I - Se o Tribunal a quo pretendia utilizar, como efetivamente, utilizou, para a formação da sua convicção acerca de matéria de facto que considerou como provada, “declarações”/respostas enviadas (por mail) por pessoas singulares a notificações que receberam na fase do inquérito remetidas pela Autoridade Tributária do seguinte teor: ”resposta a solicitação da AT de GG de fls. 163 a 165; resposta a solicitação da AT de HH de fls. 166 a 168; resposta a solicitação da AT de II de fls. 169 a 171; resposta a solicitação da AT de JJ de fls. 175 a 176”, sendo que tais pessoas singulares não foram inquiridas na fase do inquérito, não foram arroladas como testemunhas na acusação e as respetivas “respostas a solicitação da A.T.” não foram lidas/reproduzidas em audiência de julgamento, configurando tais respostas «depoimentos prestados por escrito» com atropelo do disposto no art. 503º nº 2 alíneas a) a i) do CPC aplicável ao processo penal ex vi do nº 1 do art. 139º do CPP, dos arts. 518º e 519º do CPC quanto ao modo e lugar de prestar depoimento por escrito, inaplicáveis na área do CPP e ainda as regras previstas nos arts. 128º nº 1, 138º nºs 1, 3 e 4, 348º nº 1, 318º nº 1 e 319º nº 1 do CPP, sendo de excluir a “hipótese típica” prevista no art. 517º nºs 1 e 2 do CPC cujo regime jurídico é inaplicável na área do processo penal, deveria previamente ter indagado, em audiência de julgamento, se o MP e os arguidos estavam de acordo na sua leitura (cfr. nº 5 do art. 356º do CPP) e, na afirmativa, deveria ter tido lugar a leitura das referidas “respostas” (a solicitação da AT) e assim permitir-se o contraditório.
II - Verifica-se assim a violação do disposto no art. 355º do CPP por se ter valorado um meio de prova que a lei não permite (independentemente da sua (in)validade enquanto depoimentos prestados por escrito pelas pessoas em causa, que até ao momento não foi posta em causa por qualquer dos sujeitos processuais) fora das condições previstas no art. 356º nºs 5 e 9 do CPP, tendo cometido a nulidade aí cominada.
III - A nulidade verificada afeta o julgamento bem como a sentença recorrida dado que a mesma é (parcialmente) nula por utilização, na sua fundamentação da matéria de facto, de prova não examinada em audiência (cfr. citados arts. 355º nº 1 e 356º nºs 5 e 9 do CPP), tornando-se, pois, necessário que o Sr. Juiz a quo reabra a audiência para que cumpra o formalismo previsto no art. 356º do CPP.
(Da responsabilidade da Relatora)
Comarca do Porto
Juízo Local Criminal de Gondomar – Juiz 1
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
No processo comum com intervenção do tribunal singular nº 1077/15.0IDPRT, vieram os arguidos AA e mulher BB, acusados da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6º, n.º 1, 103º, n.º 1, al a) e 104º, n.º 2, al b) do RGIT aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença depositada em 08/05/2024 que decidiu nos seguintes termos:
“a) Condenar o arguido AA, pela prática em coautoria, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6º, n.º 1, 103º, n.º 1, al a) e 104º, n.º 2, al b) do RGIT aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sue execução pelo período de 5 anos condicionada, nos termos do art.º 14.º, n.º 1 do RGIT, ao pagamento solidário da quantia de €67.168,25 (sessenta e sete mil cento e sessenta e oito euros e vinte e cinco cêntimos) de IRC, correspondente à sua contribuição para a vantagem patrimonial obtida e demais acréscimos legais.
b) Condenar a arguida BB, pela prática em coautoria, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6º, n.º 1, 103º, n.º 1, al a) e 104º, n.º 2, al b) do RGIT aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho; na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sue execução pelo período de 5 anos condicionada, nos
termos do art.º 14.º, n.º 1 do RGIT, ao pagamento solidário da quantia de €67.168,25 (sessenta e sete mil cento e sessenta e oito euros e vinte e cinco cêntimos) de IRC, correspondente à sua contribuição para a vantagem patrimonial obtida e demais acréscimos legais.
c) Condenar os arguidos nas custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC para cada um “.
“a) O Tribunal recorrido, por sentença de 7 de maio de 2024, depositada na secretaria a 8 de maio, decidiu condenar os arguidos AA e BB nos seguintes termos: “(…) pela prática em coautoria, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6º, n.º 1, 103º, n.º 1, al. a) e 104º, n.º 2, al. b) do RGIT aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho, na pena de (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sue execução pelo período de 5 anos condicionada, nos termos do art.º 14º, n.º 1 do RGIT, ao pagamento solidário da quantia de € 67.168,25 (sessenta e sete mil cento e sessenta e oito euros e vinte e cinco cêntimos) de IRC, correspondente à sua contribuição para a vantagem patrimonial obtida e demais acréscimos legais.
b) O Ministério Público descreveu os factos que fez verter na acusação como se tratando de um acordo engendrado entre os arguidos, com vista à utilização de faturas emitidas por particulares, como se de verdadeiros fornecedores se tratassem, a fim de contabilizarem como custos as aquisições de metais preciosos.
c) Consideram os Recorrentes que a decisão em recurso padece de erro na apreciação da matéria de facto e na apreciação da prova porquanto nenhuma das testemunhas depôs com conhecimento sobre quem representava a sociedade A... no ano de 2011 e sobre o intuito de obterem vantagem que sabiam ser ilegal ao recorrerem a aquisições fictícias.
d) Aliás, decorre do próprio relatório de inspeção, que sustenta a acusação, que as aquisições de metais preciosos não estão em causa, ao referir “Sem pretender colocar em causa a existência dos bens adquiridos (…) - cfr. pág. 13/17 do RIT – a fls. 337 a 373 dos autos.
Contudo,
e) A decisão não explica qual o envolvimento de cada um dos arguidos nos factos constantes da acusação, isto é, em que medida cada um tomou parte direta na execução. Que atos concretos foram praticados por AA e por BB?
f) E que meios de prova examinados sustentam a inverdade das transações comerciais? Que raciocínio seguiu o julgador para dar como provados os factos da acusação?
g) A prova testemunhal produzida em audiência de julgamento e a documental constante dos autos não permite confirmar quem foi o gerente da sociedade A... em 2011.
h) O Tribunal a quo presumiu a gerência de facto da gerência nominal (certidão permanente de fls. 123 dos autos), sem qualquer outro elemento de suporte – não se conhece quem tratava com fornecedores, com clientes, com a contabilidade, com os trabalhadores, quem procedia aos pagamentos, isto é quem estava à frente do giro comercial da empresa à data dos factos.
i) A testemunha CC, contabilista, aos costumes, revelou conhecer apenas o Sr. AA por lidar com ele e com as pessoas da sociedade B... e de uma outra sociedade cujo nome não se recorda (empresas do grupo) - depoimento prestado na sessão de 19/10/2023, constante da aplicação informática disponível no tribunal, com início às 10h e 43m e fim às 10h e 56m – passagem do minuto 01:17 a 6:15.
j) O próprio RIT não refere quem geria a sociedade A... em 2011.
k) A ausência de prova sobre quem efetivamente exercia a gerência impunha decisão de absolvição dos Recorrentes, pelo que a condenação ofendeu o princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, n.º 2 da CRP, porquanto a prática dos factos foi presumida, decorrendo de indícios sem o
apoio de outros meios de prova.
l) A valoração da prova indiciária, assim referida na sentença, evidencia flagrante desconformidade com os normativos que enformam a lei fundamental, razão pela qual a referida decisão deve ser anulada, por violação do princípio constitucional consubstanciado no artigo 32º, n.º 2, da CRP.
m) O núcleo essencial de alguns dos factos indício, que o Tribunal a quo julgou provados nos pontos 2. a 7., resultam do relatório de ação inspetiva à sociedade A... e do depoimento das testemunhas DD, EE (inspetor tributário) e FF.
n) Sustenta-se ainda nas declarações “prestadas”, em sede de procedimento inspetivo, por GG (fls. 163 a 165 dos autos), HH (fls. 166 a 168 dos autos), II (fls. 169 a 171 dos autos) e JJ (fls. 175 a 175 dos autos), que não foram confirmadas em audiência de julgamento.
o) A testemunha DD, de 87 anos de idade e invocando um quadro de défice cognitivo, referiu não conhecer os arguidos nem ter vendido nada, o mesmo sucedendo com a testemunha FF.
p) Ditam as regras da experiência comum que estas pessoas não terão tido qualquer tipo de relação com os Recorrentes.
q) Mas não determinam que os Recorrentes fossem os gerentes efetivos da sociedade.
r) Ainda que não tenham sido inquiridos os demais particulares que a AT refere no RIT, o Tribunal assumiu que também estes nada venderam à sociedade A....
s) Ora, a conclusão de que nada venderam estava vedada ao Tribunal.
t) Para mero efeito de raciocínio, a aceitar-se a confirmação da simulação de aquisição relativamente às duas testemunhas que foram ouvidas em julgamento, por si só implicaria uma alteração à vantagem de IRC, que já não se cifraria em € 67.168,25, por falta de prova, e que levaria possivelmente a uma alteração da qualificação jurídica dos factos ou, inclusivamente à descriminalização das condutas, caso a vantagem patrimonial se mantivesse abaixo dos € 15.000,00.
u) Assim, a prova carreada aos autos não permite concluir com o grau de certeza exigível, que os factos constantes da acusação serão verdadeiros.
v) Pelo que consideram os Recorrentes que os factos provados de 1. a 9. deveriam ter sido julgados não provados.
w) A sentença em recurso ofende o princípio da legalidade, o da livre apreciação da prova (artigo 127º do CPP) e o princípio da presunção da inocência (artigo 32º n.º 5 da CRP), por ter julgado incorretamente os factos dados como provados sem o correspondente suporte.
x) Quanto à medida da pena, caso se considere que os Recorrentes praticaram o crime pelo qual foi proferida a decisão em recurso, no caso dos autos, as exigências de prevenção geral são consideráveis, mas as exigências de prevenção especiais são diminutas, pois entendemos ter ficado provado que os Recorrentes são cidadãos devidamente integrados na sociedade, a nível familiar e, não obstante a nível económico estarem a passar por algumas dificuldades, têm o apoio da família.
y) O relatório social junto aos autos surge como favorável aos Recorrentes, permitindo cumprir a pena em liberdade, pois resulta como provado que não têm antecedentes criminais e encontram-se inseridos social e familiarmente – cfr. 12. a 15. da matéria de facto provada.
z) Além disso, desde a alegada prática do crime [2011] até à presente data decorreram mais 13 anos e os Recorrentes mantiveram uma conduta imaculada até à data conforme se constata do respetivo registo criminal.
aa) Assim, ponderados todos os fatores e tendo em conta as considerações de prevenção especial e geral, a pena que se consideraria justa, proporcional e adequada seria a seguinte:
- A pena pelo mínimo legal de um ano de prisão pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, suspensa na sua execução pelo mesmo período, nos termos das disposições conjugadas do artigo 13.º, 14.º, 103.º, n.º 1 a) e c) e 104.º, n.º 2, al. a) do RGIT e 71 e 72º do Código Penal.
bb) Finalmente, consideram que a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão à condição de pagamento, no prazo de cinco anos, da quantia de € 67.168,25 é manifestamente excessiva.
cc) Na decisão de subordinação da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da quantia em dívida à Autoridade Tributária, o tribunal a quo não atendeu ao princípio da razoabilidade e da dignidade da pessoa, na medida em que, pese embora conhecendo a impossibilidade dos Recorrentes no cumprimento desse pagamento, fez incidir sobre a verificação dessa circunstância a suspensão da pena de prisão.
dd) Pugnam pelo entendimento de que o artigo 14º, n.º 1 do RGIT deve ser interpretado conjugadamente com o disposto no artigo 51º, n.º 2, do C.P., só devendo ser imposto o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida.
ee) Esperam a revogação da sentença, nesta parte.
TERMOS EM QUE pugnam pelo provimento do presente recurso e, em consequência, pela revogação da sentença recorrida e sua substituição por decisão que determine a extinção do procedimento criminal instaurado aos arguidos.
Caso assim não seja entendido, então que seja alterada a medida da pena como peticionado”.
Na verdade, no que respeita à alegada insuficiência de prova para a comprovação dos factos dados como provados, somos de parecer que a prova documental existente nos autos, nomeadamente, os documentos de fls. 23 a 27, 36 a 41, 53 a 216, relatório da inspecção tributária de fls. 337 a 373, documentos de fls. 426 e 427, c.r.c. de fls. 761, documentos de fls. 519 a 522, 819 a 820, 907 a 910, conjugada com as declarações do arguido e depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, são os bastantes à comprovação dos factos, porquanto analisados de forma crítica, conjugada com regras de experiência comum e princípios de prova em direito penal
As testemunhas DD, KK, FF cujos nomes figuram como emitentes das facturas correspondentes a venda aos arguidos é à sociedade por si representada “A...”, de metal precioso, negam conhecer os arguidos, a firma, bem como ter procedido à venda aos arguidos de quaisquer joias ou material precioso, sendo que a sua actividade laboral em nada coincide com a venda de metais preciosos; o próprio inspector tributário a cargo de quem
esteve o processo confirma o contacto com estes e demais identificados cidadãos que alegadamente teriam emitido as faturas de venda, prática de venda essa que negaram; a testemunha contabilista do grupo de empresas dos arguidos confirma que a contabilidade era por si efectuada com base na documentação que lhe era entregue pelos arguidos, sendo que todos esses depoimentos conjugados com a documentação probatória existente permitiu ao tribunal no uso do principio da livre apreciação da prova, p. pelo artº 127º do CPP, tê-la por boa, considerando-a de forma séria, credível, adequada.
Com tais elementos de prova aliados a toda a demais documentação e prova existente ficou assim, suficientemente provado e consignado no douto acórdão recorrido: “(…)”.
Ao juiz compete apreciar livremente a prova, com observância das regras de experiência comum, segundo os conhecimentos existentes e utilizando como método de avaliação critérios objectivos, consentâneos com a vida em sociedade e tal foi feito no caso concreto.
Relativamente à medida da pena imposta aos arguidos e suspensão da sua execução não cremos existir desajustamento na condenação.
O crime de evasão fiscal é um crime grave que prejudica todos os cidadãos em benefício censurável daqueles que dela fazem uma fonte de rendimento. Por isso se impõe a aplicação de medidas que se revelem verdadeiramente dissuasoras e se mostrem adequadas a desincentivar a prática de crimes fiscais.
No caso em apreço a ilicitude do acto é elevada o que se manifestada na vantagem patrimonial obtida.
A culpa dos arguidos é muito elevada – dolo direto -, tendo pré-elaborado entre si um plano. O actividade desenvolvida pressupõe premeditação, organização e concretização, não se vislumbrando, por outro lado, tal como referido no acórdão, arrependimento por parte dos arguidos.
Quanto à suspensão da execução da pena de prisão à subordinação do pagamento do montante dos benefícios ilicitamente obtidos pelos arguidos, afigura-se-nos, face ao período de suspensão de 5 anos imposto, que tal pagamento embora rigoroso, a exigir por parte dos arguidos espirito de sacrifício no seu cumprimento é possível, sendo positivo o juízo de probabilidade do seu cumprimento.
Na verdade, o pagamento por parte dos arguidos do valor de 67,168,25€ é solidário, a efectuar em 5 anos. Trata-se, pois, de uma pena, a impor aos arguidos, como não poderia deixar de ser sacrifícios “.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respetiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso([1]) e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º nº 2 e 410º nº 3, ambos do CPP.
No caso em apreço, da leitura das conclusões da motivação de recurso, extraem-se as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal ad quem:
1ª a utilização de prova documental que corporiza “declarações” prestadas por escrito que não foram confirmadas pelos seus (aparentes) autores em sede de audiência de julgamento, para formar a convicção do Tribunal;
2ª impugnação da matéria de facto/erro de julgamento quanto aos factos provados nºs 1 a 9;
3ª a violação dos princípios da legalidade, da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo;
4ª subsidiariamente, a alteração da medida da pena;
5ª a condição para a suspensão da execução da pena, considerada manifestamente excessiva.
“Factos Provados:
Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. Os arguidos AA e BB no ano fiscal de 2011 eram sócios gerentes da sociedade A..., Lda., exercendo toda a gestão desta sociedade, a qual se dedicava à actividade de comercio por grosso de minérios e metais, a que corresponde o código de actividade (CAE) 47770, enquadrada em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas-IRC no Regime normal de determinação do lucro tributável, e em sede de Imposto Sobre o Valor Acrescentado IVA no regime normal de periodicidade mensal, actuando sempre em nome, no interesse e a favor da sociedade, conforme resulta de inscrição de registo comercial.
2. Os arguidos AA e BB, na qualidade de sócios gerentes e representantes da sociedade A..., com o intuito de obter a menção de custos superiores aos da sua actividade no apuramento do rendimento dos exercícios dos anos de 2011 para efeitos de IRC e IV A, decidiram utilizar, mediante acordo prévio e em conjugação de esforços, as facturas emitidas, mediante previa solicitação por contribuintes/ sujeitos passivos particulares, como se de verdadeiros fornecedores se tratassem, para suporte de aquisições mercadorias fictícios que não haviam sido fornecidos.
3. Os arguidos AA e BB, contabilizaram como custos da sociedade A... relativas a aquisição de mercadorias, emitidas e para efeitos de apuramento de IRC e IVA.
- DD, com o NIF n....89 o valor de aquisição de mercadorias de €35.140,00;
- GG, com o NIF n.º ...50 o valor de aquisição de mercadorias de €71.920,00;
- HH, com o NIF n.º ...76 o valor de aquisição de mercadorias de €67.590,00;
- II, com o NIF n.º ...07 o valor de aquisição de mercadorias de €25.860,00;
- FF, com o NIF n.º ...81 o valor de aquisição de mercadorias de €29.696,00;
- JJ, com o NIF n....70 o valor de aquisição de mercadorias de €44.717,00;
Tais aquisições de metais preciosos a particulares declarados no valor de €274.923,00.
4. Os particulares DD, GG, HH, II, FF e JJ nunca forneceram metais preciosos à sociedade A... por não desenvolveram actividade nesse ramo.
5. Os arguidos AA e BB, em representação da sociedade A..., incluíram nas suas declarações fiscais e integraram na sua contabilidade os valores constantes das aquisições supra mencionadas, no mês de Outubro de 2011 correspondentes a matérias-primas e a despesas que alegadamente lhe teriam sido vendidas por DD, GG, HH, II, FF e JJ, sendo que estes não lhes forneceu os valores das mercadorias declaradas, tratando-se por isso de operações simuladas e que não correspondem a facturas e vendas efectivamente efectuadas.
6. Os valores declarados como aquisições efectuadas aos particulares DD, GG, HH, II, FF e JJ às autoridades Fiscais no feitas pelos arguidos AA e BB em representação da sociedade A... mencionar na respectiva declaração de IVA relativo ao mês de Outubro de 2011, determinou que fosse considerado indevidamente por não corresponder a custos efectivamente suportados, o montante de € 147.954,20.
7. Os valores declarados das aquisições supra referidas, como era seu propósito, feitas pelos arguidos AA e BB em representação da sociedade A... mencionar na respectiva declaração de IRC determinou que fosse considerado, indevidamente, por não corresponder a custos suportados, para efeitos de custos e diminuição dos lucros tributáveis em sede de IRC, no ano de 2011 o montante de €274.923,00, a que corresponde a quantia de €67.168,25 de IRC a pagar.
8. Os arguidos AA e BB, na qualidade de gerentes da sociedade A..., mediante acordo prévio e em conjugação de esforços agiram de forma livre, voluntária e consciente, defraudaram o sistema de impostos instituídos pelo Estado e os objectivos que com eles se propõe prosseguir, nomeadamente da matéria colectável em sede de IRC e do Imposto sobre o Valor Acrescentado IVA ..
9. Sabiam os arguidos, que lesavam a Fazenda Nacional enriquecendo o património pessoal e da sociedade que representam.
10. Os arguidos bem sabiam que as suas condutas eram ilícitas, proibidas e punidas
pela lei.
11. Os arguidos não têm antecedentes criminais registados.
12. Do relatório social do arguido consta, nomeadamente, que: “AA, apresenta percurso de vida essencialmente adequado com investimento no percurso
laboral, com registo de adequação pessoal, profissional e social. Profissionalmente qualificado passou de uma situação de crescimento da empresa e de conforto financeiro, para um enquadramento difícil, ficando laboralmente desde 2015 a efetuar trabalho de forma informal dispondo de uma situação económica restritiva. Detém uma vivência sócio - familiar organizada na qual parecem existir níveis de satisfação conjugal e parentais conducentes a um nível de expectativas de realização satisfatórias.”
13. Do relatório social da arguida consta, nomeadamente, que: “ BB, de 52 anos de idade, casada, reside com o cônjuge e dois filhos do casal. Apresenta trajetória de vida conforme com os padrões sócio normativos vigentes, tendo estruturado percurso suportado na constituição de família própria, detendo uma situação sociofamiliar organizada. A nível económico, o agregado familiar denota apresentar um contexto restritivo, beneficiando de apoio de familiares.”
14. A arguida BB trabalha num jardim de infância, aufere 150€ por mês, por duas por dias, tem dois filhos maiores de idade; tem o 12.º ano de escolaridade.
15. O arguido AA, desempregado, não recebe subsidio; tem dois filhos, o 12.º ano de escolaridade. Vivem com a ajuda da sogra.
Com relevância para a causa, não se provaram quaisquer outros factos.
O Tribunal estribou a sua convicção com base na prova documental existente nos autos, nomeadamente documentos de fls. 23 a 27, 36 a 41, 53 a 216, relatório da inspecção tributária de fls. 337 a 373, documentos de fls. 426 e 427, c.r.c. de fls. 761, documentos de fls. 519 a 522, 819 a 820, 907 a 910, conjugada com as declarações do arguido e depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, tudo analisado de forma crítica, conjugado com regras de experiência comum e princípios de prova em direito penal.
Assim, o tribunal considerou:
A arguida BB, casada, auxiliar em cantina escolar, não quis prestar declarações. Trabalha num jardim de infância, aufere 150€ por mês, por duas por dias, tem dois filhos maiores de idade; tem o 12.º ano de escolaridade.
O arguido AA, casado desempregado, não quis prestar declarações; refere não receber subsidio; tem o 12.º ano de escolaridade. Vivem com a ajuda da sogra.
A testemunha DD, casado, reformado (militar da GNR), no essencial, referiu não conhecer os arguidos, nunca os viu; não conhece a firma arguida, nunca vendeu joias, se houver algum documento assinado com o seu nome a vender joias é mentira.
A testemunha EE, casado, inspector tributário, no essencial, referiu ter feito uma acção inspetiva à firma arguida (2011), gerida pelos arguidos; foi detetado imposto em falta de IRC e de IVA para efeitos de correcção de matéria colectável; constavam gastos que não tinham cujo teor não correspondia a efectivas transações económicas, contactaram os cidadãos particulares que supostamente tinham vendido à Sociedade arguida tendo negado os mesmo negado tais vendas; confirma o parecer por si elaborado de fls. 31 e sgs.
O depoimento desta testemunha revelou-se isento e coerente, conjugado com os documentos juntos aos autos, tudo aliado às regras da experiência comum, lograram convencer o Tribunal da factualidade por ela relatada.
A testemunha KK, casada, oficial de carnes, no essencial, referiu não conhecer os arguidos nem a firma arguida; nunca vendeu nem comprou materiais preciosos, nem a própria nem o marido FF.
O depoimento desta testemunha foi relevante uma vez que do mesmo se retira o facto de não ter vendido nem adquirido qualquer metal precioso aos arguidos, que nem conhece.
A testemunha FF, casado, pedreiro, no essencial, referiu que não conhecer os arguidos nem a firma arguida; nunca lhes vendeu nem comprou materiais preciosos.
O depoimento desta testemunha foi relevante uma vez que do mesmo se retira o facto de não ter vendido nem adquirido qualquer metal precioso aos arguidos, que nem conhece.
A testemunha CC, divorciada, contabilista certificada, no essencial, referiu que trabalhou para uma empresa do arguido AA de metais preciosos, não se recorda em que data; era quem preenchia a documentação referente a IRC e IVA com base na documentação fornecida pelos arguidos; quando há compras a particulares há uma declaração do particular.
O depoimento desta testemunha foi relevante uma vez que do mesmo se retira o facto de as declarações fiscais pela mesma preenchida eram com elaboradas com base na documentação fornecida pelos arguidos.
Assim, quanto à factualidade provada, o Tribunal fundou a sua convicção na prova testemunhal produzida, conjugada com a prova documental existente nos autos, nomeadamente documentos de fls. 85 a 88;, 93 a 97, -certidão permanente de fls. 123, de onde resulta que ambos os arguidos eram sócios e gerentes à data dos factos sendo irrelevante a posterior cessão de funções e cessão de quotas; resposta a solicitação da AT de GG de fls. 163 a 165; resposta a solicitação da AT de HH de fls. 166 a 168; resposta a solicitação da AT de II de fls. 169 a 171; resposta a solicitação da AT de JJ de fls. 175 a 176; declaração de modelo 22 de fls. 232; declaração de IV A de fls. 246; que revelaram-se suficientemente credíveis, corroborando o teor dos documentos agora referidos, por forma a considerar apurado o recebimento pelos arguidos do montante referido na acusação e consequente apropriação do mesmo.
No que tange aos antecedentes criminais, o Tribunal atendeu ao teor dos Certificados de Registo Criminal juntos aos autos.
No que se refere às condições socioeconómicas do arguido, o tribunal teve presente as suas declarações que se revelaram espontâneas, conjugadas com os relatórios sociais juntos aos autos.
Enquadramento Jurídico-Penal:
Vêm os arguidos acusados da prática de:
- o arguido AA, em coautoria,
um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6º, n.º 1, 103º, n.º 1, al a) e 104º, n.º 2, al b) do RGIT aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho;
- a arguida BB, em coautoria, um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos
artigos 6º, n.º 1, 103º, n.º 1, al a) e 104º, n.º 2, al b) do RGIT aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho;
Os arguidos vêm acusados da prática do crime imputado em coautoria.
A coautoria pressupõe um elemento subjectivo - o acordo, com o sentido de decisão, expressa ou tácita, para a realização de determinada acção típica, e um elemento objectivo, que constitui a realização conjunta do facto, ou seja, tomar parte directa na execução. A execução conjunta, neste sentido, não exige que todos os agentes intervenham em todos os actos, mais ou menos complexos, organizados ou planeados, que se destinem a produzir o resultado típico pretendido, bastando que a actuação de cada um dos agentes seja elemento componente do conjunto da acção, mas indispensável à produção da finalidade e do resultado a que o acordo se destina. Tal como o autor deve ter o domínio funcional do facto, também o co-autor tem que deter o domínio funcional da actividade que realiza, integrante do conjunto da acção para a qual deu o seu acordo, e que, na execução desse acordo, se dispôs a levar a cabo. O domínio funcional do facto próprio da autoria significa que a actividade, mesmo parcelar, do co-autor na realização do objectivo acordado se tem de revelar indispensável à realização desse objectivo.
No caso dos autos, sendo amos os arguidos sócios e gerente da firma supra identificada à data dos factos, não tendo sido alegado nem feita qualquer prova que colocasse em causa, nomeadamente, a quem competia a gestão de facto da firma, deverá entender-se que a gestão era efectuada de igual modo e conhecimento por ambos os arguidos, pelo que se verifica a coautoria([2])([3]).
Quanto ao elemento subjetivo, face à factualidade supra exposta, resulta preenchido, na modalidade de dolo direto (art.º 14.º, n.º 1 do C. Penal).
Inexistem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que os arguidos deverão ser responsabilizados pelas suas condutas.
Feito o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto dada como provada, importa, agora, determinar qual a medida da pena a aplicar aos arguidos.
A pena há de ser encontrada dentro dos limites das molduras penais previstas para os crimes pelos quais os arguidos vêm acusados, tendo em consideração que não pode ultrapassar a medida da culpa e que serve exclusivamente as finalidades de prevenção, geral e especial (artºs. 40.º, n.ºs 1 e 2 e 71.º, n.º 1, do C. Penal).
Assim, para determinação da medida da pena atender-se-á à medida da culpa do agente, que desempenha uma dupla função de fundamento da aplicação da pena e de limite da sua medida, às exigências da prevenção de futuros crimes, sem esquecer que a finalidade última da intervenção penal reside na reinserção social do delinquente, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o arguido (art.ºs 40.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º, n.ºs 1 e 2, ambos do C. Penal).
Revertendo para a situação em apreço nos autos, no que respeita ao crime de fraude fiscal qualificada, o art.º 104.º, n.º 2 do RGIT, pune a conduta da arguida LL com pena de prisão de 1 a 5 anos.
A prática de crimes fiscais tem subjacentes fortes exigências ao nível da prevenção geral, dada a frequência com que situações idênticas às dos autos se verificam no meio empresarial, constituindo, do ponto de vista social e económico, um verdadeiro flagelo a que os tribunais não podem ficar indiferentes.
De facto, a evasão fiscal prejudica gravemente todos os cidadãos em benefício censurável daqueles que dela fazem uma fonte de rendimento. Por isso se impõe a aplicação de medidas que se revelem verdadeiramente dissuasoras e se mostrem adequadas a desincentivar a prática de crimes fiscais.
No vertente caso, importa considerar a elevada ilicitude do facto manifestada na vantagem patrimonial obtida.
Já a culpa de todos os arguidos é muito elevada – dolo direto -, tendo pré-elaborado entre si um plano que cumpriram sem hesitar. O esquema montado exigiu premeditação, organização e concretização.
Verifica-se, ainda, a ausência de arrependimento, uma vez que não resulta dos autos qualquer facto que nos leve a concluir como tal.
Os arguidos AA e BB são primários.
Todos os arguidos, atualmente, se encontram socialmente inseridos.
Sopesando todos os fatores enunciados, considera-se adequado aplicar aos arguidos as seguintes penas:
(…).
De acordo com o mencionado normativo, está verificado o pressuposto formal: aplicação de uma pena previamente determinada não superior a cinco anos.
Já o pressuposto material consiste num juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento dos arguidos, no sentido de uma esperança fundada de que através da censura dos factos e da ameaça da prisão efetiva, a ressocialização dos arguidos em liberdade seja conseguida, não voltando aqueles a cometer novos crimes, dando cumprimento, de modo adequado, em ordem à defesa da ordem jurídica, às exigências de prevenção geral e às necessidades de prevenção especial.
Ora, a frequência deste tipo de criminalidade e o elevado número de cifras negras ainda existente em Portugal, reveladoras das prementes exigências de prevenção geral já mencionadas, levariam este Tribunal a um juízo de prognose negativo em relação à suspensão de execução da pena de prisão.
Os arguidos não possuem antecedentes criminais, estão atualmente social integrados. Possuem apoio familiar, sendo a sua culpa mediana/alta.
Tudo ponderado, o Tribunal entende que a suspensão da execução da pena de prisão, baseada numa ideia de censura do facto e de ameaça de prisão, se apresenta como uma medida sancionatória adequada por suficientemente intrusiva para obter a ressocialização dos arguidos e assegurar o restabelecimento da confiança da comunidade na vigência e validade da norma penal violada, bem como que tal medida logre obter um real efeito dissuasor de outros comportamentos delituais congéneres.
Como tal, considerando o Tribunal que a censura do facto e a ameaça da pena de prisão efetiva constituirão um sério aviso para os arguidos, está preenchido o juízo de prognose favorável, é dizer, o requisito material da suspensão da execução da pena de prisão (cfr. art.º 50.º, n.º 1 do C. Penal).
Assim sendo, nos termos do art.º 50.º, n.º 1 do C. Penal, impõe-se a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada aos arguidos.
Prescreve o n.º 1 do art.º 14.º do RGIT que “a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.
Apesar de a pena concreta aplicada ser de apenas um ano e seis meses, o art.º 14.º n.º 1 do RGIT estabelece o limite máximo de cinco anos aplicável ao período de suspensão da pena.
Tal normativo impõe, ainda, obrigatoriamente a sujeição da suspensão de execução da pena de prisão relativa a crimes tributários ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, bem como dos montantes indevidamente obtidos.
Ora, a frequência deste tipo de criminalidade e o elevado número de cifras negras ainda existente em Portugal, reveladoras das prementes exigências de prevenção geral já mencionadas, levariam este Tribunal a um juízo de prognose negativo em relação à suspensão de execução da pena de prisão.
Os arguidos não possuem antecedentes criminais, estão atualmente social integrados. Possuem apoio familiar, sendo a sua culpa mediana/alta.
Tudo ponderado, o Tribunal entende que a suspensão da execução da pena de prisão, baseada numa ideia de censura do facto e de ameaça de prisão, se apresenta como uma medida sancionatória adequada por suficientemente intrusiva para obter a ressocialização dos arguidos e assegurar o restabelecimento da confiança da comunidade na vigência e validade da norma penal violada, bem como que tal medida logre obter um real efeito dissuasor de outros comportamentos delituais congéneres.
Como tal, considerando o Tribunal que a censura do facto e a ameaça da pena de prisão efetiva constituirão um sério aviso para os arguidos, está preenchido o juízo de prognose favorável, é dizer, o requisito material da suspensão da execução da pena de prisão (cfr. art.º 50.º, n.º 1 do C. Penal).
Assim sendo, nos termos do art.º 50.º, n.º 1 do C. Penal, impõe-se a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada aos arguidos.
Prescreve o n.º 1 do art.º 14.º do RGIT que “a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.
Apesar de a pena concreta aplicada ser de apenas um ano e seis meses, o art.º 14.º n.º 1 do RGIT estabelece o limite máximo de cinco anos aplicável ao período de suspensão da pena.
Tal normativo impõe, ainda, obrigatoriamente a sujeição da suspensão de execução da pena de prisão relativa a crimes tributários ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, bem como dos montantes indevidamente obtidos.
De realçar que o Tribunal Constitucional se tem pronunciado pela não inconstitucionalidade do art.º 14.º do RGIT, enquanto condiciona obrigatoriamente a suspensão da execução da pena ao pagamento das quantias em dívida – entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 556/09, 587/09 e 237/11, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.
De referir também que o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012, publicado no Diário da República n.º 206, I.ª série, de 24.10.2012, não é aplicável no caso vertente, uma vez que a necessidade do juízo de prognose a que se refere o AFJ só se verifica quando o crime
tributário em questão é punível com pena de prisão ou outra pena não privativa da liberdade, posição que defendemos, apesar da divergência jurisprudencial existente, sustentando a nossa posição nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 20.02.2013, proc. n.º 131/08.9IDPRT.P1 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.06.2018, proc. n.º 3912/12.5T3SNT.L1-5, o que não acontece no vertente caso, uma vez que o crime de fraude fiscal qualificada imputado à arguido apenas é punido com pena de prisão.
Por fim, entendemos que a obrigatoriedade de pagamento dos valores tributários na totalidade se impõem no crime de fraude fiscal qualificada, uma vez que quando o art.º 14.º do RGIT foi aprovado, já existia o n.º 2 do art.º 51.º do C. Penal, que refere que os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir, pelo que a opção feita pelo legislador foi plenamente consciente, tendo entendido que o pagamento dos valores tributários pelo arguido condenado por crime fiscal, constitui sempre uma exigência “razoável”, tratando-se, pois, de quantias cujo pagamento é sempre de exigir ao arguido, como causador do respetivo dano ao Estado.
Assim, apesar de os arguidos, segundo as condições socioeconómicas que se apuraram, se verem certamente impossibilitados de pagar a totalidade da quantia tributária em dívida, entendemos que a obrigatoriedade imposta pelo art.º 14.º, n.º 1 do RGIT exige que, caso o Tribunal entenda suspender a pena de prisão, o tenha que fazer com a obrigatoriedade de pagamento da totalidade do montante, devendo a final e caso não venha a ser pago na íntegra, analisar se o seu incumprimento é culposo e, assim, revogar ou não a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
Como tal, a suspensão será pelo prazo de 5 anos e condicionada, nos termos do art.º 14.º, n.º 1 do RGIT, ao pagamento da quantia de €67.168,25 de IRC, correspondente à sua contribuição para a vantagem patrimonial obtida e demais acréscimos legais”.
A) Na sequência de notificação levada a cabo pela A.T. por carta registada com aviso de receção endereçada a GG (com vista a informar se confirma ou nega a venda efetuada; na afirmativa, para fazer descrição pormenorizada quanto ao tipo de bens e quantidades vendidas, preço unitário e valor total; na afirmativa, juntar cópia de documento que titula essa venda; informações acerca dos meios de recebimento utilizados, remeter cópia de eventuais cheques, recibos bancários, extratos de conta bancária que atestem os recebimentos efetuados; documentação do transporte dos bens; informações quanto à origem dos bens vendidos; cópias dos documentos que atestem a origem dos bens), o referido GG por mail enviado em 11/10/2015 às 21:58 horas respondeu que “nunca efetuei qualquer venda à referida empresa A..., Lda.”;
B) Na sequência de notificação levada a cabo pela A.T. por carta registada com aviso de receção endereçada a HH (com vista a informar se confirma ou nega a venda efetuada; na afirmativa, para fazer descrição pormenorizada quanto ao tipo de bens e quantidades vendidas, preço unitário e valor total; na afirmativa, juntar cópia de documento que titula essa venda; informações acerca dos meios de recebimento utilizados, remeter cópia de eventuais cheques, recibos bancários, extratos de conta bancária que atestem os recebimentos efetuados; documentação do transporte dos bens; informações quanto à origem dos bens vendidos; cópias dos documentos que atestem a origem dos bens), o referido HH, por mail enviado em 13/10/2015 às 14.46 horas respondeu que “desconheço por completo a empresa A..., Lda. e em ocasião alguma terei feito qualquer tipo de transação com esta mesma empresa, seja do valor que consta do respetivo oficio seja de qualquer outro valor”;
C) Na sequência de notificação levada a cabo pela A.T. por carta registada com aviso de receção endereçada a JJ (com vista a informar se confirma ou nega a venda efetuada; na afirmativa, para fazer descrição pormenorizada quanto ao tipo de
bens e quantidades vendidas, preço unitário e valor total; na afirmativa, juntar cópia de documento que titula essa venda; informações acerca dos meios de recebimento utilizados, remeter cópia de eventuais cheques, recibos bancários, extratos de conta bancária que atestem os recebimentos efetuados; documentação do transporte dos bens; informações quanto à origem dos bens vendidos; cópias dos documentos que atestem a origem dos bens), o referido JJ, por mail enviado em 12/10/2015 às 22:47 horas respondeu que “(…). Gostaria de saber se possível que tipo de venda é que se trata (objeto) porque não tenho qualquer conhecimento de ter vendido o que quer que seja e muito menos para a empresa em questão. Por isso não terei quaisquer documentos a apresentar, gostaria de saber o que tenho que fazer. Obrigado”;
D) Na sequência de notificação levada a cabo pela A.T. por carta registada com aviso de receção endereçada a II (com vista a informar se confirma ou nega a venda efetuada; na afirmativa, para fazer descrição pormenorizada quanto ao tipo de bens e quantidades vendidas, preço unitário e valor total; na afirmativa, juntar cópia de documento que titula essa venda; informações acerca dos meios de recebimento utilizados, remeter cópia de eventuais cheques, recibos bancários, extratos de conta bancária que atestem os recebimentos efetuados; documentação do transporte dos bens; informações quanto à origem dos bens vendidos; cópias dos documentos que atestem a origem dos bens), a referida II por mail enviado em 12/10 de ano e hora que não é possível visualizar (por sobreposição de documentos) que nunca realizou qualquer tipo de transação com a empresa A..., Lda. nem tão pouco tem conhecimento desta firma;
E) Consta na pág. 4 do Parecer da A.T. de fls. 281 a 287 e respetiva nota de rodapé, que “ Das investigações realizadas no âmbito da referida ação inspetiva a I.T. verificou através da consulta à base de dados da A.T., nomeadamente das declarações apresentadas – IES/”Anexo P” (“fornecedores”), que a arguida “A..., Lda.”
supostamente no mês de Outubro de 2011 (mês em que cessou a atividade para efeitos de IVA) efetuou aquisições/compras de metais preciosos junto de “particulares” (nota de rodapé: Por oposição a pessoas que exercem uma atividade comercial)”;
F) Nem no Parecer da A.T. de fls. 281 a 287, ou no Relatório da Ação Inspetiva de fls. 142 a 145 para as quais remete esse Parecer, nem no Parecer Complementar de fls. 443 a 444, é feita qualquer referência sobre quem efetivamente exercia as funções de gerente da sociedade comercial denominada “A..., Lda.”;
G) Na acusação pública, vem arrolada como prova documental, entre outra: “- resposta a solicitação da AT de GG de fls. 163 a 165; -resposta a solicitação da AT de HH de fls. 166 a 168; -resposta a solicitação da AT de II de fls. 169 a 171; -resposta a solicitação da AT de JJ de fls. 175 a 176; “;
H) As pessoas referidas em G) não constam do elenco da prova testemunhal arrolada na acusação;
I) A contestação apresentada pelos arguidos em 20/03/2023 (referência 35114485) tem o seguinte teor:
“Os arguidos oferecem o merecimento dos autos e tudo o que, a seu favor, resultar da audiência de julgamento.
ROL DE TESTEMUNHAS: Todas as indicadas na douta acusação”.
1ª questão: a utilização de prova documental que corporiza “declarações” prestadas por escrito que não foram confirmadas pelos seus (aparentes) autores em sede de audiência de julgamento, para formar a convicção do Tribunal.
Os recorrentes alegam nas conclusões L), N), R) e S), que a decisão proferida quanto à matéria de facto julgada como provada nos pontos 2, 3, 4, 5 e 7, assenta (também) nas “declarações” prestadas em sede de procedimento inspetivo, por GG (fls. 163 a 165), HH (fls. 166 a 168), II (fls. 169 a 171) e JJ (fls. 171 a 175), que não foram confirmadas em sede de audiência de julgamento (dado que foram arroladas como testemunhas e inquiridas em audiência de julgamento apenas duas pessoas de uma lista de seis particulares, a saber, DD e FF).
Porém, o Tribunal a quo assumiu que também estes “particulares” nada venderam à sociedade comercial “A..., Lda.”, conclusão esta que lhe estava vedada.
Acrescentam ainda que se desconhece quem elaborou as ditas “declarações” escritas, se os próprios ou terceiros e, por não terem prestado depoimento em audiência, tais “declarações” escritas não podem sustentar que estas “testemunhas” não conhecem os arguidos, nem transacionaram bens e os valores que a AT diz que não transacionaram.
Decidindo.
Esta alegação do recorrente prende-se com a utilização de prova documental pelo Tribunal a quo que corporiza “depoimentos” prestados por escrito na fase processual do inquérito perante os OPC (os funcionários da A.T.) para formar a sua convicção sobre factos que considerou como provados na sentença sem que, das diversas atas da audiência de discussão e julgamento conste que tivesse cumprido com os requisitos previstos no art. 356º nºs 1, 5 por referência ao nº 2 b) e 9 do CPP.
Tais “respostas” por escrito, enviadas através de mail para o inquérito, encontravam-se arrolados na acusação pública erroneamente em sede de prova documental (por duas razões, conforme se explanará infra), apesar de aí também constar arrolada prova testemunhal.
Com efeito, nada impede que se solicitem informações a entidades públicas (por ex., centros de saúde), particulares (por ex., operadoras de telemóveis; empresas na qualidade de entidade patronal do/a suspeito/a) ou a pessoas singulares (que também podem figurar como entidade patronal de alguém com relevância para o processo, para por ex., se obter a localização do/a suspeito/a ou de alguma testemunha que se pretenda inquirir); porém, informações incidem apenas sobre circunstâncias laterais, que importe conhecer para permitir o apuramento/esclarecimento dos factos que constituem o objeto do processo.
No caso destes autos, as ditas “respostas a solicitação da AT” não se podem considerar como meras informações na medida em que incidem precisamente sobre os factos que constituem o objeto do processo (e da própria acusação) e foram remetidas pelos OPC/Autoridade Tributária com vista a apurar se os particulares indicados na motivação da sentença (GG; HH, II e JJ) quanto à matéria de facto provada, venderam metais preciosos à sociedade comercial “A..., Lda.” - a qual, apresentou na sua contabilidade, diversas faturas para suporte de aquisições de metais preciosos às referidas pessoas singulares para efeitos de apuramento de IRC e IVA), designadamente se: confirmam ou negam a venda efetuada; na afirmativa, para fazerem descrição pormenorizada quanto ao tipo de bens e quantidades vendidas, preço unitário e valor total; na afirmativa, juntarem cópia de documento que titula essa venda; informações acerca dos meios de recebimento utilizados, remeterem cópia de eventuais cheques, recibos bancários, extratos de conta bancária que atestem os recebimentos efetuados; documentação do transporte dos bens; informações quanto à origem dos bens vendidos; cópias dos documentos que atestem a origem dos bens.
Em suma, esteve em causa averiguar se as faturas utilizadas pelos arguidos como custos da sociedade comercial de que eram representantes legais e gerentes (denominada “A..., Lda.”) relativas a aquisição de mercadorias para efeitos de apuramento de IRC e IVA, correspondiam a efetivas/reais transações de metais preciosos.
Estão por isso em causa verdadeiros depoimentos efetuados por escrito, através de mail e que constam das fls. do inquérito indicadas na fundamentação da sentença em sede de matéria de facto considerada como provada.
Efetivamente na fundamentação da matéria de facto, consta da sentença recorrida a referência pelo Sr. Juiz a quo a “declarações”/respostas enviadas (por mail) pelas referidas pessoas singulares a notificações que receberam na fase do inquérito remetidas pela Autoridade Tributária do seguinte teor: ”resposta a solicitação da AT de GG de fls. 163 a 165; resposta a solicitação da AT de HH de fls. 166 a 168; resposta a solicitação da AT de II de fls. 169 a 171; resposta a solicitação da AT de JJ de fls. 175 a 176”, sendo que tais pessoas singulares não foram inquiridas na fase do inquérito, não foram arroladas como testemunhas na acusação e as respetivas “respostas a solicitação da A.T.” não foram lidas/reproduzidas em audiência de julgamento.
Pese embora tais “respostas”/«depoimentos prestados por escrito» (cuja validade não foi posta em causa([4]), pese embora o disposto no art. 503º nº 2 alíneas a) a i) do CPC aplicável ao processo penal ex vi do nº 1 do art. 139º do CPP que prevê que “Têm aplicação em processo penal todas as imunidades e prerrogativas estabelecidas na lei quanto ao dever de testemunhar e ao modo e local da prestação dos depoimentos”, quanto às entidades que gozam da prerrogativa de depor primeiro por escrito, que os ditos particulares manifestamente não gozam; pese embora o disposto nos arts. 518º e 519º do CPC quanto ao modo e lugar de prestar depoimento por escrito, inaplicáveis na área do CPP; e ainda as regras previstas no CPP quanto ao modo da prestação de depoimento, dispondo o nº 1 do art. 128º que “A testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova”, o nº 1 do art. 138º que estabelece que “ O depoimento é um ato pessoal (…)”, o nº 3 estabelece que “O presidente pergunta à testemunha pela sua identificação, pelas suas relações pessoais, familiares e profissionais com os participantes e pelo seu interesse na causa de tudo se fazendo menção na ata”; o nº 4 dispõe que “ Seguidamente a testemunha é inquirida por quem a indicou, sendo depois sujeita a contrainterrogatório”; e ao local da prestação do depoimento, em regra, na audiência de julgamento como resulta expressamente do disposto no art. 348º nº 1 que estabelece que “ À produção da prova testemunhal na audiência são correspondentemente aplicáveis as disposições gerais sobre aquele meio de prova, em tudo o que não for contrariado pelo disposto neste capítulo”, pois o nº 1 do art. 318º prescreve que “ Excecionalmente, a tomada de declarações (…) às testemunhas, (…) pode, oficiosamente ou a requerimento, não ser prestada presencialmente (…)” e o art. 319º nº 1 permite a tomada de declarações no domicílio, “ Se, por fundadas razões, (…) uma testemunha (…) se encontrarem impossibilitados de comparecer na audiência, pode o presidente ordenar, oficiosamente ou a requerimento, que lhes sejam tomadas declarações no lugar em que se encontrarem (…)”, sendo de excluir a “hipótese típica” prevista no art. 517º nºs 1 e 2 do CPC cujo regime jurídico é inaplicável na área do processo penal) constem de prova documental arrolada na acusação, o certo é que o Tribunal a quo, utilizou-a, como se disse, para a formação da sua convicção acerca de matéria de facto que considerou como provada.
Ora, estabelece o art. 355º do CPP sob a epígrafe «Proibição de valoração de provas»:
“1 - Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes “.
Como se escreveu no Ac. da R.P. de 01/04/2020([5]), “(Est)a norma não exige que todas as provas sejam produzidas e/ou reproduzidas em audiência, pois os documentos que estejam nos autos consideram-se examinados e produzidos em audiência, independentemente de aí terem sido lidos, porque estando eles no processo, todos os intervenientes têm acesso aos mesmos e têm, portanto, oportunidade de os analisar, por um lado, e contraditar, nomeadamente em julgamento, por outro “.
No que respeita às declarações para memória futura nos termos do art. 271º do CPP, que constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, o AUJ nº 8/2017 de 21 de novembro([6]) firmou a seguinte jurisprudência: “As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356º n.º 2, alínea a), do mesmo Código “.
Porém, no caso dos autos, os «depoimentos» prestados por escrito([7]), aparentemente, por GG, HH, II e JJ para serem atendidos, como efetivamente o foram na sentença, teriam que ser lidos na audiência de julgamento.
O art. 356º do CPP que tem por epígrafe «Reprodução ou leitura permitidas de autos e declarações» prevê os casos em que é permitida, em audiência de julgamento, a leitura de autos; no seu nº 2, estabelece em que situações é permitida a reprodução ou leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas.
O nº 9 do referido preceito prescreve que: “A permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da ata, sob pena de nulidade”.
Conforme ensina P. Pinto de Albuquerque([8]), “as disposições do art. 356º nºs 1, 2, 3, 4 e 5, são normas excecionais porque contrárias ao princípio da imediação, não admitindo, por isso, aplicação analógica e não existem outros casos em que seja permitida a leitura, visualização ou audição de ato processual anterior à audiência de julgamento contendo declarações do assistente, das partes civis e das testemunhas fora dos que estão expressamente previstos neste preceito” - destacado e sublinhado nosso.
À parte as declarações para memória futura que não estão em causa no caso destes autos, pode ler-se no Ac. da R.P. de 17/06/2015([9]) a dado passo que “Conforme refere Damião da Cunha[1] «parece adquirido genericamente que, num processo de estrutura acusatória, a audiência de julgamento e em especial a produção da prova assume o lugar central no processo penal. A produção da prova que deve servir para fundamentar a convicção do julgador, tem de ser realizada na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de estrutura acusatória: os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção da prova».
No mesmo sentido se pronunciou Germano Marques da Silva: «O modelo consagrado no Código de Processo Penal de 1987 é o acusatório que implica a participação de todos os sujeitos processuais na constituição da prova que há-de servir para a decisão. A ciência do juiz de julgamento deve ser comum aos demais sujeitos processuais e comuns as fontes onde colhe esse conhecimento. Ora, o melhor método técnico para assegurar esta participação é o contraditório em audiência. A admissão da prova recolhida em modo inquisitório, ainda que submetida posteriormente a apreciação contraditória, representa um desequilíbrio entre a acusação e a defesa, em prejuízo da defesa. Acresce que o juiz deve decidir sob a impressão de quanto viu e ouviu e daí a necessidade de que a prova seja produzida oralmente em audiência, ressalvadas as excepções em que tal seja de todo impossível»[2]. (…).
Se a prova não foi produzida ou examinada em audiência não pode valer para o efeito da formação da convicção do julgador nem deve ser invocada na fundamentação da sentença.
O nº 2 do artigo 355º ressalva, porém, diversas exceções àquela regra, as quais são depois enunciadas nos artigos 356º e 357º.
Conforme se sumariou no Ac. do STJ de 03/03/2010([10]), “I - Os princípios constitucionais da busca da verdade material e da realização da justiça, mesmo em matéria de funcionalidade da justiça, penas e da tutela de valores, têm limites, impostos pela dignidade e pelos direitos fundamentais das pessoas, que se traduzem processualmente nas proibições de prova. XV - A essência da prova testemunhal encontra-se nas declarações que efectua uma pessoa sobre aquilo que percebeu pessoal e directamente. A prova testemunhal caracteriza-se pela sua imediação com o acontecimento que se presenciou visual ou auditivamente “.
No mesmo sentido, diz-se no Ac. da R.L. de 22/10/2024([11]) que, “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente (cfr. arts. 93º, 139º, nº 1, do C.P.P. e 503º, nº 2, do C.P.C.), a prestação de quaisquer declarações processa-se por forma oral, não sendo autorizada a leitura de documentos escritos previamente elaborados para aquele efeito (cfr. art.º 96º nº 1 do C.P.P.)”, leitura essa que no caso destes autos nem sequer ocorreu, como resulta da análise das atas da audiência de discussão e julgamento (referências 451593596, 451819635, 452229117, 452962252, 453529127, 459616916 e 459798042).
Mas se o Tribunal a quo pretendia utilizar as referidas “respostas a solicitação da AT”/depoimentos escritos (repete-se, cuja validade até ao momento não foi posta em causa([12])) na formação da sua convicção, deveria previamente ter indagado, em audiência de julgamento, se o MP e os arguidos estavam de acordo na sua leitura (cfr. nº 5 do art. 356º do CPP) e, na afirmativa, deveria ter tido lugar a leitura das referidas “respostas” (a solicitação da AT) e assim permitir-se o contraditório.
A respeito do princípio do contraditório, escreveu-se no Ac. da R.P. de 04/07/2001([13]), que “O princípio do contraditório, por imperativo constitucional («a audiência de julgamento está subordinada ao princípio do contraditório», cfr. art. 32º nº 5 da CRP) pressupõe, pois, na estruturação da audiência em termos de debate ou discussão entre a acusação e a defesa, que cada um dos sujeitos é chamado a aduzir as suas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas, a controlar as provas contra si oferecidas e a discretear sobre o resultado de umas e outras. E, porque se as provas hão-de ser objeto de apreciação em contraditório em audiência, fica excluída a possibilidade de decisão com base em elementos de prova que nela não tenham sido apresentados e discutidos (arts. 327º, 355º, 348º e 360º do CPP). (…).
A publicidade da audiência destina-se a permitir a fiscalização da atividade jurisdicional e a convencer o público da justiça da decisão, o que passa pela possibilidade de conhecer todas as provas que hão-de servir para a decisão. Mas também no que ao próprio tribunal respeita as provas têm que ser todas examinadas em audiência de discussão e julgamento”.
Note-se que o que vem de dizer-se tem em vista a circunstância de a referida prova documental arrolada pelo MºPº na acusação, ter a particularidade de corporizar verdadeiros depoimentos prestados por escrito/através de mail, aparentemente da autoria das pessoas em questão a solicitação da A.T./OPC.
Conforme ensina Paulo Dá Mesquita([14]), o art. 356º nº 1 b) do CPP estabelece duas regras distintas sobre a aquisição de elementos constantes de autos processuais das fases preliminares como prova para o julgamento do facto:
- a primeira dessas regras prescreve que as informações com relevância probatória constantes de autos das fases preliminares e que não sejam classificadas como declarações de arguido, assistente, partes civis ou testemunhas podem ser assumidas como prova documental no julgamento do facto;
- a segunda das regras gerais é a seguinte: as declarações de arguido, assistente, partes civis ou testemunhas constantes de autos das fases preliminares não podem, salvo norma em contrário, ser assumidas (examinadas) como prova documental para efeitos do julgamento do facto (no caso destes autos, os “depoimentos” prestados por escrito nem sequer constam de qualquer «auto», entendido este nos termos definidos pelo art. 99º nº 1 do CPP), sendo esta a segunda razão de ser da errónea indicação, pelo MºPº na acusação, das referidas “respostas a solicitação da A.T.”, a título de prova documental.
Verifica-se assim a violação do disposto no art. 355º do CPP por se ter valorado um meio de prova que a lei não permite (reportando-nos apenas à prova documental consubstanciada nas referidas “respostas a solicitação da AT”, independentemente da sua (in)validade enquanto depoimentos prestados por escrito pelas pessoas em causa) fora das condições previstas no art. 356º nºs 5 e 9 do CPP.
Diz-se ainda no referido aresto da R.P. de 17/06/2015 que “Como defende Costa Andrade[3], o direito português associou as proibições de prova à figura e regime de nulidades, o que significa que, nos termos do art. 122º do C.P.P, tornam inválido o ato em que se verificarem bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.[4]
Segundo a jurisprudência dominante, a nulidade da valoração de provas proibidas é uma nulidade insanável.[5] De salientar que não se trata da nulidade da sentença prevista na parte final da al. c) do nº 1 do art.379ºdo C.P.Penal, (…), uma vez que não é um caso em que o tribunal se tenha pronunciado sobre uma questão de que não pudesse conhecer mas antes da valoração de uma prova proibida. Uma vez que a decisão condenatória valorou os escritos e eles não são suscetíveis de serem cindidos da demais prova em que se alicerçou aquela decisão, a referida nulidade implica, também, a repetição do julgamento “– destacado e sublinhado da nossa autoria.
E é exatamente o quanto se passa na presente situação em que, para além dos referidos escritos/respostas, concorreram para a formação da convicção do Sr. Juiz a quo sobre a matéria de facto dada como provada, outras provas cuja validade não vem questionada.
Em face do exposto, a nulidade verificada afeta o julgamento bem como a sentença recorrida dado que a mesma é nula por utilização, na sua fundamentação da matéria de facto, de prova não examinada em audiência (cfr. citados arts. 355º nº 1 e 356º nºs 5 e 9 do CPP), tornando-se, pois, necessário que o Sr. Juiz a quo reabra a audiência para que cumpra o formalismo previsto no art. 356º do CPP.
Em consequência, procede o recurso quanto a esta questão.
Face à nulidade verificada e à necessidade de repetição do julgamento, fica prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas nas conclusões da motivação do recurso.
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso e em consequência, declarar nulo o julgamento e a sentença recorrida, por violação do disposto nos arts. 355º e 356º ambos do CPP, devendo o julgamento ser repetido, se possível, pelo mesmo juiz.
Sem tributação – cfr. art. 513º nº 1, a contrario, do CPP.
Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.
Porto, 20/11/2024
Lígia Trovão
Castela Rio - [«VOTO DE VENCIMENTO » Propus à Conferência «o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo» por entender - conforme m/ praxis penal processual penal recursória - que:
A Sentença recorrida padece de 'erro notório na apreciação da prova' do 410-2-c do CPP por ter valorado - no processo de formação da convicção quanto a factos que podiam e deviam ser julgados, uns provados, outros não provados - o teor dos 'escritos dos declarantes' - usando dizeres da área civil processual civil - GG a fls ..., HH a fls ..., II a fls ... e JJ a fls ... que não podia fazer.
Cada um dos quatro teores não tem fundamento legal nalguma «... prerrogativa de depor primeiro por escrito, se preferirem, ...» do art 503-2-a-b-c-d-e-f-g-h-i, nem no «depoimento prestado por escrito» ut art 518-1, todos do CPC de 01-9-2013 aplicável ex vi art 139-1 do CPP. Não há que referir a 'hipótese típica' do art 517-1-2 do CPC pelo facto do seu regime jurídico logo evidenciar sua inaplicabilidade na área PPP.
A valoração a quo de 'depoimento escrito' que não é valorável constitui valoração de 'meio de (obtenção) de prova' inexistente pelo facto do princípio geral de processo penal ser «o depoimento ... um acto pessoal...» ut art 138-1 do CPP a prestar «... na audiência final, presencialmente ou através de teleconferência,...» ut art 500 do CPC, que é o paradigma de princípio de produção de «prova testemunhal».
A valoração a quo de 'meio de (obtenção de) prova' legalmente inexistente - 'escritos dos declarantes' ou 'depoimento por escrito' - não constitui 'nulidade de procedimento' mas 'erro notório na apreciação da prova' produzida em Audiência de Julgamento mercê do erróneo 'rol probatório' do MP que contém 'meio de (obtenção de) prova' qua tale legalmente inexistente que o Tribunal a quo valorou como se pudessem ser 'prova documental' substitutiva de 'prova testemunhal' que constitui mais uma hipótese de 'inexistência jurídica'.
Sua sanação - por eliminação do processo de formação da convicção do decisor - perpassa para reenvio da totalidade do objecto do processo para julgamento por novo tribunal ut art 426 do CPP, pelo facto dos 'quatro teores' interferirem com 'pontos de facto' de thema probandum decisivos ao julgamento 'provado' - ou 'não provado' - de 'pontos de facto' do thema decidendum que são in casu os (f)actos tidos por constitutivos da acusada co-autoria material de dolosa 'fraude fiscal qualificada' mediante 'facturas falsas'.
Os conteúdos dos 'escritos dos declarantes' - valorados a quo como se pudessem ser 'prova documental' substitutiva de 'prova testemunhal' - não interferem apenas com 'circunstâncias acidentais' dos sobreditos crimes acusados, nem apenas com (f)actos da história e condição pessoal / familiar / social / cultural / profissional / laboral / económica / financeira / criminal / prisional de cada um dos Arguidos em julgamento.
Tribunal de Relação - operando como Tribunal de II Instância, em sede recursória penal processual penal - pode e deve ponderar os conteúdos 'escritos dos declarantes' - como se estivessem reproduzidos no corpo da 'Decisão Final' onde só não estão por se ter usado a vulgaris técnica da remissão para o nº de fls do 'processo físico' ou para o nº da referência citius do 'processo informático' - por eles constaram da motivação da decisão a quo de 'pontos de factos' a quo julgados, uns, 'provados', outros, 'não provados', e haver ab initio que asseverar a estruturação lógica formal e material do que vem decidido a quo para só ulteriormente se poder decidir do seu (de)mérito.
Só daquele modo se pode eficazmente precludir a subsistência na Ordem Jurídica de 'Decisões Finais' «... eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior ...» sic Conselheiro OLIVEIRA MENDES, anotação ao art 379, AAVV, Código de Processo Penal comentado, Almedina, Coimbra, 3ª edição, Abril 2021, pág 1158, isto é, prevenir a subsistência intra-processual e extra processual de Acórdãos e Sentenças com deficiências lógicas estruturais, mormente prevenir sua certificação para terceiros.»]
Pedro Vaz Pato
_________________________________
[1] Cfr. o acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19 de Outubro de 1995, proferido no processo nº 46580, Acórdão nº 7/95, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de Dezembro de 1995, que fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
[2] Destacado e sublinhado da nossa autoria.
[3] A tanto lembra-se o art. 64º epigrafado «Deveres fundamentais» do Cód. das Sociedades Comerciais conforme o qual, “1 - Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:
a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores “.
Concretizando in casu como o iter criminis de dolosa fraude fiscal qualificada se inicia pela violação da abstenção ou omissão do dever legal fiscal de declarar apenas o «verdadeiro» e jamais o «falso», citamos o douto Acórdão da R.P. de 28/04/2021 no proc. nº 406/18.9IDPRT.P1, relatado por Castela Rio com a Adjunta Lígia Figueiredo, e por aquele cedido, onde se decidiu que “Em regra o dever de agir imposto às sociedades recai sobre a sua administração. Pode suceder que normas especiais imponham o dever de agir, para casos limitados, a outros órgãos da sociedade, mas em termos gerais o governo da sociedade pertence à sua administração, que o deve exercer com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade (art. 64° do CSC.A função de administração, que cabe aos administradores, abrange o conjunto de actuações materiais e jurídicas imputáveis a uma sociedade que não estejam, por lei, reservadas a outros órgãos. A competência genérica e residual para agir, pela sociedade, cabe à sua administração [2] -> «CORDEIRO, António Menezes, Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais, p. 369».
Por isso que impendendo sobre a sociedade o dever de agir é à sua administração que cabe cumprir aquele dever, sendo o respectivo titular do órgão responsável a título de dolo ou de negligência consoante a omissão seja dolosa ou negligente» [4] -> GERMANO MARQUES DA SILVA, Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes, Verbo, LSB, DEZ 2008, págs. 374-378.].
Idem quanto aos crimes (dolosos) de «fraude fiscal simples» do art. 103º e de «fraude fiscal qualificada» do art. 104, ambos do RGIT, porque “o crime consuma-se no momento em que a conduta se esgota e esgota-se no termo do prazo para a apresentação à Administração Tributária em função do imposto a que respeita, nos termos da legislação aplicável” de modo que uma «declaração fraudulenta apresentada…pode ainda ser substituída se o prazo para a sua apresentação não estiver esgotado, por aplicação do art. 59º nº 3 a), do Código de Procedimento e Processo Tributário», e então não há crime nem contraordenação tributária, enquanto «A apresentação posterior pode relevar como mera circunstância atenuante, mas o crime fica consumado com o termo do prazo para a apresentação da declaração”.
[4] Invalidade essa decorrente do desrespeito das regras processuais sobre a prova testemunhal, quanto a imunidades e prerrogativas – cfr. arts. 503º nº 2 do CPC aplicável ex vi do nº 1 do art. 139º do CPP – , ao modo e local da prestação dos depoimentos, conforme o disposto nos arts. 128º, 138º, 318º nº 1, 319º, 348º e 327º nº 2, todos deste Código – que não é impossível de ser ultrapassada se o Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 340º do CPP chamar os referidos particulares ao tribunal para serem inquiridos em audiência de julgamento e aí serem os relatos que fizerem acerca dos factos da acusação, sujeitos a contraditório.
[5] Cfr. proc. nº 271/17.3PDVNG.P1, relatado por Nuno Pires Salpico, acedido in www.dgsi.pt
[6] Publicado no D.R. nº 224/2017, Série I.
[7] Independentemente de se apreciar se os mesmos são ou não válidos de acordo com as regras processuais sobre imunidades e prerrogativas, quanto ao modo de prestar depoimento e local dos mesmos.
[8] Cfr. Comentário do Código de Processo Penal à luz da CRP e da CEDH” Volume II, 5ª edição atualizada, UCP Editora, pág. 389.
[9] Cfr. proc. nº 194/14.8GBAND.P1, relatado por Maria Luísa Arantes, acedido in www.dgsi.pt
[10] Cfr. proc. nº 886/07.8PSLSB.L1.S1, relatado por Santos Cabral, acedido in www.dgsi.pt
[11] Cfr. proc. nº 1077/19.0S5LSB.L1-5, relatado por Pedro José Esteves de Brito, acedido in www.dgsi.pt
[12] Sendo que a invalidade desses depoimentos ( ou, caso haja recusa na leitura em audiência do teor das referidas “respostas a solicitação da AT”) é perfeitamente possível de ser ultrapassada pelo Tribunal a quo através do recurso ao disposto no nº 1 do art. 340º do CPP, dado inexistir em processo penal qualquer ónus da prova a cargo dos sujeitos processuais arguido, assistente e MºPº, antes pelo contrário, tal ónus a existir, impende sobre o Tribunal.
[13] Publicado na C.J., Ano XXVI, Tomo IV, pág. 222, relatado por Conceição Gomes, citado no aludido Ac. da R.P. de 17/06/2015.
[14] Cfr. “Comentário Judiciário Do Código de Processo Penal”, Tomo IV, Almedina, págs. 606 e 608.