I - A implementação da carta por pontos, com a adopção de um sistema sancionatório mais transparente e compreensível, visou aumentar o grau de percepção e responsabilização dos condutores face aos seus comportamentos.
II - O direito de manter a licença de condução não tem carácter definitivo, antes é transitório e esta transitoriedade revela-se na periodicidade da respectiva validade e na sujeição a diversas restrições, renovações e actualizações e, ainda, no sistema de aquisição e perda de pontos, que depende do comportamento estradal do condutor.
III - Os efeitos da perda de pontos, previstos no n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada, assentam apenas em variáveis quantitativas e objectivas e quando atingidos diversos níveis de dedução de pontos.
IV - Estes efeitos não estão hierarquizados numa relação de dependência e subsidiariedade, no sentido de o mais grave só poder ser aplicado depois dos menos graves não terem surtido o efeito pretendido, não têm por efeito atribuição de pontos ou a suspensão da perda de pontos e não influem na decisão de cassação, pois esta opera logo que a soma da perda de pontos resultantes das infracções praticadas igualar ou ultrapassar o número de pontos atribuídos à licença de condução.
V - A notificação para os efeitos constantes dos n.ºs 4 e 8 do artigo 148.º do Código da Estrada não é condição, nem pressuposto, da cassação da licença de condução, sendo a sua ausência irrelevante para o desfecho do processo.
VI - A cassação da licença de condução é uma sanção de natureza administrativa e resulta de um processo autónomo, instaurado após a perda total de pontos, destinado a apurar se o agente perdeu ou não a totalidade dos pontos atribuídos.
1. A Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária proferiu a decisão … ordenando a cassação do título de condução …, decisão essa confirmada pelo Juízo Local Criminal da Covilhã, no âmbito dos presentes autos de impugnação judicial.
2. Inconformado, recorre a arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
…
3 – O nº 4 do art. 148º do CE fixa consequências progressivamente mais graves, em função do agravamento da perda de pontos: (i) frequência de ação de formação de segurança rodoviária, (ii) realização de prova teórica do exame de condução e (iii) cassação do título de condução, em caso de o condutor ter, respetivamente, 5 ou menos pontos, 3 ou menos pontos e 0 (zero) pontos.
4 - Previamente à cassação do título de condução e à medida que a situação do condutor se subsuma em cada uma das referidas previsões legais (5 ou menos pontos, e 3 ou menos pontos), impende sobre a ANSR a correspetiva obrigação de notificar o infrator para a realização da ação de formação ou da prova teórica do exame de condução, constituindo tais notificações atos vinculados a cujo o cumprimento a ANSR está obrigada.
5 – Nos termos do art. 9º do Decreto Regulamentar nº 1-A/2016, publicado no DR nº 103/2016, 2º Suplemento, Série I, de 30.05.2016, impende sobre a ANSR a obrigação de notificar o condutor, até cinco dias úteis após a definitividade da decisão administrativa condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, de que terá de frequentar formação ou fazer exame teórico.
6 - Por aplicação da decisão proferida no processo de contraordenação …, a ora recorrente ficou apenas com 4 pontos, e a ANSR não a notificou nos termos e para os efeitos previstos na al. a) do nº 4 do art. 148º do CE.
7 - Em face da decisão proferida no processo de contraordenação …, a ora recorrente ficou apenas com 2 pontos, e a ANSR não a notificou nos termos e para os efeitos previstos na al. b) do nº 4 do art. 148º do CE.
8 – Tais notificações destinam-se a sensibilizar o condutor para a necessidade de corrigir a sua conduta, antes de lhe ser imposta a consequência mais gravosa de todas: a cassação do título de condução.
9 – A prévia notificação do infrator para a realização de ação de formação e, posteriormente e sendo caso disso, a sua notificação para a realização de prova teórica de exame de condução, são pressupostos ou condições de punibilidade de cumprimento ou verificação obrigatórios antes da tomada de decisão de cassação do título de condução, e desde, claro está, que se verifiquem os respetivos pressupostos (o condutor ficar com menos de 5 ou 3 pontos).
10 – A ANSR não pode escolher entre dar ou não cumprimento ao disposto nas als. a) e b) do nº 4 do art. 148º do CE, i.e., não pode escolher entre cumpri ou não cumprir a lei, porquanto tais normas consubstanciam atos vinculados.
…
13 – As possibilidades da ANSR dar cumprimento ao disposto quer na al a), quer na al. b) do nº 4 do art. 148º do CE, não se encontravam prejudicadas, e a recorrente delas não usufruiu por culpa exclusiva da ANSR, o que lesa os seus direitos e interesses legalmente protegidos.
14 - No caso em apreço, não foi dada à recorrente, nem a possibilidade de realizar ação de formação de segurança rodoviária, nem a possibilidade de realizar prova teórica de exame de condução, pelo que a decisão da ANSR de determinar a cassação do título de condição da recorrente violou o disposto nas als. a) e b) do nº 4 do art. 148º do CE por falta de cumprimento prévio dos pressupostos de que a mesma depende e constantes das mencionadas alíneas.
15 – Em consequência, ao manter a decisão da ANSR, a sentença a quo violou o disposto nas als. a) e b) do nº 4 do art. 148º do CE.
…
3. O Digno Magistrado do Ministério Público, em primeira instância, defendeu a manutenção da decisão de recurso.
4. Nesta Relação, o Digno Procurador Geral-Adjunto, secundando os argumentos aduzidos em primeira instância pelo Ministério Público, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre, agora, decidir.
II. A DECISÃO RECORRIDA
A decisão recorrida tem o seguinte teor:
«…
III. Questão a decidir: se estão verificados os pressupostos que determinaram a aplicação da medida de cassação do título que habilita a recorrente a conduzir.
IV. Fundamentação de facto:
Resultaram provados com relevância para a decisão da causa os seguintes factos:
1. A recorrente … é titular da carta de condução …
2. A recorrente foi condenada pela prática das seguintes infracções:
2.1. Processo de Contraordenação …, pela prática, pela recorrente da infracção prevista e punida nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 28.º, qualificada como contra-ordenação grave, …, praticada em 06/10/2019, cuja decisão foi proferida em 17/03/2022, notificada à arguida em 30/03/2022 e tornada definitiva em 21/04/2022, tendo-lhe sido aplicada sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 180 dias e perda de dois pontos nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 148.º do Código da Estrada.
2.2. Processo de Contraordenação …, pela prática da infracção prevista e punida nos termos da alínea b), do nº 1, do artigo 28.º, qualificada como contra-ordenação grave, …, praticada em 20/11/2017, cuja decisão foi proferida em 17/02/2019, notificada à arguida em 28/03/2019 e tornada definitiva em 18/04/2019, tendo-lhe sido aplicada sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias e perda de dois pontos nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 148.º do Código da Estrada.
2.3. Processo de Contraordenação …, pela prática de infracção prevista e punida nos termos do n.º 1, do artigo 27.º, qualificada como contraordenação grave…, praticada em 07/11/2017, por decisão proferida em 16/02/2019, notificada à arguida em 22/04/2019 e tornada definitiva em 15/05/2019, tendo sido aplicada sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias e perda de dois pontos nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 148.º do Código da Estrada.
2.4. Processo de Contraordenação …, por decisão administrativa proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, pela prática da infracção prevista e punida nos termos do nº 1, do artigo 27.º, qualificada como contraordenação grave, …, praticada em 01/11/2017, cuja decisão foi proferida em 20/02/2019, notificada à arguida em 13/03/2019 e tornada definitiva em 03/04/2019, tendo-lhe sido aplicada sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias e perda de dois pontos nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 148.º do Código da Estrada.
2.5. Processo de Contraordenação …, por decisão administrativa proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, pela prática da infração prevista e punida nos termos da alínea b), do nº 1, do artigo 28.º, qualificada como contraordenação grave, …, praticada em 24/10/2017, cuja decisão foi proferida em 22/02/2019, notificada à arguida em 13/03/2019 e tornada definitiva em 03/04/2019, tendo-lhe sido aplicada sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias e perda de dois pontos nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 148.º do Código da Estrada.
2.6. No âmbito do processo de Contraordenação …, por Decisão administrativa proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, pela prática da infracção prevista e punida nos termos do nº 1, do artigo 27.º, qualificada como contraordenação grave, …, praticada em 19/09/2017, cuja decisão proferida em 09/10/2019, notificada à arguida em 30/10/2019 e tornada definitiva em 21/11/2019 e sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias;
…».
III. DO MÉRITO DO RECURSO
A questão essencial a decidir consiste em saber se previamente à declaração de cassação do titulo de condução, deve a Autoridade de Segurança Rodoviária notificar o arguido para realização de acção de formação e de prova teórica de exame de condução nos termos e para efeitos do disposto no artigo 148.º, n.º 4 alíneas a) e b) do Código da Estrada.
Vejamos:
O sistema da perda de pontos na carta de condução constitui um método utilizado pelo legislador para a contagem das infracções que podem implicar a cassação da carta de condução, cujo regime veio sendo alterado ao longo do tempo.
Na versão inicial do Código da Estrada aprovada pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de maio, com as alterações levadas a cabo pelos Decretos-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro e nº 265-A/2001, de 28 de setembro, a cassação da carta não era automática, incumbindo ao tribunal apreciar a inaptidão (versão 1998) ou a idoneidade (versão 2001) do condutor e a sua personalidade, de acordo com os critérios estabelecidos, primeiro no artigo 150º, depois, no artigo 148º, do Código da Estrada.
Este paradigma altera-se com a revisão do Código da Estrada de 2005.
Precedida da Lei nº 259/2004, de 4 de Novembro, que autorizou o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada e a criar um regime especial de processo para as contra-ordenações emergentes de infracções ao Código da Estrada, seus regulamentos e legislação complementar, a Autorização Legislativa contemplava, entre outros, a qualificação como contra-ordenações de todas as infracções rodoviárias e a aplicação do regime contra-ordenacional previsto no Código da Estrada a todas elas [alínea g)]; a cassação do título de condução quando o infractor tenha sido condenado, nos 5 anos anteriores, pela prática de três contra-ordenações muito graves ou de cinco entre graves e muito graves, bem como da proibição da concessão de novo título de condução durante o período de dois anos e a atribuição ao director geral de Viação a competência exclusiva para determinar aquela cassação [alínea q)].
Na sequência da autorização legislativa concedida pela Lei 17/2008, de 17 de abril, o Decreto-Lei nº 113/2008, de 11 de julho dá a seguinte redacção ao artigo 148º em análise:
A prática de três condenações muito graves ou de cinco contraordenações, entre graves ou muito graves num período de cinco anos tem como efeito necessário a cassação ao condutor do título de condução do infractor.
Posteriormente, a Lei nº 72/2013, de 03 de setembro, procedendo, de novo à alteração do Código da Estrada, mantém a competência exclusiva do Presidente da ASNR para decidir a cassação da carta de condução e os pressupostos de que dependia a aplicação da medida, nos termos do artigo 148º.
A cassação do título de condução do infractor constituía um efeito necessário da prática e condenação definitiva de três contraordenações muito graves ou de cinco contraordenações entre graves ou muito graves, num período de cinco anos (artigo 148º, nº 1 e 2 do Código da Estrada).
O modo de contabilização das infracções que tinham por efeito a cassação do título de condução dependia do tipo e da natureza das infracções (graves e/ou muito graves) durante um período de tempo (cinco anos).
Este regime vigorou até à alteração do Código da Estrada de 2015, levada a cabo pela Lei nº 116/2015, de 28 de agosto. O procedimento para a contagem das infracções cometidas para efeitos de cassação de carta, é alterado, passando, agora, a atribuir-se e a subtrair-se pontos na licença de cada condutor, conforma a conduta estradal deste (cf. artigo 121º e 148º, do Código da Estrada).
Com a implementação do sistema da carta por pontos pretende-se aumentar o grau de percepção e responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adoptando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão (Considerando da Proposta de Lei n.º 336/XII da Presidência do Conselho de Ministros, que esteve na origem da mencionada Lei n.º 116/2015).
A atribuição e perda de pontos é a decorrência do comportamento do agente face às regras de cuidado no exercício da condução, beneficiando quem as observa e sancionando quem as não cumpre.
Assim:
De acordo com o disposto no artigo 121º- A, nº 1, do Código da Estrada, é atribuído a cada a cada condutor, 12 pontos, podendo estes ser acrescidos de: a) 3 pontos até ao limite máximo de 15,[se, em cada período três anos, inexistir no registo de contra-ordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções (artigo 121º A, nº 2, e 148º, nº 5, do Código da Estrada)]; 1 ponto até ao limite de 16, [se, em cada período de revalidação da carta de condução, não constarem registo de crimes de natureza rodoviária e o condutor, voluntariamente, frequentar acções de formação (artigo 121º, nº 3 e 148º, nº 7, do Código da Estrada)];
Ou seja, se o condutor não sofrer sanção contra-ordenacional ou penal pela prática de qualquer uma das infracções referidas, beneficia de pontos, podendo atingir o máximo de 16.
Já a subtracção de pontos corporizada no artigo 148º, do Código da Estrada, sanciona a o comportamento rodoviário do condutor, conforme as infracções praticadas.
Dispõe este preceito:
…
A evolução legislativa do Código da Estrada, em especial do artigo 148º, consolidou, assim, a implementação do regime da cassação do título de condução, como uma medida inevitável da condenação do condutor pela prática de determinadas infracções, durante um certo período.
Antes da revisão de 2015 do Código da Estrada, tipificando o número e a natureza das infracções (graves ou muito graves) praticadas no período de 5 anos, depois da revisão de 2015, atribuindo a cada condutor pontos na respectiva licença de condução, que, em caso de determinadas infracções, serão subtraídos (cf. artigo 121º e 148º, do Código da Estrada).
Todavia, a perda de pontos de uma infracção rodoviária não determina automaticamente a cassação da carta de condução. Esta só é determinada, se o condutor cometer várias infracções, com condenação definitiva, e se a soma de todas elas ultrapassou o número de pontos atribuídos à licença de condução.
Ou seja, a cassação da carta não decorre directa e automaticamente da condenação de cada uma das contra-ordenações, mas da conduta do agente superveniente àquelas condenações, que justificou a perda do número de pontos na sua licença de condutor.
A licença de condução não assume cariz definitivo e imutável, situado no âmbito dos direitos absolutos. O seu carácter transitório revela-se, não só na periodicidade da respectiva validade e na sujeição a diversas restrições, renovações e actualizações tendentes a verificar se as condições físicas e psíquicas do agente se mostram adequadas ao exercício da condução de veículos (cf. artigos 121º, 122º a 130º, do Código da Estrada), mas também, no sistema de aquisição e perda de pontos, acima referenciado (artigo 121º A e 148º, do Código da Estrada).
A vigência do título que habilita conduzir veículos automóveis depende do comportamento estradal do condutor, conforme este observe ou viole as regras estradais. No primeiro caso são atribuídos pontos à sua carta de condução, no segundo são-lhe retirados pontos, de acordo com a gravidade da infracção cometida.
Com a perda de pontos, o legislador antecipa o perigo resultante da violação culposa das regras de cuidado na condução automóvel para os bens jurídicos protegidos e infere o estado de inaptidão do agente para a prática da condução diligente.
Neste sentido, decidiu o Tribunal Constitucional (decisão sumária n.º 175/2022, www.tribunalconsitucional.pt/tc/decisumarias/20220175.html):
«É manifesto que a valoração desses comportamentos por via da subtracção sucessiva de pontos de que cada condutor beneficia constitui uma forma adequada de determinar a inaptidão do seu agente para a condução de veículos motorizados. Ao mesmo tempo, a cassação do titulo de condução surge, pela sua própria natureza, como um instrumento legal destinado a obstar que um condutor suja inaptidão foi determinada possa continuar a exercer a sua actividade, salvaguardando-se dessa forma os direitos e interesses em beneficio dos quais o regime foi instituído.
O facto da cassação do titulo depender somente da perda integral dos pontos, sem necessidade da ponderação de outros factores que, pela sua natureza casuística e reserva de apreciação subjectiva, reduziriam a previsibilidade do efeito cassatório, constitui um ponderoso factor de adequação da medida às finalidades de prevenção de comportamentos deletérios para a segurança rodoviária, na medida em que tal automaticidade de efeitos é uma garantia de certeza e objectividade. Ao poder calcular com precisão as consequências da sua conduta, ao saber que estas não dependem de valorações casuísticas e subjectivas, é razoável supor que aumenta significativamente a probabilidade de o agente corresponder aos incentivos que o regime se destina a produzir.».
Os efeitos da perda de pontos previstos no n.º 4, alíneas a) a c) do Código da Estrada assentam apenas em variáveis quantitativas e objectivas.
Por isso, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, fica o agente obrigado à frequência de uma acção de formação de segurança rodoviária [artigo 148.º, n.º 4, alínea a) do Código da Estrada]; se tiver três ou menos pontos fica o infractor sujeito a realizar a prova teórica do exame de condução [artigo 148.º, n.º 4, alínea b) do Código da Estrada] e se o número de pontos subtraídos for igual ou superior a 12, opera a cassação da licença de condução.
Ou seja, quando atingidos diversos níveis de dedução de pontos, sujeita-se o infractor a medidas de formação e de avaliação das suas competências, em termos pedagógicos, desejando que tais medidas sejam suficientes para que o infractor não volte a infringir normas estradais e adopte uma condução mais segura.
A cassação só surge em ultima linha, quando a gravidade e persistência de comportamentos violadores da segurança rodoviária atinge o limite máximo de perigosidade rodoviária.
Mas tanto não significa que tais medidas estejam hierarquizadas numa relação de dependência e subsidiariedade no sentido de que a mais grave só pode ser aplicada depois das menos graves não terem surtido o efeito pretendido, isto é, quando a acção de formação de segurança rodoviária e/ou se os exames teóricos não tiverem sido adequadas ou suficientes aos fins que se propõem atingir.
Tais acções não têm por efeito a suspensão da perda de pontos de modo a permitir a reabilitação do condutor e a impedir a cassação. Esta opera logo que o condutor tenha perdido os pontos que lhe foram atribuídos.
As medidas previstas no n.º 4, do artigo 148.º, em análise, estão hierarquizadas em função de factores objectivos e não casuísticos associados à personalidade e ao grau de culpa do agente, não vigorando o principio da subsidiariedade no sentido de que a medida mais grave só tem lugar se a menos grave não satisfazer as exigências que se pretendem acautelar.
A totalidade da perda de pontos que determinam a cassação da licença de condução, não surge directa e automaticamente da prática de uma única infracção, nem mesmo de natureza criminal. Nenhuma delas é sancionada com a perda de todos os pontos. A perda de pontos resulta necessariamente da comprovação de uma acção ilícita e culposa através de uma decisão administrativa ou judicial transitada em julgado.
Com efeito, como decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de maio de 2018 (proc. n.º 644/16.9PTPRT-A.P1), «o sistema de pontos traduz apenas uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar em termos de perigosidade os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa habilitante ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular, reavaliação essa que poderá culminar com a aplicação de uma medida de segurança, mais precisamente com a decisão de cassação da respetiva carta de condução. Decisão essa que tem caráter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas e do decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, nomeadamente e também para efeitos de recuperação ou não de pontos, nos termos do disposto no art.º 121.º - A e 148.º, n.ºs 5 e 7 do C.E.».
A acção de formação em segurança rodoviária e o exame teórico de condução não têm como consequência a atribuição de pontos ao titulo de condução nem influi na decisão de cassação da mesma.
No caso vertente, a recorrente dispunha de 12 pontos que lhe foram atribuídos (cf. artigo 121º-A, do Código da Estrada), dado que não está demonstrado que tenha adquirido quaisquer pontos adicionais.
Depois da prática de cinco infracções estradais graves decididas em 2019, sendo a última de 21 de novembro de 2019 (contra-ordenação n.º 127720723), a recorrente ficou apenas com dois pontos.
Se pretendia recuperar pontos conducentes a impedir a cassação da licença de condução, devia permanecer durante um período de 3 anos sem qualquer registo de contra-ordenações graves ou muito graves ou de crimes de natureza rodoviária praticados nesse período, caso em que lhe seriam atribuídos 3 pontos (artigo 148.º, n.º 5, do Código da Estrada). Mas não foi isso que sucedeu.
E em 21 de abril de 2022, é decidida mais uma contra-ordenação pela prática de um infracção grave retirando à arguida os dois últimos pontos que lhe restavam.
Entre o registo de cada infracção não decorreu um período de três anos, pelo que a perda total de pontos ocorreu em 21 de abril de 2022, independentemente de a arguida frequentar ou não as acções mencionadas no artigo 148.º, n.º 4, alíneas a) e b) do Código da Estrada. Estas, insista-se, não atribuem pontos à carta de condução.
A cassação da licença de condução reveste natureza de sanção administrativa, dá origem a um processo autónomo, (artigo 148.º, n.º 10, do Código de Estrada) e não nem depende de valoração prévia da necessidade, adequação ou suficiência das medidas de acção de formação de segurança rodoviária ou exame teórico da condução, previstos no artigo 148.º, n.º 4, alíneas a) e b), do Código da Estrada.
E assim sendo, dispondo a recorrente de um total de 12 pontos e tendo-os perdido, nada impedia que a ASNR promovesse o presente processo de cassação da licença de condução, logo que se verificaram a perda total de pontos atribuídos ao título de condução, ou seja, após 21 de abril de 2022.
A notificação a que alude o artigo 9.º do Decreto Regulamentar n.º 1–A/2016, publicado no DR n.º 103/2016, Série I de 30 de maio de 2016, invocado pela recorrente – para os efeitos constantes dos n.ºs 4 e 8 do artigo 148.º do Código da Estrada - não é, assim, condição, nem pressuposto da cassação da licença de condução.
O processo para cassação da licença para conduzir destina-se a apreciar a inexistência da perda de pontos, isto é, se o agente perdeu ou não a totalidade dos pontos atribuídos, para o que é irrelevante a frequência da acção de formação rodoviária ou a realização do exame teórico realizado ao abrigo do disposto no artigo 148.º, n.º 4, alíneas a) e b) do Código da Estrada (não atribuem pontos) e, por conseguinte, a notificação nos termos do artigo 9.º, do Decreto regulamentar n.º 1-A/2016.
Do que se conclui que a ausência desta notificação não produz quaisquer efeitos na cassação da licença de condução, não assistindo razão á recorrente.
IV. DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em julgar não provido o recurso interposto ….
Custas pela Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3UCS .
Coimbra, 20 de novembro de 2024
Alcina da Costa Ribeiro
Ana Carolina Cardoso (com voto de vencido)
Cristina Pêgo Branco.
Declaração de Voto
Voto vencida a decisão que antecede pelas seguintes razões:
Revendo agora a anterior posição que assumi sobre a admissibilidade de recurso para o Tribunal da Relação da decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância incidente sobre a impugnação judicial da decisão administrativa que decidiu a cassação da carta de condução, nos termos do § 10º do art. 148º do Código da Estrada:
Ao titular da carta de condução cassada é concedido o direito de impugnar judicialmente a decisão administrativa, determinando o § 13º daquela norma: “A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações”.
No RGC, a recorribilidade das decisões judiciais para o Tribunal da Relação encontra-se prevista no seu art. 73º, e certo é que a decisão administrativa objeto de impugnação para a 1ª instância não conheceu de qualquer contraordenação, nem aplicou qualquer coima ou sanção acessória.
Não está em causa a tutela jurisdicional efetiva, porquanto a lei declara que a decisão administrativa é impugnável junto dos tribunais de 1ª instância. Como refere o Ac. do TRE de 7.11.2023 (rel Moreira das Neves), “o artigo 73.º do RGC serve justamente para separar o que deve ser separado, isto é, as decisões dos Juízos de 1.ª instância que são recorríveis para os Tribunais de Relação, das que o não são. E, como visto, nele se não prevê o recurso das decisões judiciais confirmatórias da regularidade formal da cassação da carta de condução.”.
No mesmo sentido da irrecorribilidade da decisão judicial em causa nos autos, cf. as decisões do TRP de 29.6.2023, rel. Pedro Afonso Lucas (decisão sumária), os Acs. de 21.6.2024, rel. Maria Joana Grácio, de 8.5.2024, rel. João Pedro Cardoso, de 28.4.2021, rel Eduarda Lobo, de 17.5.2023, rel. Francisco Mota Ribeiro, de 29.6.2023, rel. Paulo Costa, e a decisão sumária de 4.5.2023, rel. William Themudo Gilman; do TRL de 10.10.2024, rel. Ana Marisa Arnêdo; do TRG de 18.6.2024, rel. Fernando Chaves, de 9.4.2024, rel. Júlio Pinto, de 10.9.2024, rel. Isilda Pinho, entre outros, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Pelo exposto, rejeitaria o recurso interposto para esta Relação, nos termos do art. 420º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal.
Ana Carolina Cardoso (1ª adjunta)