o erro de julgamento fatual, relativamente aos Fatos / Pontos nºs. 9, 27, 28, 29, 30, 31 e 32, da matéria de facto dada como provada - artigo 412º, nº. 3 do CPP.

- Erro na aplicação do Direito aos fatos.

- A violação dos princípios da livre apreciação da prova, in dubio pro reo e da presunção da inocência;

- A determinação excessiva da medida da pena acessória de inibição de conduzir (subsidiariamente);

Da impugnação sobre a decisão proferida sobre a matéria de fato ou o erro de julgamento fatual;

O Ponto 9:

3.6. O Ponto 9 foi incorretamente julgado incorrendo o Tribunal a quo em erro de julgamento sobre a decisão de matéria de fato, pois o local da ultrapassagem realizada não se situa na localidade de ..., não tendo qualquer correspondência com a prova produzida.

3.7. Impõe-se decisão diversa da plasmada no Ponto 9, no sentido de que o arguido efetuou a ultrapassagem de quatro viaturas na localidade de ..., na zona da igreja e cemitério.

3.11. Atento a respetiva fundamentação, nao se pode retirar que o arguido efetuou a ultrapassagem de quatros viaturas que seguiam à sua frente imprimindo uma velocidade de cerca de 76km/h.

Os Pontos 27 a 32;

4. Os Pontos 27, 28, 29, 30, 31 e 32, foram incorretamente julgados incorrendo o Tribunal a quo em erro de julgamento sobre a decisão de matéria de facto.

4.1. Estes Pontos 27 a 32 são conclusões e ou correspondem a juízos conclusivos que o Tribunal a quo retirou dos fatos anteriores e ou, como se refere na respetiva fundamentação probatória, das regras normais da experiência.

9.10. Assim, devem ser retirados da matéria dada como provada os Pontos 27 a 32, por contrários à prova produzida e ou às regras normais da experiência, da lógica e senso comum.

- Do resultado das mortes;

10. Que responsabilidade haverá a imputar ao arguido quando se conclui que o acidente sempre ocorreria à velocidade de 50km/h. (?!) As infortunísticas mortes (?!)

10.1. A respeito de se saber se na situação da velocidade de circulação do veículo do arguido fosse a legal e correspondente a 50km/h, se se evitaria as mortes ocorridas, nada foi provado - quer através de prova testemunhal, que seria, enfim, pessoal e desprovida de exatidão científica, quer através de prova documental, através do estudo que resultou no RTAV ou outra prova documental e ou pericial.

11.1. Não se pode imputar ao arguido, como se fez na decisão de que se recorre, a negligência e ou a possibilidade de prever e antecipar uma manobra perigosa e violadora das regras estradais, como nos presentes, de um veículo que se atravessa à sua frente, e tudo isto a apenas uma distância de 27 metros.

11.10. No caso dos presentes autos, o mesmo equivale a dizer que o arguido ao conduzir pela sua mão e faixa de rodagem, tem o direito de partir do princípio que o condutor que circula em sentido contrário ao seu, no caso o condutor do quadriciclo, também o fará - que circule no seu sentido e respetivo corredor ou faixa de rodagem.

11.19. A conduta do arguido não aumentou a probabilidade e ou risco de produção do acidente.

11.20. No caso concreto o cumprimento da regra da velocidade, imposta para o local do acidente, de 50km/h, não era adequado a evitar o resultado produzido das mortes.

11.21. Não existe o nexo de causalidade adequada entre a violação do dever de cuidado e a produção do resultado típico.

Subsidiariamente,

17. O arguido foi condenado na pena acessória de dezoito (18) meses de inibição de condução.

21. O arguido foi punido a título de negligência.

22. O arguido ia com a assinalada e provada marcha de urgência que colocou após ter recebido chamada telefónica para se deslocar com urgência para o quartel de bombeiros em virtude de alarme de incêndio.

26. O fato do arguido necessitar da sua carta de condução e do uso do seu veículo automóvel para o exercício da sua atividade profissional e da sua atividade junto dos Bombeiros - não apenas para as suas deslocaçãoes para os respetivos locais de trabalho, mas para o exercício cabal das mesmas, pois o arguido trabalha para a empresa A..., de instalação de gás e eletricidade, onde mantém a atividade profissional de encarregado técnico de instalação, que implica a deslocação para vários locais e obras em curso no país.


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3. O Ministério Público respondeu ao recurso, …


*


4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer …

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            5. Pese embora a prolixidade das conclusões do recurso do recorrente, entende-se que cumprem, de forma mínima, as exigências estabelecidas no n.º 1 do art. 412º do Código de Processo Penal.

            6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.


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II

SENTENÇA RECORRIDA


(transcrição das partes relevantes para o conhecimento dos recursos)

«(…) A. MATÉRIA DE FACTO PROVADA

                Da discussão da causa, com interesse para a decisão a proferir, resultou provada a seguinte matéria de facto:

                1. O arguido … é bombeiro desde o dia ../../1991.

                2. A 29 de Agosto de 2021, o arguido … encontrava-se escalado de serviço no turno diurno, com início às 09h00m.

                3. Pelas 08h43m, do referido dia 29 de agosto de 2021, foi dado alerta de incêndio florestal …, para o qual foi solicitada a intervenção da Corporação de Bombeiros a que o arguido estava afeto.

                4. Acautelando-se a possibilidade de fazer sair uma outra viatura para aquela ocorrência, cerca das 08h50m o arguido foi contactado para que se deslocasse o mais rapidamente possível para o quartel de bombeiros.

                5. No momento do contacto referido em 4., o arguido, acompanhado de …, sua companheira e também ela bombeira voluntária, já se encontravam a efetuar o trajeto para o quartel …

                6. Circulavam no veículo automóvel, marca …, sendo tal veículo conduzido pelo arguido.

                7. Após o telefonema referido em 4., e quando circulavam …, o arguido …, passou a utilizar alternadamente os máximos com os médios, com as quatro luzes de perigo acionadas (vulgo quatro piscas) e utilizando repetidamente a buzina do veículo, assinalando, assim, marcha urgente.

                8. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, mas no sentido …, circulava … conduzindo o quadriciclo pesado, …, acompanhado de sua esposa, …, no lugar do passageiro dianteiro.

                9. Ao aproximar-se do km 151.7 daquela EN 109, …, o arguido, imprimindo uma velocidade de cerca de 76km/h ao veículo que conduzia, efetuou a ultrapassagem de quatro viaturas que seguiam à sua frente, tendo para o efeito transposto a linha longitudinal contínua (marca horizontal M1 – linha contínua), ali existente e invadido a via de trânsito de sentido contrário ao seu.

                10. O arguido retomou a sua via de trânsito ainda antes do cruzamento com a Rua ..., ao km 151.7 daquela EN 109.

                11. O arguido apercebeu-se do quadriciclo pesado a uma distância de cerca de 27 metros do ponto de embate, ponto de embate este que coincide com o cruzamento.

                12. Cerca de um segundo depois de percecionar tal perigo, o arguido acionou o travão e deslocou o seu veículo para a berma do lado direito da via, visando evitar o embate, o que não logrou conseguir, tendo embatido com a parte frontal na lateral direita do quadriciclo … e com parte da lateral direita do seu automóvel no muro ali existente.

                13. O veículo conduzido pelo arguido, no momento do embate, circulava à velocidade de cerca de 72 km/h.

                14. No momento do embate o quadriciclo pesado efetuava manobra de mudança de direção para a esquerda ….

                …

                16. Naquele local, a faixa de rodagem é composta por duas vias de trânsito de sentido oposto, separados pela marca horizontal M1 – linha contínua, delimitada pelas marcas horizontais M19 – linhas guias e a velocidade máxima permitida para os veículos automóveis é de 50km/h.

                17. No local exato do acidente, a sinalização é composta pela marca M2 – linha descontínua, precedida dos sinais de perigo A16a – passagem de peões, B9a – entroncamento com via sem prioridade e B8 – cruzamento com via sem prioridade, e ainda do sinal de informação H7 – passagem de peões.

                18. À data dos factos, a faixa de rodagem naquele local, com uma largura de 7mts, era composta por duas vias de trânsito, uma para cada sentido de marcha, encontrava-se pavimentada, em asfalto, que se apresentava seco, não existindo quaisquer obstáculos que impedissem a livre circulação automóvel.

                19. Atenta a hora do descrito sinistro, era dia, não existiam condicionantes à visibilidade da circulação e o tempo estava seco.

                20. À data dos factos encontrava-se a decorrer a “Feira dos 29” …, havendo vários veículos a circular, que o faziam devagar e vários peões a atravessar a estrada próximo da zona de um cemitério.

                21. Como consequência direta e necessária do acidente supra descrito … sofreu as seguintes lesões:

                …

                22. O traumatismo craniano, torácico e dos membros superiores e inferior direitos, constituíram causa direta e necessária da morte de …, ocorrida no local.

                23. Também como consequência direta do acidente, … deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital …, politraumatizado, vindo a ser transferido para o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra no mesmo dia 29 de Agosto de 2021, pelas 15h06m, …, vindo o seu óbito a ser declarado a 30 de Agosto de 2021, pelas 23h10m.

                24. Como consequência direta e necessária do acidente supra descrito … sofreu as lesões …

                25. Tais lesões traumáticas …, constituíram causa adequada, direta e necessária da morte …

                26. Logo após o embate, o arguido e sua companheira saíram, de imediato, do veículo e acorreram aos ocupantes do quadriciclo, que socorreram, tendo procedido ao seu desencarceramento e iniciado manobras de reanimação a …

                …

               

                                                                                                *

                B.             MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

                Com relevância para a decisão da causa não se provou:

                …

                                                                                                *

                C)            EXAME CRÍTICO DAS PROVAS

                …

               

  


*

III

QUESTÕES A DECIDIR


…([1]).

            Assim, as questões a decidir são as seguintes (por ordem lógica do respetivo conhecimento):

a) Alteração da matéria de facto; e

b) Medida concreta da pena acessória aplicada.


*

IV.

APRECIAÇÃO DO RECURSO


A) Alteração da matéria de facto:

Como questão prévia, juntou o recorrente com o recurso interposto 6 documentos, com que pretende impugnar a factualidade dada como provada.

Ora, dispõe o art. 165º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Quando podem juntar-se documentos”, que “O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência”.

Deste modo, é inadmissível a junção de documentos pelas partes em fase de recurso (e, assim, posterior ao encerramento da audiência de julgamento): os documentos são meios de prova, relevando para a fixação da matéria de facto, e toda a prova deve ser junta até ao final da fase de julgamento em 1ª instância e anteriormente à sentença, local próprio em que o juiz analisa, pondera e perscruta todas as provas, de modo a formar a sua convicção, após todos os documentos serem sujeitos a amplo contraditório, mesmo que a sua junção tenha sido oficiosamente ordenada ([2]).

Pelo exposto, não serão considerados os documentos juntos com o recurso interposto, por ser inadmissível a sua junção.


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Insurge-se o recorrente contra todos os factos declarados como não provados, pugnando pela não prova dos factos provados em 9, 27, 28, 29, 30, 31 e 32 da sentença proferida.

A impugnação da matéria de facto, ou recurso amplo da matéria de facto, encontra-se prevista no art. 412º, n.º 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal.

Para que seja possível o seu conhecimento, o recurso tem de cumprir os seguintes requisitos:
a) Indicação individualizada dos pontos de facto constantes da decisão recorrida que considera incorretamente julgados;
b) Indicação das provas que impõem decisão diversa, identificando o meio de prova ou o meio de obtenção de prova que imponham decisão diversa, com menção concreta, quanto à prova gravada, do início e termo da gravação, e a citação do ponto concreto da gravação, que fundamente s impugnação; e
c) A indicação das provas que pretende que sejam renovadas.
Estas exigências recursivas resultam da competência jurisdicional atribuída ao tribunal de recurso: o julgamento da matéria de facto em primeira instância é efetuado segundo o princípio da imediação, sendo assegurado um contato direto e pessoal entre o julgador e a prova, encontrando-se o juiz de primeira instância em melhores condições que o tribunal de recurso para apreender a verdade histórica e, assim, a verdade material. Os princípios da oralidade e da imediação permitem um maior contacto entre o julgador e as provas, que “virão a ser apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas” ([3]).
Tal apreensão não é comparável à que pode ser efetuada pelo tribunal de segunda instância, que procede à audição das provas registadas que lhe forem sugeridas no recurso, e sem visualização, ou seja, ficando inibido de verificar as manifestações físicas e expressões das pessoas inquiridas.
Por estas razões, a reapreciação da prova em recurso nunca pode constituir um segundo julgamento, garantindo o duplo grau de jurisdição ao interessado o controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através de reexame parcial da prova.
Acresce que a primeira instância julga a matéria de facto segundo o princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no art. 127º do CPP, ou seja, o julgador aprecia os meios de prova segundo a sua valoração e convicção pessoal. O que significa que a Relação controla a existência de eventuais erros de julgamento de acordo com o exame crítico da prova efetuado em primeira instância, que se encontra naturalmente vinculado a critérios objetivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum. “Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o beneficio da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum”, tornando-se “necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a incorreção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção” ([4]).  

Vejamos o caso concreto, tendo em conta os vetores enunciados:

Ø Facto provado em 9:
“9. Ao aproximar-se do km 151.7 daquela EN 109, …, o arguido, imprimindo uma velocidade de cerca de 76km/h ao veículo que conduzia, efetuou a ultrapassagem de quatro viaturas que seguiam à sua frente, tendo para o efeito transposto a linha longitudinal contínua (marca horizontal M1 – linha contínua), ali existente e invadido a via de trânsito de sentido contrário ao seu.”

            Coloca o recorrente em causa (1) o local onde efetuou a ultrapassagem e (2) a velocidade dada como provada.

            Refere nenhuma prova ter sido produzida donde resulte que a ultrapassagem teve lugar na localidade de ..., perto e onde se dá o acidente ao km 151,7.

            E que provas oferece para que este tribunal de recurso conclua pela impossibilidade de prova de tal facto?

            Desde logo, as declarações do arguido, que declarou ter ultrapassado junto à passadeira, perto do cemitério – conforme se refere na fundamentação da sentença proferida; o depoimento das testemunhas …

            Como bem refere a sentença, declarou o arguido que entre o local da ultrapassagem e o ponto de embate não decorreria mais de meio minuto, …

Deste modo, não impõem as provas indicadas conclusão distinta da alcançada pelo tribunal a quo (para além da inutilidade da pretendida modificação para a decisão).

No tocante à velocidade, foi determinada em relatório técnico elaborado por especialistas e junto aos autos, conforme referido na fundamentação da sentença, facto esclarecido e confirmado pela testemunha …

O recorrente limita-se a conferir a sua própria leitura ao relatório elaborado, colocando dúvidas que não abalam a conclusão extraída, não impondo, em consequência, conclusão diversa da constante do facto objeto de impugnação – e que é totalmente consentâneo com a experiência comum, atendendo à forma como o recorrente conduzia, em marcha de urgência, ligando alternadamente as luzes em posição de máximos e médios, com os “quatro piscas” ligados, utilizando repetidamente a buzina do automóvel, donde se extrai que circulava, sem dúvida, a velocidade excessiva, ou não teria a necessidade de assinalar dessa forma a sua marcha.

Nem se percebe como, naquela reta, tendo ultrapassado veículos junto a uma passadeira, numa altura em que havia grande movimentação de pessoas e carros, após aquele local tenha diminuído a velocidade a que seguia – isso, sim, contrariaria a experiência comum.

Pelo que nenhum erro há a apontar ao facto dado como provado em 9.

Ø Factos 27, 28, 29, 30, 31, 32:

                28. Em face da velocidade a que seguia e da manobra que realizava, o arguido só se apercebeu do veículo conduzido por … nos termos descritos em 11, o que o arguido podia e devia ter previsto ao saber que se aproximava de um cruzamento.

                29. O arguido, por imprevidência e confiando na sinalização de marcha urgente que efetuava, não se conformou com a possibilidade de, por via da sua descrita conduta, provocar perigo de colisão com outros veículos que utilizavam aquela estrada ou para a vida dos demais utentes da mesma, designadamente de … e de …

                30. O arguido agiu convicto de que não causaria a morte de … e de …, sendo que, atentas as circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas em que circulava e a sua capacidade pessoal, devia e podia ter-se abstido de circular à velocidade de 76km/h e efetuar as ultrapassagens descritas, assim como devia e podia prever o resultado da sua conduta. 

                31. Com efeito, não fosse a velocidade acima do limite legal permitido e desadequada para a via e circunstâncias em causa e as ultrapassagens realizadas e o arguido teria evitado o embate no veículo conduzido por AA, evitando as mortes ocorridas.

                32. O arguido atuou de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Impugna o arguido, conjuntamente, estes factos, relativos à violação dos deveres de cuidado e, assim, à conduta negligente do condutor. Não indica qualquer meio de prova a este tribunal de recurso, limitando-se a reiterar o que afirmou a propósito da impugnação do antecedente facto 9, partindo do pressuposto da procedência de tal pretensão – desiderato que não logrou alcançar -, pretendendo sobrepor a sua leitura da forma como ocorreu o acidente à que resultou da convicção do tribunal a quo. O que é inadmissível.

Na verdade, como bem consta da sentença sob recurso e é referido pelo arguido na motivação recursiva, “Quanto aos factos descritos nos pontos 27 a 32, relativos à falta de cuidado exigível pelo arguido no exercício da condução, e consciência da ilicitude, dado como provados, os mesmos são comprováveis, também, por presunções ligadas ao princípio da normalidade ou regras gerais da experiência, e que, no caso concreto, nos dizem que o arguido, não adotando os deveres de cuidado inerentes à condução prudente que se impunham na situação concreta, os quais podia e devia ter adotado, conduziu da forma “supra” descrita,  sabendo que, agindo daquele modo, o ordenamento jurídico proibia a sua conduta. Com efeito, todas as ações levadas a cabo pelo arguido, naquele momento, como conduzir o veículo, dentro de uma localidade, à velocidade de cerca de 76 km/h, efetuado quatro ultrapassagens num local próximo de um cruzamento, transpondo a linha de traço contínuo, e num dia em que o tráfego de viaturas e pessoas era elevado, facto de era conhecimento do arguido, foram idóneas, em conjunto, a provocar o embate que foi causa direta e necessária da morte de … e …, o que, aliado à circunstância de o arguido conhecer aquele local e saber da existência daquele cruzamento, é revelador da falta de adoção de cautelas que o mesmo podia e devia de adotar naquele circunstancialismo, e que, não o fazendo, tal conduta era proibida e criminalmente punível.”

A motivação da sentença nesta parte é clara, constituindo uma decorrência lógica dos factos anteriormente dados como provados. Basta atentar na violência do embate, bem patente na reportagem fotográfica realizada após o acidente, apesar da distância a que o recorrente, confessadamente, avistou o quadriciclo, conjugado com a visibilidade do local, a forma como aquele exercia a condução, no mínimo temerária, atentas as condições de trânsito automóvel e de peões no local, para concluir pelo acerto do assentamento destes factos objeto de impugnação.

Recorrendo o arguido a frases soltas do relatório técnico junto aos autos, pretende que através das mesmas se extraia conclusão diversa daquela que consta do próprio relatório, confirmada em julgamento por quem o elaborou.

Relativamente à marcha de urgência, sendo certo que o art. 64º, n.º 1, do Código da Estrada prevê que, “quando a sua missão o exigir, (os condutores podem) deixar de observar as regras e os sinais de trânsito”, ignorando, no entanto, que o n.º 2 do mesmo preceito dispõe que “Os referidos condutores não podem, porém, em circunstância alguma, por em perigo os demais utentes da via” (sublinhado nosso).

A marcha de urgência (cuja legitimidade não trataremos nesta sede) não justifica nem pressupõe que o condutor deixe de observar as regras do Código da Estrada, nomeadamente se for suscetível de colocar em perigo outros condutores ou peões. O que notoriamente o recorrente não observou.

            Não se extrai dos factos provados quanto à dinâmica do acidente que o condutor do quadriciclo tenha deixado de ceder passagem ao recorrente: recorde-se que o malogrado condutor efetuava uma manobra de mudança de direção à esquerda, consabidamente lenta, atendendo às caraterísticas do veículo que tripulava, manobra esta que o arguido percecionou com tempo suficiente para evitar o embate, caso exercesse de forma cuidada e atenta a sua condução, em local que bem conhecia.

            Não era exigida ao condutor do quadriciclo outra conduta. E não pode uma marcha de urgência justificar todas as infrações e perigos criados.

            Não consta dos factos provados que a infeliz vítima não tenha sinalizado a manobra que efetuava, contrariamente ao invocado pelo recorrente.

            Como bem afirma o recorrente, a velocidade máxima permitida no local é de 50 kms/hora, e circulava a 76 kms/h. O RTAV conclui que “se o veículo circulasse à velocidade de 50 km/h e nas mesmas condições necessitaria de 31 metros para se imobilizar em segurança”, ou seja, mais 4 metros do que a distância a que o recorrente se apercebeu do quadriciclo. No entanto, não se pode ignorar que a visibilidade do arguido era muito superior àquela distância, pelo que o facto de apenas ter reparado no quadriciclo a efetuar a referida manobra a escassos 27 metros se deverá a desatenção, ao que acresce que caso circulasse a velocidade inferior o embate não teria assumido a violência e nível de destruição patentes nos autos, com a menor possibilidade do resultado que se verificou.

            As graves lesões determinantes da morte das vítimas não pode deixar de se imputar à conduta imprudente e temerária do recorrente, ao circular em velocidade excessiva (instantânea e desadequada às condições do local), como bem se encontra explicitado na sentença – nenhuma censura merecendo os factos dados como provados, que assim se mantêm.

            Em consequência, improcede a impugnação ampla da matéria de facto.


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O recorrente defende padecer a decisão incidente sobre a matéria de facto de contradição insanável, por não ter efetuado “conveniente e adequada apreciação da prova produzida em julgamento”.


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            …

O trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, consiste essencialmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, concluindo, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado. No caso, não é contrário à prova nem às regras da experiência os factos que a instância assentou, tendo o tribunal procedido a uma valoração racional e crítica da prova, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum.

Finalmente, invoca o recorrente ter sido violado este comando constitucional com fundamento na também invocada violação do princípio in dubio pro reo.

Ora, o principio in dubio pro reo impõe que o tribunal, em caso de dúvida, decida a favor do arguido – constituindo assim um limite normativo da livre apreciação da prova, consagrada no art. 127º do CPP. Significa que, em caso de persistência de uma situação probatória incerta, de uma dúvida razoável, que impeça a formação de uma convicção segura pelo tribunal após a produção de prova, este tem de atuar de modo favorável ao arguido.

Ora, em sede de recurso o princípio in dubio pro reo só opera se da decisão recorrida resultar a sua violação, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. No caso, não resulta da decisão recorrida que ao tribunal de 1ª instância tenha restado qualquer dúvida incidente sobre a factualidade que deu como provada, ou sobre o processo de formação da sua convicção. Pelo contrário: o que se retira da fundamentação vertida na decisão recorrida é uma análise cuidada e profunda dos meios de prova produzidos, alicerçando a sua convicção na prova documental, pericial e pessoal produzida, destrinçando as provas convergentes, e usando de modo lógico e racional os juízos fácticos decorrentes da experiência comum.

Inexiste, pois, qualquer violação do princípio in dubio pro reo.

Pelos motivos expostos, improcede totalmente o recurso sobre a matéria de facto – …


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B) Medida da pena acessória:


Insurge-se o recorrente contra a fixação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor ter sido fixada em 18 meses, a saber, cerca de metade da moldura abstrata de 3 meses a 3 anos – art. 69º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

Sendo-lhe aplicável os critérios legais de determinação da pena principal, deverá em princípio verificar-se alguma proporcionalidade entre a medida concreta da pena principal e a medida concreta da pena acessória, considerando-se, como foco de diferença, que no caso desta última a finalidade visa essencialmente prevenir a perigosidade do agente ([5]).

A pena principal (única) foi fixada em 2 anos de prisão (uma vez que o recorrente praticou dois crimes de homicídio negligente), numa moldura abstrata entre 18 e 36 meses de prisão (considerando o máximo de 5 anos para cada um dos crimes). Mostra-se, assim, a pena principal encontrada pela prática do crime previsto no art. 292º do Código Penal é proporcional à sanção acessória aplicada.

Continuando,

… ([6])

Ora, as circunstâncias invocadas pelo arguido no recurso interposto são contrariadas pela própria factualidade provada na sentença. Assim.

- O grau de ilicitude e o modo de execução não são de considerar medianos ou diminutos, tendo em conta as circunstâncias do crime, que impõem a consideração de uma ilicitude “muito elevada, tendo em conta os resultados morte de duas pessoas, e a infração das regras de condução estradais”, conforme consta da sentença;

- Não obstante o arguido circular em marcha de urgência, violou de forma muito imprudente as normas estradais, encontrando-se condenado pela prática do crime na forma mais grave de negligência: a grosseira;

- O facto de servir os Bombeiros Voluntários pressupõe que tenha maior cuidado na condução, nomeadamente se circular em marcha de urgência e nas condições de trânsito que se verificava no local;

- A ausência de antecedentes criminais e o socorro imediato prestado às vítimas foram igualmente ponderadas na sentença, bem como a sua condição pessoal e profissional.

Numa moldura tão ampla de pena acessória, a sua fixação em menos de metade da moldura útil é totalmente adequada ao caso concreto, concretamente “a forma de atuação e as consequências da conduta do arguido” – pelo que se mantém.

Improcede, pelo exposto, na totalidade o recurso.


*

V.

DECISÃO


Pelas razões expostas, decide-se julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido ….

            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.

Coimbra, 20 de novembro de 2024

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

Maria Alexandra Guiné (1ª adjunta)

Cristina Pêgo Branco (2ª adjunta)


[1] neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336
[2] A título meramente exemplificativo, uma vez que este entendimento é unânime quer na doutrina quer na jurisprudência, v. Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, vv.aa., 2ª ed., págs. 644-645.
[3] Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212
[4] Ac. desta Relação de 4.5.2016, no proc. 721/13.8TACLD.C1; cf. ainda o Ac. RC de 12.9.2012, no proc. 245/09.8GBACB.C1, em www.dgsi.pt
[5] cf. Ac. da RC de 28.2.2018, no proc. 211/17.0GAMIR.C1, em www.dgsi.pt
[6] - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de de 25-11-2004 (Proc. n.º ....ª), in www.stj.pt Jurisprudência/Sumários de acórdãos, rel. Cons. BB.