I – O cumprimento do dever de colaboração previsto no art. 83º do CIRE tem como pressuposto que o devedor insolvente preste ao administrador da insolvência, à assembleia de credores, à comissão de credores e ao tribunal, quando estes lhe solicitem informação relevante para o processo, informação integral e verdadeira.
II - O preenchimento da presunção de culpa prevista na alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE depende da verificação de três requisitos objetivos: i) o incumprimento, por ação ou omissão, dos deveres de apresentação e colaboração; ii) a reiteração; iii) o limite temporal do incumprimento, durante o processo de insolvência até à emissão do parecer a que se reporta o art. 188, n.º 6, do CIRE.
III – O incumprimento do dever de colaboração tem que ser havido como reiterado se o requerido, gerente da insolvente, estando ciente da obrigação que tinha de entregar a documentação referida no art. 24º do CIRE, na sequência de duas notificações feitas pelo tribunal e de um email remetido pelo administrador da insolvência, não entregou qualquer elemento contabilístico ao longo de um período de cerca de três meses compreendido entre a declaração de insolvência e a emissão do parecer previsto no art. 188º, nº 6 do CIRE.
IV - As inibições previstas no art. 189º, nº 2, als. b) e c) do CIRE não constituem uma incapacidade em sentido técnico, mas sim uma incompatibilidade resultante do estado de insolvência culposa. O seu fundamento é a defesa geral da credibilidade do comércio que poderia ser posta em causa se os cargos aí referidos fossem ocupados por pessoas reconhecidamente culpadas de insolvência.
V - Essas inibições apresentam uma vertente preventiva (porque se destinam a proteger terceiros que poderiam ver os seus patrimónios prejudicados pela atuação de pessoa que não oferece a confiança necessária), mas também sancionatória.
VI - O período dessas inibições deve ser graduado em função da gravidade do comportamento das pessoas em causa e da sua relevância na verificação da situação de insolvência, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e a moldura abstrata de inibição prevista pelo legislador.
Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 4
Apelação
Recorrente: AA
Recorrido: Min. Público
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Raquel Lima e Alberto Taveira
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
O Min. Público promoveu a abertura do incidente de qualificação da insolvência e apresentou parecer propondo a qualificação da insolvência de “A..., Unipessoal, Lda.” como culposa e a afetação do gerente AA.
O Sr. Administrador da Insolvência apresentou o parecer a que alude o disposto no artº 188º, nº 6, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [doravante CIRE], propondo a qualificação da insolvência de “A..., Unipessoal, Lda.” como culposa e a afetação do gerente AA.
O requerido apresentou oposição, propondo a qualificação da insolvência como fortuita.
Realizou-se audiência de julgamento com observância do formalismo legal.
Foi depois proferida sentença que:
a) Qualificou como culposa a insolvência de “A..., Unipessoal, Lda.”, declarando afetado pela mesma AA;
b) Fixou em 7 anos o período da sua inibição para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa e em igual período a inibição do requerido para administrar patrimónios de terceiros;
c) Determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e condenou-o na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
d) Condenou, ainda, o requerido AA a pagar aos credores o montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência nos termos do art. 129º do CIRE, que não forem pagos pelo produto da liquidação do ativo, até às forças do seu património.
Inconformado com o decidido, interpôs recurso o requerido AA que finalizou as suas alegações com as seguintes – e muito extensas - conclusões:
ERRO DE JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
a) Do Facto provado F
1. O facto provado F., bem como, a sua fundamentação, não correspondem à verdade material, nem tão pouco à prova produzida nos presentes Autos.
2. Não existe Confissão (nos termos e para os efeitos dos artigos 463º do CPC e 358º do CC) dos factos ali vertidos, pelo Recorrente, em sede de Audiência e discussão de Julgamento – vide ata, datada de 05-07-2024, com a referência Citius nº 461801129.
3. No depoimento do Recorrente não foi “confessado” “de forma clara” os factos vertidos no ponto F. dos factos provados.
4. O Recorrente demonstrou sérias dificuldades em se recordar dos e-mails do Administrador da Insolvência, datados de 20/12/2023 – vide Depoimento de AA; 05/07/2024, das 11:03 às 11:25; 03:41 a 05:29; 09:56 a 10:30; 17:32 a 18:2026.
5. Pelo contrário, o Recorrente indicou que os e-mails de 20/12/2023 se encontravam junto com o e-mail de 24/01/2024, na caixa de SPAM do seu email – vide depoimento de AA; 05/07/2024, das 11:03 às 11:25; 19:07 a 19:21.
6. Só tendo o Recorrente tido conhecimento do seu teor a 19/02/2024 – vide Doc. 6 junto com a oposição e artigos 25º a 36º da oposição.
7. Factualidade que corresponde ao constante no Doc. 6 junto com a oposição (documento que não viu a sua reprodução mecânica impugnada), onde consta a data em que chegou ao conhecimento do Recorrente (19/02/2024) e que existem “3” emails por ler.
8. Assim, torna-se claro que existe erro de julgamento da matéria de facto quando se dá como provado que o Recorrente “teve conhecimento pelo menos em finais de janeiro de 2024” dos emails de 20/12/2023.
9. Mesmo que se entendesse que no final de janeiro o Recorrente tinha tido conhecimento dos e-mails de 20/12/2023 (o que se repugna - sic), tal comunicação é omissa quanto à forma de entrega dos documentos.
10. Ou seja, não permite ao destinatário inteligir a forma de entrega dos documentos solicitados, provocando uma inércia que apenas se pode responsabilizar o declarante que subscreve o email.
11. Por força do artigo 665º do CPC, com base no depoimento do Recorrente e no Doc. 6 junto com a oposição, deve o Tribunal ad quem dar como provado:
«O senhor Administrador da Insolvência enviou email ao gerente da insolvente, AA, a 20 de dezembro de 2023, solicitando a entrega dos documentos a que se refere o art. 24º, nº 1 do CIRE, de que este teve apenas conhecimento a 19/02/2024».
b) Do facto provado I.
12. Substituindo o Tribunal ad quem a decisão pelo facto provado F. supra proposto, cai por terra o facto provado que aqui se impugna.
13. O Recorrente, no seu email de 15/12/2023 – vide Doc. 1 junto com o requerimento inicial de qualificação –, coloca-se à disposição para colaborar com Administrador da Insolvência, fornecendo o seu contacto pessoal, demonstrando intenção em colaborar.
14. No entanto, o Sr. Administrador nunca entrou em contacto telefónico com o aqui Recorrente.
15. Pelo contrário, o Recorrente provou, mediante prova documental, que tentou estabelecer contacto com o Administrador da Insolvência, no entanto, este não atendeu ou retornou as tentativas de contacto do Recorrente – vide Doc. 7 junto com a oposição.
16. Tal comportamento demonstra que o Recorrente tinha intenção (e tentou) de colaborar.
17. O Recorrente deu ordens e instruções aos serviços de contabilidade para colaborarem com o Administrador da Insolvência, tendo estes serviços tentado o contacto telefónico com o Administrador – Depoimento de BB, no dia 05-06-2024, pelas 11:44 às 11:54, 02:40 a 04:4627.
18. Na pendência do processo de insolvência, o Recorrente entregou dois veículos que faziam parte do património da Insolvente – vide Doc. 4 e 5 juntos com a oposição.
19. Tal comportamento demonstra que o Recorrente tinha intenção de colaborar e de facto colaborou, sendo falso que o Recorrente se tenha limitado a responder com silêncio.
20. Por força do artigo 665º do CPC, com base no depoimento de BB, nos Doc. 4, 5 e 7 junto com oposição e no Doc. 1 junto com o Requerimento Inicial de Qualificação, deve o Tribunal ad quem dar como não provado o Ponto I. dos Factos provados.
c) Do Facto provado J.
21. O facto provado J., afronta, de forma incompreensível, a prova constante nos presentes Autos, nomeadamente que o Recorrente representou, quis e conseguiu obstar a que o Administrador da Insolvência “encetasse, com êxito, a localização e apreensão de bens”
22. No Doc. 1 junto com o Requerimento Inicial de Qualificação, o Recorrente indicou a localização do veículo com a matrícula ..-SL-.. e comprometeu-se a promover todas as diligências para a sua entrega.
23. O Doc. 4 junto com a oposição, demonstra que o Recorrente efetivamente entregou aquele veículo, no dia 08/02/2024, à pessoa indicada pelo Administrador de Insolvência para tomar posse do mesmo.
24. O Doc. 5 junto com oposição, demonstra que o Recorrente entregou, ao credor Banco 1..., o veículo da marca Mercedes com a matrícula ..-NB-.., no dia 22/02/2024.
25. Assim, o Tribunal a quo cometeu erro de julgamento da matéria de facto, ao dar como provado que o Recorrente obstou (como representou, quis e conseguiu) à localização e entrega dos bens da sociedade insolvente, isto porque, na pendência do processo de insolvência, o Recorrente tudo fez para que os mesmos fossem entregues.
26. Mediante o depoimento do Recorrente, é impossível ao julgador determinar, que o mesmo detinha motivações dolosas para a sua atuação, pelo contrário, fica bastante patente que a vontade do agente estava centrada na cooperação com o Administrador da Insolvência, sendo impossível inferir a factualidade descrita no ponto J. dos factos provados.
27. Por força do artigo 665º do CPC, com base no depoimento do Recorrido e da testemunha BB, nos Doc. 4, 5 e 7 junto com a oposição e o Doc. 1 junto com o Requerimento Inicial de Qualificação, deve o Tribunal ad quem dar como não provado o Ponto J. dos Factos provados.
d) Da Disponibilidade para colaborar do Recorrente, no email datado de 15/12/2023
28. O Doc. 1, junto com o Requerimento Inicial de Qualificação, especificamente no email do Recorrente, datado de 15/12/2023, demonstra que o Recorrente se disponibilizou para colaborar com o Administrador de Insolvência.
29. O documento foi junto pelo AI, tendo o mesmo confirmado a sua receção, não foi impugnado pelo Recorrente, tendo o mesmo confirmado que o enviou.
30. Tal facto deveria ter sido considerado como provado, pois demonstra vontade de colaborar, por parte do Recorrente.
31. Tal vontade é fundamental para a determinação da culpa na insolvência da sociedade insolvente, que, por sua vez, é fundamental para determinar se o Recorrente será afetado pela qualificação – vide Marco Carvalho Gonçalves; “processo de insolvência e processos pré-insolvenciais”; edições almedina; 2023; páginas 596 e 575.
32. Por força do artigo 665º do CPC, com base no depoimento do Recorrente e no Doc. 1 junto com o Requerimento Inicial de Qualificação, deve o Tribunal ad quem dar como provado: «No dia 15/12/2023, em resposta à missiva do administrador de insolvência datada de 21/11/2023, AA enviou um e-mail ao Administrador da Insolvência, onde expressou a sua disponibilidade para colaborar com aquele».
e) Do facto de o Recorrente ter tentado entrar em contacto com o AI
33. O Doc. 7 junto com a oposição, bem como, o depoimento do Recorrente – depoimento de AA; 05/07/2024, das 11:03 às 11:25; 11:18 a 11:23 – demonstra que o Recorrente tentou contato telefónico com o Administrador da Insolvência.
34. Tal facto deveria ter sido considerado como provado, pois demonstra vontade de colaborar, por parte do Recorrente.
35. Por força do artigo 665º do CPC, com base no depoimento do Recorrente e no Doc. 7 junto com a oposição, deve o Tribunal ad quem dar como provado:
«Nos dias 15/01/2024 e 17/01/2024, AA tentou entrar em contacto com o Administrador da Insolvência, por via telefónica, no entanto, as suas chamadas não foram atendidas, nem retribuídas».
f) Da depressão clínica do Recorrente
36. O Doc. 3 junto com a oposição, bem como, o depoimento do Recorrente, demonstram que o Recorrente sofria de uma depressão clínica na pendência do processo de insolvência.
37. Tal facto é fundamental para inteligir o grau de culpa do agente, bem como, determinar a sanção/inibição a aplicar ao afetado pela qualificação, sendo, assim, essencial para a boa decisão da causa.
38. Por força do artigo 665º do CPC, com base no depoimento do Recorrente e no Doc. 3 junto com a oposição, deve o Tribunal ad quem dar como provado:
«Na pendência do processo de insolvência, AA sofria de uma depressão clínica».
g) Os emails de 20/12/2023, enviados pelo Administrador, encontravam-se, por ler, na caixa de SPAM do email do afetado
39. O Doc. 6 junto com a oposição, bem como, o depoimento do Recorrente – depoimento de AA; 05/07/2024, das 11:03 às 11:25; 19:07 a 19:21 – demonstram que os emails de 20/12/2023 encontravam-se, por ler, na caixa de SPAM do email do Recorrente.
40. O facto, que se pretende ver como provado, demonstra que o Recorrente não teve qualquer culpa por não ter tido conhecimento do conteúdo dos e-mails enviados pelo Administrador em 20/12/2023.
41. Por força do artigo 665º do CPC, com base no depoimento do Recorrente e no Doc. 6 junto com a oposição, deve o Tribunal ad quem dar como provado:
«Os emails de 20/12/2023, enviados pelo Administrador da Insolvência, encontravam-se, por ler, na caixa de SPAM do email de AA».
h) Da entrega, pelo Recorrente, do património da sociedade Insolvente
42. Na pendência dos presentes Autos, o Recorrente entregou dois móveis sujeitos a registo: um ao Credor Banco 1..., o veículo Mercedes com a matrícula ..-NB-.. e outro, matrícula ..-SL-.. à denominada “B...”, que o recolheu em nome do Administrador da Insolvência – vide Doc. 4 e 5 juntos com a oposição e artigos 14º a 24º da oposição.
43. O facto, que se pretende ver como provado, demonstra que o Recorrente nunca quis ou conseguiu ocultar património da sociedade insolvente, tendo, pelo contrário, colaborado com o Administrador na localização e entrega dos bens.
44. Essa colaboração é o elemento fundamental para a determinação da culpa na insolvência da sociedade insolvente, que, por sua vez, é fundamental para determinar se o Recorrente será afetado pela qualificação.
45. Por força do artigo 665º do CPC, com base nos Doc. 4 e 5 juntos com a oposição, deve o Tribunal ad quem dar como provado: «O Recorrente entregou, na pendência do processo de Insolvência, dois veículos, com as matrículas ..-SL-.. e ..-NB-.., propriedade da sociedade Insolvente, ao Administrador da Insolvência e ao Credor com reserva de propriedade».
III-DO ERRO DE JULGAMENTO DA MATÉRIA DE DIREITO
46. Em sede de Incidente de Qualificação, a culpa do devedor ou dos seus administradores decorre de um juízo de censurabilidade, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhes seja dirigida essa censura – vide Maria do Rosário Epifânio, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda e Marco Carvalho Gonçalves.
47. Sendo que a censurabilidade da conduta é uma apreciação de desvalor que resulta do reconhecimento de que o devedor, ou os seus administradores, nas circunstâncias concretas em que atuaram, podiam ter conformado a sua conduta de molde a evitar a queda do primeiro na situação de insolvência ou agravamento do estado correspondente - AcTrCoimbra proferido no âmbito do processo 2273/10.1TBLRA-B.C1, datado de 07/02/2012, em que foi relator HENRIQUE ANTUNES.
48. No caso da alínea i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, não basta uma simples recusa (expressa, tácita ou implícita), pois a lei exige um incumprimento reiterado - Marco Carvalho Gonçalves, pp. 585.
49. Bem como, a falta de colaboração pode não resultar de um simples alheamento do processo, de desinteresse ou negligência, mas antes da intenção deliberada de não concorrer para o conhecimento de factos anteriores ao início do processo de insolvência que levariam à qualificação da insolvência como culposa, à luz de qualquer das restantes previsões - Tribunal Constitucional, acórdão proferido no âmbito do processo nº 651/11.
50. Pese embora tenha sido imputada ao Recorrente o preenchimento das als. a) e d) do nº 2 do art. 186º do CIRE, o Tribunal a quo entendeu que não se provou qualquer factualidade que preencha estas alíneas, não existindo, assim, qualquer conexão entre as omissões do recorrente e uma tentativa de encobrir uma ação dolosa para com a sociedade insolvente
51. In Casu, entendemos que não foi corretamente avaliado, por parte do Tribunal a quo, o preenchimento da alínea i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
52. A omissão do Recorrente não pode ser considerada um ato doloso, pois não é imputável, ao homem médio, a verificação da caixa de SPAM do seu Email, sendo essa caixa um local onde vão parar milhares de emails comerciais, sem qualquer interesse para o destinatário, como é o local onde vão parar emails que são uma ameaça para o destinatário - CC; “Burlas Informáticas: Modos de Manifestação”.
53. Vários autores o têm defendido que, em sede administrativa, o destinatário pode provar que o sistema tenha impedido a correta receção, designadamente pelos sistemas de filtragem de spam, elidindo assim a presunção de receção do e-mail da Autoridade Administrativa - DD; “O regime das notificações da Administração Eletrónica - As garantias dos Administrados e o exemplo prático da Autoridade Tributária”.
54. O email do Administrador da Insolvência não contem um sistema de confirmação de receção e leitura dos e-mails enviados.
55. Acresce que o Recorrente, em email datado de 15/12/2023, entrou em contacto com o Administrador com o fito de colaborar com este, tentou contacto telefónico e deu ordens para colaborar com o Administrador.
56. Tais comportamentos desviam-se do tipificado na alínea i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
57. O Recorrente não teve acesso aos e-mails de 20/12/2023, só tendo tido conhecimento deles a 19/02/2024 (após a notificação para o presente incidente de qualificação).
58. Bem como, não ficou provado que o Recorrente ocultar factos anteriores ao início do processo de insolvência, que levariam à qualificação da insolvência como culposa, à luz do nº 2 do art. 186º do CIRE.
59. Em consequência, não pode ser censurável o agente que omite a entrega de documentos, que desconhece os pedidos que lhe eram efetuados.
60. Erra, a decisão recorrida, quando entende que o Recorrente reitera a omissão de colaboração.
61. Acontece que, as duas primeiras situações elencadas, violam o princípio da utilização da linguagem simples e clara, consagrado no artigo 9º-A do CPC, não sendo estas suficientemente claras para que a parte, diretamente notificada, possa compreender o seu teor.
62. De referir ainda, que a jurisprudência tenha entendido que essa falta de colaboração reiterada é perante comunicações do próprio Administrador - ACTRGuimarães, proferido no âmbito do processo nº 4352/20.8T8VNF-G.G1; em que foi relator GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES.
63. Na pendência da 3ª situação, tentou entrar em contacto com o Administrador da Insolvência para colaborar com este – vide Doc. 7 junto com a oposição.
64. Não existindo, assim, uma omissão reiterada de colaboração por parte do Recorrente.
65. Por fim, a participação do Recorrente na entrega dos bens da sociedade insolvente, ao representante do Administrador da Insolvência e ao Credor com garantia real, afasta, de forma cabal o preenchimento da alínea i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
66. Pelo contrário demonstra que existe uma colaboração, por parte do Recorrente – vide Doc. 4 e 5 juntos com a oposição.
67. Por todo o supra exposto, entendemos que o Tribunal a quo cometeu erro de julgamento da matéria de Direito, isto porque, o silogismo judiciário, efetuado pelo julgador, encontra-se inquinado pelo julgamento errado, do sentido e alcance de «falta de cooperação reiterada» previsto na alínea i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
68. Tendo em conta a regra da substituição ao Tribunal recorrido (665º do CPC), pelo Tribunal ad quem, deve V. Exas. substituir a decisão recorrida, considerando que a conduta do gerente AA não era passível de preencher a alínea i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE e, em consequência, considerar como fortuita a Insolvência da sociedade A... UNIPESSOAL, Lda.
Caso assim não se entenda, o que se repugna [sic], mas alega por mero dever de patrocínio,
69. A Sentença recorrida não determina de forma correta o grau de culpa do agente, entendendo que o Recorrente atua com culpa grave, devendo ser inibido, dos atos constantes no artigo 189º nº 2 alínea b) e c) do CIRE, pelo período de 7 anos.
70. Acontece que, é falso que o Recorrente nunca tenha prestado colaboração com o Administrador da Insolvência – vide Doc. 1 junto com o Requerimento Inicial de Qualificação, Doc. 4, 5, 6 e 7 da oposição.
71. Mesmo que se entenda que a colaboração prestada pelo Recorrente foi insuficiente (o que se repugna - sic), ela não foi inexistente.
72. As inibições decretadas mostram-se desproporcionais, tendo em conta alegadas omissões do Recorrente, bem como a colaboração efetivamente prestada por este.
73. Esta inibição apresenta uma dupla faceta preventiva e sancionatória, sendo que, a doutrina tem entendido que o juiz deverá ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento, no momento da sua decretação - professora Rosário Epifânio e Marco Carvalho Gonçalves.
74. A inibição decretada ao Recorrente fere os princípios de proporcionalidade e necessidade, que pautam as decisões judiciais, na procura de proteger o património de terceiros (veja-se que o Recorrente colaborou na entrega do património da sociedade insolvente), bem como, na procura de sancionar o Recorrente (veja-se que a ação do Recorrente não é dolosa, nenhum prejuízo patrimonial foi causado à agora massa insolvente, nem os credores foram depauperados).
75. Se o fito do processo de insolvência é a satisfação dos credores – vide artigo 1º nº 1 do CIRE – e se a sua satisfação em nada foi prejudicada pelas alegadas omissões do Recorrente, é ininteligível a necessidade de aplicação de sanção.
76. O Recorrente, na pendência do processo de insolvência, padecia de uma depressão Clínica, não podendo as suas ações serem valoradas da mesma forma que um homem médio, mas de um individuo que sofre de um transtorno psíquico passageiro.
77. O julgador, por força do Ac. nº 173/2009 do Tribunal Constitucional, não está obrigado, mesmo perante a qualificação da insolvência como culposa, a decretar a inibição do administrador da sociedade.
78. Tendo em conta a regra da substituição ao Tribunal recorrido (665º do CPC), pelo Tribunal ad quem, devem V. Exas. revogar decisão recorrida, no que concerne à inibição, do gerente AA, por um período 7 (sete) anos, para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa e em igual período a inibição do requerido para administrar patrimónios de terceiros.
Caso assim não se entenda, o que se repugna [sic],
79. Mesmo que se admitisse a necessidade de uma inibição para sancionar o Recorrente e prevenir o património de terceiros, no respeito pelo princípio da proporcionalidade e da necessidade, que deve pautar as decisões dos Tribunais, a inibição, in casu, jamais poderia ser superior ao mínimo estabelecido pelo artigo 189º nº 2 alínea b) do CIRE, ou seja, 2 anos.
Pretende assim que a insolvência seja qualificada como fortuita.
O Min. Público apresentou resposta ao recurso, pugnando pela confirmação do decidido.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Cumpre então apreciar e decidir.
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
I – Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
II – Qualificação da insolvência como culposa com referência ao art. 186º, nº 1, al. i) do CIRE;
III – Medida das inibições previstas no art. 189º, nº 2, als. b) e c) do CIRE.
A. “A..., Unipessoal, L.da”, titular do NIPC ..., é uma sociedade comercial dedicada a atividades de consultoria para os negócios e a gestão; outras atividades educativas e atividades das sedes sociais, sendo este o seu objeto.
B. Constituída em agosto de 2013, com capital social de 250,00 euros, teve como único sócio, AA, que desde sempre assumiu a gerência da mesma, definindo e concretizando toda estratégia empresarial, comercial, contabilística e fiscal daquela, passando por ele a responsabilidade de contratar, exercendo e cumprindo as obrigações gerados pelos convénios que, em nome e no interesse da insolvente, outorgava.
C. A presente insolvência foi declarada por sentença proferida a 30.10.2023, após petição inicial apresentada pela credora “C..., S.A.” a 27/7/2023.
D. O gerente da insolvente, AA, foi citado para o processo de insolvência por carta enviada a 1/8/2023, da qual constava a advertência “de que os documentos previstos no nº 1 do artº 24º do CIRE, devem estar prontos a ser imediatamente entregues ao administrador nomeado, caso a insolvência venha a ser decretada”, constando descrição de quais são, em concreto, esses documentos.
E. O gerente da insolvente, AA, foi notificado pelo tribunal a 31/10/2023 da sentença que declarou a insolvência, tendo-lhe sido solicitados, para entrega imediata ao administrador da insolvência, os documentos referidos no art.º 24º, n.º 1, do CIRE.
F. O senhor Administrador da Insolvência enviou email ao gerente da insolvente, AA, a 20 de dezembro de 2023, solicitando a entrega dos documentos a que se refere o art. 24º, nº 1 do CIRE, de que este teve conhecimento pelo menos em finais de janeiro de 2024.
G. Não tendo obtido resposta.
H. AA sabia que devia fornecer ao senhor Administrador da Insolvência todas as informações por este solicitadas e a cooperar com o mesmo, sempre que para tanto fosse instado.
I. Todavia, decidiu, perante as sucessivas interpelações da administração da insolvência, responder com silêncio, renovando tal resolução à medida que os pedidos iam sendo formulados.
J. Desse jeito, obstou, como representou, quis e conseguiu, que o senhor Administrador da Insolvência diagnosticasse as causas inerentes à insolvência e, de igual modo, encetasse, com êxito, a localização e apreensão de bens.
K. Após a sua nomeação, o senhor Administrador da Insolvência enviou carta registada com aviso de receção ao gerente da insolvente, AA, solicitando a entrega da documentação referida no n.º 1 do artigo 24.º do CIRE.
L. Tal expediente postal, foi devolvido com a menção «objecto não reclamado».
I – Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto
1. O requerido AA no recurso que interpôs do decidido em 1ª Instância insurgiu-se, em primeira linha, contra a decisão relativa à matéria de facto, tendo impugnado as alíneas F), I) e J) da factualidade assente, cuja redação é a seguinte:
“F. O senhor Administrador da Insolvência enviou email ao gerente da insolvente, AA, a 20 de dezembro de 2023, solicitando a entrega dos documentos a que se refere o art. 24º, nº 1 do CIRE, de que este teve conhecimento pelo menos em finais de janeiro de 2024.
I. Todavia, decidiu, perante as sucessivas interpelações da administração da insolvência, responder com silêncio, renovando tal resolução à medida que os pedidos iam sendo formulados.
J. Desse jeito, obstou, como representou, quis e conseguiu, que o senhor Administrador da Insolvência diagnosticasse as causas inerentes à insolvência e, de igual modo, encetasse, com êxito, a localização e apreensão de bens.”
Relativamente à alínea F) entende que deve passar a ter o seguinte texto: «O senhor Administrador da Insolvência enviou email ao gerente da insolvente, AA, a 20 de dezembro de 2023, solicitando a entrega dos documentos a que se refere o art. 24º, nº 1 do CIRE, de que este teve apenas conhecimento a 19/02/2024».
Já quanto às alíneas I) e J) pretende que sejam havidas como não provadas.
Simultaneamente sustenta que deverão ser aditados à factualidade assente os seguintes factos:
- «No dia 15/12/2023, em resposta à missiva do administrador de insolvência datada de 21/11/2023, AA enviou um e-mail ao Administrador da Insolvência, onde expressou a sua disponibilidade para colaborar com aquele»;
- «Nos dias 15/01/2024 e 17/01/2024, AA tentou entrar em contacto com o Administrador da Insolvência, por via telefónica, no entanto, as suas chamadas não foram atendidas, nem retribuídas»;
- «Na pendência do processo de insolvência, AA sofria de uma depressão clínica»;
- «Os emails de 20/12/2023, enviados pelo Administrador da Insolvência, encontravam-se, por ler, na caixa de SPAM do email de AA»;
- «O Recorrente entregou, na pendência do processo de Insolvência, dois veículos, com as matrículas ..-SL-.. e ..-NB-.., propriedade da sociedade Insolvente, ao Administrador da Insolvência e ao Credor com reserva de propriedade».
No sentido das alterações pretendidas o recorrente indica excertos das suas próprias declarações e também do depoimento da testemunha BB, referindo igualmente os documentos juntos com a sua oposição e ainda o documento nº 1 junto com o requerimento inicial de qualificação.
2. Uma vez que se consideram observados os ónus previstos no art. 640º do Cód. de Proc. Civil, ir-se-á proceder à reapreciação dos pontos factuais impugnados, principiando pela audição das declarações do requerido e do depoimento da testemunha acima referida.
O requerido AA, ouvido em declarações, na sua fase inicial mostrou-se evasivo, tendo dito que o email do sr. Administrador de que se recorda é o que encontrou mais tarde em spam, acrescentando, além do mais, não se recordar de ter entregue os documentos de contabilidade. Seguidamente, confrontado com os emails remetidos pelo Sr. Administrador da Insolvência em 20.12.2023 disse que não os chegou a ver, embora confirme ter enviado antes, em 15.12.2023, um email mostrando disponibilidade para colaborar com aquele. Referiu ter tido conhecimento dos mails de 20.12.2023 mais tarde para o final de janeiro quando foi alertado de que o administrador da insolvência não conseguia entrar em contacto consigo. Salientou que estava a passar por uma fase má, de depressão.
A testemunha BB é mãe do requerido e produziu um depoimento igualmente impreciso. Disse que fazia a contabilidade da insolvente e abria a correspondência que lhe era dirigida. Quando o seu filho lhe comunicou que estaria a ser processada a insolvência tentou ligar telefonicamente para o administrador, mas não a atenderam. Queria disponibilizar-se para lhe fornecer os elementos contabilísticos. Não soube esclarecer quando fez essa tentativa de contacto.
Quanto aos elementos documentais referidos pelo recorrente há a ter em conta, em primeiro lugar, o documento nº 1 junto com o parecer emitido pelo Sr. Administrador da Insolvência, do qual constam três emails.
Um primeiro email enviado no dia 15.12.2023 pelo requerido AA para o Sr. Administrador da Insolvência, onde o primeiro refere que o veículo de matrícula ..-SL-.. se encontra à disposição deste, aguardando apenas o agendamento de dia e hora para a sua entrega. Nele manifestou ainda a sua inteira disponibilidade para auxiliar o administrador da insolvência na obtenção de todas as informações de que necessitasse e informou igualmente que o escritório de contabilidade que presta serviços à insolvente também se encontra à disposição do administrador para a entrega de todos os documentos relevantes.
Um segundo email enviado em 20.12.2023, às 19:05h, pelo Sr. Administrador da Insolvência, EE, para o requerido AA em que se solicita a este que lhe remeta os contactos de mail da contabilidade da empresa e a informação sobre a existência, ou não, de outros bens da insolvente não registáveis e o seu paradeiro. Solicita também ao requerido que preste esclarecimentos quanto à venda, nomeadamente data da venda, valor, identificação de compradores e comprovativos de pagamento, dos veículos de matrícula ..-AZ-.., ..-JO-.., ..-ES-.. e ..-UI-...
Um terceiro email enviado em 20.12.2023, às 21:23h, pelo Sr. Administrador da Insolvência para o requerido solicitando-lhe a entrega da seguinte documentação:
- Relação de todos os credores, com indicação dos respetivos domicílios, montantes dos seus créditos, datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem;
- Identificação de todas as ações e execuções que estejam pendentes contra a insolvente;
- Explicitação da atividade ou atividades a que a empresa se tenha dedicado nos últimos três anos e os estabelecimentos de que seja titular, bem como o que entenda serem as causas da situação em que se encontra;
- Relação de bens que a insolvente detenha em regime de arrendamento, aluguer ou locação financeira ou venda com reserva de propriedade, e de todos os demais bens e direitos de que seja titular, com indicação da sua natureza, lugar em que se encontrem, dados de identificação registral, se for o caso, valor de aquisição e estimativa do seu valor atual;
- Contas anuais relativas aos três últimos exercícios e identificação do técnico oficial de contas responsável pela escrita e forma de contacto;
- Conta de clientes, fornecedores e diário razão;
- Informação sobre trabalhadores com vínculo laboral à empresa.
Já quanto aos documentos juntos pelo requerido AA com a sua oposição, dir-se-á que do identificado com o nº 6 resulta encontrarem-se no “spam” da conta ..........@..... emails enviados pelo administrador da insolvência com o seguinte assunto: Proc. 6174/23.5 T8VNG – Entrega de veículo. Insolvente: A... Unipessoal, Lda.
Quanto ao documento nº 7 corresponde este ao registo de três chamadas telefónicas efetuadas para o número ..., nos dias 15 de janeiro, pelas 17,30h e 17 de janeiro, pelas 9,40h e pelas 11,30h, todas com a indicação de “cancelada”.
O documento nº 4 trata-se de uma credencial emitida, em 8.2.2024, para se proceder ao levantamento do veículo de matrícula ..-SL-.. no âmbito do processo de insolvência nº 6174/23.5 T8VNG.
O documento nº 5 corresponde ao relatório de entrega do veículo de matrícula ..-NB-.. pela insolvente “A...” ao Banco 1..., no dia 12.2.2024.
O documento nº 3 trata-se de um relatório de avaliação psicológica referente ao requerido AA, com data de 19.2.2024, onde se diz que este “apresentou humor deprimido, com manifestação de ansiedade” Mais se escreve que “da avaliação psicométrica, apresenta um nível intelectual médio em estado depressivo. Demonstrou ser uma pessoa que apresenta vulnerabilidade face a situações de stress.”
3. Posto isto, entendemos ser também de ouvir, ao abrigo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal – art. 640º, nº 2, al. b), 1ª parte do Cód. de Proc. Civil –, o depoimento prestado pelo administrador da insolvência, EE.
Disse este que não foi possível consultar os elementos contabilísticos da sociedade insolvente, que lhe permitissem avaliar a sua situação, tendo confirmado a remessa, em 20.12.2023, de emails para o endereço eletrónico do seu gerente, aqui requerido. Disse também que, por sua incumbência, foram feitos contactos para o telemóvel indicado pelo requerido no email de 15.12.2023 sem que se tivesse obtido qualquer resposta.
4. O art. 662º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil diz-nos que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
A Relação, nesta reapreciação, goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.
Como tal, a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância.[1]
5. Relativamente aos factos dados como provados sob as alíneas F), I), J) importa desde logo referir que o requerido AA, no seu depoimento algo evasivo, admitiu ter tido conhecimento do email enviado pelo administrador da insolvência em 20.12.2023 a solicitar a entrega de documentos contabilísticos no final de janeiro de 2024 e não somente em 19.2.2024, como afirmara na sua oposição.
De qualquer modo, independentemente do conhecimento desse email pelo requerido ter ocorrido em final de janeiro de 2024 ou apenas em 19.2.2024, certo é que este não entregou ao administrador da insolvência quaisquer elementos contabilísticos da empresa insolvente, o que torna, a nosso ver, irrelevante a questão de eventual envio do email de 20.12.2023 para a caixa de “spam”.
Deste modo, a alínea F) - O senhor Administrador da Insolvência enviou email ao gerente da insolvente, AA, a 20 de dezembro de 2023, solicitando a entrega dos documentos a que se refere o art. 24º, nº 1 do CIRE, de que este teve conhecimento pelo menos em finais de janeiro de 2024 – deve-se manter sem qualquer alteração de redação.
A não resposta a esse email por parte do requerido e o conhecimento por este de que devia fornecer ao administrador da insolvência todas as informações por ele solicitadas, sempre que a tal fosse instado, encontram-se assente nas alíneas G) e H), as quais não foram objeto de impugnação.
Já quanto à alínea I), uma vez que apenas está demonstrado, de forma segura, que ocorreu uma interpelação por parte do administrador da insolvência com vista à entrega dos documentos contabilísticos, através do email de 20.12.2023, a sua redação deverá ser alterada passando a ser a seguinte:
- Todavia, decidiu, perante a interpelação da administração da insolvência através do mail de 20.12.2023, responder com silêncio.
No que respeita à alínea J) também se deverá alterar a sua redação, atendendo a que o requerido no email que remeteu ao administrador da insolvência em 15.12.2023 referiu que o veículo de matrícula ..-SL-.. se encontrava à disposição deste, constando também dos autos uma credencial, datada de 8.2.2024, para se proceder ao levantamento desta viatura no âmbito do presente processo de insolvência.
Tal redação passará, pois, a ser a seguinte:
- Desse jeito, obstou, como representou, quis e conseguiu, que o senhor Administrador da Insolvência diagnosticasse as causas inerentes à insolvência e, de igual modo, procedesse à localização e apreensão da totalidade dos bens da insolvente.
6. Há que passar agora aos factos que o requerido/recorrente pretende aditar à factualidade assente, fundados no seu requerimento de oposição.
i) Em primeiro lugar, face ao que consta do email que o requerido remeteu no dia 15.12.2023 ao administrador da insolvência, em resposta a uma missiva deste de 21.11.2023 referente à entrega do veículo de matrícula ..-SL-.., aditar-se-á o seguinte facto como alínea J) i).
- No dia 15.12.2023, em resposta à missiva do administrador de insolvência datada de 21.11.2023, relativa à entrega da viatura de matrícula ..-SL-.., o requerido AA enviou um e-mail ao Administrador da Insolvência, onde escreveu o seguinte: “Aproveito para expressar a minha inteira disponibilidade em auxiliar V. Exa. em obter todas as informações que V. Exa. necessite.”
ii) Em segundo lugar, no que toca às chamadas telefónicas que nos dias 15 e 17.1.2024 o requerido terá tentado efetuar para o administrador da insolvência, o “print” que foi junto aos autos com a oposição (documento nº 7) apenas assinala a realização de três chamadas para um número de telefone fixo, sem que se saiba qual o tempo que decorreu entre o momento em que foi feita a ligação e aquele em que foram desligadas sem serem atendidas.
Por conseguinte, por se considerar este documento insuficiente para o efeito, não se adita o facto pretendido pelo requerido/recorrente quanto à realização de tais chamadas telefónicas.
iii) Em terceiro lugar, quanto ao estado depressivo do requerido na pendência do processo de insolvência, que este pretende ver aditado à factualidade provada, para além de se assinalar a irrelevância desse facto para a decisão dos presente incidente de qualificação, sempre se referirá que o relatório de avaliação psicológica, datado de 19.2.2024, junto pelo próprio requerido (documento nº 3), não é suficientemente esclarecedor quanto à existência de tal estado de “depressão clínica”.
Não se procederá assim ao pretendido aditamento.
iv) Em quarto lugar, no que concerne à eventual circunstância de os emails enviados pelo administrador da insolvência em 20.12.2023 se encontrarem por ler na caixa de “spam” do mail do requerido, conforme já atrás se afirmou, tal é irrelevante para a decisão dos autos, e, por isso, também não se aditará à factualidade assente, porquanto é o próprio requerido que no seu depoimento admitiu ter tido conhecimento desses emails no final de janeiro de 2024.
v) Em quinto lugar, quanto à entrega pelo requerido na pendência do processo de insolvência de dois veículos automóveis pertencentes à sociedade insolvente esta acha-se comprovada pelos documentos nºs 4 e 5 juntos com a sua oposição, atrás descritos em 2.
Adita-se, assim, o seguinte facto como alínea J) ii):
- O requerido entregou, na pendência do processo de Insolvência, dois veículos, com as matrículas ..-SL-.. e ..-NB-.., propriedade da sociedade insolvente, ao administrador da insolvência e a credor com reserva de propriedade.
1. A redação das alíneas I) e J) passará a ser a seguinte:
I) Todavia, decidiu, perante a interpelação da administração da insolvência através do mail de 20.12.2023, responder com silêncio;
J) Desse jeito, obstou, como representou, quis e conseguiu, que o senhor Administrador da Insolvência diagnosticasse as causas inerentes à insolvência e, de igual modo, procedesse à localização e apreensão da totalidade dos bens da insolvente.
2. Aditam-se à factualidade provada os seguintes factos como alíneas J) i) e J) ii):
J) i) No dia 15.12.2023, em resposta à missiva do administrador de insolvência datada de 21.11.2023, relativa à entrega da viatura de matrícula ..-SL-.., o requerido AA enviou um e-mail ao Administrador da Insolvência, onde escreveu o seguinte: “Aproveito para expressar a minha inteira disponibilidade em auxiliar V. Exa. em obter todas as informações que V. Exa. necessite.”;
J) ii) O requerido entregou, na pendência do processo de Insolvência, dois veículos, com as matrículas ..-SL-.. e ..-NB-.., propriedade da sociedade insolvente, ao administrador da insolvência e ao credor com reserva de propriedade.
1. Na sentença recorrida procedeu-se à qualificação da insolvência como culposa com referência ao art. 186º, nº 2, al. i) do CIRE, o que teve a discordância, em sede recursiva, do requerido AA que considerou não ter havido da sua parte incumprimento do dever de colaboração, o que afasta o preenchimento desta alínea.
2. Estatui o seguinte o art. 186º do CIRE, nos seus nºs 1, 2 e 3[2]:
«1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”
(…)».
3. O incidente de qualificação da insolvência como culposa e as situações que o fundamentam são inspirados na necessidade de proteção de interesses alheios. As consequências de índole não ressarcitória que a lei expressamente associou a essa qualificação não visam apenas a prevenção de condutas danosas futuras por parte dos administradores atingidos. Na verdade, o estabelecimento pelo legislador de sanções civis de natureza pessoal, ocorrendo certas condutas censuráveis dos administradores, visa sempre dissuadir os administradores de determinados comportamentos lesivos de terceiros, ainda que aqueles possam não ter sido sensíveis no caso concreto a essa exigência e, por isso, mereçam ser sancionados. A nota retributiva ínsita no princípio da culpa mostra que o escopo das sanções civis não ressarcitórias do art. 189º não se limita de modo algum à prevenção de comportamentos futuros. Há consequências da insolvência culposa que também beneficiam diretamente a própria entidade insolvente e o seu património [cfr., em particular, a al. d) do n.° 2 do art. 189]. Foram portanto seguramente predispostas em favor (também) dos próprios credores da sociedade afetados pela insolvência. Não está em jogo a mera preservação de um interesse genérico, não individual, na adoção de práticas de administração idóneas e na saúde das empresas – cfr. CARNEIRO DA FRADA, “A responsabilidade dos administradores na insolvência”, Revista da Ordem dos Advogados, 2006, Ano 66, vol. II, setembro 2006, disponível in portal.oa.pt.
Com efeito, as finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar falências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações. A coberto do expediente técnico da personalidade jurídica coletiva, seria possível praticar incolumemente os mais variados atos prejudiciais para os credores.
4. O art. 186º, depois de no seu nº 1, em termos de cláusula geral, definir a insolvência culposa, prevê dois conjuntos de presunções, nos seus nºs 2 e 3, para auxiliar o intérprete.
Referindo-se ao art. 186º, nº 2 do CIRE, MENEZES LEITÃO (in “Direito da Insolvência”, 8ª ed., págs. 284/5) escreve que este contém “uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, considerando-a como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado actos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais.”
Tais factos vêm descritos na enumeração do nº 2 do art. 186º e verificados algum ou alguns deles, o juiz terá que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. E prosseguindo, escreve MENEZES LEITÃO (ob. e loc. cit.): “A lei institui … no art. 186º, nº 2, uma presunção juris et de jure, quer da existência da culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário.”
Já no que concerne ao art. 186º, nº 3 diz-nos o mesmo Professor (ob. cit., pág. 285) que este contem “uma presunção juris tantum de culpa grave do devedor que não seja uma pessoa singular, sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência ou a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal e de submetê-las à devida fiscalização e depósito na conservatória do registo comercial. Demonstrados esses factos, o juiz presumirá a culpa do devedor na sua situação de insolvência, excluindo, porém, essa qualificação se for demonstrado que a impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas não se deveu a culpa do devedor. Efectivamente, o que resulta do art. 186º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.”
Por seu turno, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA (in “CIRE Anotado”, 2ª ed., págs. 719/720)[3] relativamente ao art. 186º, nº 2 perfilham também o entendimento que neste preceito se consagra uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, que não admite prova em contrário (art. 350º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil) e quanto ao seu nº 3 consideram igualmente que a presunção aí prevista é juris tantum, podendo assim ser ilidida nos termos da primeira parte do nº 2 do art. 350º do Cód. Civil.
É também este o entendimento que tem vindo a ser seguido pela nossa jurisprudência conforme se alcança, por exemplo, dos seguintes acórdãos: Rel. Porto de 18.6.2007, p. 0730992; Rel. Porto de 27.11.2007, p. 0723926; Rel. Porto de 3.3.2009, p. 0827686; Rel. Coimbra de 19.1.2010, p. 132/08.7 TBOFR-E.C1, Rel. Guimarães de 29.6.2010, p. 1965/07.7 TBFAF-A.G1; Rel. Lisboa de 10.5.2011, p. 1166/08.7 TYLSB.B.L1-7, Rel. Porto de 27.2.2014, p. 1595/10.6 TBAMT-A.P2, Rel. Porto de 28.9.2015, p. 1826/12.8 TBOAZ-C.P1 e Rel. Porto de 1.6.2017, p. 35/16.1 T8AMT-A.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
5. Regressando à situação dos autos, há então que indagar se a factualidade apurada é suscetível de integrar a presunção prevista na alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE – incumprimento, de forma reiterada, dos deveres de apresentação e colaboração previstos no art. 83º até à data da elaboração do parecer referido no nº 6 do art. 188º.
Nos termos do art. 83º, nº 1 do CIRE, o requerido AA enquanto gerente da sociedade insolvente estava obrigado a:
a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal;
b) Apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência, salva a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário;
c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.
Ora, o cumprimento destas obrigações legais está necessariamente submetido aos princípios gerais de cooperação e de atuação com boa-fé processual enunciados nos arts. 7º e 8º do Cód. de Proc. Civil, aplicáveis ex vi do art. 17º do CIRE.[4]
Neste contexto, em sintonia com o Ac. Rel. Guimarães de 4.10.2017 (proc. 9151/15.6 T8VNF-B.G1, disponível in www.dgsi.pt.)[5], entendemos que viola o dever de colaboração, não só o insolvente que opte por não dar as informações que lhe são solicitadas e simplesmente não responda ao que lhe é questionado, como aquele que dando informações, as não preste de forma integral, ou seja, não responda a tudo o que lhe é perguntado, assim como aquele que respondendo ao que lhe é questionado, omite factos a propósito da informação que presta, que sabe serem relevantes, segundo o juízo de um destinatário medianamente diligente e precavido a quem essa informação fosse solicitada e que se encontrasse na situação concreta em que se encontra o insolvente quando é interpelado no sentido de prestar determinada informação e, nessa sequência, lhe dê resposta e, por último, todo aquele que preste informação falsa.
O cumprimento do dever de colaboração tem assim como pressuposto que o devedor insolvente preste ao administrador da insolvência, à assembleia de credores, à comissão de credores e ao tribunal, quando estes lhe solicitem informação relevante para o processo, informação integral e verdadeira.
Só desta forma se poderá considerar que o cumprimento deste dever se mostra conforme aos princípios gerais da cooperação e de atuação com boa-fé processual.
6. Da matéria fáctica dada como provada resulta, em primeiro lugar, que o gerente da insolvente, AA, foi citado para o processo de insolvência por carta enviada a 1.8.2023, da qual constava a advertência “de que os documentos previstos no nº 1 do artº 24º do CIRE, devem estar prontos a ser imediatamente entregues ao administrador nomeado, caso a insolvência venha a ser decretada”, constando descrição de quais são, em concreto, esses documentos [D)].
Em segundo lugar, provou-se que o requerido AA foi notificado pelo tribunal a 31.10.2023 da sentença que declarou a insolvência, tendo-lhe sido solicitados, para entrega imediata ao administrador da insolvência, os documentos referidos no art. 24º, n.º 1, do CIRE [E)].
Em terceiro lugar, provou-se que o administrador da insolvência enviou email ao gerente da insolvente, AA, a 20.12.2023, solicitando a entrega dos documentos a que se refere o art. 24º, nº 1 do CIRE, de que este teve conhecimento pelo menos em finais de janeiro de 2024 [F)].
Porém, o requerido nunca entregou ao administrador da insolvência tais documentos, de tal modo que este não conseguiu ter acesso aos documentos contabilísticos da sociedade insolvente, o que o impediu de ter conhecimento da sua real situação financeira.
Não se ignora que no dia 15.12.2023, a propósito da entrega da viatura de matrícula ..-SL-.., o requerido AA enviou em email ao administrador da insolvência onde expressou disponibilidade para o auxiliar na obtenção de todas as informações de que este necessitasse.
Declaração meramente retórica que, para além da pouco relevante entrega de duas viaturas automóveis da sociedade insolvente, uma ao administrador da insolvência e outra a credor com reserva de propriedade, não teve qualquer repercussão prática.
Ou seja, o requerido, apesar de bem saber desde a carta que lhe foi enviada em 1.8.2023 que caso a insolvência fosse decretada, o que se verificou em 30.10.2023, tinha de entregar de imediato ao administrador da insolvência os documentos referidos no art. 24º, nº 1 do CIRE, entre eles se contando os elementos de contabilidade da insolvente, nada entregou.
O preenchimento da presunção prevista na alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE, na linha do que se vem expondo, depende da verificação de três requisitos objetivos: i) o incumprimento (por ação ou omissão) dos deveres de apresentação e colaboração; ii) a reiteração; iii) o limite temporal (durante o processo de insolvência até à emissão do parecer a que se reporta o art. 188, n.º 6, do CIRE).
Acrescenta-se que a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo desta alínea não implica um juízo de culpabilidade, nem que o comportamento omissivo em causa tenha agravado a situação de insolvência, nem tão-pouco que desse comportamento omissivo tenham resultado danos para os credores.[6]
A presunção da alínea i), conforme escreve SOVERAL MARTINS (in “Um Curso de Direito da Insolvência”, vol. I, 3ª ed., Almedina, pág. 510), compreende-se da seguinte forma: “parte-se de um facto conhecido posterior ao início do processo de insolvência para se firmar um facto desconhecido anterior ao início desse mesmo processo. Tanto mais que o incumprimento daqueles deveres pode ter impedido o conhecimento do que tenha realmente criado ou agravado a situação de insolvência. O incumprimento (na pendência do processo) é um facto conhecido posterior ao início do processo de insolvência que serve para provar o que terá sido a atuação do sujeito em causa nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. A solução legal funciona, desde logo, como um fortíssimo estímulo para que os deveres referidos sejam cumpridos.”
Isto é, o incumprimento dos deveres de apresentação e colaboração no processo de insolvência faz presumir um comportamento culposo por parte do gerente da insolvente nos três anos anteriores ao início daquele processo.
Assim, retornando ao caso dos autos, entendemos que os requisitos objetivos de que depende a verificação da presunção prevista na referida alínea i) se encontram preenchidos.
Com efeito, existe uma patente falta de colaboração do requerido para com o tribunal e o administrador da insolvência ao não entregar a este qualquer dos documentos referidos no art. 24º do CIRE, designadamente os contabilísticos, o que sucedeu durante o período temporal mencionado na alínea i).
E esse incumprimento tem que ser havido como reiterado, isto porque o requerido estando ciente da obrigação que tinha de entregar tal documentação, na sequência de duas notificações feitas pelo tribunal e de um email remetido pelo administrador da insolvência, não o fez ao longo de um período de cerca de três meses compreendido entre a declaração de insolvência e a emissão do parecer previsto no art. 188º, nº 6 do CIRE.
Aliás, o requerido, ciente que estava dessa obrigação, teria tido uma excelente oportunidade para remeter ao administrador da insolvência, pelo menos parte de tais elementos documentais, aquando do envio do email de 15.12.2023, em vez de se refugiar numa declaração retórica e vaga de disponibilidade para colaborar/”auxiliar” a que não se seguiu, posteriormente, qualquer tentativa de concretização.
Por conseguinte, em sintonia com a sentença recorrida, consideramos, face à factualidade assente – e apesar das alterações nela efetuadas -, estar preenchida a presunção prevista no art. 186º, nº 2, al. i) do CIRE, o que implica a qualificação da insolvência da “A... Unipessoal, Lda.” como culposa e a improcedência, neste segmento, do recurso interposto.
1. Na sentença recorrida foi fixado ao requerido em sete anos o período da sua inibição para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa e em igual período a inibição deste para administrar patrimónios de terceiros.
Tal teve a discordância do requerido, em via recursiva, sendo que este, subsidiariamente, se insurge também contra a medida destas inibições, que considera desproporcionadas, pretendendo que estas sejam revogadas ou fixadas no mínimo legal de dois anos.
Vejamos então.
2. O art. 189º, nº 2, als. b) e c) do CIRE estatui o seguinte:
«2 – Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
(…)
b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
(…).
Escrevendo sobre o fundamento da inibição prevista na alínea c) do nº 2, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA (in “CIRE Anotado, 2ª ed., págs. 734/5) salientam que aqui se revela “uma atitude de desconfiança quanto à atuação, na área económica, em relação a quem, pelo seu comportamento, com dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência.
É, aliás, este mesmo sentimento que justifica a extensão da inibição à administração de quaisquer patrimónios de terceiros (…)”
Sobre esta mesma matéria escreve MENEZES LEITÃO (in “Direito da Insolvência”, 8ª ed., pág. 291):
“Esta inibição não constitui uma incapacidade em sentido técnico, sendo antes uma incompatibilidade resultante do estado de insolvência culposa. O seu fundamento é a defesa geral da credibilidade do comércio e dos cargos vedados, que poderia ser posta em causa se os mesmos fossem ocupados por pessoas reconhecidamente culpadas de insolvência.”
Por seu turno, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO (in “Manual de Direito da Insolvência”, Almedina, 8ª ed., pág. 164), referindo-se à inibição prevista na alínea b), escreve que esta “apresenta uma dupla faceta preventiva e sancionatória: por um lado, destina-se a proteger terceiros que poderiam ver os seus patrimónios prejudicados pela atuação de pessoa que não oferece a confiança necessária; por outro lado, tem um carácter repressivo, pois não se aplica às hipóteses de culpa leve.”
E mais adiante, reportando-se agora à inibição mencionada na alínea c) (in ob. cit., pág. 166), diz-nos que os critérios orientadores da decisão não estão previstos na lei, escrevendo, em seguida, que “a doutrina tem entendido que o juiz deverá ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento…”.
No plano jurisprudencial tem-se entendido igualmente que os períodos de inibição relativos às pessoas afetadas pela qualificação da insolvência a que se referem as alíneas b) e c) devem ser graduados em função da gravidade do seu comportamento e da sua relevância na verificação da situação de insolvência, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e a moldura abstrata de inibição prevista pelo legislador [neste sentido, por ex., Ac. Rel. Guimarães de 20.9.2018, proc. 7763/16.0T8VNF-A.G1; Ac. Rel. Porto de 8.3.2019, proc. 2538/15.6T8AVR-D.P1; Ac. Rel. Porto de 13.4.2021, proc. 252/20.0T8AMT-A.P1[7]; Ac. Rel. Porto de 26.9.2023, proc. 2273/20.3T8AVR-B.P1; Ac. Rel. Guimarães de 25.6.2015, proc. 293/12.0TBVCT-A.G1 e Ac. Rel. Coimbra de 5.2.2013, proc. 380/09.2TBAVR-B.C1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.]
3. Regressando à situação concreta, com o devido respeito pelo decidido em 1ª Instância, há desde logo a salientar que a fixação das inibições previstas nas alíneas b) e c) do nº 2 do art. 189º do CIRE em 7 anos se nos afigura desproporcional.
A medida abstrata de ambas as inibições acha-se compreendida entre 2 e 10 anos, de tal modo que o seu ponto intermédio se situa em 6 anos, o que significa que o Mmº Juiz “a quo” a fixou acima desse ponto intermédio, escrevendo nesse sentido tão-somente o seguinte:
“Consideramos a culpa do requerido AA como grave, na medida (…) não prestou qualquer colaboração com o senhor Administrador da Insolvência, o que lhe permitiu ocultar toda e qualquer acção ilegal que possa ter praticado enquanto gerente e em prejuízo dos credores.”
Cremos que a fixação das inibições em 7 anos convocará uma situação de acentuada gravidade que não descortinamos nas circunstâncias concretas do presente caso.
É certo que ao não fornecer a documentação contabilística da sociedade insolvente o requerido impediu que se conhecesse a verdadeira situação da empresa e as razões que a conduziram à situação de insolvência.
Mas também se provou que o requerido entregou, na pendência do processo de Insolvência, dois veículos, com as matrículas ..-SL-.. e ..-NB-.., propriedade da sociedade insolvente, ao administrador da insolvência e a credor com reserva de propriedade, o que indicia que da parte dele houve, apesar de tudo, algum nível de colaboração, se bem que muito precário e sem qualquer virtualidade, como atrás se expôs, no sentido de afastar a qualificação da insolvência como culposa.
Deste modo, ponderando a gravidade da conduta do requerido e as circunstâncias do caso concreto, cremos que será ajustado reduzir o período das inibições para três anos, donde decorrerá, neste segmento, a parcial procedência do recurso.[8]
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Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo requerido AA e, em consequência, reduz-se para 3 (três) anos o período de inibição que lhe fixado para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa e também para administrar patrimónios de terceiros.
No mais, nega-se procedência ao recurso, mantendo-se o decidido pela 1ª Instância.
As custas do presente recurso, pelo seu decaimento parcial, serão suportadas na proporção de metade pelo recorrente, e na parte restante não haverá lugar a custas por delas estar isento o Min. Público, ao abrigo do art. 4º, nº 1, al. a) do Regulamento das Custas Processuais.
Porto, 19.11.2024
Rodrigues Pires
Raquel Correia de Lima
Alberto Taveira
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[1] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., págs. 823 e 825.
[2] Com as alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022, de 11.1.
[3] Cfr. ainda CARVALHO FERNANDES, “A Qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor” in “Colectânea de Estudos sobre a Insolvência”, reimpressão, 2011, pág. 262 e MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, “Manual de Direito da Insolvência”, Almedina, 8ª ed., págs. 156 e segs.
[4] Cfr. Ac. Rel. Guimarães de 11.6.2016, p. 3546/11.1TBMGR-H.G1, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Mencionado na resposta ao recurso apresentada pelo Min. Público.
[6] Cfr. Ac. Rel. Lisboa de 13.11.2018, p. 14827/17.0T8SNT-B.L1-7, disponível in www.dgsi.pt.
[7] Do aqui relator.
[8] Uma nota ainda para referir que a alusão feita pelo recorrente ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 173/2009 não é adequada, uma vez que este se reporta à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da anterior redação do art. 189º, nº 2, b) do CIRE onde se previa a inabilitação das pessoas afetadas pela qualificação.