ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
COMUNICAÇÃO DA ALTERAÇÃO
EXAME CRÍTICO DA PROVA
Sumário

1. A comunicação do artigo 358º/3 do CPP, apenas se efectuará quando se tratar de uma modificação relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa.
2. A “alteração substancial” dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
3. Já a “alteração não substancial” constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal; a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.
4. No caso, o alegado facto diverso – que apenas é uma parte ínfima do facto narrado na acusação – é um facto que forma uma unidade necessária, indissociável dos que constam da acusação/pronúncia, não sendo descoberta outra diversa “realidade” factual, porque ocorrida noutras circunstâncias ou praticada por outras pessoas, apenas se constatando a não prova de uma parte de um facto.
5. Uma sentença que incumpre o dever de fazer o exame crítico de toda a prova produzida, não esquecendo a escalpelização da prova documental, como lhe ordena o normativo do nº 2 do artº 374º do CPP, face ao disposto na al. a) do nº 1 do artº 379º do mesmo diploma legal, acarreta a sua nulidade e determina a prolação de nova decisão, expurgada do apontado vício.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

*



, foi decidido: 
· «Condenar cada um dos arguidos AA …, BB …, e CC …, pela prática em co-autoria material e na forma consumada de um crime de furto qualificado p. e p. pelo artº 203º nº 1, 204º nº 1 al. a) e nº 2 al. e) por referência ao artº 202º als. a) e d) todos do Código Penal na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se não suspende».

            2. OS RECURSOS

2.1. Inconformado, o arguido AA … recorreu … com as seguintes conclusões (transcrição):
«…
2ª- O facto descrito em 7 do douto acórdão em crise “encontravam-se os arguidos com componentes em metal das máquinas” constitui uma mera conclusão e, sobretudo, não foi alegada na douta acusação ou, sequer, na audiência de discussão e julgamento.
3ª- O referido “facto” dado por assente pelas Mmªs. Juízes a quo foi relevante para a decisão da causa, tendo sido considerados para o efeito no acórdão para a decisão aí proferida, e não havendo sido dado cumprimento ao disposto no artº. 359º, nºs. 2 e 3, ou, sequer, no artº. 358º, nº 1, ambos do Cód. Proc. Penal, violado foi o disposto nos nºs. 1 a 3, ambos do Cód. Proc. Penal, ou se assim se não entender, nos nºs 2 e 3 deste, pelo que padece o referido acórdão de nulidade a que se reporta o artº. 379º, nº 1, al. b) do mesmo Código, o que desde já se invoca para todos os legais efeitos.
4ª- O recorrente desde já se opõe frontalmente ao resultado interpretativo da prova produzida em julgamento pelo douto Tribunal, pelos motivos que em seguida se invocará.
5ª- Conforme resulta do douto acórdão, a convicção das Mmªs. Juizes a quo assentou, essencialmente nos depoimentos das testemunhas …, militar da GNR, do legal representante da sociedade … e nas regras da experiência, porém, salvo o devido respeito, não resulta das mesmas, nem se poderá ter por segura, atenta os depoimentos que se encontram registados, por meio de gravação magnetofónica, de onde não resulta, salvo melhor opinião, nem se poderá extrair tais factos.
6ª- Pois, a matéria que o Tribunal a quo deu como provada na decisão recorrida e os fundamentos que para tanto invocou não são, de todo, suficientes, para se decidir como se decidiu, pela condenação dos arguidos “tourt court”.
7ª-Salvo o devido respeito, analisados os depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, que supra se transcreveram e aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, e demais prova carreada para os autos resulta ausência de prova direta produzida no sentido da atribuição da autoria dos factos dados como provados aos arguidos e insuficiência dos factos suscetíveis de ser retirados da prova indireta.
8ª- Com efeito, da prova produzida não se pode conseguir apurar a identificação de quem ou quantas pessoas procederam ao assalto prévio à referida fábrica, sendo que, … na posse dos arguidos, apenas foram encontradas ferramentas, quando surpreendidos pelas autoridades. Pelo que não se apurou com a segurança necessária para afirmar, designadamente da sua correspondência com os arguidos.

10ª- Ora, com o devido respeito, do expendido permite-nos, apenas, concluir que os arguidos, …, encontravam-se no interior da fábrica em causa, e que efetuada a revista tinham na sua posse e junto a si os objetos referidos nos pontos 8 a 10 e efetuada a busca ao veículo com a matrícula …, foram apreendidos os objetos constantes do ponto 12 dos factos dados como provados pelas Mmªs. Juizes a quo, ou seja, temos (apenas) que os arguidos foram encontrados dentro das instalações da dita fábrica, formam apreendidos os objetos constantes dos autos de revista e busca acima referidos, porém, analisados tais indícios, ainda que conjugadamente, cremos manifestamente não poder retirar-se dos mesmos que foram os arguidos quem perpetraram os factos em apreço, sendo insuficiente para lhes imputar a participação e autoria da factualidade vertida na acusação pública.

15ª- O facto dos arguidos terem sido surpreendidos no interior das instalações no dia em questão, pouco nos diz, a não ser tal concreta presença. Desconhece-se, inclusive, se as ferramentas/objetos apreendidas junto aos arguidos e dentro do veículo com a matrícula …são pertença de quem, sendo que as mesmas não apresentavam quaisquer marcas/sinais distintivos e, ditam as regras da normalidade e experiência, de que está ao acesso de qualquer pessoa que os pretenda adquirir numa drogaria, pelo que nada, sem mais, nos permite concluir que tenham sido os usados ou destinavam-se a auxiliar os arguidos na prática dos factos.
16ª- Já relativamente aos objetos furtados entre as 14h do dia 10.04.2022 e as 14h do dia 28.04.2022, cremos que pela dilação temporal não permite tirar a ilação da subtração pelos arguidos, nem que os mesmos se tenham deslocado às instalações uma primeira vez nem que foram reunindo os diversos bens que pretendiam furtar e selecionando para a viatura quando foram surpreendidos quando a GNR entrou nessas instalações.
17ª- Ainda que considerando que os arguidos estavam nas instalações e terem sido apreendidos os mencionados objetos, não se mostra consentâneo com terem os arguidos sido os autores dos factos.
18ª- No caso, nos arguidos não tinham na sua posse qualquer objeto furtado, assim, teria de ser entendimento do Tribunal de primeira instância ser tão plausível que tenham sido os arguidos os autores do assalto como que tenham sido terceiros, não já que os arguidos o terão sido com a segurança exigível nesta fase processual.
19ª- Desta feita, conjugada toda a prova, resulta, que ficou por determinar com a certeza que é exigível para uma condenação penal que tenham sido os arguidos a praticar os factos dos autos, já que a prova indiciária existente é muito ténue e não conduz à responsabilização criminal dos arguidos, em obediência ao princípio in dubio pro reo.
21ª- Ainda por mera cautela e sem conceder, ao arguido vem imputada a prática do crime de furto qualificado, em co-autoria material e na forma consumada, porém face à factualidade apurada, importa averiguar se o crime foi cometido de forma consumada ou não. Importa averiguar se o crime de furto em causa é (ou não) qualificado, isto é, se é inequívoco o preenchimento da qualificativa mencionada no nº 1 al. a) e nº 2 al. e) do artº. 204º do Cód. Penal.
22ª- Ora, em nosso entender, a resposta não pode deixar de ser negativa, pois no caso vertente, tendo presente a os depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, e demais prova junta aos autos, mostra-se, em nosso entender, inequívoco não se demonstrou qualquer atuação dos arguidos que preencham os elementos da qualificativa mencionada na al. a) do nº 1 do artigo 204º do Código Penal, porquanto das declarações prestadas em audiência de julgamento pela testemunha …, legal representante …resulta que que relativamente não conseguir precisar o valor …
23ª- Constata-se, pois, nos termos que agora ficam expostos, tais situações, ou seja, o desconhecimento do valor dos bens objeto de tentativa de furto, e o desconhecimento no que reporta ao arrombamento, devem favorecer os arguidos, desqualificando o crime nos termos do artº. 204º do Cód. Penal, decisão com reflexos substanciais na medida da pena.
24ª- Por outro lado, importa averiguar se, face à factualidade apurada, se o crime foi cometido sob a forma de tentativa ou não, sendo que a nosso ver entendemos que estamos perante um crime de furto na forma tentada.

26ª- A prova produzida nos autos e em audiência permite, em nosso entender, tão só julgar verificada a prática, pelos arguidos, no dia 28.04.2022, de um crime de furto na forma tentada, pelo qual deveriam ser condenados. Desconhecendo-se mesmo, porque a prova não se produziu nesse sentido, quantas pessoas que procederam ao assalto prévio à referida fábrica e a identidade das mesmas e o autor do arrombamento, sendo que, no dia 28.04.2022, na posse dos arguidos, apenas foram encontradas ferramentas, necessárias ao trabalho da retirada de cabos quando surpreendidos pelas autoridades. Os arguidos não lograram retirar nenhum objeto ou coisa móvel alheia para fora das instalações. Ou seja, em termos práticos e objetivos, não chegaram a apoderar-se efetivamente do que quer que fosse.

33ª- Por outro lado foi o arguido não se conforma com a condenação na pena de 2 (dois) anos e 6(seis) meses de prisão efetiva, dado que as circunstâncias do caso concreto, nunca potenciariam uma condenação tão elevada e distante do limite mínimo da pena aplicável.


2.2. Inconformado, o arguido CC … recorreu do acórdão condenatório, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«Da prova produzida não resultou por provado que o arguido tenha praticado o crime de que vem acusado;
A douta sentença não poderia, salvo melhor opinião, dar como provado que o arguido tivesse praticado tal crime;
Nenhuma das testemunhas afirmou ter visto o arguido recorrente a furtar seja o que fosse, ninguém viu e o mesmo não levou nada consigo.



            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu aos recursos, …

4. Admitidos os recursos e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se neles, …
 
5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, após respostas …, foram colhidos os vistos, tendo ido os autos à conferência, por deverem ser os recursos aí julgados, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso


            Desta forma, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
1. Há alguma nulidade de acórdão?
2. Há algum vício do artigo 410º/2 do CPP?
3. Há erro de julgamento?
4. Houve violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio do in dubio por reo?
5. Encontram-se perfectibilizados os elementos objectivos e subjectivos do crime de furto qualificado?
6. As penas aplicadas aos dois arguidos foram excessivas e deveriam ter sido suspensas na sua execução?

            2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição de todo o texto, abrangendo as colagens digitais que foram deficientemente feitas nos factos 16 e 17):
«1. Em data não concretamente apurada, compreendida entre as 14h do dia 10-04-2022 e as 14h do dia 28-04-2022, de comum acordo, em comunhão de esforços e mediante um plano previamente combinado entre todos, AA, BB e CC, dirigiram-se às instalações onde operou a fábrica «A...», propriedade da sociedade «B... UNIPESSOAL, LDA», sita na Rua ..., ..., ... - ...;
2. Os arguidos fizeram-se transportar no veículo ligeiro de passageiros, de marca “Volkswagen”, modelo ..., de cor azul e matrícula ..-..-TU, que deixaram estacionado, numa estrada de terra batida, nas imediações das instalações fabris acima identificadas;
3. Aí chegados, de forma não concretamente apurada, partiram as componentes da fechadura da porta metálica, sita nas traseiras do edifício, que dava acesso ao 2º andar, logrando por essa via introduzir-se no interior do mesmo;
4. Já dentro do edifício, arrancaram, cortaram e subtraíram os cabos, em cobre, do quadro eléctrico das instalações da identificada fábrica, bem como parte da estrutura metálica das máquinas, que compunham a linha de montagem da dita fábrica;
5. Objectos de valor não concretamente apurado mas não inferior a €5100,00 (cinco mil e cem euros), que levaram consigo e fizeram seus, como se lhes pertencessem, bem sabendo que os mesmos pertenciam ao proprietário das ditas instalações e que agiam contra a vontade deste;
6. No dia 28-04-2022, quando os militares da G.N.R. – N.I.C. de Leiria e do Posto Territorial da ..., se deslocaram às referidas instalações a fim de proceder à inspecção judiciária ao local, cerca das 17h40m, depararam-se com os arguidos AA, BB e CC dentro das instalações da dita fábrica, mais concretamente no primeiro andar;
7. Nestas circunstâncias de tempo e lugar encontravam-se os arguidos com componentes em metal das máquinas, bem como a  juntá-los no chão, perfazendo os já reunidos valor não inferior a €102,00 (cento e dois euros), com vista a levarem-nos consigo e fazê-los seus, contra a vontade do seu legítimo proprietário, o que só não conseguiram por terem sido detidos em flagrante delito pela G.N.R.;
8. Em face do descrito foi efectuada revista ao arguido AA, tendo o mesmo na sua posse:
a) Uma navalha multiusos, com pega em madeira, com a inscrição “... - Portugal”, com lâmina numa ponta e garfo na outra;
b) Uma navalha, com pega em metal e madeira;
c) Um par de luvas de trabalho, de cor pretas, marca “Ante”;
9. Efectuada revista ao arguido BB, tinha o mesmo na sua posse:
a) Um telemóvel de marca “Maxcom”, de cor preta, com o IMEI ...99, contendo no seu interior um cartão “SIM” da “MEO” nº ...48, associado ao contato ...73....
10. Foram, ainda, apreendidos os seguintes objectos pertença dos arguidos, que se encontravam junto a si, nas supra identificadas instalações fabris:
a) Um par de luvas, de marca “Ante”, cor cinza, tamanho 8;
b) Um par de luvas, de marca “Ante”, cor cinza, tamanho 9;
c) Uma chave inglesa, marca “Ante”, cor preta e amarela;
d) Uma cisalha, sem marca, cor amarela e preta;
e) Uma chave de bocas, de marca “Ante”, tamanho 14/15;
f) Uma chave de bocas, de marca “Ante”, tamanho 16/17;
g) Dois conjuntos de chaves de roquete, com 17 peças, de marca “MEINSTER”;
h) Seis chaves de fendas, de diversos tamanhos e marcas;
i) Quatro alicates universais, de diversos tamanhos e marcas;
j) Um alicate de corte, com pega vermelha e preta, sem marca;
k) Seis chaves de bocas, de tamanhos entre 12 e 19, de diversas marcas;
l) Uma chave de luneta, marca “BETA”, tamanho 14/15;
m) Duas serras de corte de metais, de marca “MARCEU” e “INECO”;
n) Cinco folhas de serra, de diversos tamanhos e marcas;
o) Dois martelos, com cabo em madeira, sem marca;
p) Um x-ato, de cor laranja;
q) Um alicate extensivo, da marca “ANTE”, cor vermelho;
r) Uma chave de estrela, com cabo vermelho;
s) Seis chaves sextavadas, de diversos tamanhos;
t) Uma chave de roquete, com 16 peças;
u) Duas chaves de roquete;
v) Três chaves sextavadas, marca “POWERFIX”, de cor vermelha e preta, de diversos tamanhos;
w) Uma chave de velas;
x) Duas peças de rosca;
y) Um saco de desporto de cor azul, com a inscrição “SPORT”;
11. Efectuada busca ao veículo acima identificado, de matrícula ..-..-TU, foram apreendidos os seguintes objectos, pertença dos arguidos:
a) Três pares de Luvas de marca “ANTE”;
b) Uma chave inglesa, de marca “ANTE”, cor preta e amarela;
c) Uma cisalha, sem marca, de cor amarela e preta;
d) Uma chave de bocas, de marca “ANTE”, tamanho 14/15;
e) Uma chave de bocas, de marca “ANTE”, tamanho 16/17.
12. Tais objectos apreendidos aos arguidos destinavam-se a auxiliar os arguidos na prática dos factos acima descritos.
13. Os arguidos actuaram em concertação de esforços e intentos, com uma divisão previamente acordada das tarefas, no intuito concretizado de se apropriarem daqueles objectos, que sabiam não lhes pertencerem, querendo e conseguindo remover obstáculos materiais a tal desiderato;
14. Agiram os arguidos de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
15.[1] (…)
16. Do certificado de registo criminal do arguido CC constam as seguintes condenações:

O arguido foi ainda condenado por decisão de 22.2.2016 no âmbito do processo 9/12.... do ... Juízo Criminal de Leiria, Juiz ..., pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período; foi condenado no âmbito do proc. 98/21.... por decisão de 30.5.2022, pela prática de um crime de condução de veiculo em estado de embriaguez na pena de  3 meses e 15 dias de prisão; por decisão de 12.4.2023 o arguido foi condenado no âmbito do Proc. 287/22.... por crime de desobediência na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5,50€; por  decisão de 12.4.2023 foi condenado no âmbito do proc. 132/23.... pelo crime de violação de interdições na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 5,50€;
17. Do certificado de registo criminal do arguido AA constam as seguintes condenações:


O arguido foi ainda condenado por decisão de 17.11.2022 pela prática de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 6 meses de prisão.

18. Do relatório social do arguido AA consta o seguinte:
“AA reside desde meados de 2023, em quarto integrado no estaleiro da sua entidade patronal – C..., Lda., sita na Rua ..., ..., ... (...). Na data dos factos, tal como há vários anos, residia numa roulotte, localizada na Rua ..., que estava instalada num espaço também este cedido pela entidade patronal, o qual não fornecia as condições básicas, por falta de luz e água. AA beneficiava da disponibilidade de uma irmã que lhe cedida o espaço para a sua higiene, quando aquele solicitava. O arguido cresceu no seio da sua família de origem, de humilde condição socioeconómica, a qual era constituída pelos seus pais e cinco irmãos. Ao nível educativo, ambos os progenitores tiveram um papel ativo. O pai adotava uma postura mais autoritária e a mãe uma atitude mais permissiva e desculpabilizante. Com um percurso escolar pautado por alguns comportamentos antissociais, como pequenos furtos, terá iniciado aquando do final da frequência do ensino básico, o consumo de produtos estupefacientes, designadamente de haxixe. AA abandonou a frequência escolar aos 14 anos de idade. Aos 15 anos de idade, iniciou o desempenho de uma atividade profissional no setor da construção civil, como servente de pedreiro, função que exerceu maioritariamente, tendo exercido funções como armador de ferro e em sucata. AA escalou para o consumo de drogas ditas duras, aos 21 anos de idade. A partir de então, atendendo ao escalar da dependência, realizou tratamento clinico a esta adição na Comunidade Terapêutica ... em ..., onde permaneceu entre maio e agosto de 2002, altura em que abandonou o processo de tratamento. Após sair da referida Comunidade, reintegrou o agregado familiar de seus pais e recaiu no consumo de produtos estupefacientes, mantendo a partir daí um percurso irregular, tendo permanecido em acompanhamento no CAT ... até outubro de 2010, onde esteve inserido no programa de substituição opiácea com a toma diária de Metadona. A partir de então, verificaram-se períodos de abstinência, intercalados com períodos de consumos de drogas. O relacionamento do arguido com os seus pais viera a sofrer algum desgaste devido aos comportamentos aditivos (álcool e drogas) apresentados pelo mesmo, e à sua consequente desorganização, ao nível da vida pessoal. Modo de vida que se assemelhava à do seu irmão, e que era seu par nos consumos, ambos com condutas antissociais para a satisfação desta dependência. No presente, tal como há data dos factos e desde 2019 que AA exerce funções como servente na empresa C..., Lda. O arguido revela gosto por trabalhar naquela empresa, por reconhecer o suporte pessoal que usufrui por parte do gerente da empresa, DD. Segundo o gerente da empresa, AA desde meados de 2023 tem mantido uma postura mais interessada no exercício das suas funções, com assiduidade regular, situação oposta aos anteriores anos. DD (patrão) aparenta ser uma figura de relevo para o arguido, pela sua disponibilidade para o ajudar quer a nível pessoal e profissional, compadecendo-se da história de vida do arguido. Para além do apoio de DD, o arguido beneficia do suporte emocional e pessoal de duas irmãs, que residem na mesma localidade. AA nunca aceitou ser acolhido na casa daquelas, por reconhecer que teria de adotar um estilo de vida diferente daquele que mantem, o que poderia criar situações de stress ou de desentendimento, o que pretende evitar. EE, irmã do arguido, refere que este mantem um estilo de vida boémio e desorganizado a nível financeiro e pessoal, mas empático e preocupado com a família e com os amigos próximos. AA no presente, tal como à data dos factos não tem despesas associadas, expecto a alimentação e a aquisição de bebias alcoólicas e tabaco. No presente, as despesas de luz e água, do quarto onde pernoita são suportadas pela entidade patronal, que não lhe cobra qualquer despesa pelo espaço que este ocupa. Há data dos factos, na roulotte onde morava, não tinha despesas de agua ou luz (por não ter fornecimento), assim como não tinha despesas pela estadia naquele espaço. Do ponto de vista social, AA não é hostilizado na localidade de residência, apesar de conotado com comportamentos aditivos e de privilegiar o convívio com indivíduos e locais de acesso a bebidas alcoólicas. É refletida uma imagem de infortúnio face ao seu percurso de vida. O seu envolvimento com o sistema de justiça é do conhecimento geral da população, o que não belisca o apoio básico concedido ao arguido. AA, tem anteriores condenações, tendo cumprido penas de prisão, pela prática de crimes de roubos, furtos qualificados, condução sem habilitação legal, cultivo de estupefacientes para consumo, entre outros. A sua última reclusão ocorreu entre janeiro e julho de 2023, pela prática de crime de condução sem habilitação legal. AA aparenta alguma reflexão sobre o seu modo de vida anterior. Justifica o seu envolvimento com o sistema de justiça, com os seus comportamentos aditivos e alguma desorganização pessoal, parecendo o mesmo evidenciar ainda à data atual, alguma fragilidade e inconsistência no referente ao consumo de estupefacientes, mantendo o consumo de bebidas alcoólicas de forma regular e por vezes excessiva. Relativamente aos presentes autos, afasta-se do papel que lhe é atribuído e revela fraco juízo critico quanto ao dano em causa e às eventuais vitimas. O presente processo é do conhecimento geral das fontes contatadas, situação que, até ao presente, não diminui o apoio e solidariedade prestada a AA.”
19. Do relatório social do arguido CC consta o seguinte:
“CC é natural de ..., oriundo de um agregado familiar numeroso, sendo ele o mais novo de uma fratria de 6 irmãos. A dinâmica familiar era tranquila e a fonte de rendimento da subsistência da família assentava nos proventos da atividade de vendedores ambulantes desempenhada pelos progenitores, não sendo percecionadas dificuldades do ponto de vista das necessidades familiares. CC está habilitado com o 5º ano de escolaridade, concluído com 14 anos de idade. Nessa altura, abandonou o percurso escolar para ajudar os progenitores na venda ambulante. Segundo o próprio, os pais incentivavam-no a prosseguir os estudos, mas referiu, que não sentia motivação nem interesse pela escola, deixando assim estagnar o percurso formativo e profissional. Com 19 anos de idade cumpriu o serviço militar obrigatório em ..., durante seis meses, período que aproveitou para se habilitar com a carta de condução de pesados. Com 22 anos constituiu o seu núcleo familiar, por via da união de facto, com FF, esta, à data com 15 anos de idade, relacionamento que mantém e do qual nasceram 4 filhos. CC alterou a residência para a região de Leiria há 10 anos, alegadamente porque a família da companheira já era aqui residente, sabendo-se, por isso, que os proventos do negócio de feirante eram mais rentáveis nesta região. Após um período de mobilidade residencial, há 8 anos, fixou a sua residência na localidade do ... – .... O seu agregado familiar é constituído por si, pela companheira GG, pelos quatro filhos de ambos, dois ainda menores, um neto, filho do seu filho mais velho, HH e pela nora, companheira de HH. A família reside num imóvel arrendado, tratando-se de uma moradia de dois pisos habitáveis, de tipologia 5 e espaço de quintal contiguo à habitação. A casa reúne adequadas condições de habitabilidade e privacidade para todos os elementos da família e está localizado em meio rural, no centro da localidade, sem conotação a problemáticas sociais. A dinâmica da família é caraterizada como funcional e coesa, pese embora sejam conhecidos alguns
períodos de vida em que o relacionamento entre o casal foi conturbado, por alegado vicio de jogo, e consumos alcoólicos, situações que acarretaram dificuldades económicas, decorrentes dos gastos excessivos. Do ponto de vista económico e ocupacional, segundo o arguido, inicialmente tentou o suporte de vida, com recurso à atividade de vendedor ambulante em mercados e feiras, mas, terá deixado de exercer esta atividade porque os rendimentos não se afiguraram rentáveis. À data atual nenhum dos elementos da família exerce uma atividade remunerada e estruturada, dedicando-se, alegadamente, ao negócio informal de viaturas – via on-line, atividade que refere ser extensiva a todos os elementos da família. Desta atividade, não foram mencionados rendimentos, por alegadamente serem incertos e variáveis. CC nunca desenvolveu uma atividade laboral diversa da de vendedor, nem possui formação ou experiencias profissionais que o habilitem ao exercido de uma profissão diferenciada. O sustento da família é garantido pelo Rendimento Social de Inserção, num valor de cerca de 700€ mensais e pelo abono de família concedido aos filhos menores, num valor mensal de 200€. O filho mais velho e o agregado daquele são igualmente beneficiários de apoios sociais. As despesas mais significativas relacionam-se com a renda da habitação, 400€ mensais e com as despesas com consumos domésticos que se situam entre 100/150€ mensais. Na comunidade, as referências socias não se individualizam ao arguido, mas são incluídas no contexto de vida do núcleo familiar, associados ao ócio, não lhe sendo conhecidos hábitos ou responsabilidades laborais, ou atividades estruturadas de tempos livres. Estão associados a frequentes convívios com familiares e conhecidos, sendo por vezes perturbadores do descanso noturno da comunidade inquilina, e, neste contexto, a sua presença é censurada pela inercia do quotidiano. CC apresenta anteriores e distintos confrontos com a justiça penal, desde 2004, por se encontrar indiciado da prática de crimes, de diversa tipologia criminal, no âmbito dos quais foi, por diversas vezes, sujeito a medida coativa de privação de liberdade em estabelecimento prisional, a última ocorrida entre julho de 2019 e janeiro de 2021. Relativamente aos factos em apreço, CC perceciona-se de forma diferente daquela que resulta da presente acusação. Por ora, avalia a sua constituição de arguido nos presentes autos sem impactos do ponto de vista social e familiar e não exteriorizou preocupações quanto ao seu atual contexto de vida, nem sentimentos específicos perante a atual situação jurídico-penal”
20. (…)».

2.2. Quanto a FACTOS NÃO PROVADOS, escreveu-se (transcrição):
«Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa, nomeadamente que os arguidos no dia 28.4.2022 se encontravam a desinstalar os componentes em metal das máquinas».

2.3. Motivou-se a matéria dada como provada da seguinte forma (transcrição):
«Com efeito o único arguido que compareceu em julgamento usou, validamente, o seu direito ao silêncio de molde que a convicção do Tribunal assentou, essencialmente no depoimento da testemunha II, militar da GNR que se deslocou ao local no dia 28 de abril por terem sido alertados para a existência de um furto naquelas instalações ocorrido entre o dia 10 e o dia 28 de abril referiu que apurou que os arguidos entraram pelas traseiras por uma porta metálica que já tinha sinais de arrombamento e constatou a existência de cabos metálicos da parte elétrica já arrancados; realizada inspeção ao local, aguardaram a chegada do NAC e quando esta patrulha chegou voltaram a entrar nas instalações e ao entrar no edifício foram surpreendidos com a presença dos três arguidos, os quais reconheceu e identificou uma vez que já era conhecidos, dentro do edifício que se puseram em fuga, já tinham a cabelagem acumulada, que não estava anteriormente, conseguiram alcança-los e constataram que já tinham coisas acumuladas e estavam de luvas e dentro da viatura estavam já alguns bens; JJ, legal representante da sociedade “B...” que esclareceu que trabalha para a empresa sediada na Trofa e compraram esta na ..., mas normalmente encontra-se no norte do pais, na Trofa, aqui se deslocando com alguma frequência; esclareceu que a fabrica foi assaltada e levaram cobre das instalações elétricas e quadros elétricos e tiveram um prejuízo de mais de 1000€; referiu que acompanhou os militares da GNR e encontraram lá os três indivíduos e identificou o BB em audiência; referiu que os arguidos entraram pela porta traseira que estava trancada e rebentaram o pingo da solda que estava a fechar; na análise da prova documental junta aos autos, nomeadamente: Auto de notícia de fls. 39 a 42; Relatório tático fotográfico de fls. 43 a 46; Relatório táctico de inspecção judiciária de fls. 47 a 48; Relatório tático fotográfico de fls. 49 a 51; Auto de revista e apreensão de fls. 52 a 53; Auto de apreensão de fls. 54 a 55; Auto de busca e apreensão de fls. 94 a 95; Certidão permanente de fls. 120 a 126; Pesquisa das bases de dados do registo automóvel de fls. 127; 10. Certificados de registo criminal de fls. 520 e ss; Pesquisas das bases de dados da segurança social de fls. 172 a 174 e relatórios sociais de fls. 495 e ss, 505 e ss, 509 e ss
Com efeito da prova produzida, nomeadamente das declarações credíveis do militar da GNR, corroboradas pelo representante da sociedade que descreveram a forma como os arguidos, anteriormente, entraram no local, a cabelagem, cobre e cabos que levaram e que passados dias voltaram a entrar pelo mesmo sitio que tinham rebentado anteriormente e já tinha reunidas as peças para serem levadas para a viatura; o Tribunal não teve assim duvidas de que foram os arguidos que se deslocaram ás instalações uma primeira vez, entre o dia 10 e o dia 28.4.2022 – período de tempo em que o legal representante não se deslocou ás instalações – e que foram reunindo os diversos bens que pretendiam furtar e seleccionando para transportar para a viatura e foram surpreendidos quando a  GNR voltou a entrar nas instalações após a chegada do NAC para recolha de vestígios lofoscópicos. Aliás, são as regras da experiência que levam o Tribunal a concluir como concluiu».

            3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

            3.1. NULIDADES DE ACÓRDÃO
           
3.1.1. De forma explícita, é arguida pelas duas defesas uma nulidade de Acórdão reconduzível, na sua óptica, ao artigo 379º, nº 1, alínea b) do CPP.

3.1.1.1. Entendem os 2 recorrentes que foram condenados com base em factualidade não constante da pronúncia/acusação, sem que tivesse sido dado cumprimento ao disposto nos artigos 358º e 359º do CPP, o que configura uma nulidade de sentença nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea b) do CPP.
De acordo com o princípio acusatório, a acusação deduzida define e fixa o objecto do processo, exigindo-se uma necessária correlação entre a acusação e a decisão., traduzindo-se tal correlação na exigência de que, definido o objecto do processo, o tribunal não possa, como regra, atender a factos que não foram objecto da acusação, estando, por conseguinte, limitada a sua actividade cognitiva e decisória, o que constitui a chamada vinculação temática do tribunal.
Depois de fixado na acusação, o objecto do processo deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da sentença – é o chamado princípio da identidade.
A observância destes princípios constitui uma exigência da salvaguarda de um efectivo direito de defesa do arguido. Compreende-se que, se ao tribunal fosse permitido modificar o objecto do processo e conhecer para além dele, o arguido poderia ser confrontado com novos factos e novas incriminações que não tomara em conta aquando da preparação da sua defesa, não sendo de exigir ao arguido – que se presume inocente – que antecipe e preveja todas as imputações possíveis, independentemente da concreta acusação que contra si foi deduzida.
Quer isto dizer que a acusação (ou a pronúncia, tendo havido instrução) define e delimita o objecto do processo, fixando o thema decidendum, sendo o elemento estruturante de definição desse objecto, não podendo o tribunal promovê-lo para além dos limites daquela, nem condenar para além desses limites, o que constitui uma consequência da estrutura acusatória do processo penal.
Contudo, como refere Germano Marques da Silva, “por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo” (Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo, III, 2.ª edição, p. 273).
«O processo penal não é um processo acusatório puro e o legislador não deixou o juiz na completa dependência dos sujeitos processuais relativamente ao esclarecimento dos factos. Ao processo penal estão subjacentes preocupações de justiça que impõem uma mais completa indagação da verdade permitindo que a versão dos factos construída no processo e a realidade se aproximem.
O que aponta para a necessidade de ser encontrado um ponto de equilíbrio que resolva a tensão entre princípios aparentemente em litígio, remetendo-nos para a magna questão da definição do objecto do processo e das condições em que a conformação dos factos constantes da acusação pode ser alterada» (Acórdão da Relação de Coimbra de 17/6/2009, in Pº 122/07.7GCACB.C1).
O CPP de 1987 distingue, no âmbito da alteração dos factos, as situações em que a alteração é substancial daquelas em que não é substancial.
O artigo 1º, nº 1, alínea f), do CPP de 1987, define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
As disposições fundamentais a considerar, na fase do julgamento, no tocante a esta matéria, são os artigos 358º e 359º do CPP.
Ouçamos a lei.
Estatui o artigo 358º, relativo à alteração não substancial de factos descritos na acusação ou na pronúncia:…
Por seu lado, o artigo 359º reporta-se à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, tendo sofrido relevantes alterações com a revisão introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, estabelecendo a distinção entre factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis.
Salienta o STJ, em acórdão de 21 de Março de 2007 (processo 07P024, www.dgsi.pt):
«Alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa.
É este o sentido da definição constante do artigo 1º, nº 1, alínea f), do CPP para “alteração substancial dos factos”, que se apresenta, assim, como um conceito normativamente formatado: “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.»
Sobre o alcance do conceito de “alteração substancial dos factos” pronunciou-se também a Relação do Porto, em acórdão de 23 de Maio de 2007 (processo 0513936, www.dgsi.pt), nos seguintes moldes:
«Fixemo-nos na imputação de crime diverso.
Como se referiu, o objecto do processo, melhor diríamos, da acusação, que vincula tematicamente o tribunal, é constituído por aquele facto naturalístico que se discute, situado no passado, com a sua identidade, imagem e valoração social, que viola bens jurídicos penalmente tutelados, e por cuja prática o agente é alvo de censura.
No conceito há uma relação dialéctica entre facto e crime.
Por outro lado, nos termos do nº 4 do artº 339º, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação; os factos alegados pela defesa; os factos que resultarem da prova produzida em audiência; as soluções jurídicas pertinentes, em obediência ao princípio da verdade material.
Tendo a discussão da causa esta amplitude, pode acontecer que:
a) Da discussão da causa resulte adição ou modificação dos factos constantes da acusação, sem intervenção da entidade acusadora;
b) O arguido não tenha oportunidade de se defender de todos os factos apurados, violando-se o princípio que lhe consagra todas as garantias de defesa.
Ora, conhecido o conceito de facto e a sua relação dialéctica com o tipo legal; conhecido o thema decidendum; conhecido o objecto do processo; e conhecidas ainda as razões porque não pode ser modificado o objecto do processo, cremos estar em condições de encontrar critérios que nos permitam afirmar se há ou não alteração substancial dos factos.
Cremos poder afirmar que se imputa ao arguido um crime diverso quando:
1. Da referida adição ou modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo;
2. Da referida adição ou modificação dos factos resulte um facto naturalístico diferente, objecto de um diferente e distinto juízo de valoração social;
3. Da referida adição ou modificação dos factos resulte a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, resulte a perda da sua identidade.
O critério normativo – é disso que se trata – encontrado só fica completo quando se fizer a previsão das situações em que o arguido não teve oportunidade de se defender dos novos factos, com relevância jurídico-penal.
Assim, importa acrescentar que, para efeitos de alteração substancial dos factos, imputa-se ao arguido um crime diverso quando:
4. O arguido não teve oportunidade de se defender dos “novos factos”, não sendo estes meramente concretizadores ou esclarecedores dos primitivos.
Nos termos da 2ª parte da alínea f) do nº 1 do artº 1º, estamos ainda perante uma alteração substancial dos factos quando:
5. Por força da modificação ou aditamento de novos factos, resulte o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis ao arguido (…)»

Quando os factos novos não tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, mas sejam relevantes para a decisão, a alteração deverá ser considerada não substancial e o seu conhecimento pressupõe, por isso, o recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º, nº1, do CPP.
Diga-se ainda que a lei fulmine com nulidade a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do CPP [art. 379º, nº 1, b), do mesmo código].

3.1.1.2. Ora, no nosso caso, não há qualquer alteração substancial de factos pois o crime não é diverso e a moldura penal abstracta permanece a mesma (foi acusado e condenado pelos artigos 203º e 204º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea e), por referência ao artigo 202º, alíneas a) e d) do Código Penal).
Mas haverá uma alteração não substancial?
De facto, importa distinguir, em função dos casos concretos, aquelas situações em que a omissão da comunicação impede a possibilidade de defesa eficaz do arguido, daquelas outras em que tal omissão não tem qualquer impacto negativo na estratégia de defesa do arguido.
Como se afere no Acórdão da Relação do Porto de 12/1/2011, «há uma razão lógica e substantiva para o legislador impor a comunicação da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e a alteração da qualificação jurídica dos mesmos: está em causa, fundamentalmente, assegurar elementares direitos de defesa do arguido, evitando que ele seja surpreendido com uma condenação por factos que não constavam da acusação (ou pronúncia) ou suportada por uma qualificação jurídica distinta da que nela constava.
A própria Lei ressalva que a comunicação só tem lugar se a alteração tiver “relevo para a decisão da causa” e se não tiver “derivado de factos alegados pela defesa” [nº 1 e 2 do citado art.]. Compreende-se: tanto num caso como no outro, a alteração (dos factos ou da sua qualificação jurídica) não tem uma repercussão negativa na estratégia de defesa do arguido».
É esse interesse de salvaguarda dos direitos de defesa do arguido que justifica a imposição da comunicação, não sendo algo de formal ou automático.
Como já alguém rezou, «na constante procura do equilíbrio entre o interesse público da aplicação do direito criminal – mediante a eficaz perseguição dos delitos cometidos – e o direito impostergável do arguido a um processo penal que assegure todas as garantias de defesa vinga a leitura atenta e racional da Lei que dê sentido útil à afirmação dos direitos consagrados e eficácia ao sistema processual implantado».
Deste modo, há que ser razoável na leitura dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal - como se concluiu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 674/99: “(…) erige-se assim em critério orientador a defesa eficaz do arguido, permitindo que ele tome conhecimento das alterações de factos que sejam relevantes do ponto de vista daquela defesa (...)”.
Tem a jurisprudência e a doutrina apontado alguns casos em que se dá conta da irrelevância negativa de certas alterações para os direitos de defesa do arguido – falamos das situações em que a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado [Ac.STJ de 7.11.2002]: entende-se que não há qualquer alteração relevante para o efeito em causa, uma vez que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia).
Tem-se, de facto, entendido, com alguma margem de consenso, que a comunicação do artigo 358º/3 do CPP, apenas se efectuará quando se tratar de uma modificação relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa [Ac. T. C. nº 330/97 (DR II 1997/Jul./03), 387/2005, (DR II 2005/Out./19); Ac. STJ de 1991/Abr./03, 1992/Nov./11, 1995/Out./16, 2006/Abr./06 (BMJ 406/287, 421/309, www.dgsi.pt, CJ II(S), 161)].
No que concerne à alteração da qualificação jurídica, encontra-se actualmente ultrapassado aquele posicionamento de plena liberdade de qualificação jurídica sem haver comunicação prévia, pois impõe-se que esta se realize [Ac. TC 173/92; 279/95; 16/97, 445/97], tanto em 1.ª instância, aqui em audiência de julgamento, [Ac. TC 518/98; Ac STJ nº 3/2000, de 15/12/1999], como nos tribunais superiores.
Tanto mais que actualmente a lei é expressa nesse sentido [358º, nº 3, 424º, nº 3].
Continuamos a opinar que, a par da alteração não substancial dos factos, a alteração da qualificação jurídica que impõe a obrigatoriedade dessa comunicação deverá ser igualmente relevante, pois só estas são susceptíveis de integrar situações de “indefesa constitucionalmente relevante”.
Retomando a jurisprudência anteriormente traçada que conduziu à consagração expressa do dever de comunicação da alteração da qualificação jurídica, temos como denominador comum de todas elas que se tratava sempre de incriminações cuja moldura penal abstracta da condenação era sempre mais grave do que aquela pela qual o arguido tinha sido acusado.
Nestes casos, a inobservância do contraditório resultava num manifesto e grave prejuízo para a defesa.
O mesmo não se passa se persistir uma homogeneidade da factualidade, o que sucede sempre que esta permanece íntegra, ou então se ocorrer uma homogeneidade descendente, em que aquela se vê amputada de circunstâncias agravativas da conduta do arguido, que permitem uma mais benevolente qualificação jurídica dos factos, em virtude destes passarem a integrar um tipo de crime menos grave.
Nestas situações, não surgem vulneradas as garantias de defesa do arguido, na vertente do princípio do contraditório, porquanto não existe uma heterogeneidade da qualificação jurídica que o apanhe de surpresa e lhe cause um prejuízo grave – e isto porque o núcleo essencial do tipo base persiste, havendo antes um deslizamento da qualificação jurídica para um tipo legal de crime “inferior”, tendo sempre a sua defesa abrangido o centro irredutível da qualificação jurídica que identifica o tipo base.
Voltando ao Acórdão de 15/6/2011, «a ideia do “favor defensionis” não fica assim atingida quando se mantém a prática do mesmíssimo tipo de crime, passando-se apenas do seu cometimento em co-autoria para autoria [Ac. STJ 2005/Nov./09 CJ (S) III/205] ou então, estando-se numa relação de hierarquia no âmbito da tutela do mesmo bem jurídico, se desce de um crime mais grave para um outro menos grave [Ac. STJ de 1991/Abr./03, CJ II/17; Ac. TC 330/97; Ac. R. P. 2011/Jan./12, 2011/Mar./02(12)]».
Seguimos de perto a nossa jurisprudência que tem defendido que:
· não existe uma alteração dos factos integradora do artigo 358º do CPP, quando a factualidade dada como provada na sentença consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação ou da pronúncia, por não se terem dado como assentes todos os factos aí descritos [cf. Ac. TC nº 330/97, in DR II, 1997/Jul./03];
· Não tal existe também quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes [cf. Ac. STJ de 1991//Abr./03, de 1992/Nov./11 e de 1995/Out./16, in BMJ nº 406/287, nº 421/309 e em www.dgsi.pt];
· Também tal não ocorrerá quando se tratar de uma simples descrição do contexto temporal e do ambiente físico em que a ação do arguido se desencadeou, quando o mesmo não é mais do que a reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação ou na pronúncia [Ac. TC nº 387/2005, de 2005/Jul./13, in DR II, 2005/Out./19];
· Da mesma forma, não se poderá falar de alteração dos factos com relevo para a decisão, quando a decisão condenatória se sustenta «exclusivamente nos factos constantes da acusação e da contestação e o recorrente não foi surpreendido com os factos, dadas as considerações que precedem [cf. o Ac. STJ de 23/06/2005, processo nº 1301/05, CJ, Tomo 2/2005);
· Daí que se possa dizer, que "só constitui alteração substancial dos factos a modificação que se reporte a factos constitutivos do crime e a factos que tenham o efeito de imputação de um crime punível com uma pena abstrata mais grave.
· A modificação dos restantes factos que constem da acusação ou da pronúncia constitui alteração não substancial dos factos, desde que sejam relevantes para a decisão da causa" e que "(... ) não há crime diverso em face da mera alteração das circunstâncias da execução do crime (incluindo o dia, hora, local, modo de execução e instrumento do crime), desde que essas circunstâncias não constituam elementos do tipo legal, nem constituam um outro facto histórico unitário" [Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Lisboa, 2007, pp. 41].
Dito de outra forma: a “alteração substancial” dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Já a “alteração não substancial” constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal; a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.
Na realidade, falamos de aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica.
Veja-se o aresto do STJ de 20/12/2006 que decidiu em caso algo paralelo que:
«A circunstância de terem sido dados como provados «dois casos concretos de transação de droga com indivíduos não identificados» não integra a noção de «alteração não substancial», pois, mesmo a existir, não modificaria o quadro factual da acusação, nem teria qualquer relevância para a qualificação ou para a determinação da moldura penal, não assumindo, assim, interesse para a decisão da causa, pelo que não se verifica violação do procedimento - tributário do princípio do acusatório - previsto nos arts. 358.° ou 359.°, do CPP».
Ou seja, a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.
Olhemos para o nosso caso.
Diremos nós que não estamos perante qualquer facto novo relevante que apenas tenha surgido por ocasião da audiência.
O que aconteceu, no facto nº 7, foi a prova de apenas uma parte do facto e não da totalidade do facto.
Vejamos:
Na acusação, esse facto 7 tinha a seguinte redacção: «7. Nestas circunstâncias de tempo e lugar encontravam-se os arguidos a desinstalar componentes em metal das máquinas, bem como juntá-los no chão, perfazendo os já reunidos valor não inferior a €102,00 (cento e dois euros), com vista a levarem-nos consigo e fazê-los seus, contra a vontade do seu legítimo proprietário, o que só não conseguiram por terem sido detidos em flagrante delito pela G.N.R.».
No acórdão, tal facto 7 passou a: «7. Nestas circunstâncias de tempo e lugar encontravam-se os arguidos com componentes em metal das máquinas, bem como a  juntá-los no chão, perfazendo os já reunidos valor não inferior a €102,00 (cento e dois euros), com vista a levarem-nos consigo e fazê-los seus, contra a vontade do seu legítimo proprietário, o que só não conseguiram por terem sido detidos em flagrante delito pela G.N.R.».
E deu-se naturalmente como NÃO PROVADO que «os arguidos no dia 28.4.2022 se encontravam a desinstalar os componentes em metal das máquinas».
Ou seja, apenas não se provou que os arguidos tivessem sido encontrados a desinstalar componentes em metal das máquinas, provando-se tão-somente que foram encontrados com tais componentes.
Ou seja:
No nosso caso, o sentido da acusação mantém-se o mesmo.
É o mesmo pedaço de vida que se discute.
O alegado facto diverso – que apenas é uma parte ínfima do facto narrado na acusação – é um facto que forma uma unidade necessária, indissociável dos que constam da acusação/pronúncia.
Não é descoberta outra diversa “realidade” factual, porque ocorrida noutras circunstâncias ou praticada por outras pessoas.
Apenas se constata a não prova de uma parte de um facto.
Não havendo, in casu, factualidade nova relevante capaz de surpreender a defesa, não haveria, pois, de fazer qualquer comunicação ínsita no único artigo do CPP que aqui poderia ser invocado – o artigo 358º do CPP, pois nunca seria de convocar o artigo 359º do CPP pelas razões já expostas.
Inexiste, assim, esta 1ª nulidade, a única denunciada em sede de recursos.
Como tal, improcede a arguição de nulidade nos termos expostos, não ocorrendo qualquer supressão dos direitos da defesa.


3.1.2. Contudo, vislumbramos, à vista desarmada e sem grande esforço, uma outra nulidade de acórdão reconduzível ao artigo 379º, nº 1, alínea a) por referência ao estatuído no artigo 374º, nº 2 do CPP[2].

3.1.2.1. Sabemos que o artigo 374º, nº 2 do CPP exige que depois da enumeração dos factos provados e não provados, se faça na sentença uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para criar a convicção do tribunal.
O dever de fundamentação[3] das decisões judiciais é uma realidade, ainda que com contornos variados, imanente a todos os sistemas de justiça que nos são próximos, mesmo que sejam detectáveis variáveis do grau de exigência em função das matérias em causa, do tipo de decisão ou da tradição histórica e cultural de cada povo.
Afirmando-se progressivamente como verdadeira conquista civilizacional a partir da Revolução Francesa, o dever de fundamentação das decisões judiciais constitui, nos modernos Estados de Direito, um dos pressupostos do chamado “processo equitativo” a que aludem o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos[4], o artigo 7º da Carta Africana dos Direitos Humanos (outrora ainda lido como «do Homem») e dos Povos e, por exemplo, o artigo 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
Dispõe a Constituição, no nº 1 do artigo 205º, que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".
Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio substituir o nº 1 do artigo 208º, que determinava que "as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei".
A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas "nos termos previstos na lei" para o serem "na forma prevista na lei".
A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação.
Como refere Rui Pereira[5], a fundamentação jurídica das decisões pode ser analisada em três níveis:
“O primeiro respeita à própria escolha das normas aplicáveis, segundo a regra da conveniência, regra essa que constitui o primeiro passo no sentido de garantir que a decisão judicial será uma decisão justa. O segundo refere-se à demonstração da própria legalidade lógica (ou lógico-valorativa) do silogismo judicial (subsunção). O terceiro envolve a demonstração da justiça da solução encontrada, garantindo, nomeadamente, que é feita uma interpretação normativa de acordo com as normas e princípios constitucionais ou, no caso de tal não ser possível, recusando a aplicação de normas infra constitucionais que lograram passar pelo crivo da regra da conveniência”.
A sentença é, por definição, a decisão vocacionada para a solução definitiva do problema concreto que foi colocado ao Tribunal.
Como tal, porque representa a definição do direito do caso concreto deve ser, um “documento de fácil leitura, simples, claro, logicamente ordenado, enxuto e esgotante”.
A sentença penal começa por um relatório que mais não é do que, como ensinava o Prof. Alberto dos Reis relativamente à sentença cível, um “resumo simples e lúcido da questão, elaborado de modo a que, quem o leia, apreenda sem esforço os termos essenciais da controvérsia”.
Adaptando tal ensinamento ao processo penal importa então identificar o objecto do processo, a parte acusadora, o arguido e o crime que lhe é imputado e fazer um breve resumo da contestação contendo a posição do arguido sobre os factos.
Seguem-se já no contexto dos fundamentos, a descrição dos factos provados (e não provados), a qual, para ser facilmente compreensível, deve obedecer à lógica própria de quem descreve um episódio concreto da vida real.
Em apoio dos factos considerados provados deve então a sentença passar a expressar a justificação da respectiva decisão, isto é, fazer a análise crítica da prova produzida, esclarecer quais os meios de prova que conduziram à convicção anteriormente enunciada.
Sem pretender ser exaustivo, a motivação da convicção do juiz no âmbito da análise crítica da prova implica que o Tribunal indique expressamente:
· quais os factos provados que cada testemunha revelou conhecer;
· quais os elementos que dos mesmos depoimentos permitem inferir a interpretação e conclusão a que o tribunal chegou;
· quais as razões que o levam a valorar determinado meio de prova em detrimento de outro ou outros meios de prova com ele contraditório;
· quais as razões porque não foi dada relevância a determinada prova ou meio de prova;
· quais as razões porque julgou relevantes, ou irrelevantes, certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória a prova resultante de documentos particulares, ou retirou certas conclusões da inspecção ao local, etc.
Finalmente, segue-se o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto apurada na qual o juiz vai analisar todos os factos apurados em ordem a concluir se o arguido cometeu ou não o crime de que vem acusado, se existem causas de exclusão da ilicitude da conduta ou da culpa do mesmo.
E é este o momento que, por vezes, alguns juízes aproveitam para tecer largas considerações sobre os tipos legais de crime em análise, ou sobre os institutos regulamentados na parte geral do Código Penal, nem sempre, adiante-se, com muito a propósito.
Também aqui colhe o ensinamento do Prof. Alberto dos Reis: na sentença o juiz não deve dizer nem mais nem menos do que é preciso, em especial no que se refere à argumentação de carácter jurídico em que assenta a decisão, sob pena de, como escrevia o Prof. Alberto dos Reis a sentença se tornar num “estendal pretensioso de doutrina e opiniões alheias” e instrumento de “alarde pomposo e inteiramente desnecessário, de erudição fácil”.
Tendo concluído que o arguido praticou um facto punível seguir-se-á na sentença a escolha e a determinação da medida concreta da pena.
Usando as palavras do aresto desta Relação, datado de 19/3/2014, diremos:
«Tem sido decidido pelo STJ – cfr. entre outros: Ac. STJ de 15.01.1997, na CJ/STJ, tomo I/97, p. 181; Ac. STJ de 05.02.1998, publicado na CJ/STJ, tomo I/98, p. 189; Ac. STJ de 11.02.1998, BMJ 474º, p. 151; Ac. STJ de 02.12.1998, publicado na CJ/STJ, tomo III/98, p. 229 - que a elencação dos factos provados e não provados refere-se apenas aos factos essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena e não aos factos inócuos, mesmo que descritos na contestação.
Daí que, como expressivamente, refere o Ac. STJ de 12.03.1998, BMJ 475º, p. 233, “o art. 374º, nº 2 do CPP não exige, relativamente aos factos não provados a mesma minúcia que preside à indicação dos factos provados, tendo o tribunal que deixar bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados, maxime na contestação com interesse para a decisão”.
O que importa é que da conjugação da matéria da acusação e da defesa, resulte claro que o tribunal apreciou os factos relevantes aduzidos por uma e por outra relevantes para a decisão a proferir. Ou ainda que sejam a afirmação e a negação do mesmo “recorte de vida”, enquadrar a perspectiva da defesa, por referência à acusação que contesta, dentro do escopo do processo, o apuramento ou descaracterização dos pressupostos do crime imputado ao arguido».
Como tal, este aresto apenas legitima a não articulação, no rol de factos provados, dos factos tidos por inócuos e não essenciais à discussão da causa, nas suas duplas ou triplas visões[6].
3.1.2.2. Com este pano de fundo, vejamos, então, o nosso caso concreto e analisemos a forma como fez o tribunal recorrido esse exame crítico das provas quanto à imputação criminosa aos dois arguidos recorrentes do delito em causa ou à sua desresponsabilização.
Lida a decisão recorrida, só podemos afirmar, em alto e bom som, que o exame crítico não foi suficientemente feito em texto corrido de forma a satisfazer plenamente os requisitos legais.
De facto, não é perceptível a forma como o Colectivo de dois juízes de Leiria – já que a 3ª adjunta votou vencida, não concordando com a condenação dos arguidos pela prática do furto qualificado consumado tido por praticado no período entre 10 e 28 de Abril de 2022 - declara o seu convencimento quanto à tese acusatória.
Sublinhe-se ainda que a lei não impõe que esse raciocínio tenha que ser demonstrado facto a facto – deve é ser suficientemente claro de forma a que quem leia a sentença fique indubitavelmente convencido da bondade daquela decisão (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28/02/2008, processo nº 2445/07-1 in www.dgsi.pt).
In casu, de juízes convencidos de que os arguidos praticaram o furto descrito nos factos 1 a 5, os dois juízes de Leiria teriam de passar a juízes convincentes.
E NÃO O FORAM.
E até se exigiria que o fossem sabendo que o 3º elemento do Colectivo votou contra a sua convicção.
De facto, a explicação dada na motivação é deveras pobre e meramente enunciativa, não se compreendendo os argumentos aventados para se considerar que, afinal, se fez prova indubitável da culpabilidade dos arguidos no 1º furto.
Apenas se deixa escrito:
«Com efeito da prova produzida, nomeadamente das declarações credíveis do militar da GNR, corroboradas pelo representante da sociedade que descreveram a forma como os arguidos, anteriormente, entraram no local, a cabelagem, cobre e cabos que levaram e que passados dias voltaram a entrar pelo mesmo sitio que tinham rebentado anteriormente e já tinha reunidas as peças para serem levadas para a viatura; o Tribunal não teve assim duvidas de que foram os arguidos que se deslocaram ás instalações uma primeira vez, entre o dia 10 e o dia 28.4.2022 – período de tempo em que o legal representante não se deslocou ás instalações – e que foram reunindo os diversos bens que pretendiam furtar e seleccionando para transportar para a viatura e foram surpreendidos quando a GNR voltou a entrar nas instalações após a chegada do NAC para recolha de vestígios lofoscópicos. Aliás, são as regras da experiência que levam o Tribunal a concluir como concluiu».

Portanto, não foi devidamente feito o exame crítico da prova produzida integralmente em julgamento.
O que significa, aqui, recorrer às regras da experiência comum?
Ninguém assistiu à prática dos factos 1 a 5, nomeadamente as duas únicas testemunhas ouvidas.
Dois arguidos faltaram à audiência e o arguido BB não prestou declarações.
De que forma é que foi lançada mão da chamada prova indirecta[7]?
Sabendo nós que o recurso a tal prova indirecta exige adicional argumentação, onde ficou tal explanação nesta peça que agora se analisa?
Sabendo dois dos juízes que havia uma Colega que votou vencida por discordar da prova dos factos 1 a 5, não seria exigível que a relatora fosse especialmente cuidada nessa argumentação?
Quem acabou por explicar o apelo à prova indirecta foi a GNR, ao longo dos seus relatórios, e a Exmª Magistrada do MP que respondeu em 1ª instância – contudo, quem o deveria ter feito era o Colectivo que, sem dúvidas, pelo menos para uma maioria, não hesitou em condenar dois homens a penas efectivas de prisão.
*
Ainda se dirá que teria ficado melhor ao Colectivo explicitar, de forma mais desenvolvida, o contributo de cada um dos documentos enunciados para a prova dos factos.
Apenas se deixa escrito, de forma insuficientemente lapidar, que:
«(…) a convicção do Tribunal assentou, essencialmente (…) na análise da prova documental junta aos autos, nomeadamente[8]:
a. Auto de notícia de fls. 39 a 42;
b. Relatório tático fotográfico de fls. 43 a 46;
c. Relatório táctico de inspecção judiciária de fls. 47 a 48;
d. Relatório tático fotográfico de fls. 49 a 51;
e. Auto de revista e apreensão de fls. 52 a 53;
f. Auto de apreensão de fls. 54 a 55;
g. Auto de busca e apreensão de fls. 94 a 95;
h. Certidão permanente de fls. 120 a 126;
i. Pesquisa das bases de dados do registo automóvel de fls. 127;
j. 10[9]. Certificados de registo criminal de fls. 520 e ss;
k. Pesquisas das bases de dados da segurança social de fls. 172 a 174 e
l. Relatórios sociais de fls. 495 e ss, 505 e ss, 509 e ss»
Em que medida em que os documentos a. a i. contribuíram para a prova dos factos, nomeadamente os controvertidos 1 a 5?
Ignoramos.
*
Um último vício se detecta.
Denota-se que o Colectivo não descreveu correcta e integralmente nos factos 16 e 17 a totalidade das condenações criminais[10] de que foram alvo os dois arguidos.
Constatamos que no facto nº 16 falta a referência ao Pº 245/23...., constante do boletim nº 8 do arguido CC ….
E no facto nº 17, que saiu todo truncado, na digitalização apressada que foi feita, faltam imensas condenações, constando dele apenas 9, quando é certo que do CRC do arguido AA … constam 21 condenações (em 41 boletins).

3.1.2.3. Qual a sanção para estes vícios?
Estipula a lei que é a nulidade da sentença [artigo 379º, nº 1, alínea a) do CPP].
Equivale isto a dizer que a sentença incumpriu o dever de fazer o exame crítico de toda a prova produzida, não esquecendo a escalpelização da prova documental, como lhe ordena o normativo do nº 2 do artº 374º do CPP – tal, face ao disposto na al. a) do nº 1 do artº 379º do mesmo diploma legal, acarreta a sua nulidade e determina a prolação de nova decisão, expurgada do apontado vício [NÃO sendo caso de anulação do julgamento ou de aplicação do disposto no artigo 715º/1 do CPC e no artigo 379º/2, 2ª parte do CPP].
Tal nulidade é de conhecimento oficioso.
Urge, pois, colmatar as omissões detectadas e assinaladas, dali retirando as consequências jurídico-penais que se tiverem agora - ou futuramente, aquando a prolação do novo aresto - por convenientes.

3.1.2.4. Verificada a apontada nulidade, não pode a Relação substituir-se ao tribunal a quo e proceder ao seu suprimento, pois se assim fizesse estaria a negar-se o único grau de recurso de que o arguido dispõe, violando-se por essa via o duplo grau de jurisdição exigido pelo artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Deve, pois, o processo baixar de novo à 1.ª instância para que esta venha suprir as omissões assim detectadas e que são, em resumo:
1. Fazer uma mais rigorosa e completa análise crítica da prova produzida de forma a explicitar melhor a razão pela qual decidiu CONDENAR OS ARGUIDOS pela prática dos factos provados nºs 1 a 5, explicando se recorreu a prova indirecta e em que moldes;
2. Explicitar de que forma os documentos[11] que invoca na sua motivação contribuíram para a prova dos factos;
3. Descrever minuciosamente e de forma completa e legível os antecedentes criminais dos 3 arguidos.

3.2. Se assim é, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões aduzidas nos recursos (artigo 660º do CPC, ex vi artigo 4º do CPP).

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: 
· 1º - julgar improcedente a nulidade de acórdão invocada nos dois recursos intentados;
· 2º- anular o acórdão recorrido por razões não invocadas nos recursos, aresto esse que deverá ser substituído por outro que colmate as lacunas apontadas em 3.1.2.4., decidindo em conformidade.

Sem tributação.

Coimbra, 20 de Novembro de 2024
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)
Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Alexandra Guiné
Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro


[1] Os factos 15 e 20 referem-se ao 3º arguido, BB, não recorrente nos autos.
[2] Rezam assim os artigos 374º e 379º do CPP:



Artigo 374º
Requisitos da sentença




Artigo 379º
Nulidade da sentença





[3] Seguimos aqui muito de perto as sábias considerações de Manuel Aguiar Pereira no já aqui citado «Manual sobre Fundamentação dos actos judiciais», CEJ.
[4] “1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.
(..)”
[5] “A fundamentação das sentenças em processo penal”.
[6] Com a devida vénia, transcrevemos parte do Acórdão desta Relação, no Pº 770/08.8PBCBR.C1:


[7] Ela está sujeita à livre apreciação do tribunal, exige um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente plausíveis.
Doutrinou o Acórdão desta Relação de 25/11/2009 o seguinte:
«Nos casos de prova indirecta o que está em causa é «o tribunal inferir racionalmente a prova dos factos a partir da prova indirecta ou indiciária desde que seja seguido um processo dedutivo baseado na lógica e nas regras de experiência comum (recto critério humano e correcto raciocínio) – cf. Ac. R. Coimbra de 2008, proc. 495/002.
A prova indirecta, sendo um meio de prova absolutamente legítimo, pode ser livremente utilizada e valorada pelo Tribunal, em todas as circunstâncias que entender como útil à sua utilização, assumindo relevância específica em circunstâncias de défice da prova directa, seja por virtude de inexistência, seja pela sua debilidade valorativa.
Nesse sentido «a prova indirecta ou indiciária pode ser valorada preferencialmente pelo julgador e, só por si, conduzir à sua convicção, tal qual a prova directa», cf. Ac. RC 26.11.2008 proc. 341/06 in www.dgsi.pt.
Já nos referimos à prova indirecta em vários dos nossos arestos desta Relação, escritos desde 2009 a 2011.
Sabemos que fundamental em muitos casos da vida judiciária em que não é possível obter prova directa dos factos é a valoração da chamada “prova indirecta”.
Neste sentido: J. M. Asencio Mellado, in “Presunción de inocência em Matéria Criminal”, 1992: “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir, a todo o custo, a existência deste tipo de provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura”.
Entendemos, assim, que há que ultrapassar os rígidos cânones da valoração pelo julgador exclusivamente da prova directa, para atribuir à prova indirecta, indiciária ou por presunções judiciais o seu específico relevo nos casos de maior complexidade.
Mittermayer, in “Tratado de La Prueba em Matéria Criminal”, 1959, dizia já o seguinte: “…o talento investigador do Magistrado deve saber encontrar uma mina fecunda para o descobrimento da verdade no raciocínio, apoiado na experiência e nos procedimentos que adopta para o exame dos factos e das circunstâncias que se encadeiam e acompanham o crime. Estas circunstâncias são outras tantas testemunhas mudas, que a Providência parece ter colocado à volta do crime para fazer ressaltar a luz da sombra em que o criminoso se esforçou por ocultar o facto principal; são como um farol que ilumina o entendimento do juiz e o dirige até aos vestígios seguros que basta seguir para chegar à verdade”.
Por outro lado, há que afirmar que ao ser valorada a prova indiciária não se está a violar o princípio da presunção da inocência, uma vez que aquela valoração tem de ser objectivável, motivável e não arbitrária, baseada numa pluralidade de indícios.
Este entendimento, que já começou a ser seguido na jurisprudência nacional, tem sido defendido pela jurisprudência de Espanha, conforme os seguintes Ac do Tribunal Supremo de Espanha: Ac nº 190/2006, de 1 de Março de 2006; Ac nº 392/2006, de 6 de Abril de 2006; Ac nº 562/2006, de 11 de Maio de 2006; Ac nº 560/2006, de 19 de Maio de 2006; Ac nº 557/2006, de 22 de Maio de 2006; e Ac nº 970/2006, de 3 de Outubro de 2006 (ver todas estas referências in Revista Julgar, nº 2, 2007 – Euclides Dâmaso Simões – “Prova Indiciária).
A convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Por isso, resulta que, para respeitarmos os princípios da oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como opina o acórdão da Relação de Coimbra de 6 de Março de 2002 (C.J., ano XXVII, 2º, página 44), “quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Nesta parte, importa realçar que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos (prova directa), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este (prova indirecta ou indiciária).
A prova indirecta “…reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág. 289.
Como acentua o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996, “a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6º, tomo 4º, pág. 555.
No mesmo sentido veja-se o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1º, pág. 51.
Como já se disse, em matéria de apreciação da prova, o artigo 127º do C.P.P. dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Na expressão regras de experiência, incluem-se as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184).
Atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta para basear a convicção da entidade decidente sobre a existência ou não da situação de facto.
Como acentua Euclides Dâmaso, no seu artigo «Prova indiciária (contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente)», publicado na Revista Julgar, nº 2, 2007, «vale isto por dizer-se que a “prova indirecta, indiciária, circunstancial ou por presunções”, que alguns decisores por vezes (infelizmente raras e apenas em crimes contra as pessoas) meticulosa e exigentemente praticam sem claramente assumirem fazê-lo, tem que ganhar adequada relevância jurisprudencial e dogmática também entre nós. Sob pena de a Justiça não se compatibilizar com as exigências do seu tempo e de se agravar insuportavelmente o sentimento de impunidade face aos desafios criminosos de maior complexidade e desvalor ético-jurídico, mormente os “crimes de colarinho branco” em geral e a corrupção e o branqueamento em particular».
Prieto-Castro Y Fernandiz e Gutiérrez de Cabiedes opinam mesmo que «o indício apresenta grande importância no processo penal, já que nem sempre se têm à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, com o esforço lógico-jurídico intelectual necessário, antes que se gere impunidade».
Ana Brito, em brilhante artigo intitulado «A valoração da prova e a prova indirecta», publicado em e-book do CEJ («Da Prova Indirecta ou por Indícios», Julho de 2000), disserta sobre a figura da prova indirecta, resumindo muito do que atrás se escreveu:
«(…)
Nas lições escritas em 1975, Figueiredo Dias, realça a “deslocação do fulcro de compreensão do próprio direito das normas gerais e abstractas para as circunstâncias concretas do caso”. Ensina que livre apreciação significa ausência de critérios legais pré-fixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo”.
Não poderá tratar-se de uma convicção puramente subjectiva ou emocional. Curando-se sempre de uma convicção pessoal, ela é necessariamente objectivável e motivável. Esclarece ainda Figueiredo Dias que a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, resultado de um convencimento do juiz sobre a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.
(…)
Paulo Sousa Mendes adverte que “o julgador moderno tem, cada vez mais, de produzir abundante fundamentação dos seus juízos probatórios. Para o efeito ele faz apelo não só aos meios de prova científicos, mas também às chamadas regras da experiência”.
(…)
Como se sabe, a prova indiciária é aquela que permite a passagem do facto conhecido ao facto desconhecido. É neste campo que as regras da experiência se tornam necessárias, na medida em que ajudam à realização dessa passagem. Seja como for, a apreensão do facto principal terá, no final, de ser feita de um modo totalizante, pois o juiz historiador nunca pode perder de vista que lhe cabe fazer um juízo objectivo, concreto e atípico acerca do caso decidendo”.
O juiz terá sempre que “averiguar em que medida os factos concretos e individualizados do caso, confirmam ou infirmam aquelas inferências gerais, típicas e abstractas…
As regras da experiência, os critérios gerais, não serão aqui mais do que índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso – é assim em geral, em regra, mas sê-lo-á realmente no caso a julgar?” (aqui, Paulo de Sousa Mendes cita Castanheira Neves).
Revemo-nos nas conclusões deste autor, que são as seguintes: “as regras da experiência servem para produzir prova de primeira aparência, na medida em que desencadeiam presunções judiciais simples, naturais, de homem, de facto ou de experiência, que são aquelas que não são estabelecidas pela lei, mas se baseiam apenas na experiência de vida”. “Então, elas ficam sujeitas à livre apreciação do juiz”.
(…)
No acórdão do STJ, de 06/10/2010, relatado por Henriques Gaspar, afirma-se que “a verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais.”
Também no acórdão do TRL, de 13/02/2013, relatado por Carlos Almeida, se desenvolve: “Nas questões humanas não pode haver certezas… Também não se pode pensar que é possível, sem mais, descobrir “a verdade” (…). A reconstrução que o tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados irrepetíveis assenta essencialmente na utilização de raciocínios indutivos que, pela sua própria natureza, apenas propiciam conclusões prováveis. Mais ou menos prováveis, mas nunca conclusões necessárias como são as que resultam da utilização de raciocínios dedutivos, cujo campo de aplicação no domínio da prova é marginal. O cerne da prova penal assenta em juízos de probabilidade e a obtenção da verdade é, em rigor, um objectivo inalcançável, não tendo por isso o juiz fundamento racional para afirmar a certeza das suas convicções sobre os factos. A decisão de considerar provado um facto depende do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem. Esta exigência de confirmação impõe a definição de um “standard” de prova de natureza objectiva, que seja controlável por terceiros e que respeite as valorações da sociedade quanto ao risco de erro judicial, ou seja, que satisfaça o princípio in dubio pro reo”.
(…)
A prova indirecta determina especiais exigências de fundamentação.
Nas várias classificações das provas, a distinção mais importante segundo Taruffo, é a que distingue entre provas directas e indirectas.
Seguindo de perto este autor, a distinção assenta na conexão entre o facto objecto do processo “e o facto que constitui o objecto material e imediato do meio de prova”.
“Quando os dois enunciados têm que ver com o mesmo facto, as provas são directas”, pois incidem directamente sobre um facto principal.
“O enunciado acerca deste facto é o objecto imediato da prova”.
“Quando os meios de prova versam sobre um enunciado acerca de um facto diferente, acerca do qual se pode extrair razoavelmente uma inferência acerca de um facto relevante, então as provas são indirectas ou circunstanciais”.
Trata-se de uma distinção funcional que depende da conexão entre as provas e os factos
Indirectas podem ser quaisquer provas, obtidas por qualquer meio.
(…)
Cavaleiro Ferreira declara que a apreciação das provas indirectas pressupõe “grande capacidade e bom senso do julgador”, que “as complexas operações mentais que o manejo da prova indiciária implica exigem raras qualidades” E enumera: “inteligência clara e objectiva, experiência esclarecida, integridade de carácter, ausência de fácil ou emotiva impressionabilidade”.
(…)
Também Santos Cabral, em estudo sobre a prova indiciária e a sua valoração, conclui:
“As regras da experiência ou regras de vida como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou a reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte para efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes, a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa, ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária”.
(…)
Destaco dois pontos do sumário do acórdão STJ de 06/10/2010, relatado por Henriques Gaspar, que deve merecer leitura integral:
“O julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além de toda a dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada. Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras da experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões”».
[8] A enumeração com letras que se segue é da nossa autoria.
[9] Ignora-se o que significa tal «10».
[10] Esta omissão poderia configurar um vício de facto do artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP, facilmente corrigida pela Relação, nos termos dos artigos 426º, nº 1 e 431º, alínea a) do CPP – contudo, como vamos anular o acórdão, não chegamos à fase da impugnação de facto, o que não invalida que esta Relação, pedagogicamente, advirta a 1ª instância para a necessidade de, no futuro aresto, descrever minuciosamente cada condenação de que foram alvos os 3 arguidos.
[11] Claro que nos referimos aos seguintes: Auto de notícia de fls. 39 a 42; Relatório tático fotográfico de fls. 43 a 46;
Relatório táctico de inspecção judiciária de fls. 47 a 48; Relatório tático fotográfico de fls. 49 a 51; Auto de revista e apreensão de fls. 52 a 53; Auto de apreensão de fls. 54 a 55; Auto de busca e apreensão de fls. 94 a 95; Certidão permanente de fls. 120 a 126; Pesquisa das bases de dados do registo automóvel de fls. 127.