CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
LEGITIMIDADE PARA A CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
Sumário

I - No crime de falsificação de documento, a pessoa cuja assinatura tenha sido falsificada tem legitimidade para se constituir assistente no processo cujo objecto seja, ainda que em parte, a falsidade desse documento.
II - Mesmo se a intenção do agente não foi prejudicar o visado, a falsificação de uma acta com a inclusão do nome sempre pode pôr em causa, pelo menos, a reputação do visado.

Texto Integral

Relator: João Abrunhosa
Adjuntos: Maria José Guerra
Cândida Martinho

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por despacho de 27/05/2024, decidiu-se recusar a intervenção como Assistente de nos seguintes termos (sublinhados nossos):

“... Para que alguém seja admitido como assistente em processo penal depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

Legitimidade (artigo 68º do Código de Processo Penal e artigo 113º do Código Penal); Ter mandatário constituído ou patrono nomeado (artigo 70º do Código de Processo Penal);

Ter pago a taxa de justiça devida pela constituição de assistente, ou beneficiar de apoio judiciário;

Qualquer um dos requisitos é fundamentos para não ser admitido como assistente.

In casu o tipo penal, em investigação/denunciado, é o de falsificação de documento previsto no artigo 256º do Código Penal.

Como é consabido o crime de falsificação de documentos é um crime contra a confiança jurídica e sua relevância probatória no tráfego jurídico, que se insere no título subordinado à epígrafe «Dos crimes contra a vida em sociedade», possui natureza pública, não existindo norma especial que confira legitimidade ao ofendido para se constituir assistente, o que permite concluir por uma matriz essencialmente pública do crime.

Com efeito, o direito de punir é um direito exclusivo do Estado e por isso os particulares podem, nos termos que a lei determina, colaborar no exercício da acção penal pelo Ministério Público, mas não exercê-la como direito próprio.

No entanto, há neste crime, também uma protecção dos interesses particulares, se bem que não exclusivamente, são, pois, protegidos de modo directo pela incriminação, constituindo um dos objectos imediatos da incriminação.

No caso dos autos, a discussão é sobre a existência de uma acta de uma Assembleia Geral, em que o denunciante seria o presidente da mesa, e cujo conteúdo não será verdadeiro, tendo sido abusada a sua assinatura.

De acordo com a denúncia, tal acta permitiu que a Associação … se tivesse candidatado a uns subsídios e recebido os mesmos.

Importa saber se o aqui denunciante/requerente é, também, titular do interesse tutelado pelo crime que permita a sua constituição como assistente.

Neste aspecto não podemos deixar de observar o Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência nº1/2003 in DR, I Série A, de 27-02-2003, segundo o qual “No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do nº1 do artº 256º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente.”

Assim, segundo entendemos o Ac. FJ, poderão constituir-se assistentes as pessoas que tenham sido prejudicadas com a falsificação.

Dos factos coligidos nos autos, os eventuais prejudicados, foram os contribuintes que pagaram os impostos que deram origem à ao subsídio que a … auferiu, sendo que na eventual procedência da eventual acusação, a vantagem que o “agente” obteve foi o subsídio.

O Denunciante teve algum prejuízo, do ponto de vista penal?

Não nos parece. O documento indicado como sendo falsificado, é uma acta da AG da …, vincula a mesma, e não a pessoa que exercia as funções de presidente da AG, esse pessoa não poderá responder pela eventual devolução dos subsídios que possam, eventualmente, indevidamente auferidos.

Por tudo o exposto não se admite como assistente o denunciante ...”.


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Não se conformando, , interpôs recurso da referida decisão, … com as seguintes conclusões:

“... 1.º O presente recurso tem por objeto o Despacho proferido nos autos da não admissão do ofendido como assistente por falta de legitimidade, pelo facto de não advir qualquer prejuízo para o Recorrente.

2. Nos presentes autos averigua-se a existência de uma acta da Assembleia Geral … cujo conteúdo não será verdadeiro por ter sido abusada a assinatura do Recorrente, na qualidade de presidente da mesa, encontrando-se em investigação um eventual crime de falsificação de documento, p. e p. pela alínea a) do n.º 1 do art.º 256.º, do Código Penal

3. O Despacho Recorrido conclui, a final, que o Denunciante não teve qualquer prejuízo, pois que sendo o documento falsificado uma acta da “AG da …, vincula a mesma, e não a pessoa que exercia as funções de presidente da AG”, porque o mesmo “não poderá responder pela eventual devolução dos subsídios que possam, eventualmente, indevidamente auferidos.”

4. Para o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal “terá que haver possibilidade de o requerente ser prejudicado pelo facto, ou seja, se do documento poderia advir algum prejuízo para si, no sentido de formulação de um pedido de indemnização civil, o que determina uma interpretação restritiva do conceito de assistente.”.

6. O ofendido é, assim, o titular do interesse especialmente protegido pelo tipo legal do crime, isto é, a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo legal preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico penal por aquela violado ou posto em perigo.

7. Esse Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11/08/2023, é perfeitamente esclarecedor do alcance do prejuízo sofrido pelo ofendido:

”A tutela do artigo 256.º do C.Penal não se esgota na segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental em geral, protege igualmente o direito de cada pessoa, singular ou coletiva, de não ver a sua assinatura abusada por outrem, de não ver inseridos em documentos juridicamente relevantes a ela respeitantes” .

“Até porque o prejuízo e o benefício visados com o crime de falsificação, não tem necessariamente de ser de índole económica, podendo ser de ordem moral.”

8. A apropriação ilícita da identidade do Recorrente configurada na falsificação da sua assinatura na acta da Assembleia Geral …, de uma forma abusiva e fraudulenta, causa um dano no bom nome, honra e credibilidade do Ofendido, representando um prejuízo moral evidente.

9. Deste modo, o Recorrente deve ser considerado ofendido, enquanto titular de interesses que a lei também quis especialmente proteger com a incriminação em causa nestes autos, tendo, por conseguinte, legitimidade para se constituir assistente.


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O Exm.º Sr. Juiz sustentou a decisão.

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A Exm.ª Magistrada do MP[1] respondeu ao recurso, …

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Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, …

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É pacífica a jurisprudência do STJ[2] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[3], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que a única questão fundamental a decidir no presente recurso é a seguinte:

No caso do crime de falsificação de documentos investigado nos autos principais, pode o Recorrente ser admitido a intervir como assistente?


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Cumpre decidir.

Importa vincar “... que o direito do ofendido pela infracção criminal se constituir assistente representava uma via de realizar a garantia do acesso à via judiciária desse ofendido (cfr. Acórdão nº  690/98, publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Março de 1999) ...”[4].

E que, “... a recente evolução do entendimento sobre o papel da vítima no processo criminal - nomeadamente no âmbito dos direitos que lhe são constitucionalmente garantidos - não permite mais ignorar que ela «deixou de ser espectadora passiva do desenrolar da política criminal; em muito poucos anos ganhou um intensificado protagonismo», sendo certo que «a clássica relação bipolar Estado-delinquente tornou-se tripolar: Estado-delinquente-vítima», pelo que «a nova dimensão vitimológica ocupa os legisladores e os criminologistas» (Mário Raposo, A vítima e a nova política criminal, Boletim do Ministério da Justiça, nº 366, Maio de 1987, pág. 5).

Essa evolução viria a densificar-se, na revisão constitucional de 1997, no novo nº 7 do artigo 32º da Constituição, segundo o qual «o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei», assim complementando o nº 1 do artigo 20º da mesma Lei Fundamental, que assegura o acesso aos tribunais para defesa, não apenas dos direitos, mas também dos «interesses legalmente protegidos».

Ora, a remissão para a lei, constante do nº 7 do artigo 32º, sendo compreensível, tendo em conta a particular ordenação do processo penal e as suas especiais características, não pode ser interpretada como permitindo privar o ofendido daqueles poderes processuais que se revelam decisivos para a defesa dos seus interesses - o poder de acusar e o poder de recorrer da sentença absolutória ou da sentença que entenda não fazer actuar o poder punitivo do Estado de forma minimamente satisfatória. ...”[5].

“... Segundo o aludido Ac. STJ 1/2003 (seguiu a posição do citado Ac. STJ de 29 de Março de 2000 e referencia abundantes elementos doutrinários e jurisprudenciais), «No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente».

De acordo com o mesmo Acórdão o vocábulo especialmente usado na lei [al. a), do n.º 1. do artigo 68.° C.P.P.] significa particular e não exclusivo.

Tem-se verificado um alargamento jurisprudencial sobre a questão da legitimidade para a constituição de assistente (sobre a evolução doutrinária e jurisprudencial do conceito de ofendido, v. Ac. STJ 10/2010, abaixo sumariado). ...”[6].

“... § 14 Não obstante, cremos estar hoje estabilizado na jurisprudência comum o entendimento de que nem por o bem jurídico protegido em certa incriminação transcender o singular se poderá concluir, sem mais, que uma concreta pessoa não possa ser considerada "ofendida" por referência a crime daquela natureza. Determinante é que aquele bem supraindividual se possa encabeçar, digamos assim, numa pessoa concreta; ou dito do avesso, necessário é que se demonstre no caso concreto que a mancha de danosidade que a incriminação quer típica- mente esconjurar tenha atingido ou intendesse atingir pessoa concreta. Essa é de resto a lição que se pode retirar do já significativo acervo de jurisprudência fixada pelo STJ: acs. STJ/FJ 1/2003 (falsificação de documento), 8/2006 x (denúncia caluniosa) e 10/2010 (desobediência qualificada) e que tem o seu referente dogmático em JORGE DE FIGUEIREDO DIAS/ANABELA RODRIGUES (1989, p. 105 ss.) e hoje com larga aceitação na melhor doutrina - cf. AUGUSTO SILVA DIAS (2004, p. 57 ss., e 2008, p. 236 ss.), MARIA JOÃO ANTUNES (2016, p. 49 e 5.), FREDERICO COSTA PINTO (2001, p. 699, n. 17), PAULO SOUSA MENDES (2015, p. 134), SUSANA AIRES DE SOUSA (2019, p. 29 ss.), neste último caso com especial interesse no âmbito dos delitos societários. Uma interpretação que, por sobre nos parecer mais acertada do ponto de vista dogmático, melhor se abre ao valor da solidariedade a que o processo penal, a respeito do ofendido/vítima, não deve ser refratário (cf. CLAUDIA SANTOS, 2010, p. 1151 ss.) ...”[7].

Nos termos do AFJ referido, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente, tem legitimidade para se constituir assistente, no caso de procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento.

Importa ter em conta que o dano pode ser patrimonial ou não patrimonial, conforme seja ou não susceptível de avaliação pecuniária (art.º 496º do CC[8]), pelo que o dano não patrimonial é, necessariamente, um prejuízo.

A acta em causa terá sido falsificada para solicitar um subsídio. A inclusão da assinatura do Requerente nessa acta, a não ser descoberta a falsidade, poria em causa, pelo menos, a sua reputação, sendo esta ofensa à honra um dano indemnizável e, portanto, um prejuízo.

Poder-se-ia dizer que intenção do agente seria obter o subsídio em causa e não prejudicar o Recorrente, mas tinha que saber que poria, necessariamente, em causa a reputação do Recorrente, pelo que agiria em relação a este com “dolo necessário”.

Concluímos, assim, que a pessoa cuja assinatura tenha sido falsificada num determinado documento, tem sempre, pelo menos, um dano reputacional, pelo que tem legitimidade para se constituir assistente no processo cujo objecto seja, ainda que em parte, a falsidade desse documento.

Procede, pois, o recurso.


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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos provido o recurso e, consequentemente, revogamos o despacho recorrido e determinamos que seja substituído por outro que admita o Recorrente a intervir como assistente.

Sem custas.


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Notifique.

D.N.


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(Elaborado em computador e integralmente revisto pelo subscritor (art.º 94º/2 do CPP).

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[1] Ministério Público.
[2] Supremo Tribunal de Justiça.
[3]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[4] Acórdão 325/2006 do TC, de 29-06-2006, relatado por Bravo Serra.
[5] Luís Nunes de Almeida, em declaração de voto no acórdão do TC 205/2001, de 09-05-2021.
[6] Vinício Ribeiro, in “CPP Notas e Comentários”, 3ª ed., 2020, Quid Juris – Sociedade Editora”, págs. 121.
[7] Pedro Soares Albergaria, in “Comentário Judiciário do CPP”, T. I, 2ª ed., 2022, Almedina, pág. 819.
[8] Código Civil.