I - A alteração da qualificação jurídico-penal dos factos segue as regras da alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, previstas no artigo 358.º do C.P.P.
II - Para efeitos dos crimes de falsificação documento é a declaração corporizada num certo objecto material.
III - Não preenche o crime de falsificação de documento o contrato realizado aquando de conversação telefónica com a arguida com vista à celebração de contrato de prestação de serviços de telecomunicações em que esta se fez passar por outra pessoa fornecendo os dados de identificação desta, dados esses que geraram um contrato de prestação de serviços em seu benefício, porque a arguida não elaborou, nem criou o contrato e os dados constantes do contrato tinham correspondência com os dados transmitidos no contacto telefónico.
IV - O bem jurídico tutelado pelo crime de falsidade informática é a integridade dos sistemas de informação, que visa impedir os actos praticados contra a confidencialidade, integridade e disponibilidade de sistemas informáticos, de redes e dados informáticos, bem como a utilização fraudulenta desses sistemas de redes e dados, abrangendo o tipo objectivo as acções de introdução, modificação, apagamento ou supressão de dados informáticos ou qualquer outra forma de interferência num tratamento informático de dados, de que resulte a produção de dados ou documentos não genuínos, e exigindo o tipo subjectivo, para além do dolo, a intenção de provocar engano nas relações jurídicas, com o propósito de produzir dados ou documentos não genuínos para que sejam utlizados nas finalidades pretendidas pelo agente, como se fossem genuínos.
V - Preenche o crime de falsidade informática a conversação telefónica em que a arguida fornece dados de identificação de outra pessoa como se fossem seus, sabendo que a informação não correspondia à verdade, falseando os dados inseridos no programa informático, com a intenção de conseguir, como conseguiu, criar um contrato de prestação de serviços não genuíno em seu benefício.
VI - Em recurso interposto pelo arguido e/ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse daquele o tribunal superior não está impedido de proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos provados, «já que o conhecimento do direito é officio do tribunal», mas, em resultado do princípio da proibição da reformatio in pejus, esta alteração «não poderá nunca prejudicar a pena já aplicada ou ter outros efeitos que eventualmente assistam o arguido».
VII - A proibição da agravação das sanções aplicadas ao arguido não se aplica à agravação da quantia fixada para cada dia de multa, se a situação económica e financeira do arguido tiver, entretanto, melhorado de forma sensível.
… foi a arguida, …, condenada, pela prática, em autoria material, na forma continuada, de um crime de falsificação de documento, na forma consumada, previsto e punível pelos artigos 255.º, a), e 256.º, n.º 1, d), do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa á taxa diária de 6€ (seis euros).
2. Inconformada com esta condenação, dela recorre a arguida, formulando as seguintes Conclusões:
«Um - Nada, na declaração, permite reconhecer a Arguida como a emitente dela;
Dois - O douto Tribunal recorrido violou a al. d), do n.º 1, do art. 256.º, do CP, por referência à al. a), do art. 255.º, do CP;
Três - A decisão em crise deve ser revogada, sendo substituída por uma outra que absolva a Arguida;
Quatro - O douto Tribunal recorrido, nem sequer deu como provado que a declaração permitisse reconhecer o emitente – tendo sido alegado pela defesa que a declaração supostamente idónea para provar facto juridicamente relevante (a gravação, registada em meio técnico), não permitia reconhecer o emitente;
Cinco - Com tal omissão, o douto Tribunal recorrido violou a al. a), do n.º 2, do art. 368.º, do CPP;
…
3. Em resposta ao recurso, a Digna Magistrada do Ministério Público defende a manutenção da sentença recorrida.
4. Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer, …
5. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foi proferido acórdão, ao abrigo do disposto no artigo 424.º, n.º 3, do CPP, a comunicar à arguida uma eventual alteração da qualificação jurídica dos factos a ele imputados.
8. Na sequência, a arguida respondeu, …
9. Colhidos novos vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II. A DECISÃO RECORRIDA
A primeira instância julgou a matéria de facto como a seguir se transcreve:
1. A arguida foi colega de trabalho da ofendida AA …
2. Em data concretamente não determinada, mas anterior a Maio de 2021, a arguida concebeu o plano de, através da utilização dos elementos identificativos de AA …, celebrar contrato de prestação de serviços, com a ofendida «MEO – Serviços de Telecomunicações e Multimédia, S.A.», em nome daquela, assim induzindo a «MEO» de que celebrava contrato com AA …
3. No dia 09.05.2021, a arguida contratou para a morada …, os serviços da ofendida «MEO», …, com um prazo de fidelização, pelo valor mensal de €17,64, o que fez através de contacto telefónico estabelecido para a operadora «MEO».
4. Para esse efeito, a arguida, no dia supra referido, efetuou contacto telefónico para os serviços da ofendida «MEO» e, no seu decurso forneceu os elementos de identificação da ofendida AA …, designadamente indicando o nome …, o nº de BI … e o nº de contribuinte … e indicando como morada de instalação do serviço, …
5. Ao fornecer todos os elementos de identificação da ofendida AA …, a arguida fez crer à ofendida «MEO» que era a pessoa cuja identificação era indicada quem subscrevia o referido contrato, solicitando ainda que a faturação fosse em papel remetida para a morada em causa e que os seus dados fossem confidenciais.
6. Nos aludidos contratos e como forma de contacto, a arguida indicou o seu número de telemóvel …, de molde a poder ser a própria a ser contactada pela ofendida «MEO», designadamente para instalação dos respetivos equipamentos.
7. Nessa sequência, no dia 11.05.2021, os técnicos que prestam serviços àquela operadora de telecomunicações, deslocaram-se à referida morada a fim de entregarem o referido equipamento e instalação daquele serviço, como veio a suceder, aí sendo recebidos pela arguida.
8. Assim, entre 11.05.2021 e 11.09.2021, …, a arguida usufruiu dos referidos serviços, sem que a «MEO» tenha logrado efetivar os respetivos pagamentos, valor que se cifrou no total de €468,94.
9. Por esse motivo, a «MEO» solicitou à ofendida AA …, o pagamento das faturas, relativas aquele contrato, exigindo-lhe que pagasse as referidas quantias em dívida, referentes ao serviço prestado por aquela operadora na residência da arguida.
10. A ofendida AA … não procedeu a qualquer pagamento, tendo efetuado reclamação junto da «MEO», não tendo sido liquidadas à operadora de telecomunicações que se viu desapossada do respetivo valor.
11. Com a sua conduta a arguida fez crer à ofendida «MEO» aquando da celebração daquele contrato, que naquele dia 09.05.2021, AA …, titular do Bilhete de Identidade … e com o número de contribuinte fiscal …, havia com eles contratado aqueles serviços, apesar de saber que tal não correspondia à verdade.
…
…
MOTIVAÇÃO:
…
III. QUESTÕES A DECIDIR
Cabendo ao tribunal de recurso apreciar apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350), sem prejuízo daquelas que são de conhecimento oficioso, cabe decidir se se verifica a omissão de um facto essencial à decisão e determinar se os factos provados preenchem a tipicidade de qualquer ilícito penal.
IV. DO MÉRITO DO RECURSO
1. Omissão de facto essencial à decisão
A recorrente aponta à sentença recorrida a omissão de facto essencial à decisão, isto é a existência de uma declaração que permita reconhecer o emitente, invocando para o efeito, o preceituado no artigo 368.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal.
Se bem se percebem os fundamentos do recurso, pretende a recorrente lançar mão da ausência de documento escrito para concluir pela omissão de facto essencial ao preenchimento do crime de falsificação de documento previsto no artigo 256.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal.
Porém, tal questão acaba por se traduzir uma questão de direito, a de saber se a declaração da arguida prestada à MEO através de contacto telefónico, preenche a acção objectiva do crime de pelo qual foi condenado.
Com efeito, perante os factos provados nenhuma dúvida subsiste que a declaração existe e que foi emitida pela arguida, no momento em que, através de contacto telefónico, se fez passar por AA, utilizando os dados de identificação desta para obter da MEO a prestação de serviços.
Demonstrados estes factos, é de todo irrelevante que seja julgado como provado ou não provado, se a declaração permite reconhecer o emitente.
Saber se os factos falsos transmitidos pela arguida à MEO integram ou não o conceito de um documento falso de facto juridicamente relevante, para efeitos do disposto no artigo 256.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, apenas supõe se apure a autoria da declaração, como sucedeu no caso concreto, não se exigindo que se julgue como provado que aquela declaração verbal não permite reconhecer a arguida, como emitente.
A sentença recorrida contém, assim, todos os factos essenciais à decisão de condenação ou de absolvição da arguida, soçobrando esta pretensão da recorrente.
2. Qualificação jurídico –penal dos factos provados
Prossegue a recorrente alegando que os factos provados não integram o elemento do crime de falsificação pelo qual foi condenada, uma vez que não existe documento escrito.
Por seu turno a Digna Procuradora Geral Adjunta pugna pela convolação do crime de falsificação de documento para o crime de falsidade informática.
Que dizer?
Antes de mais importa reter que a alteração da qualificação jurídico-penal dos factos, conforme requerido pela Digna Procuradora Geral Adjunta segue as regras da alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia previstas no artigo 358.º, do Código de Processo Penal, por força do n.º 3, deste preceito.
Daí que, nestes casos, haja lugar à comunicação da alteração ao arguido, concedendo-lhe, se ele o requerer, o tempo necessário à preparação da defesa.
Na verdade,
Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias (artigo 424.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
Cumprida esta comunicação, importa apreciar e decidir se os factos provados integram ou não a acção típica do crime de falsificação previsto e punido pelos artigos 255.º, a), e 256.º, n.º 1, d), do Código Penal, como defende o tribunal recorrido e o arguido, respectivamente, ou do crime de falsidade informática previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1, da Lei 109/2009, de 15 de setembro, como entende a Digna Procuradora Geral Adjunta.
Vejamos:
Dispõe o artigo 256.º, n.º, alínea d) do Código Penal:
Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
O crime de falsificação de documento é um crime comum, de mera actividade, e de perigo abstracto, que tutela a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório relativo à prova documental[1].
As alíneas a) a d), inclusive, do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, preveem as várias modalidades que pode assumir a falsificação de um documento e as alíneas e) e f) tipificam como crime a circulação do documento falso.
Por seu turno, o artigo 255.º, alínea a) do Código Penal define como documento, «a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa ou animal para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.»
Para efeitos destes preceitos, a existência de um documento depende da verificação de uma declaração compreendida num escrito ou registada em outro meio técnico, ou seja, corporizada num certo objecto material[2] , com as seguintes características:
«a) - Inteligibilidade para todos ou para um certo círculo de pessoas, isto é, o seu conteúdo deve estar expresso por forma que seja geralmente compreendido ou apreendido;
b) - Possibilidade de se saber quem a emitiu, seja ele emitente verdadeiro ou não, o que significa que o autor do documento deve ser identificável através do próprio documento (exclusão, portanto, dos documentos anónimos);
c) - Idoneidade para provar um facto juridicamente relevante, ainda que a finalidade probatória só lhe seja conferida em momento posterior ao da emissão, portanto o documento só vale para efeitos penais quando possa fazer prova dos factos juridicamente relevantes».
«(..). enquanto a noção de documento do direito civil [artigo 362º do Código Civil] dá um relevo primordial à sua função como objeto de representação ou de reprodução, no direito penal o papel principal cabe ao documento como declaração. Por isso, documento no direito civil é o objeto que representa a declaração, e no direito penal é a declaração contida no documento[3]».
«A noção de documento integra não só o documento autêntico ou autenticado do direito civil, que têm força probatória plena, mas qualquer outro que incorpore uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante (função probatória) e a reconhecer o respectivo emitente (função de garantia).
O tipo objectivo do tipo de crime em análise pode assumir as seguintes modalidades: (1) a fabricação ex novo de documento; (2) a integração no documento de uma assinatura de outra pessoa; (3) a declaração de um facto falso juridicamente relevante; (5) a integração no documento de uma declaração distinta daquela que foi prestada; (6) a circulação do documento falso.
São, assim, elementos constitutivos deste tipo-de-ilícito um comportamento do agente concretizado em qualquer uma das actividades enumeradas nas alíneas do n.º 1 do citado artigo 256.º e, quanto ao elemento subjectivo, a vontade de praticar o facto e, ainda, intenção de causar prejuízo ao Estado ou a terceiro, ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo.
Assim, no crime de falsificação exige-se, além do dolo genérico, o dolo específico, ou seja, a intenção de causar prejuízo ao Estado ou a terceiro ou de obter um benefício ilegítimo.
Contudo, a consumação do prejuízo patrimonial é indiferente no crime de falsificação.[4]».
As condutas típicas definidas nas alíneas a), b), e c) do n.º 1 do art.º 256.º inscrevem-se no domínio da «falsificação material».
«A falsificação material ou reconstrução do documento corresponde a uma falsificação externa de um documento enquanto objeto que corporiza uma declaração, criando-se um documento não genuíno, seja dando corpo a um documento (declaração) que antes não existia, seja adulterando um documento (objeto) previamente existente (e, consequentemente, o próprio documento-declaração). É neste contexto da falsificação material que se inscreve a contrafação de documento, o acto de formar um documento, até aí não existente, por pessoa diversa daquela que aparenta ser o seu autor». «Assim, nesta forma de falsificação o agente falsifica o documento-declaração imitando ou alterando algo que está feito, o documento objeto segundo uma certa forma, naturalmente com a preocupação de dar a aparência de que o documento é genuíno e autêntico[5]».
A incriminação da alínea d), do n.º 1, do artigo 256.º, do Código Penal - fazer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante - não contempla todo e qualquer acto falso, mas apena a declaração de facto falso juridicamente relevante, isto é, aquele que produza uma alteração no mundo do Direito, isto é, que abra ensejo à obtenção de um benefício[6], ou segundo Helena Moniz, facto falso juridicamente relevante é aquele facto «que crie, modifique ou altere uma relação jurídica[7]».
O que, aqui está em causa, é um documento «que encerra uma falsidade da lavra de quem foi o seu autor. Por isso mesmo, só nos encontramos neste domínio de falsidade ideológica quando haja consonância entre o emitente da declaração e o autor aparente do documento. Não sendo esse o caso, porque o documento é fruto de uma contrafação, será apenas, nesse campo da contrafação que nos situaremos: via de regra, o documento que resulta de uma contrafação também se encontra eivado de falsidade - logo porque o emitente «põe» o autor putativo a declarar factos que ele, na verdade, não declarou e ainda mais porque nele se documentam factos sem adesão à realidade - mas, mesmo que assim seja, é como contrafação e/ou falsificação material, ao abrigo das alíneas a), b), e) ou c) que deve ser punido, e não como uma falsificação ideológica na vertente da falsidade em documento. A falsificação ideológica tem, pois, um caráter subsidiário em relação à contrafação e falsificações materiais previstas nas alíneas anteriores[8]».
A referência fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante inclui apenas a acção «de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento e não de quem declara factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem e que o tipo de crime de falsificação prevê e pune é a falsa declaração de quem materialmente a incorpora em escrito[9]».
A tipicidade que nos ocupa, abrange tão somente, «a ação de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento, não abrangendo aquela de quem debita factos inverídicos para documento elaborado por outrem[10]».
Por seu turno, o artigo 3.º n.º 1 da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime) pune «quem com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem».
O bem jurídico tutelado é a integridade dos sistemas de informação, através do qual se pretende impedir os atos praticados contra a confidencialidade, integridade e disponibilidade de sistemas informáticos, de redes e dados informáticos, bem como a utilização fraudulenta desses sistemas de redes e dados[11].
O tipo objetivo abrange as acções de introdução, modificação, apagamento ou supressão de dados informáticos ou por qualquer outra forma de interferência num tratamento informático de dados, de que resulte a produção de dados ou documentos não genuínos. Este tipo de crime só se consuma com a produção daqueles dados não genuínos.
«Dados informáticos são toda e qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob uma forma suscetível de processamento num sistema informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar uma função» [artigo 2.º, alínea b) da Lei do Cibercrime)
O tipo subjectivo exige, para além do dolo, sob qualquer das formas previstas no artigo 14º do Código Penal, a intenção de provocar engano nas relações jurídicas, com a intenção e propósito de produzir dados ou documentos não genuínos para que sejam utlizados nas finalidades pretendidas pelo agente, como se fossem genuínos.
«A manipulação dos dados informáticos tanto pode ocorrer no input como no output, havendo que destrinçar o momento em que a manipulação é realizada e o momento em que se verificam os efeitos dessa manipulação. Assim, se a manipulação ocorrer na fase de input (i.e. a integração dos dados informáticos no sistema informático), os programas instalados no sistema informático não são alterados, apenas trabalhando com dados falsos e, por isso, o tratamento dos dados vai gerar um resultado falso; daí que, quando o input é falso, o output também será falso por força da falsificação dos dados integrados. E o mesmo sucederá se a manipulação ocorrer, não na fase de integração dos dados informáticos, mas na fase do seu tratamento, em que os dados ficam intactos, sendo antes os programas que são alvo de modificação fraudulenta. Aqui, o output é falso em virtude de os dados serem inseridos corretamente, mas serem alvo de um tratamento incorreto por via da modificação do programa. Em ambos os casos, verificados que estejam os demais elementos do tipo, a conduta é subsumível ao crime de falsidade informática. Diversamente, a manipulação pode ocorrer na fase de output, em que, tanto os dados informáticos como o seu tratamento estão corretos, sendo a manipulação efetuada já ao nível do resultado final por via da sua modificação já depois de impresso ou de a modificação incidir sobre um registo em suporte digital não incorporado no computador que lhe deu origem. Porém, como vimos, na medida em que os objetos da manipulação ao nível do output são subsumíveis ao conceito de documento constante do art. 255.º, al. a), do CP, quando a manipulação ocorre na fase de output, o agente comete, não o crime de falsidade informática p. e p. pelo art. 3.º da Lei n.º 109/2009, mas sim o crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256.º do CP[12].».
No caso em apreço, está em causa uma conversação telefónica da arguida, em que esta para obter os serviços da MEO, se fez passar por outra pessoa, fornecendo os dados de identificação desta, dados esses que geraram um contrato de prestação de serviços.
Trata-se de uma declaração verbal com a utilização de uso ilegítimo dos elementos de identificação de outra pessoa, como se fossem seus, o que veio a originar um contrato de prestação de serviços aparentemente falso. Quem figura no contrato e dele beneficia não é a pessoa que na realidade o celebrou.
Vale por dizer, que a arguida não elaborou, nem criou tal contrato, antes usou os dados de identificação de um terceiro como se fossem seus, sabendo que a informação não correspondia à verdade, com a intenção e propósito de conseguir, como conseguiu criar um contrato de prestação de serviços não genuíno.
Na verdade,
«Apesar de os dados inseridos num sistema informático serem indubitavelmente a concretização de um pensamento humano (dado que os sistemas informáticos não pensam nem criam, limitando-se a, enquanto máquinas que são, trabalhar de acordo com as “ordens” que lhe são dadas pelo respetivo operador, ainda que por via de um programa informático – que é criado por pessoas –), acabam por não conter em si qualquer declaração de vontade ou de um facto ou uma qualquer declaração humana, sendo que o crime de falsificação “clássico” pressupõe que o documento inclua uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante[13]».
Por outro lado, os dados transmitidos no contacto telefónico têm correspondência com o conteúdo da declaração transmitida pela arguida.
A arguida limitou-se a emitir verbalmente uma declaração de vontade, falseando os dados inseridos no programa informático, não se subsumindo a sua conduta no crime de falsificação pelo qual veio condenada, mas no crime de falsidade informática previsto e punida pelo art.º 3.º n.º 1 da Lei n.º 109/2009.
A essência deste crime «reside na manipulação dos dados inseridos num sistema informático ou do seu tratamento por via desse mesmo sistema, acabando por resultar dessa manipulação a criação de documentos ou dados falsos, o que põe em causa a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório, à semelhança do que sucede com os documentos “em sentido clássico” falsos no âmbito do crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256.º do CP.
O bem jurídico tutelado pelo crime de falsidade informática é a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório (…), afectando, ainda que reflexamente, a integridade dos sistemas informáticos.[14]».
Desta feita, com todo o respeito que nos merece a posição do Tribunal recorrido, concluímos que a conduta da arguida preenche os elementos típicos do crime de falsidade informática e não do crime de falsificação de documento, devendo ser condenada pela prática daquele e absolvida pela prática deste.
Não tendo sido impugnada a medida da pena, resta averiguar se a pena em que a arguida foi condenada - de 100 dias de multa, à taxa diária de 6 € - deve também ser alterada em função da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação.
A pena de 100 dias de multa é inferior ao limite mínimo da pena de multa abstractamente aplicável ao crime de falsidade de informática. Este é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa de 120 a 600 dias.
A este propósito, rege o artigo 409.º, do Código de Processo Penal, dispondo no seu número 1:
«Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes».
Tal proibição não se aplica à agravação da quantia fixada para cada dia de multa, se a situação económica e financeira do arguido tiver, entretanto, melhorado de forma sensível (artigo 409.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
É o que resulta do princípio da reformatio in pejus, nos termos do qual, «o tribunal superior não está impedido de ter opinião diversa quanto à qualificação dos factos provados, já que o conhecimento do direito é officio do tribunal. Porém, (…) a nova qualificação tida por correcta, não poderá nunca prejudicar a pena já aplicada ou ter outros efeitos que eventualmente assistam o arguido. Quer dizer, em tal circunstância, a nova qualificação garante apenas a preocupação rigor jurídico da decisão, mas é inconsequente quanto ao mais”)[15]».
Assim sendo, estando em causa a modificação da medida dos dias de pena de multa (e não a respectiva quantia) na sequência de recurso interposto apenas pelo arguido, está vedado a este Tribunal a agravação da pena de multa, mantendo-se a fixada pelo tribunal recorrido.
V. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:
1. Proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos provados, e em consequência:
1.1. Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a arguida pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. d) do Código Penal;
1.2. Condenar a arguida pela prática de um crime de crime de falsidade informática p. e p. pelo art.º 3.º n.º 1 da Lei n.º 109/2009 na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6€ (seis).
2. Julgar improcedente o recurso, e, em consequência manter no remanescente a sentença recorrida.
Custas pela arguida recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s (artigos 513 e 514 do Código de Processo Penal e artigo 8, n.º 9 e Tabela III anexa do Regulamento das Custas Processuais.
Coimbra, 20 de novembro de 2024
Alcina da Costa Ribeiro
Alexandra Guiné
Ana Carolina Cardoso
[1] Helena Moniz, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, primeira edição, p. 680 e ss.
[2] Helena Moniz, O Crime de Falsificação de “O Crime de Falsificação de Documentos, p. 179
[3] Helena Moniz, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 1.ª edição, p. 664.
[4] Acórdão deste Tribunal da Relação de 24/04/2024, proferido no processo n.º 24/19.4GAFVN.C1.
[5] Helena Moniz e Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, vol. II, 2.ª edição, p. 27.
[6] Neste sentido Leal Henriques e Simas Samos, Código Penal Anotado, em anotação ao artigo 256.º
[7] Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo. II, primeira edição, p. 683.
[8] Helena Moniz e Nuno Brandão, obra citada, p. 43.
[9]Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.03.2014, no proc. n.º 18/10.5TATND.C1, www.dgsi.pt.
[10]Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.04.2016, no proc. n.º 1649/13.7TDLSB.E1, www.dgsi.pt.
[11]Acórdão do Tribunal desta Relação de Coimbra de 24.05.2023 (processo n.º 84/20.5GBPMS.C1, que subscrevemos como adjunta).
[12] Duarte Alberto Rodrigues Nunes, O crime de falsidade informática, Julgar Online, Outubro de 2017, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2017/10/20171018-ARTIGO-JULGAR-O-crime-de-falsidade-inform%C3%A1tica-Duarte-Alberto-Rodrigues-Nunes.pdf.
[13] Duarte Alberto Rodrigues Nunes, ob. cit.
[14]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/11/2020, processo n.º 1462/16.0PCSNT.S1, www.dgsi.pt
[15] Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, anotação ao art.º 409.º, p. 1346.