I - O núcleo da impugnação da decisão da matéria de facto nos termos do art.412º nº3 do CPP incide no erro sobre a credibilidade das testemunhas, na aferição indevida das qualidades do depoimento, na omissão de parâmetros sobre o seu valor probatório, na relação entre testemunhos incorretamente avaliada.
II - O erro de julgamento de facto no referido artigo tem apenas de ser relevante, e não ser um erro capital ou manifesto, para que, só nesse caso, a decisão de 1ª instância seja suscetível de ser alterada.
III - A livre convicção do juiz nos termos do art.127º do CPP não assume um valor transcendente ou dotado de parâmetros insindicáveis, antes é impugnável em todas as suas dimensões. A convicção do julgador só se afirma juridicamente quando é a única possível, não sendo admissível em processo penal o concurso de convicções atendíveis (nem a do juiz prevalece sobre estas).
IV - O Tribunal de recurso quando ouve as gravações tem acesso ao núcleo essencial da imediação, apenas lhe sendo coartada a imagem, desenrolando-se perante si a oralidade dos depoimentos. Grave limitação à imediação e oralidade, seria a simples leitura de depoimentos reduzidos a escrito.
V - A expressão “impõem decisão diversa” da alínea b) do nº3 do art.412º, tem a mesma graduação para os Tribunais de primeira e de segunda instância, significando a imposição do juízo de prova, e não uma qualquer imposição probatória especial, para só assim se sobrepor à livre convicção do julgador.”
(Da responsabilidade do Relator)
Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos autos de processo comum com intervenção de Tribunal Coletivo que correu termos no ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro foi proferido acórdão julgando-se nos seguintes termos:
“Dispositivo:
Em face do exposto, os juízes que constituem este Tribunal Colectivo, deliberaram e decidiram julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a acusação e, em consequência, decidem:
1. Por força da amnistia decretada pela Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, julgar extinto, o procedimento criminal ao arguido AA, no que concerne à prática de três crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal na pessoa de BB, de que vinha acusado.
2. Por força da amnistia decretada pela Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, julgar extinto, o procedimento criminal relativamente à arguida BB, no que concerne à prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º, nº 1, do Código Penal, na pessoa de CC e à prática de três crimes de injúria nas pessoas de AA, CC e DD, de que vinha acusada.
3. Absolver o arguido AA, da prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pessoa de BB;
4. Convolar o despacho de acusação deduzido contra o arguido AA e considerar a factualidade provada susceptível de integrar a prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º do Código Penal.
5. Convolar o despacho de acusação deduzido contra o arguido AA e considerar a factualidade provada susceptível de integrar a prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal.
6. Condenar o arguido AA, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º do Código Penal, na pessoa de BB, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros).
7. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal na pessoa de BB, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros).
8. Proceder ao cumulo jurídico das penas referidas em 4. e 5., condenando o arguido AA na pena única de 110 (cento e dez) dias de multa à taxa diária de €10,00 (dez euros).
9. Declarar perdoada a pena única aplicada ao arguido AA, sob condição resolutiva do arguido proceder ao pagamento da indemnização infra referida, devendo ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação para o efeito, considerando-se tal condição satisfeita caso BB não declare que não foi indemnizada ou reparada.
10. Absolver o arguido CC da prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal na pessoa de BB.
11. Condenar o arguido CC, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º do Código Penal, na pessoa de BB, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de €8,00 (oito euros), no total de €1.120,00 (mil cento e vinte euros).
Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante BB e em consequência:
12. Condenar o demandado AA a pagar a BB a quantia de €450,00 [quatrocentos e cinquenta euros] a titulo de danos não patrimoniais.
13. Condenar o demandado CC a pagar a BB a quantia de €476,60 [quatrocentos e setenta e seis euros e sessenta cêntimos] a titulo de danos patrimoniais e não patrimoniais.
14. Absolver o demandado AA no demais peticionado.
15. Absolver o demandado CC no demais peticionado.
16. No que concerne aos pedidos de indemnização civil deduzido por AA e CC contra BB (ref.ª 14720209), por DD contra BB (ref.ª 1477221) e por BB contra AA (ref.ª 14713770), uma vez que contendem com os factos amnistiados, ficam os requerentes notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 12º, nº 5, da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto.
17. Condenar os arguidos em custas criminais, fixando-se a cada um deles a taxa de justiça em 3 UC(s) [artigo 513º nº 1 do CPP] e em metade dos demais encargos do processo [artigo 514º nº 1 do CPP] sem prejuízo de eventual apoio judiciário de que possam beneficiar.
18. Condenar os demandados CC e AA e demandante BB em custas cíveis, na proporção do respectivo decaimento (tendo decaído a demandante em €12.550,00 relativamente ao demandado AA e €5.523,40 relativamente ao demandado CC e estes na proporção inversa).
Notifique.
Efectue o depósito do presente acórdão, após a sua leitura, nos termos do disposto no art. 372º, n.º5 do Código de Processo Penal.”
10º- Parece-nos que o Tribunal iniciou a sentença pelo dispositivo, seguidamente, fundamentou a sentença da forma mais conveniente ao resultado almejado e não o contrário, como se impunha.
11.º Porque, por um lado, distorce gravemente as circunstâncias de tempo e modo em que alguns dos factos ocorreram.
12.º Por outro lado, distorce gravemente as declarações da Assistente.
13.º Faz “tábua rasa” da prova produzida.
14.º Considera como não provados certos factos que são a consequência directa e necessária de factos provados e, como tal, teriam que ser, também, dados como não provados.
15.º E, por fim, altera a qualificação jurídica e/ou absolve os Arguidos fundamentando tal decisão em factos que não encontram acolhimento na prova produzida.
Concretizando,
16.º A expressão dirigida à Assistente pelo Arguido CC “Se ela não pára quietinha, eu mato-a”, não foi simultânea com a agressão levada a cabo pelo mesmo Arguido, como parece querer fazer crer o Tribunal a quo.
17.º Antes, foi dita alguns minutos após a agressão, enquanto este Arguido mantinha uma conversa com a testemunha EE, como resulta claramente provado do vídeo referido na motivação.
18.º Pelo que nunca se poderia considerar que o Arguido apenas pretendia demonstrar a sua agressividade momentânea, absolvendo-o, com esse fundamento, do crime de ameaça agravada.
19.º Antes terá que se considerar que o uso de tal expressão configura um prenúncio de um mal futuro, condenando o Arguido CC pela prática de 1 (um) crime de ameaça, p. e p. art. 153.º n.º 1, agravado pelo art. 155.º n.º 1 al. a), ambos do C.P..
20.º Quanto à conduta do Arguido AA, o Tribunal a quo imputa à Arguida expressões que esta não disse e/ou distorce gravemente aquilo que esta disse.
21.º O Tribunal dá como não provados factos que resultam claramente provados, quer das declarações da Assistente, quer das declarações das testemunhas EE e FF, quer dos fotogramas juntos aos autos.
22.º Fazendo-se a prova desses factos, como deveria ter sido feito, parece claro que a conduta do Arguido AA, de forma reiterada, ofendia a dignidade humana da Assistente, de forma a preencher o tipo-ilícito de violência doméstica, p. e p. art. 152.º n.º 1 al. b e n.º 2 al. a) do C.P..
23.º Pelo que o Arguido sempre teria que ter sido condenado por este crime e não por um crime de ofensa à integridade física e um crime de ameaça agravada.
24.º Acresce que, as penas a que os Arguidos foram condenados são manifestamente insuficientes para realizar cabalmente as finalidades de prevenção geral e especial, quer positivas quer negativas, que devem pautar a escolha da medida da pena.
25.º Por último, relativamente ao(s) Pedido(s) de Indemnização Civil(is), o Tribunal a quo dá como não provados certos factos que são a consequência directa e necessária dos factos provados.
26.º Consequentemente, o montante em que os Arguidos foram condenados é manifestamente insuficiente para compensar integralmente os danos não patrimoniais sofridos pela Assistente.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V/Exas. doutamente suprirão,
Se requer a V/Exas. que se dignem a:
a) Admitir o presente recurso e a reapreciação da prova gravada sem observância do formalismo legal imposto pelo n.º 4 do art. 412.º do C.P.P.; ou
caso assim não se entenda e sem prescindir
b) A concessão de prazo para aperfeiçoamento do recurso; e
c) Conceder integral provimento ao presente recurso e, em consequência: i. Condenar o Arguido CC, além do crime de ofensa à integridade física pelo qual foi condenado, pela prática de 1 (um) crime de ameaça agravada, p. e p. arts. 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al. a), ambos do C.P..
ii. Condenar o Arguido AA pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. art. 152.º n.º 1 al. b e n.º 2 al. a) do C.P..
iii. Condenar os Arguidos no pagamento integral do Pedido de Indemnização Civil, conforme peticionado
Nos presentes autos foi CC absolvido da prática de um crime de ameaça agravada, sendo que AA foi absolvido da prática de um crime de violência doméstica.
Recorre a assistente, de ambas as absolvições, impugnando a matéria de facto e de direito dada por demonstrada.
Alega, em síntese, que:
a) O crime de ameaça agravada, não se tendo tratado de uma situação iminente, consoante se refere no acórdão proferido;
b) Houve uma errada apreciação da prova, porquanto o arguido AA cometeu o crime de violência doméstica por que vinha acusado, devendo ter sido dados como demonstrados factos que o não foram;
c) O montante indemnizatório fixado é manifestamente insuficiente para compensar os danos não patrimoniais sofridos pela assistente.
Conclui, referindo que o douto Acórdão proferido deverá ser substituído por outro que condene o arguido CC pela prática do crime de ameaça agravad e, quanto ao arguido AA, deverá ser condenado pela prática do crime de violência doméstica.
II – Do crime de ameaça agravada e da errada apreciação da prova
Das alegações da recorrente decorre a discordância por si manifestada relativamente ao resultado interpretativo da prova produzida em julgamento pelo Tribunal a quo, mormente no que ao crime de ameaça agravada que vinha imputado ao arguido CC.
Com efeito, alega a recorrente que a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, contrariamente ao que parece resultar do facto dado como demonstrado sob o ponto 13 dos factos provados, foi no sentido de que a ameaça aí referida foi proferida, não ao mesmo tempo que a agressão física perpetrada, mas sim em momento posterior.
E defende tal argumento, com base, quer do vídeo por si junto aos autos e visto em audiência de discussão e julgamento, quer nas declarações da assistente e das testemunhas EE e FF.
Ora, a verdade é que, pese embora aquela não demonstre, como a lei lhe impõe, que passagens de determinados depoimentos impõem que seja dada uma resposta diversa à questão de facto (não obstante o justifique em sede de questão prévia, há muito que o podia ter feito), assiste efectivamente razão, nesta parte, à assistente.
Com efeito, a expressão proferida pelo arguido CC na direcção da assistente não foi em momento contemporâneo da agressão física, nem perante uma situação de ofensa iminente; foi-o após uma agressão e quando o arguido já conversava com a testemunha EE – na presença da assistente.
Basta atentar no vídeo cuja junção foi admitida aos autos para concluir nesse sentido.
Ou seja, efectivamente, as expressões referidas em 13 dos factos provados, contrariamente ao que parece resultar daquele ponto, foram proferidas em momento posterior à agressão ali descrita.
A ser assim, e não se tratando de ameaça iminente, traduzindo-se de facto num mal futuro, devia o arguido CC ter sido condenado pela prática do crime de ameaça agravada.
Na verdade, concorda-se com a jurisprudência citada pela assistente nas suas alegações de recurso, relativamente ao crime de ameaça agravada e à utilização dos tempos verbais – razão pela qual nos dispensamos de reproduzir aqui tais arestos.
É inegável que o Ministério Público não recorreu do acórdão proferido; todavia, não o fez em virtude de se ter considerado que a pena aplicada pela prática do crime de ofensa à integridade física simples foi-o já em número de dias praticamente idêntico àqueles que tinha por adequado para uma pena única pela prática dos dois crimes em causa – ofensa à integridade física e ameaça agravada – atento o contexto e as circunstâncias em que os factos ocorreram.
Por esse motivo, foi nosso entendimento que se não justificava um recurso por mais 20 ou 30 dias de multa.
Em síntese, é nosso entendimento que, nesta parte, deve ser dado provimento ao recurso no que ao crime de ameaça agravada concerne, devendo o arguido CC ser condenado pela prática deste crime, em concurso efectivo com o crime de ofensa à integridade física simples por que o foi.
III – Do crime de violência doméstica
Continua a assistente, referindo que o arguido AA deveria ter sido condenado pela prática deste crime, porquanto foi feita prova da sua consumação – tendo-se demonstrado mais do que consta da motivação da douta decisão.
E defende tal argumento, com base no facto de a assistente ter relatado que foi insultada por várias vezes pelo arguido AA, que este não gostava que a assistente trabalhasse à noite, no café.
Refere a assistente que as declarações da assistente foram distorcidas pelo Tribunal.
Com todo o devido respeito por opinião divergente, não nos parece, de todo, que seja adequada e justa esta afirmação da assistente.
Na verdade, o Colectivo de Juízes apenas não logrou acreditar-se na versão dos factos trazida a julgamento pela assistente, porquanto a mesma, pese embora tenha referido que o arguido AA, por várias vezes, a tenha insultado e agredido, não logrou descrever um único episódio em que tenha ocorrido uma dessas situações.
Com efeito, questionada, quer pela Mma. Juiz Presidente, quer pela signatária no sentido de relatar um episódio em que o arguido AA a tenha insultado, não logrou fazê-lo – limitando-se a descrições genéricas e vagas, sem qualquer concretização sequer de lugar ou tempo (nem mesmo aproximado).
E, nesta parte, concorda-se com o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 24/11/2021, disponível em www.dgsi.pt, no sentido de que “As imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, devem ter-se como não escritas, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente”.
a factos que tenham assistido, porquanto nada viram, sendo que a testemunha EE apenas viu a sua irmã magoada, nada tendo visto sobre como o fez, nem sabendo explicar quando é que tal situação ocorrera.
Por esse motivo, parece-nos que andou bem o Tribunal a quo, atentos os factos dados como demonstrados, ao absolver o arguido AA da prática do crime de violência doméstica.
Assim, é nosso entendimento que, nesta parte, o recurso interposto não merece provimento.
Vejamos sinteticamente porquê.
“A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade"1: "O juiz lança-se à procura do "realmente acontecido" conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o "agarrar". E, por isso, é que, "nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade (…) e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (…), não há lugar à intervenção da "contraface (de que a "face" é a "livre convicção") da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva" que é o in dubio pro reo (cuja pertinência "partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador)".
O processo probatório, a prova, consiste em verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa, estando o Tribunal munido, para essa tarefa de uma racionalidade própria, uma racionalidade razoável. Daí que não é “qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido”, mas apenas a chamada dúvida razoável. “Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais”. Enfim, “a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal” (ibidem).
Ora, o arguido negou a prática do crime de violência doméstica. Por seu turno, a assistente, pese embora tenha referido que AA a insultou e agrediu, não logrou descrever uma única situação e contexto em que tal tenha ocorrido. Ninguém referiu que tenha presenciado algum episódio susceptível de integrar a prática do aludido crime.
Assim, perante tais circunstâncias, e não podendo o arguido defender-se de imputações meramente vagas e genéricas, não podia o Tribunal dar como provados os factos por que AA vinha acusado, relativamente ao aludido crime de violência doméstica – à excepção da parte que o arguido admitiu (mensagens e telefonema) – sendo que, nesta parte, concorda-se ainda com a subsunção jurídica a que o Tribunal chegou, tal como referimos em sede de alegações orais. Deste modo, e em suma, é nosso entendimento que o Tribunal a quo fez uma correcta e adequada apreciação da prova produzida, conjugando todos os elementos constantes dos autos, designadamente, os elementos documentais relevantes, das declarações prestadas em audiência, tudo devidamente cotejado com as regras da experiência comum.
Nesta conformidade, e em suma, deve o recurso interposto pela assistente ser julgado procedente relativamente ao crime de ameaça agravada e improcedente relativamente ao crime de violência doméstica, mantendo-se no mais o douto Acórdão proferido.
- erro na apreciação da matéria de facto.
- erro de julgamento quanto à decisão da matéria de direito, com condenação do arguido AA pelo crime de violência doméstica e do arguido CC em concurso pelo crime de ameaça agravada.
- Pela procedência do pedido de indemnização deduzido.
Do acórdão:
“ Para julgamento em processo comum e perante Tribunal Colectivo encontram-se acusados:
AA, filho de CC e de DD, natural da freguesia ..., concelho ..., nascido a ../../1995, portador do Cartão de Cidadão n.º ...55, solteiro, residente na Avenida ...., ..., ...
CC, filho de GG e de HH, natural da freguesia ... (...), concelho ..., nascido a ../../1974, portador do Cartão de Cidadão n.º ...86, casado, residente na Avenida .... traseiras, ..., ...;
BB, filha de II e de FF, natural da freguesia ..., concelho ..., nascida a ../../1993, portadora do Cartão de Cidadão n.º ...71, casada, residente na Rua ..., ...;
FF, filha de JJ e de KK, natural da freguesia ..., concelho ..., nascida a ../../1965, portadora do Cartão de Cidadão n.º ...27, viúva, residente na Rua ..., Casa ..., ...;
Imputando:
- ao arguido AA, dolosamente, em autoria material e na forma consumada:
um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pessoa de BB;
- ao arguido CC, dolosamente, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo:
dois crimes de ofensa à integridade física simples nas pessoas de BB e FF, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal;
um crime de ameaça agravada, na pessoa de BB, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) ambos do Código Penal;
- à arguida BB, dolosamente, em autoria material, na forma consumada:
-um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal na pessoa de CC
- à arguida FF, dolosamente, em autoria material, na forma consumada:
um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal na pessoa de AA;
três crimes de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) ambos do Código Penal na pessoa de AA, CC e DD.
Foram ainda deduzidas acusações particulares, as quais foram acompanhadas pelo Ministério Público:
- por AA contra FF, pela prática de um crime de injúria do artigo 181º, nº 1 do Código Penal;
- por AA contra BB, pela prática de um crime de injúria do artigo 181º, nº1 do Código Penal;
- por CC contra FF, pela prática de um crime de injúria do artigo 181º, nº1 do Código Penal;
- por CC contra BB, pela prática de um crime de injúria do artigo 181º, nº1 do Código Penal;
- por BB contra AA, pela prática de três crimes de injúria do artigo 181º, nº1 do Código Penal;
- por DD contra BB, pela prática de um crime de injúria do artigo 181º, nº1 do Código Penal.
Por seu turno, os pedidos de indemnização civil deduzidos em 21.08.2023 por AA, CC e DD todos contra FF, bem como o pedido de indemnização civil deduzido por CC contra BB, não foram admitidos, por despacho referência 128810235, por extemporâneos.
Os arguidos apresentaram contestação, negando a prática dos factos, mais ofereceram o merecimento dos autos e arrolaram testemunhas.
Não há nulidades insanáveis nem quaisquer questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.
Procedeu-se a julgamento com a observância de todo formalismo legal como das actas se infere.
Por sua vez, CC, assistente, veio desistir da queixa que apresentara contra a arguida FF, e, no âmbito da qual, lhe foi imputada a prática, em autoria material, de um crime de injúria, p. e p., pelo artigo 181º, nº 1 e um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigo 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), todos do Código Penal.
Veio ainda a assistente DD desistir da queixa que apresentara contra a arguida FF, e, no âmbito da qual, lhe foi imputada a prática, em autoria material, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigo 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), todos do Código Penal.
Por seu turno, veio a assistente FF desistir queixa que apresentara contra o arguido CC, e, no âmbito da qual, lhe foi imputada a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física, p, e p, pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
Vieram ainda os assistentes e demandantes civis AA e CC desistir do pedido de indemnização cível formulado contra a arguida e demandada FF.
Tais desistências foram devidamente homologadas pelo Tribunal, determinando-se a extinção do procedimento criminal contra a arguida FF e, em consequência, o arquivamento dos autos quanto a esta, bem como a extinção do procedimento criminal contra os arguidos AA e CC, nessa parte, conforme consta da respectiva acta.
QUESTÃO PRÉVIA:
Dispõe o artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, a qual estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (cfr. artigo 1.º), que «Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4».
Por seu turno, dispõe o artigo 4º que são amnistiadas as infracções penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.
Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª (https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=173095) justificou-se aquele âmbito nos seguintes termos: «Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento. Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina».
Em conformidade com o que preceitua o artigo 128.º, § 2.º e 3.º do Código Penal, a amnistia é uma medida de graça, por via da qual, a comunidade politicamente organizada, declara de forma geral e abstracta, através de lei formal, extinta a responsabilidade criminal relativamente a determinados factos ilícitos, por uma categoria geral de pessoas.
A amnistia é, pois, um modo de extinção de infracções cometidas e ainda não julgadas ou já julgadas e com condenação transitada, incidindo sobre o facto ilícito praticado, o qual deixa de ter relevância criminal (fazendo-o desaparecer).
Nos presentes autos:
A arguida BB nasceu em ../../1993, a prática dos ilícitos, objecto das acusações pública e particulares deduzidas por CC, AA e DD, reportam-se a 04 de Julho de 2022, pelo que à data a mesma contava com 29 anos de idade, sendo que o crime imputado, ameaça, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias e o crime de injuria é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias - artigos 153º, nº 1 e 181º, nº 1, ambos do Código Penal.
Por seu turno, o arguido AA nasceu em ../../1995, a prática dos ilícitos, objecto da acusação particular deduzida por BB, reportam-se a 09 de Julho de 2022, 30 de Julho de 2022, 02 de Janeiro de 2023 e 23 de Janeiro de 2023, pelo que à data, o mesmo contava com 27 anos de idade, sendo que ao crime de injuria, p.e p.pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal, corresponde uma moldura abstracta aplicável de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias.
Assim, uma vez que se encontram verificados os pressupostos temporais, etários e materiais para a aplicação da referida Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto:
- julgo extinto o procedimento criminal ao arguido AA, no que concerne à prática de três crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal na pessoa de BB, de que vinha acusado.
-julgo extinto o procedimento criminal relativamente à arguida BB, no que concerne à prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º, nº 1, do Código Penal, na pessoa de CC e à prática de três crimes de injúria nas pessoas de AA, CC e DD, de que vinha acusada, ordenando quanto à mesma, o oportuno arquivamento dos autos.
Nos termos do disposto no artigo 12º, nº 5, da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto:
Nos processos com despacho de pronúncia ou que designe dia para audiência de julgamento, em que o procedimento criminal seja declarado extinto por força do artigo 4.º, pode o lesado, no prazo de 10 dias, contados a partir do trânsito em julgado da decisão, requerer o seu prosseguimento, apenas para fixação da indemnização cível a que tenha direito, com aproveitamento da prova indicada para efeitos penais.
Assim, no que concerne aos pedidos de indemnização civil deduzido por AA e CC contra BB (ref.ª 14720209), por DD contra BB (ref.ª 1477221) e por BB contra AA (ref.ª 14713770), uma vez que contendem com os factos amnistiados, deverão ser os requerentes notificados nos termos e para os efeitos do disposto no citado artigo 12º, nº 5, da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto.
II. Fundamentação
Da prova produzida em audiência, resultaram provados os seguintes factos (com exclusão das conclusões, das argumentações, das inocuidades, do direito, das menções aos meios de prova e das repetições de factos):
i)Factos provados:
(Da acusação pública)
1. O arguido AA e a ofendida BB iniciaram uma relação de namoro em meados de 2016 até 2019.
2. Após um ano de namoro, o arguido AA e ofendida BB decidiram ir viver juntos, em comunhão de mesa, cama e habitação, como se marido e mulher fossem, fixando residência em ....
3.No ano de 2019, o arguido AA e a ofendida BB separaram-se, passando a residir em casas diferentes.
4. Em 2020, após um ano separados, o arguido AA e a ofendida BB reataram a relação de namoro, mas sem coabitação.
5. A ofendida BB engravidou do arguido AA após seis meses de se terem reaproximado, tendo a filha comum de ambos, LL nascido a ../../2020.
6. Na altura do nascimento da filha comum, o arguido AA e a ofendida BB voltaram a residir juntos, como se de marido e mulher se tratassem, na residência sita na Rua ..., Casa ..., ..., ....
7. O arguido AA e a ofendida BB decidiram pôr termo à relação em dia não concretamente apurado do mês de junho de 2022, ficando a ofendida a residir com a filha menor na casa de morada de família.
8. Após a separação entre arguido e ofendida, ficou acordado entre ambos que a menor ficaria a residir, alternadamente, uma semana com a mãe e outra com o pai.
9. No dia 03 de julho de 2022, em hora não concretamente apurada, a ofendida BB deslocou-se à residência do arguido AA, sita na Avenida .... traseiro, ..., ..., a fim de aí ir buscar a filha menor de ambos.
10. Aí chegada, o arguido AA negou-se a entregar a menor LL à ofendida, pelo que esta contactou a GNR ... para que tomassem conta da ocorrência.
11. No dia seguinte, 04 de julho de 2022, a ofendida BB voltou a deslocar-se à residência do arguido AA com o intuito de ir visitar a sua filha e de a levar até ao parque.
12. Nessa circunstância de tempo e lugar, o arguido AA, no interior da sua residência, deu empurrões à ofendida, puxou-a pelos braços, em direcção à porta de casa dele.
13. Já fora da residência, encontrando-se a ofendida dentro do seu veículo, avista o arguido CC, dirige-se a ele, e este após lhe ter perguntado, por duas vezes em tom de voz exaltado: O que estás aqui a fazer BB?, sem que nada o fizesse prever, desferiu murros na face da ofendida, mais dizendo: “Se ela não pára quietinha eu mato-a!”
14. Como consequência directa, necessária e adequada dos factos descritos em 12 e 13 a ofendida BB sofreu:
- Face: equimose amarelada, situada na metade esquerda da região frontal, com 6cm por 2cm de maiores dimensões. Equimose amarelada, situada na região malar esquerda, com 4cm de maior eixo. Escoriação avermelhada, situada na metade esquerda da região frontal, com 6cm por 1cm de maiores dimensões, ultrapassando a linha de implantação capilar;
- Ráquis: equimose arroxeada-amarelada, situada na face posterior do ombro, com 3,5cm por 3cm de maiores dimensões.
- Membro superior direito: equimose arroxeada-amarelada, situada no terço médio da face posterior do braço, com 4cm por 5cm de maiores dimensões. Escoriação acastanhada situada na face dorsal do cotovelo, com 1cm de diâmetro; sem défice de mobilização do cotovelo;
- Membro superior esquerdo: equimose arroxeada-amarelada, situada no terço médio da face postero-medial do antebraço, com 4cm de maior eixo. Equimose arroxeada-amarelada, situada no terço médio da face posterior do braço, com 4,5cm por 4,5cm de maiores dimensões.
15. Tais lesões demandaram 5 (cinco) dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
16. O arguido AA, em dia não concretamente apurado, mas após o dia 04 de julho de 2022, começou a ligar a BB, via Whatsapp, de madrugada.
17. No dia 30 de julho de 2022, pelas 21h18, o arguido AA enviou uma fotografia a BB, onde se vê ambos a ter relações sexuais com introdução do pénis na vagina, tirada pelo arguido, com o consentimento da ofendida, quando se encontravam numa relação de namoro, onde está escrito os seguintes dizeres “queres fuder ou não?”.
18. O arguido AA, após ter conhecimento de que BB tinha um novo relacionamento, enviou uma mensagem via Whatsapp, do número ...91, no dia 02 de janeiro de 2023, pelas 17h51m a BB, onde se lê: “foi mesmo fácil era o amor que tinhas por mim aliás só depois de me deixares tomaste atitudes na tua vida que eu te chamava há atenção”, “enfim, vejo-te a dar mais por quem não fez 1/10 daquilo que fiz por ti, outra coisa, a tua filha é minha filha e vou estar aqui para não permitir mais merdas da tua parte, por outro lado avisa já o teu amiguinho que para jamais se meter entre eu e a minha filha! Acredita que não seria bom tenta sequer ;)”.
19. Ainda no mesmo dia, mas pelas 19h06m, o arguido AA enviou nova mensagem, via Whatsapp, do número supra mencionado, onde escreve “Minha menina, bolinha rentinha há relva! Inventa e fala o que quiseres agora de mim, afinal de contas eu era exatamente igual ao teu pai tou-me a cagar se tás viva e respiras muito menos a quem andas a abrir as pernas bá pouco paleio tais os dois aconselhados, isto é muito simples. Vocês não pisam a linha de pai e filha, não têm de se preocupar com nada tou-me a cagar para puta da vossa vida, a partir do momento que pensarem sequer em passar a linha de pai e filha preocupem-se a sério, tamos falados.”
20. No dia 09 de janeiro de 2023, entre as 19h e as 19h30m, o arguido AA, via telefone, dirigiu a seguinte expressão contra BB: “se tu tentas mexer comigo ou com os meus eu furo-te toda, a ti e ao teu namoradinho, entre outras!”.
21. O arguido AA agiu da forma descrita em 12 com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde da ofendida, o que quis e conseguiu.
22. Com a descrita conduta em 20, o arguido AA quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e sossego de BB, dando a entender que sabia onde e com quem se encontrava, o que levou a que a ofendida sentisse medo, receio e inquietação.
23. O arguido CC ao actuar da forma como actuou em 13, agiu com o propósito de molestar o corpo e saúde de BB e de produzir as lesões que se verificaram na ofendida, o que representou e quis.
24. Os arguidos CC e AA, em todas as circunstâncias, agiram de forma voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime.
Condições socioeconómicas dos arguidos:
25. O arguido CC, natural de ..., encontra-se a residir em ... há cerca de 30 anos, altura em que contraiu matrimonio com DD, de 51 anos. O arguido reside na Avenida ..., traseiras, ... ..., há cerca de 22 anos, juntamente com o cônjuge e com o filho de ambos, AA, de 29 anos, coarguido no presente processo.
26. Trata- se uma habitação própria, adquirida com recurso a crédito bancário, com aparentes condições de habitabilidade, inserida em meio residencial não conectado com focos delinquenciais relevantes.
27. Em contexto familiar, o arguido é apresentado como pessoa, dedicado à família. Desfruta de uma dinâmica familiar solidária.
28. No seu percurso vivencial de CC, destaca-se a sua institucionalização com cerca de 6 anos, devido ao falecimento dos progenitores, na ..., em ....
29. Em idade considerada como normal inseriu-se no sistema de ensino, na ..., prosseguindo aqui, os estudos até ao 6º ano de escolaridade. Mais tarde, conciliou os estudos, em regime nocturno, com a actividade profissional até ao 9º ano.
30. O arguido iniciou actividade profissional aos 12 anos de idade como vendedor de fruta, actividade que manteve durante cerca de 20 anos.
31. Posteriormente e há já 22 anos, como à data dos alegados factos, exerce actividade profissional como operário fabril, no Grupo A..., o que se regista no presente.
32. O arguido aufere cerca de €900 da actividade profissional como operário fabril.
33. O cônjuge, da actividade de operaria fabril na área do calçado, aufere cerca de €860.
34. O filho, da actividade de operário fabril, na área da Cortiça, aufere cerca de 900€. Deste valor dá aos progenitores cerca de €140.
35. Liquida, de empréstimo à habitação a quantia mensal de € 400 e gasta, em média €200, em despesas com electricidade, água, luz e gás.
36. O arguido AA é filho único, provindo de um núcleo familiar de modesta condição socioeconómica, organizado e com dinâmicas afectivas operantes e solidárias. O pai é operário corticeiro e a mãe labora no sector do calçado. Dos ascendentes, detém o arguido imagem favorável no concernente às condições vivenciais que lhe foram proporcionadas, além do afecto que foi alvo e de uma atitude educativa orientada no respeito dos valores, de entre eles o trabalho, e da normatividade social.
37. O arguido ingressou na escola com 5 anos, tendo concluído o 12º ano de escolaridade com 17 anos, via profissionalizante (área de informática e gestão).
38. Seguiu-se, entretanto, o início do seu trajecto profissional como empregado de loja de peças para elevadores durante cerca de 1 ano. Depois laborou 3 anos numa empresa de cápsulas para garrafas, outros 3 anos como aprendiz de mecânico automóvel e mais cerca de 3 anos numa empresa de montagem de bicicletas. Em Maio de 2023, por intermédio de empresa de trabalho temporário, conseguiu colocação em ... como operário corticeiro ao serviço da empresa B..., SA.
39. AA e BB conheceram-se em ... na escola que ambos frequentavam - tinha então o arguido cerca de 16 anos – e namoraram durante alguns meses.
40. Alguns anos mais tarde, em 2016, reencontraram-se e iniciaram nova relação de namoro, acabando por encetar a sua união de facto.
41. A relação do casal deteriorou-se progressivamente e entrou em rutura em 2022, tinha então a filha de ambos 1,5 anos de idade. BB permaneceu em ... e AA voltou a ..., reintegrando o contexto familiar paterno.
42. Em termos de regulação do poder paternal da menor, arguido e ofendida acordaram no regime de guarda partilhada.
43. AA vive com os pais na morada processual indicada. Ocupam um apartamento pertença dos ascendentes, em fase de amortização bancária, reunindo o imóvel adequadas condições habitacionais e sediando-se em zona não conotada com especiais problemáticas delinquenciais.
44. A relação intrafamiliar entre arguido e pais desenvolve-se de forma equilibrada e afectuosa contando com o apoio dos seus progenitores.
45.O arguido trabalha na empresa de cortiça atrás mencionada (B... … PORTUGAL 4) em regime de turnos rotativos mensais (manhã, tarde, noite) auferindo em média 900 euros mensais. Entrega aos pais para comparticipação na economia comum 140 euros e paga metade das despesas com o infantário da filha (cerca de 80 euros). Outras despesas que enunciou referem-se ao pagamento da Vodafone em casa (cerca de 80 euros), de uma prestação de compra de automóvel (151 euros) e de uma prestação de compra de um telemóvel (45 euros).
46.O arguido desenvolve um quotidiano essencialmente circunscrito ao trabalho e ao convívio familiar.
47.No período em que tem a seu cargo a guarda da filha dedica-se a esta, passeando com a mesma e dedicando-se a outras actividades lúdicas com a descendente, a qual constitui para o arguido a fonte principal das suas atenções e preocupações, em prol do bem-estar da mesma.
48. O regime de visitas da filha vem decorrendo em moldes globalmente positivo, sem conflitos entre o arguido e BB.
49. O arguido CC não tem averbada no certificado de registo criminal qualquer condenação.
50. O arguido AA não tem averbada no certificado de registo criminal qualquer condenação.
Do pedido de indemnização civil:
51. Em consequência das lesões descritas em 14, a ofendida BB necessitou de tratamento hospitalar, o que implicou um custo de 26,60€ (vinte e seis euros e sessenta cêntimos).
52. Sentiu dores nos membros superiores e inferiores.
ii) Factos não provados
Da acusação pública:
a) Cerca de três meses depois de estarem a viver juntos, as discussões entre o casal tornaram-se frequentes, altura em que o arguido AA dirigia à ofendida BB as seguintes expressões: “tu és uma puta, uma vadia, a tua mãe é uma badalhoca, o teu pai não te deu educação, faz-te falta um pai para te dar uma chapada, vai à merda, vai para a puta que te pariu, tu andas com outros homens, só queres é peso”.
b) Por diversas vezes, durante as discussões, o arguido AA desferiu murros, empurrões e estalos no corpo da ofendida BB.
c) No entanto, o arguido AA começou a discutir novamente com BB, sendo que, no decorrer das mesmas partia bens no interior da residência, ao mesmo tempo que proferia as seguintes expressões contra a ofendida: “tu és uma puta, és uma vaca, se queres dinheiro vai para as quatro estradas dar o cú”.
d) Em data não concretamente apurada, mas pouco tempo depois de terem passado a residir juntos, o arguido AA desferiu uma cabeçada na ofendida BB, o que originou com que esta ficasse com hematoma na testa, sem necessidade de recorrer a assistência hospitalar.
e) Por diversas vezes, em número não apurado, o arguido AA colocou ambas as mãos no pescoço da ofendida, fazendo pressão com as mesmas, na tentativa de asfixiá-la.
f) Todas as investidas do arguido AA foram concretizadas na presença da filha menor de ambos.
g) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 12 da factualidade provada, o arguido apertou os braços da ofendida e levou a que a mesma caísse no chão.
h) O arguido AA ao agir da forma descrita nos pontos 3., 9., 30. e 32., fê-lo com o propósito de ofender a honra, bom nome e consideração de BB, o que quis e conseguiu.
i) O arguido AA agiu da forma descrita em 4., 10. e 11. com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde da ofendida, o que quis e conseguiu.
j) Com as suas condutas, o arguido AA quis e conseguiu maltratar física e psiquicamente a ofendida BB, criando-lhe ansiedade e sentimentos de instabilidade, tristeza, humilhação e vergonha.
k) O arguido AA também estava ciente de que praticava alguns dos factos atrás descritos na residência comum do casal e na presença da filha menor de ambos, o que coarctava as hipóteses de defesa da ofendida BB.
l) Mercê das condutas do arguido AA, BB vive num constante clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, medo, fragilidade e humilhação, temendo pela sua integridade física e até pela sua própria vida.
m) Com as descritas condutas em 29. a 32., o arguido AA quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e sossego de BB, sem motivo aparente, através de chamadas telefónicas, envio de mensagens, nomeadamente, de cariz sexual.
n) O arguido CC ao proferir as expressões referidas em 13 sabia que as mesmas eram aptas a colocar a ofendida BB num estado de medo e de inquietação.
o) Agiu, por isso, o arguido CC com o propósito concretizado de colocar a ofendida BB num estado de receio pela sua vida e integridade física.
Do pedido de indemnização civil:
n) A habitação era arrendada pela Demandante, pelo que esta teve que proceder, a suas expensas, à reparação dos bens danificados pelo Demandado.
o) Em consequência do comportamento dos arguidos, sentiu dores de cabeça, dificuldades de locomoção e dificuldades em comer.
p) Em consequência da actuação dos Demandados, a Demandante vive num constante estado de temor.
q) Sente receio de ser novamente agredida, chegando a temer pela própria vida.
r) Sente receio não só pela sua saúde física e psíquica mas também pela da sua filha e do seu actual marido.
s) Uma vez que tem uma filha do arguido AA, neta do arguido CC, faz aumentar os receios de a Demandada poder vir a ser novamente agredida, ameaçada ou injuriada pelos Demandados, uma vez que, em consequência das relações familiares, terá que manter contacto com estes.
t) A Demandante sente medo, inquietação, mal-estar, tem dificuldades em dormir, acordando frequentemente com pesadelos e suores frios.
Nada mais resultou provado ou não provado que contenda com o objecto dos presentes autos e com interesse para a decisão a proferir, designadamente o que vai referido nas contestações apresentadas, uma vez que os arguidos se limitaram a impugnar e oferecer o merecimento dos autos.
A) De facto:
A apreciação da prova produzida em audiência, susceptível de contribuir para a formação da convicção do tribunal, rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, acolhido expressamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal. Este princípio significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova e, de forma positiva, que o tribunal aprecia a prova produzida e examinada em audiência com base exclusivamente na livre valoração e na sua convicção pessoal. O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração; é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
In casu, na fixação da matéria de facto provada e não provada o tribunal colectivo baseou-se na apreciação crítica da globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal, confrontando-se a prova documental e oral e aferindo-se do conhecimento de causa, da isenção dos depoimentos prestados, das suas certezas e hesitações, da razão de ciência e da relação com os sujeitos processuais.
Assim, a convicção do tribunal resulta, no caso concreto, da ponderação conjugada, à luz de regras de experiência comum, os depoimentos das testemunhas, depoimentos esses devidamente concatenados com os demais elementos de prova juntos aos autos, designadamente relatório da perícia de avaliação do dano corporal de BB, assento de nascimento de BB, assento de nascimento de AA, assento de nascimento de LL, print de mensagens de Whatsapp entre AA e BB, auto de leitura de registo de telemóvel de BB, print de mensagens trocadas entre AA e BB, visionamento das imagens captadas pelo telemóvel da assistente BB no dia 04 de Julho de 2022.
Comecemos por fazer uma breve resenha daquilo que foi dito pelos arguidos e testemunhas.
Assim, o arguido AA prestou declarações, referindo que nunca desferiu murros, empurrões ou estalos em BB, bem como nunca lhe dirigiu insultos, admitindo, porém, que havia discussões entre ambos; no dia 04 de Julho a filha menor de ambos se encontrava com ele, pois tinha sido combinado entre ambos que nessa semana a menina ficaria com ele. Quanto ao episódio ocorrido no dia 04 de Julho de 2022, referiu que se encontrava a dormir e acordou com os gritos de BB, ao que a sua filha acordou também e na tentativa de a fazer sair de sua casa, a empurrou para fora, pois a mesma não queria sair, encontrando-se agarrada à porta, não se recordando que ela tenha caído. Quanto ao confronto entre a ofendida e CC, seu pai, declarou que BB estava já dentro do carro dela, mas quando o pai dele chega ela sai do carro e vai ter com ele, ao que ele a afasta, empurrando-a e ela cai para trás, houve troca de palavras entre ambos mas ele não se lembra do que foi dito.
No que respeita às mensagens enviadas a BB em Janeiro de 2023, admitiu que as enviou, bem como admitiu o teor do telefonema para esta, justificando tal atitude com os ciúmes e por preocupação com a filha menor. No que concerne à mensagem do dia 30 de Julho de 2022, admitiu que enviou a mesma, porém, referiu que após o dia 04 de Julho de 2022, continuou a encontra-se com a ofendida, em casa desta, e por vontade de ambos (o que é corroborado com o teor das mensagens trocadas entre ambos e juntas aos autos).
Negou peremptoriamente que tenha, alguma vez partido o que quer que fosse na casa que de morada de família.
O arguido CC igualmente prestou declarações, referindo que no dia 4 de Julho de 2022, estava nas compras, o filho e a mulher ligaram-lhe, ele veio para casa, estacionou na parte lateral do prédio, saiu do carro, e a BB disse-lhe “seu filho da puta, seu corno de merda, que era um pau mandado da mulher e do filho, que não valia nada, e para dizer ao filho para lhe dar a filha, que ia arranjar alguém para lhe acertar o passo”, empurrou-o contra o carro e ele afastou-a /empurrou-a, não se recorda onde colocou as mãos e ela caiu de costas no chão; é possível que lhe tenha machucado no lábio, tendo-lhe dito que o que ela queria era “roupa lavada” (dinheiro) que lhe dava, não era preciso fazer aquela confusão, negando que lhe tenha dirigido qualquer ameaça.
Nunca assistiu a qualquer discussão entre o filho e a BB; nunca a viu com marcas; nunca ouviu o filho a insultar a BB nem nunca esta lhe disse que o filho a insultava.
Igualmente a assistente BB prestou declarações referindo que as discussões entre o casal aconteciam devido ao facto do arguido AA não ajudar nas lides de casa nem com o cuidado da filha; que nessa altura trabalhava num café e quando lhe contava que um cliente lhe mandava uma “boca”, o arguido dizia-lhe, “só trabalhas nesse café porque trabalhas à noite e estás à vontade para fazeres o que quiseres”, referindo, no entanto que ele não ia ao café. Que tiveram um ano separados, depois engravidou e foram viver juntos, pois pensou que o arguido ia mudar mas não mudou, continuou a não a ajudar em casa (!). Referiu que o arguido a apelidava de porca, puta, dizia-lhe que andava a precisar de peso, a agredia com estalos, puxões de cabelo, pontapés, porém, nunca chegou a ir ao hospital, que numa discussão lhe apertou o pescoço e dava pontapés e murros às portas de casa que era arrendada. Também lhe dizia que lhe faltava um pai para lhe dar uns estalos.
Mais referiu que relação entre ambos acabou em Junho de 2022 e que saiu a bem, porque a relação não dava certo. Após a separação, conversaram no sentido da filha ficar durante a semana com ela e ao fim-de-semana com o pai, porém, o arguido AA não concordava e disse que tinha de ser igual para os dois, esclarecendo que no dia 3 e 4 de Julho de 2022 não havia ainda acordo para ser uma semana cada um.
No dia 3 de Julho foi a casa dos pais do AA para ver a filha, entretanto, após lhe ter telefonado ele chegou e não a deixou ver a filha, nem trazê-la.
No dia 4 de Julho de 2022, tocou à campanhia, falou com a mãe do arguido (DD) e perguntou-lhe se podia trazer a filha ao parque porque queria mostrar a filha a um amigo da irmã; ela abriu-lhe a porta e disse-lhe que a menina estava a dormir e quando estavam as duas a conversar veio o arguido e disse-lhe que já tinha visto a filha, para ir embora, começou a empurrá-la, deu-lhe um estalo e puxou-a pelos braços, ao que ela se agarrou à maçaneta da porta para não sair mas acabou por ceder e saiu para o elevador com DD, que se estava a sentir mal. Entretanto, esta sobe e quem desce é o arguido AA, começam a falar (“nada de especial”) e após dirige-se para a sua viatura. Porém, não consegue sair do local pois a viatura do arguido estava estacionada de forma a que ela não conseguia sair, pretendendo este que ela permanecesse no local ate à chegada da GNR. Assim que se apercebeu que o Sr. CC tinha chegado, saiu da sua viatura disse-lhe: Sr. CC por favor diga ao seu filho para tirar o carro que o rapaz tem de apanhar o comboio (estava a referir-se ao amigo da irmã), ele perguntou-lhe onde estava a menina ela disse-lhe que estava lá em cima, pergunta-lhe duas vezes o que ela vinha ali fazer ela respondeu-lhe que tinha vindo ver a filha ao que ele a agride com murros na face, os óculos dela saltaram, desequilibrou-se mas não caiu. Entretanto a irmã sai do carro e coloca-se entre ela e CC, e estava também lá AA a tentar separar e dizia “pai já chega”, tendo o arguido CC lhe dito naquele momento: se não páras com isso eu mato-te; disse-lhe ainda que o que ela queria era uma roupa lavada, sendo que o AA lhe disse para ir lavar a boca que estava cheia de sangue.
No que respeita aos encontros entre ela e AA já após a separação, referiu que os mesmos aconteceram duas vezes porque ela queria fumar haxixe e era o arguido AA quem a tinha.
Não se lembra bem da primeira vez que ele a agrediu, mas pensa que foi com um empurrão, diz que ela lhe respondeu, mas não sabe o quê. Refere que o arguido ligava para a mãe dela a dizer que ia bater na filha, mas a mãe não aparecia lá em casa nem ligava para a GNR.
Não conseguiu contar um episódio, do inicio ao fim, o que foi dito, em que consistiram as discussões, que agressões e com que marcas é que ficou.
Depois a instâncias do seu mandatário disse que o arguido AA a prendeu e a atirou para a cama e fez pressão sobre o corpo dela, mas não sabe qual o motivo da discussão e que terá sido no mesmo dia que lhe apertou o pescoço e partiu o vidro da porta. Não tem ideia se pagou alguma coisa pelos estragos, sabe que o senhorio arranjou.
Ouvida na qualidade de testemunha, EE, irmã da assistente BB, a mesma afirmou que nunca viu o arguido AA a agredir a sua irmã; havia discussões por causa da gestão da casa, não se lembra de ter ouvido nenhuma ameaça; viu a testa da irmã vermelha e ela disse-lhe que tinha sido uma cabeçada do arguido, aqui LL (filha de ambos) já era nascida; também viu na porta da sala da 1ª casa, no centro da porta tinha um buraco que lhe pareceu ser de um punho; na 2ª casa viu um vidro da porta que dava para a cozinha partido que será de ter fechado a porta com mais força. Referiu que no dia 03 de Julho de 2022 acompanhou a irmã para ir buscar a LL, ao final do dia, mas não conseguiram.
No dia 04 de Julho, voltaram lá para um amigo dela (de nome MM) conhecer a LL, a irmã subiu e quando desceu viu o antebraço desta vermelho e que a irmã terá dito para irem embora que tinha sido agredida. Após, a irmã entrou no carro, mas não conseguiram sair porque o AA colocou o carro de forma a que eles não podiam sair; quando chega o Sr. CC, a irmã sai do carro para explicar que apenas queria estar com a filha dez minutos, ao que este lhe pergunta: “BB o que vieste aqui fazer?” e começou a dar-lhe socos na cara, a irmã caiu logo no primeiro soco mas rapidamente se levantou. Não viu o arguido AA, a agredir ou a insultar alguém, só dizia ao pai que: “Já chega”. Ouviu o CC a dizer à irmã: “Se isto volta a acontecer eu mato-te!”. Disse-o várias vezes e diz que ela ficou com medo. Viu a irmã com sangue na boca e marcas de raspão na testa.
Não se recorda de ter visto o carro do CC, nem sabe onde ele o estacionou.
Mais referiu que apenas na semana passada teve conhecimento das mensagens trocadas em Dezembro de 2022 entre o arguido AA e a sua irmã.
Pela testemunha DD, mãe do arguido AA e cônjuge do arguido CC, foi referido que nunca viu nem ouviu quaisquer insultos e ameaças entre o casal, nem marcas de agressão no corpo de BB, nem esta alguma vez lhe disse que o filho a tinha insultado ou ameaçado.
No dia 3 de Julho nada viu ou ouviu.
No dia 04 de Julho a BB tocou à campainha, entrou (ela nunca foi proibida de entrar), ia pegar na LL, ela não deixou porque a menina estava a dormir e ela chamou-a de porcalhona, não vale nada, é uma incompetente; entretanto o AA acorda, diz-lhe para ela ir embora, ela chamou-o de filho da puta, não vales nada, és um impotente, só serviste para fazer a tua filha. Então, o filho agarrou-a no braço, empurrou-a para fora da porta mas ela não queria sair, pôs um pé e a mão na porta; como a LL chorava muito, pediu à BB para ir embora e ao filho pediu-lhe para parar. Entretanto vem no elevador com a BB até à entrada do prédio, apanhou um bocado de ar e voltou para cima; o AA desceu quando ela subiu. Não tem conhecimento de qualquer contacto entre o filho e a BB após o ocorrido no dia 04 de Julho.
Não acredita que a BB sinta medo do seu filho porque ela só lhe dizia bem, mas também lhe mostrou pisaduras nas pernas e disse-lhe que se quisesse metia o filho na cadeia.
Por seu turno, pela testemunha NN, cunhada do arguido CC, foi referido que o AA se queixou várias vezes das discussões que tinha com a BB.
No dia 04 de Julho a irmã (mãe do arguido AA) ligou-lhe a dizer que estava lá a BB a fazer barulho e que queria levar a menina. Ela foi para lá quando chegou viu a D. FF (mãe da ofendida BB) a dizer “Estás a olhar para onde, seu besta, seu cabrão, não és homem para a minha filha”. Ouviu a BB dizer a AA que lhe ia fazer a vida negra e que não ia dar paz a ele e à família. Nessa altura CC ainda não tinha chegado. Quando este chegou, BB dirigiu-se a ele, com as mãos no ar, não ouviu o que ela disse, empurrou-o ao que ele foi contra a porta da sua viatura e até fez uma amolgadela; ele empurrou-a, viu sangue, mas não ouviu o que foi dito pois estava muita discussão. Entretanto chegou a GNR.
Foi confrontada com as declarações de fls. 163 pois aqui tinha dito que nada tinha visto relativamente à BB e aqui, em julgamento apresentou uma versão diferente.
Prestou igualmente declarações, FF, mãe da assistente BB, a qual afirmou que nunca viu qualquer agressão, insultos ou ameaças por parte do arguido AA à sua filha, quer presencialmente quer por telefone. Uma vez o arguido AA ligou-lhe toda a noite a dizer-lhe que a filha era uma mal educada e que o pai não lhe deu educação (o que a magoa porque o marido já faleceu). Ao que tem conhecimento, o casal separou-se porque já não se estavam a entender e que a única situação que tem conhecimento foi a que ocorreu no dia 04 de Julho e apenas porque foram a casa de AA ver a neta. Nessa ocasião, ficou no carro, a filha foi à casa do AA e quando veio, diz-lhe que foi agredida e para ela entrar para o carro. Porém, o AA colocou o carro de forma a que a filha não conseguia sair; de repente chega o pai do AA, a filha sai do carro e vai ter com ele para falar com ao que este a começa a agredir com socos na cara, ao que ela tentou sair do carro mas o cinto não a deixou. Não se apercebeu que a filha tivesse caído.
Não se lembra do que foi dito, mas lembra-se perfeitamente que a filha pediu educadamente ao pai do AA para este tirar o carro!
Relatou um episódio, sem referir qual o ano, em que no dia da mãe viu a BB com um papo na cabeça e foi ela que não deixou a filha ir ao hospital nem lhe disse para ficar ali em casa com ela.
A partir do dia 4 de Julho não sabe se eles voltaram a falar.
Pela testemunha OO, militar da GNR, foi referido que foi chamado ao local, no dia 04 de Julho de 2022 e viu umas marcas de sangue na boca de BB, a qual lhe relatou os factos tal como se encontram exarados no auto. Não se recorda quem chamou.
Pela testemunha PP, militar da GNR, foi declarado que no dia 4 de Julho estava de patrulha às ocorrências e deslocaram-se ao local, onde se encontrava a BB com a mãe a dizer que tinham sido agredidas. Recorda-se de ter visto no interior da boca da BB escoriações, tal como se constata do teor de fls. 471, com a qual a testemunha foi confrontada. Referiu ainda que já no dia anterior tinham ido lá mas não tinha havido confusão.
Finalmente, pela testemunha QQ, sobrinha do arguido CC foi dito que apenas esteve com a BB cerca de duas vezes, não tendo presenciado qualquer acontecimento. Descreveu este arguido como sendo uma pessoa calma, caseira e que o mesmo terá ficado envergonhado e triste, pelo aparato que o acontecimento teve no da 04 de Julho, com a chamada da GNR e de ambulância. Mais referiu que o arguido AA ficou triste com os acontecimentos e isolou-se, por vergonha.
Em audiência foi ainda visualizado as imagens e sobretudo sons captados pelo telemóvel de BB e desta visualização/audição foi possível apurar a voz do arguido CC a perguntar a BB, por duas vezes
em tom de voz exaltado: O que estás aqui a fazer BB? E depois só se ouvem gritos, sendo perceptível que após ter feito tais perguntas, o arguido agride BB, sendo ainda perceptível o arguido a falar com a irmã de BB dizendo: “Se ela (BB) não pára quietinha eu mato-a!”.
Ora, o que dizer da prova assim produzida?
Desde logo, quanto aos factos descritos em 1. a 10, a convicção positiva do Tribunal assentou, desde logo, nas declarações prestadas pelo arguido e no depoimento prestado pela ofendida, que foram unânimes ao confirmar tais factos, assim como, se atendeu ao assento de nascimento da menor LL de fls. 70-71.
No que se refere ao episódio de agressões físicas do arguido AA sobre a pessoa de BB, ocorrido em 04 de Julho de 2022, este admitiu que as praticou, ou seja, que empurrou esta de forma a fazê-la sair de sua casa, o que aliás é consentâneo com as lesões apresentadas pela mesma aquando da realização do exame no IML em 08.07.2022, mormente no membro superior direito e membro superior esquerdo. De resto, diga-se, que alguma coisa teria o arguido de estar a fazer para a sua própria mãe dizer-lhe para parar.
No que respeita às mensagens enviadas pelo arguido à ofendida, não se vislumbra nas mesmas qualquer supremacia daquele em relação a esta, mas tão só alguém que, apesar da separação, ainda nutria sentimentos/desejo pela ex companheira. Veja-se que, pela própria ofendida foi referido que mesmo após a separação e durante o decorrer do ano de 2022, mesmo após o episódio no dia 04 de Julho, recebeu o arguido em sua casa “para fumarem haxixe”, porém, de acordo com o teor das mensagens trocadas entre ambos, constata-se que tais encontros seriam de cariz sexual, como por exemplo:” Já que gostas que seja puta vou começar a cobrar”, à mensagem do arguido: “Podia deixarte fazer um biquinho” a ofendida responde: “Anda”, “Quando chegar posso entrar? Se vestires a lingerie que te deu comote assim mesmo”. Assim, a mensagem enviada pelo arguido à ofendida enviando a fotografia de ambos a terem relações sexuais (a qual foi junta aos autos por iniciativa da própria ofendida) perguntando-lhe “Queres fuder ou não”, está de acordo com o tipo de relacionamento que existia entre ambos, não se vislumbrando que o seu teor pudesse perturbar a paz e o sossego da ofendida.
Por outro lado, relativamente às mensagens enviadas pelo arguido no dia 02 de Janeiro de 2023, pelas 17h51m a BB, onde se lê: “foi mesmo fácil era o amor que tinhas por mim aliás só depois de me deixares tomaste atitudes na tua vida que eu te chamava há atenção”, “enfim, vejo-te a dar mais por quem não fez 1/10 daquilo que fiz por ti, outra coisa, a tua filha é minha filha e vou estar aqui para não permitir mais merdas da tua parte, por outro lado avisa já o teu amiguinho que para jamais se meter entre eu e a minha filha! Acredita que não seria bom tenta sequer ;)” e nesse mesmo dia outra, onde escreve “Minha menina, bolinha rentinha há relva! Inventa e fala o que quiseres agora de mim, afinal de contas eu era exatamente igual ao teu pai tou-me a cagar se tás viva e respiras muito menos a quem andas a abrir as pernas bá pouco paleio tais os dois aconselhados, isto é muito simples. Vocês não pisam a linha de pai e filha, não têm de se preocupar com nada tou-me a cagar para puta da vossa vida, a partir do momento que pensarem sequer em passar a linha de pai e filha preocupem-se a sério, tamos falados”, o que se constata é que o motivo da discórdia está relacionado com a filha de ambos e a vontade do arguido em preservar essa relação, sem interferência de ninguém, inclusivamente da própria ofendida.
Diga-se que a versão dos factos apresentada pela ofendida, referindo esta que o arguido lhe desferiu um estalo, não logrou convencer o Tribunal, pois não se encontra ancorada em qualquer outro elemento de prova, nem consta sequer da acusação pública.
No que respeita à conduta do arguido CC, a versão trazida por este é contrariada pela demais prova produzida, senão vejamos: todas as testemunhas que se encontravam no local foram unanimes em afirmar que quando deram pela presença do arguido CC este já se encontrava perto da viatura de BB, o que é igualmente corroborado pelas imagens visualizadas onde se vê distintamente o arguido CC já perto da viatura de BB. Assim, não fazem qualquer sentido as afirmações do arguido quando refere que BB o empurrou (e empurrou-o com tal força que até fez um amolgadela na viatura!) e ele apenas a empurrou de volta. Se assim fosse, não faria qualquer sentido os gritos que se ouvem, logo após as perguntas: O que estás aqui a fazer BB?.
Temos igualmente as declarações da ofendida BB, que nesta parte, se afiguraram sinceras, espontâneas e dignas de credibilidade em contraposição com as prestadas pelo arguido CC, as quais se revelaram titubeantes e incoerentes face às regras da experiência comum e do normal acontecer. Na verdade, diga-se que, para além das lesões sofridas estarem documentalmente comprovadas – vide relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls. 60-62 – as mesmas são totalmente compatíveis com as agressões descritas pela ofendida. Ora, se foi “apenas” um empurrão, como se justifica as lesões que a ofendida sofreu?
Quanto à expressão referida pelo arguido “Se ela não pára quietinha eu mato-a!” valorou o Tribunal as imagens/sons reproduzidos em audiência, nas quais é bastante perceptível a voz do arguido CC a proferir tal expressão.
Do que se infere, na conjugação de toda a prova produzida, aliado às regras da experiência comum e do normal acontecer, é que o arguido encontrando-se exaltado com a situação, acabou por agredir a ofendida BB.
Posto isto, o conhecimento dos arguidos e a vontade de realização das condutas por eles perpetradas retiram-se da factualidade objectiva demonstrada, por apelo a regras de lógica e de experiência quanto à actuação humana.
Por outro lado, é também das regras da experiência que o comum dos cidadãos, com a idade, o percurso e a experiência de vida de cada um dos arguidos, não ignora, não pode ignorar, o carácter penalmente ilícito das condutas por eles levadas a cabo.
Por sua vez, a factualidade provada quanto às condições da vida pessoal, social económica dos arguidos, assentou no teor dos relatórios sociais junto aos autos.
Quanto aos antecedentes criminais desconhecidos aos arguidos, teve-se em consideração o teor dos respectivos certificados de registo criminal juntos aos autos.
Relativamente aos factos indicados na factualidade não provada, a convicção negativa do Tribunal resulta da ausência de prova quanto aos mesmos e da sua contradição com a factualidade provada.
Desde logo, a mesma resultou não provada face à ausência de prova, pois que, além do arguido ter negado tais factos, não resultou do depoimento prestado pela ofendida BB a ocorrência dos mesmos. De facto, a ofendida limitou-se a referir de forma genérica e vaga que, em algumas ocasiões, o arguido a apelidava de “porca”, “andava a precisar de peso”, “puta” mais referindo que a agredia com estalos, puxões de cabelo, pontapés, não logrando concretizar de forma concreta e circunstanciada tais episódios. Além do mais, resulta do seu depoimento que as discussões que tinha com o arguido eram motivadas por este não ajudar nas lides de casa e no cuidado com a filha menor, tendo reatado o relacionamento, após separados um ano, porque pensou que o arguido iria mudar, concretizando, pensou que o arguido iria começar a ajudá-la naquelas tarefas. Ora, se de facto, tivesse sido agredida e insultada pelo arguido da forma como refere que este o fez, teria muito mais sentido dizer que reatou com o arguido pensando que este iria deixar de adoptar tais comportamentos (!).
Por outro lado, não obstante a ofendida referir que o arguido, em algumas ocasiões, no meio de discussões, partia objectos/danificava portas, a verdade é que, do depoimento prestado pela ofendida não resultou de forma concreta e circunstanciada as situações em que tais factos ocorreram, nem sequer que com tais atitudes por parte do arguido a ofendida tenha ficado amedrontada.
Por último, diga-se que, tal como já foi referido, toda a demais factualidade resultou como não provada face à total ausência de prova, sendo que as demais testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, não demonstraram qualquer conhecimento directo quanto aos factos descritos na acusação, sendo transversal a todos os depoimentos que o relacionamento entre o arguido e a ofendida pautava-se como um relacionamento normal, evidenciando apenas a existência de problemas entre o casal após a separação e relacionado com a filha de ambos. Ou seja, o arguido negou os factos, a ofendida confirmou-os e as testemunhas ouvidas nada sabiam sobre os mesmos.
Na ausência de qualquer outro meio de prova as declarações da assistente, para que possam servir de base a uma condenação, tem que ser claras, lineares e escorreitas, o que no caso não ocorreu. Acrescente-se ainda que nada, mesmo nada, na postura da ofendida transparecia o que uma pessoa subjugada, vítima de maus tratos, sentiria ao recordar-se de factos traumáticos.
Diga-se ainda a propósito do alegado alto na cabeça da ofendida, que não é de todo plausível que uma mãe, após ter visto que a sua filha foi agredida lhe diga para não ir ao hospital, bem como contraria as regras da normalidade que não lhe diga para ficar em sua casa, longe do alegado agressor.
Na verdade, face a toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, não resultou demonstrado que a ofendida tenha sido atingida na sua dignidade enquanto pessoa humana, assim como, o arguido tenha adoptado uma conduta de agressividade física e psíquica, controladora, persecutória, perturbando o sossego e tranquilidade da vítima, fragilizando-a na sua liberdade pessoal, numa relação de subordinação, de aniquilamento, de domínio, espezinhamento e subjugação face ao arguido. Ademais, a conflitualidade existente entre o arguido e a ofendida após o fim da relação, ficou a dever-se única e exclusivamente a questões relacionadas com as responsabilidades parentais da filha de ambos.
B) De Direito
Enquadramento jurídico-penal:
O arguido AA vem acusado da prática de um crime de violência doméstica, agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pessoa de BB.
Dispõe o artigo 152º, do Código Penal:
“1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) A cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau;
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2- No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
[…]
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
4-Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5-A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
[…]”.
O bem jurídico que a incriminação visa proteger é a dignidade humana ou, mais directamente, a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, bem jurídico este que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge, ex-cônjuge ou pessoa com quem o arguido mantenha uma relação análoga à dos cônjuges, ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem – Cfr., neste sentido, Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, pág. 512.
Não está, por isso, em causa a tutela de bens jurídicos supra-individuais, tais como a “comunidade familiar ou conjugal”, como resulta claro, por um lado, da inclusão da norma incriminadora no Título destinado aos crimes contra as pessoas, por outro, da inclusão no tipo objectivo de condutas praticadas contra ex-cônjuges, contra pessoa que com o arguido tenha mantido relação análoga à dos cônjuges ou contra pessoa particularmente indefesa que com ele coabite.
O crime de violência doméstica é, na maioria das hipóteses tipicamente previstas, um crime específico impróprio, isto é, um crime em que uma especial qualidade ou relação entre o agente e a vítima determina uma agravação da ilicitude, da culpa e, consequentemente, da pena aplicável.
Todavia, em determinados casos, o crime de violência doméstica pode assumir a configuração de um crime específico próprio, o que sucederá quando se incluam no âmbito da incriminação condutas que, de outro modo, não poderiam fundar uma autónoma incriminação; nesses casos, é a especial relação que existe ou existiu entre o agente e a vítima que fundamenta a ilicitude e a punição do agente.
As relações entre o agente e a vítima tipicamente relevantes são as que o n.º 1 do art.º 152.º enumera, cabendo chamar à colação, por pertinentes à matéria de facto provada, ou seja: ser a vítima sua mulher, pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade e a menor que seja seu descendente.
A conduta típica, por sua vez, consiste em “infligir maus tratos físicos ou psíquicos”, previsão que abrange um vasto leque de condutas susceptíveis de lesar a saúde física, psíquica ou mental da vítima e, em última análise, a sua dignidade de pessoa.
Os maus tratos físicos podem abranger, como expressamente previsto, os castigos corporais, as privações da liberdade e as ofensas sexuais, traduzindo-se num conjunto de actuações sobre o corpo da vítima, que lesam: o direito à integridade do próprio corpo enquanto substância física, direito a não ser privado de qualquer parte do corpo; o direito de fruir o próprio corpo na ausência de dor ou mal-estar; o direito ao bom funcionamento do corpo, enquanto organismo complexo; o direito à preservação da imagem física do próprio corpo, enquanto projeção exterior da personalidade.
Já os maus tratos psíquicos incluem as humilhações, provocações, molestações, ameaças e tratamentos cruéis, bem como o emprego em actividades perigosas, desumanas ou proibidas ou a sobrecarga com trabalhos manifestamente excessivos. Como resulta do preceito legal citado, as condutas susceptíveis de configurar maus tratos físicos ou psíquicos não têm que ser reiteradas.
Todavia, a teleologia do preceito incriminador – a protecção da dignidade e da saúde em sentido amplo – exige que uma conduta isolada, para que mereça relevância típica enquanto “maus tratos”, se deva revestir de uma particular gravidade intrínseca.
Na perspectiva do bem jurídico protegido, compreende-se que determinados comportamentos menos graves adquiram relevância típica pela sua reiteração. Correspondentemente, só podem ser consideradas idóneas a lesar a dignidade e a saúde em sentido amplo condutas isoladas acima de um patamar mínimo de gravidade.
Neste sentido, defende Américo Taipa de Carvalho, op. cit., pág. 519, que “uma ação isolada de pouca gravidade, mesmo que se configure uma infração criminal (p. ex., uma leve ofensa corporal, ou injúria), não deve ser qualificada como um crime (grave – pois que, além de ter como limite máximo prisão de cinco anos, tem como limite mínimo um ano de prisão) de violência doméstica ou de maus tratos”.
Esta interpretação, além de corresponder melhor à configuração do bem jurídico que a norma incriminadora visou tutelar, corresponde a uma decorrência do princípio constitucional da proporcionalidade em matéria de punição criminal, imposta pela disparidade das molduras penais estabelecidas, respectivamente, para os crimes de ofensa simples da integridade física, de injúria, de violência doméstica e de maus tratos.
Aplicando as considerações supra ao caso em apreço, concluímos, indiscutivelmente, que em face da factualidade provada, não resulta a existência de maus tratos, físicos ou psíquicos, nem traduzem actos que revelam crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima, susceptíveis de integração do crime de violência doméstica, sempre se salientando que para o preenchimento do tipo em causa não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima.
O bem jurídico protegido pelo art. 152.º do Código Penal, repete-se, é, em síntese, a dignidade da pessoa humana, implica que a norma jurídica apenas preveja aquelas condutas efectivamente maltratantes, que, pela sua gravidade, conduzam à degradação daquela dignidade (pois que se assim não fosse qualquer ofensa cometida entre cônjuges ou ex-cônjuges seria automaticamente erigida à categoria de violência doméstica), o que, manifestamente, não acontece relativamente à factualidade que resultou provada.
Não ficou demonstrado que a ofendida tenha temido o arguido ao ponto de ser intoleravelmente comprometida a sua dignidade de pessoa humana. Em bom rigor, não resulta provado que o arguido tenha incorrido na prática de um crime de violência doméstica, pois não resultou que a ofendida tenha sido atingida na sua dignidade enquanto pessoa humana, tendo-lhe sido afectada a sua saúde, na sua tripla vertente -física, psíquica e moral, numa relação de subordinação, de aniquilamento, de domínio, espezinhamento e subjugação em que o arguido se assumisse como o dominador e a vítima como a dominada, conforme lhe era imputado no despacho de acusação.
Na verdade, como supra já tivemos oportunidade de referir, face a toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, não resultou demonstrado que a ofendida tenha sido atingida na sua dignidade enquanto pessoa humana, assim como, o arguido tenha adoptado uma conduta de agressividade física e psíquica, controladora, persecutória, perturbando o sossego e tranquilidade da vítima, fragilizando-a na sua liberdade pessoal, numa relação de subordinação, de aniquilamento, de domínio, espezinhamento e subjugação face ao arguido. Ademais, constatou-se que a conflitualidade existente entre o arguido e a ofendida após o fim da relação, ficou a dever-se única e exclusivamente a questões relacionadas com as responsabilidades parentais da filha de ambos.
Na verdade, efectuado o julgamento, da factualidade provada resultou que o arguido, no dia 04 de Julho de 2022 no interior da sua residência, o arguido AA deu empurrões à ofendida, puxou-a pelos braços, em direcção à porta de casa dele. Mais resultou provado que no dia 09 de Janeiro de 2023, entre as 19h e as 19h30m, o arguido AA, via telefone, dirigiu a seguinte expressão contra BB: “se tu tentas mexer comigo ou com os meus eu furo-te toda, a ti e ao teu namoradinho, entre outras!”.
Mais resultou provado que o arguido AA agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde da ofendida, o que quis e conseguiu e ao proferir, via telefone tal expressão, quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e sossego de BB, dando a entender que sabia onde e com quem se encontrava, o que levou a que a ofendida sentisse medo, receio e inquietação.
Mais resultou provado que agiu de forma voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime.
Ora, quanto ao crime de ofensa à integridade física, de acordo com o art.º 143.º, n.º 1, “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.
O bem jurídico protegido pela referida norma incriminadora é a integridade física entendida como unidade psicossomática do indivíduo, essencial ao livre desenvolvimento e realização da personalidade humana, num quadro de bem-estar físico, psíquico e social, numa perspectiva corporal-objectiva do delito.
A verificação do tipo objectivo pressupõe um comportamento que, por qualquer modo, produza uma ofensa no corpo ou na saúde de terceiro, ficando preenchido o tipo legal do artigo 143.º mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde de terceiro.
Entende-se por ofensa no corpo todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico ou na morfologia do seu organismo.
Entende-se por ofensa na saúde, toda a intervenção que ponha em causa, alterando ou perturbando, o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a.
O tipo legal de crime em questão exige o dolo em qualquer das suas modalidades (direto, necessário ou eventual, nos termos do artigo 14.º do Código Penal), ou seja, o conhecimento dos elementos constitutivos da factualidade típica e a vontade de agir de forma a preenchê-los (conhecimento e vontade de realização do tipo legal de crime).
Dúvidas inexistem, pois, que o arguido ofendeu BB no seu corpo e incorreu, em autoria material, na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.
É afastada a prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1 e 145º, nº 1, alínea a), por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea b), todos do Código Penal, pois perscrutada a factualidade provada, constata-se que o arguido agiu num contexto sem qualquer especificidade susceptível de configurar os apontados conceitos de especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Como se refere no Ac. Relação de Lisboa de 08-11-2022 (proc. n.º 987/17.4SDLSB.L1-5, www.dgsi.pt), perante tal factualidade, a relação mantida entre o arguido e a ofendida, sem mais, apenas poderá relevar, no momento oportuno, no plano das consequências jurídicas do crime, na ponderação que eventualmente se venha a fazer da determinação da sanção, “uma vez que se encontra desacompanhado de qualquer outro facto que nos permita concluir por um especial desvalor capaz de denotar uma especial censurabilidade e perversidade do agente.”
Como já acima se referiu, a conduta do arguido, empurrando a vítima, puxando-a pelos braços em direcção à porta da rua, provocando-lhe as lesões nos membros superiores direito e membro inferior esquerdo, melhor descritas no relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 60 a 62 e tendo agido de forma deliberada, livre e consciente, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal, configura uma conduta desvaliosa e preenche, sem dúvida, o tipo legal de crime de ofensa à integridade física.
Porém, tal ofensa à integridade física não é qualificada, pois, pese embora não se esqueça que sobre o arguido impende um especial dever de respeito para com a vítima, atentos os valores éticos inerentes a uma união conjugal/união análoga à dos cônjuges que tinha mantido com a ofendida, do que, aliás, o arguido estava ciente, que, sem dúvida, demanda que se reveja na sua conduta um aspecto desvalioso da sua personalidade, tal facto, por si só, não é suficiente para qualificar o crime. Torna-se, portanto, necessário verificar se da conjugação dessa circunstância com a restante factualidade que envolve o acto, se retira a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. E no caso dos autos, perante globalidade da matéria dada como provada, cremos que tal não ocorre.
Na verdade, analisada a factualidade provada entendemos que, apesar do desvalor de acção inerente ao facto de a vítima ser, a ex companheira do arguido e tendo uma filha em comum, o que justifica um elevado juízo de censura no âmbito do tipo do ilícito base, nada mais resulta que revele insensibilidade e desvende uma imagem global do facto agravada susceptível de sustentar um juízo de especial censurabilidade, por fundar um juízo de maior desvalor ético.
No que respeita ao crime de ameaça:
Comete o crime de ameaça agravada imputado ao arguido e p.p., conjugadamente, nos artigos 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1 e 131.º, todos do CP quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, punível com pena de prisão superior a três anos, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
Inscrito, no Capítulo IV, do Título I, da Parte Especial do Código Penal, que versa “Dos crimes contra a liberdade pessoal”, este tipo legal visa, assim, a protecção do bem jurídico liberdade de decisão e de acção – ou, segundo a designação da doutrina alemã perante normativo semelhante contido no § 241.º do CP alemão, a paz jurídica individual (cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, p. 342.) – dado que as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade e medo na pessoa do ameaçado, afectam naturalmente a sua paz individual e, por essa via, tolhem a sua liberdade de acção, fazendo-a evitar ou tomar certos comportamentos, com receio de que quem fez a ameaça a cumpra.
Por isso mesmo, o seu tipo objectivo é basicamente composto por dois os elementos:
- a existência de uma ameaça, consistente na promessa da prática futura de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor do ameaçado; e
- a adequação, dessa mesma ameaça a provocar medo, inquietação ou afectação da liberdade de determinação ofendido, avaliada segundo o critério objectivo-individual do homem médio colocado no especifico circunstancialismo de facto que envolvia a vítima.
Trata-se, portanto, de um crime de execução livre, podendo a acção de ameaçar revestir qualquer forma (escrita, oral, gestual, etc..) deste que apta a transmitir a ameaça ao destinatário.
Apresenta, contudo, um conteúdo substancial vinculado, pois como decorre da análise do respectivo tipo objectivo, só existirá ameaça típica quando o mal ameaçado, isto é, o objecto da ameaça, configurar em si mesmo um facto ilícito típico cujo objecto de protecção, por sua vez, seja um dos bens jurídicos que o art. 153.º, n.º1 do CP, taxativamente enumera (cfr. Ac. RC de 12/12/2001, acessível in www.dgsi.pt).
Consubstancia, por outro lado, um crime de perigo de concreto, não se exigindo um resultado de dano – a causação efectiva do medo – mas tão só um resultado de perigo (cf. Ac.s RP de 10/01/2001, 10/10/2001 e 16/01/2002, acessíveis in www.dgsi.pt), pois a ameaça terá apenas que ser realizada de forma objectivamente adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação, bastando à sua consumação a verificação objectiva dessa adequação e já não se exigindo que o agente tenha, efectivamente, provocado medo ou inquietação na vítima.
Já no que diz respeito ao seu tipo subjectivo, por outro lado, salienta-se apenas que se exige o dolo por parte do agente (cf. art. 14.º do CP), bastando-se este, no entanto, com a consciência e a intenção (ou conformação) da adequação da conduta (objectivamente típica) a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado, sendo irrelevante que o agente pretenda, ou não, concretizar a ameaça realizada. Isto é, o dolo exigido reconduz-se, tão-somente, à consciência de que a conduta voluntariamente desenvolvida é objectivamente adequada a limitar a liberdade de acção ou a paz individual do ofendido, quer o agente pretenda directamente provocar esse efeito (dolo directo), quer se conforme com a sua verificação necessária ou eventual (dolo necessário ou eventual) – cf. Ac. RC de 12/12/2001, acessível in www.dgsi.pt.
Ora, assim delimitado o tipo legal deste crime de ameaça simples, logo se vislumbra que os factos que se julgaram provados, integram a prática, pelo arguido, deste crime de ameaça agravada na pessoa da ofendida BB.
Tudo porque, na ocasião aí descrita, o arguido, de forma consciente, livre e deliberada disse à ofendida “Se tu tentas mexer comigo ou com os meus furo-te toda, a ti e ao teu namoradinho, entre outras”, assim a ameaçando de que iria atentar contra a sua vida, conduta que no contexto em questão bem sabia ser adequada a causar-lhe medo e inquietação.
Assim, cometeu, igualmente, um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal.
Ambos os crimes, no nosso entendimento, têm natureza semi pública, o que significa que o Ministério Público só pode iniciar a investigação após a apresentação de queixa, como resulta evidenciado do art.49.º do Código de Processo Penal:
«1 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
Assim, a queixa (nos crimes semipúblicos), é pressuposto da admissibilidade do processo, neste sentido, pressuposto processual que constituiu limitação (em que a denúncia não substitui a acusação, mas tem necessariamente de a preceder) ao princípio da promoção oficiosa do processo penal.
Como bem refere o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque « (…) o regime da queixa é o mesmo, quer se trate de um crime particular ou de um crime semipúblico».(In “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, ed. 2007, pág. 152).
A lei não define o conteúdo e a forma da queixa, pelo que, para este efeito, se recorre à doutrina e à jurisprudência.
O Prof. Figueiredo Dias define «queixa» como “o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (art.111.º e CPP art.49.º)»(In “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, notícias editorial, pág. 665).
E a propósito da omissão sobre a forma da queixa, tanto do Código Penal, como do Código de Processo Penal, acrescenta o mesmo autor que esta “pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto (…). Tão pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona” (In, obra citada, pág. 675).
O direito de queixa deve ser exercido « no prazo de 6 meses, a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz» (art.115.º, n.º1 do Código Penal).
Ora, temos para nós que, aquando da sua inquirição no dia 05.07.2022 (fls. 23 dos autos), no aditamento de fls. 119, a ofendida BB manifestou vontade inequívoca de que tenha lugar procedimento criminal contra o arguido AA, quer pela agressão de que foi vitima, quer pelas várias mensagens que lhe foram remetidas pelo arguido, juntando a fotografia enviada pelo arguido, a que supra já se fez referência.
Mesmo que assim não se entendesse, tendo a acusação sido introduzida em juízo por quem dispunha de legitimidade para o efeito, ou seja, o Ministério Público, atenta a natureza pública do crime de violência doméstica, é de considerar que a ofendida que adira a essa acusação manifesta, pelo meio processual próprio, neste caso por mera adesão à acusação – cf. art. 284º, nºs 1 e 2, al. a), do Código de Processo Penal a sua vontade de perseguição criminal e punição do autor dos factos descritos no libelo acusatório, logo, por todos os factos, incluindo, face ao carácter unificador de vários tipos de comportamentos intrínseco à tipicidade objectiva do crime de violência doméstica, factualidade susceptível de integrar autonomamente os crimes de ofensa à integridade física e ameaça, estando assegurada assim, a legitimidade do Ministério Público.
Por seu turno, o arguido CC, encontra-se acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143º, nº 1 e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), todos do Código Penal, na pessoa de BB.
O crime de ofensa à integridade física está previsto no art. 143º do CP, onde se pode ler “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
O bem jurídico que, com este tipo de legal de crime, se quer proteger é a integridade física de uma pessoa (identificando-se esta com a integridade do seu corpo e já não pura e simplesmente com a integridade psíquica – a qual é visada nos crimes contra a honra).
O conceito de integridade física não deve, assim, ser interpretado com demasiada amplitude, embora tenhamos de reconhecer que certas lesões do corpo ou da saúde têm consequências psíquicas que, por isso, devem considerar-se abrangidas.
Trata-se de um crime material e de dano, pois exige a produção de um certo evento material - neste caso a lesão do corpo e/ou da saúde - sendo que não basta o perigo de tal lesão, pois a mesma tem de se verificar efectivamente. Além disso, refira-se também que é um crime de realização instantânea (crimes de realização instantânea são aqueles, nas palavras do Prof. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, II, pág. 32, “em que a consumação ocorre em um momento certo”).
Para que se considere realizado o tipo prevê o legislador a existência de ofensas no corpo ou na saúde de uma pessoa (muitas vezes existirão ambas), independentemente de dor ou sofrimento causado (cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 19/12/1991). Para a produção de tais ofensas podem ser utilizados quaisquer meios não relevando se as ofensas perduraram ou não no tempo, sendo certo que tal poderá (e deverá) ser tomado em consideração na determinação da medida da pena, como refere Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 205).
Quanto à ofensa no corpo, “é toda a alteração ou perturbação da integridade corporal, do bem estar ou da morfologia do organismo” (Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 16ª edição, 2004, pág. 518); exige-se que seja uma ofensa significativa no corpo humano (podendo abranger próteses quando se mostrem ligados à pessoa com carácter de permanência), e manifestar-se-á, nomeadamente, pela diminuição de substância corporal (perda de pele, de órgãos, etc), lesões da substância corporal (nódoas negras, feridas, etc) e alterações ou perturbações físicas.
No que respeita à lesão na saúde de outra pessoa, que é definida por Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 16ª edição, 2004, pág. 518 como “toda a alteração ou perturbação do normal funcionamento do organismo” esta revelar-se-á pela criação de um estado de doença (não grave, porque nesse caso estaria abrangido pela previsão do art. 144º - ofensas à integridade física graves) ou pela manutenção ou agravamento de um estado de doença ou agravamento já existente.
Exige-se, neste tipo legal, o dolo em qualquer das suas modalidades (art. 14º do CP), isto é, que o agente represente que a sua conduta se traduz na ofensa típica e que, ainda assim, decida adoptá-la (elemento subjectivo).
Assim, tendo-se provado que o arguido ao agredir com murros na face a ofendida BB, agiu com intenção de a molestar na saúde e no corpo, como molestou, provocando-lhe lesões descritas nos autos de exame médico de fls. 60 a 62, que demandaram 5 dias para a cura sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional, mais sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, não podemos deixar de o comprometer com os sobreditos elementos objectivos e subjectivo e, por conseguinte, imputar-lhe a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física p. e p. no artigo 143.°, n.° 1, do Código Penal.
Por outro lado e de acordo com o 155.º, n.º 1 al. a) do CP, se o crime for praticado por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos haverá lugar ao agravamento da sanção penal nos termos aí previstos.
Vem sendo unanimemente entendido pela doutrina e pela jurisprudência que são elementos essências do crime de ameaça previsto e punido pelo artigo 153º do Código Penal:
- o anúncio, que pode ser implícito, de que o agente pretende infligir futuramente a outrem um mal que constitua crime (contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor);
- que esse anúncio provoque ou lhe seja adequado a provar receio, medo ou inquietação ou lhe prejudique ou possa prejudicar a liberdade de determinação;
- que o agente tenha actuado com dolo em qualquer das suas modalidades, ou seja, com vontade de provocar esse medo, inquietação ou limitação da liberdade de determinação;
- que o agente tenha conhecimento de que o mal anunciado constitui crime.
Pretende esta norma tutelar o sossego e tranquilidade individual, bem como a liberdade de determinação e acção. Trata-se sobretudo de proteger a sensação de segurança, mais ainda que a segurança em si mesma.
O bem jurídico protegido pelo referido preceito é, sem qualquer dúvida, a liberdade de decisão e de acção.
Escreve o Dr. Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, pág. 343; “São três as características essenciais do conceito ameaça; mal futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente. O mal tanto pode ser de natureza pessoal (p. ex, lesão da saúde ou da reputação social) como patrimonial (p. ex., destruição de um automóvel ou danificação de um imóvel), O mal ameaçado tem de ser futuro, isto significa apenas que o mal objecto da ameaça, não pode ser eminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência, assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de-te matar”; já se tratará de violência quando alguém afirma “vou-te matar já”.
Significa isto que o prenúncio do mal tem de ser futuro, e não eminente.
Por outro lado, como resulta do texto da lei, para que a conduta seja punível, é necessário que a ameaça “seja adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”.
O sujeito passivo, o ameaçado, não carece de ficar com medo ou inquietação, mas antes a conduta tem de ser adequada a tal.
Como diz o Autor citado, in Comentário Conimbricense do Código Penal”, vol. I, pág. 348, “Exige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar, de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação não sem do necessário, que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado (assim, Figueiredo Dias, Actas 1993 500)”.
O crime de ameaças sofreu, com a revisão do Código Penal de 1995, alterações estruturais na construção do respectivo tipo. De facto deixou de se exigir que a ameaça cause efectiva perturbação na liberdade do ameaçado ou que lhe cause medo ou inquietação, bastando que, de acordo com a experiência comum, seja adequada a provocar-lhe essas situações ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. O crime deixou, assim, de ser um crime de resultado e de dano e passou a ser um crime de mera acção e de perigo (vide entre outros, Acórdão da Relação de Évora de 24.04.2001, Colectânea de Jurisprudência, 2001, 2, 270).
Resta pois saber se a expressão, utilizada no contexto em que o arguido estava a desferir murros na face da ofendida ““Se ela não pára quietinha eu mato-a!”configura a ameaça implícita de um mal futuro que constitua crime.
No caso em apreço, a expressão usada pelo arguido, relativamente ao elemento temporal em análise, não se projecta sobre o futuro, mas sobre o presente.
De facto, ofendida ao avistar o arguido CC, dirige-se a ele, e este após lhe ter perguntado, por duas vezes em tom de voz exaltado: O que estás aqui a fazer BB?, sem que nada o fizesse prever, desferiu murros na face da ofendida, mais dizendo: “Se ela não pára quietinha eu mato-a!”mostra de forma indiscutível que o agente queria exibir a sua agressividade à ofendida mostrando-se disponível para a agredir naquele mesmo momento, ou seja, o mal ameaçado, a vida estava a ser enunciado e anunciado para ser praticado ali, naquele dia e naquele local.
É por isso convicção do tribunal que as palavras dadas como provadas, apesar de traduzirem a ameaça de um mal, não traduzem ameaça de um mal futuro e, por isso, não preenchem o tipo objectivo do ilícito previsto no artigo 153º do Código Penal.
Deste modo e por não se verificar um dos elementos objectivos do tipo de ilícito (ameaça de um mal futuro), impõe-se a absolvição do arguido.
III. DA ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA
a) Da medida das penas parcelares
O crime de ofensa à integridade física simples, previsto no art. 143.º, n.º 1 do CP, é punível com pena de multa, ou pena de prisão até 3 anos.
O crime de ameaça agravada, previsto nos art. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1 al. a) do CP, é punível com pena de multa até 240 dias, ou pena de prisão até 2 anos.
Estabelece, então, o art. 40º, n.º 1 do Código Penal que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”
Por sua vez, resulta do n.º 2 do mesmo artigo que a pena em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa.
O art. 70.º do CP, por sua vez, estabelece que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal deve dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição
Já o art. 71.º, n.º 1 do CP, dispõe que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Assim, no âmbito das finalidades de prevenção geral, a definição da natureza e medida concreta da pena deve obedecer ao objectivo de dar satisfação à necessidade comunitária de punição no caso concreto e, simultaneamente, de reafirmar a validade e a vigência da norma violada perante o consciente colectivo, sempre no intuito de se reprimirem, preventivamente, novas situações de violação dos bens jurídicos protegidos por essa mesma norma.
Já no âmbito das finalidades de prevenção especial, essa determinação deverá procurar dar satisfação às exigências de conformação dos comportamentos do agente para com a lei penal, com vista à sua reintegração na sociedade e, nessa medida, ao desiderato último da prevenção de ulteriores violações dos bens jurídicos protegidos penal por parte do mesmo.
Entre tais finalidades deverá procurar-se, na medida em que são complementares e não se excluem materialmente, um justo equilíbrio (Ac.STJ 10/12/1997, acessível in www.dgsi.pt).
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de reintegração) é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o concreto mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente. Entre esses limites, devem satisfazer-se, tanto quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. STJ 15/10/97, acessível in www.dgsi.pt)
É também este, em síntese, a lição que retiramos do pensamento do Prof. Figueiredo Dias vertido em “Código Penal Português de 1982 e a sua Reforma” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, p. 186 e 187.
Nestes termos, há que ponderar se a pena não privativa da liberdade realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição relativas às exigências de prevenção geral e prevenção especial que ao caso em apreço cumpre dar.
No caso sub judice, as necessidades de prevenção geral são medianas, tendo em conta a natureza e gravidade dos crimes praticados. Ainda, assim, subsiste a necessidade reforçar e reafirmar a vigência e validade das normas, pois não raras vezes os conflitos entre ex-casais, degeneram em actos com graves consequências, envolvendo terceiras pessoas, como foi o caso do envolvimento do arguido CC.
As exigências de prevenção especial mostram-se bastante diminuídas, na medida em que decorre dos factos provados que os arguidos não têm antecedentes criminais averbados no CRC, estão bem integrados familiar e profissionalmente, sendo que, no caso do arguido AA, não coabita com a ofendida, a situação relativa à regulação das responsabilidades parentais da filha em comum encontra-se estabilizada, não se divisando, consequentemente, a ocorrência de um perigo relevante de que volte a reiterar o tipo de comportamentos que ora se julgam.
Face ao que se deixa exposto, afigura-se que a pena de multa será suficiente para cumprir os desígnios que informam a acção penal, assegurando a pretendida afirmação dos valores da ordem jurídica e do primado das respectivas normas, não havendo razões que desaconselhem a prevalência da preferência ínsita no artigo 70.º do Código Penal.
Escolhida a natureza da sanção a aplicar, tendo em vista as finalidades que com a mesma se pretende atingir, há que fixar dentro dos limites definidos por lei, a determinação da medida concreta da pena, atendendo ao critério constante do artigo 71.º do Código Penal, ex vi artigo 47.º, n.º1.
Deverão, assim, ser consideradas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais de agente e a sua condição económica, a conduta anterior e posterior ao facto e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (Cfr. nº 2 do art.º 71º do Código Penal).
Ora, neste âmbito, temos que:
- o grau de ilicitude dos factos praticados não é elevado, traduzindo-se em condutas que apesar de ultrapassarem o limiar da licitude, representam uma gravidade inferior à habitual para o padrão médio deste tipo de crimes;
- as consequências da conduta dos arguidos na pessoa da ofendida, no que respeita à prática do crime de ofensa à integridade física, traduziram-se em lesões não graves, sendo no entanto, quer o modo de agressão (murros) quer as lesões provocadas na ofendida pela conduta do arguido CC mais graves;
- os arguidos agiram com dolo directo; e, por fim,
- os arguidos estão bem integrados profissionalmente, não têm quaisquer condenações averbadas no CRC, a regulação das responsabilidades parentais encontra-se estabilizada, não constituindo, actualmente, um risco relevante para aquela ou para os demais bens jurídicos protegidos pelo ordenamento penal.
Ponderadas todas essas circunstâncias à luz dos critérios e factores acima enunciados, e tendo presente a moldura abstracta aplicável, no caso do crime de ofensa à integridade física simples entre 10 e 360 dias e no caso do crime de ameaça agravada entre 10 e 240 dias, afigura-se adequado aplicar:
- ao arguido CC a pena de 140 dias de multa pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
- ao arguido AA a pena de 90 dias de multa pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
- ao arguido AA a pena de 60 dias de multa pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal.
Passando, então, a dar cumprimento ao comando previstos no art. 77.º, n.º 1 e 2 do CP, temos, antes de mais, que a pena única a aplicar ao arguido AA deverá fixar-se dentro da seguinte moldura penal: de um mínimo de 90 dias de multa (pena parcelar de multa mais alta aplicada: cf. art. 77.º, n.º 2 do CP), a um máximo de 150 dias de multa (soma das duas penas parcelares de multa aplicáveis cf. art. 77.º, n.º 2 do CP).
Prosseguindo, temos que nos termos do n.º 1 do art. 77.º do CP, na medida da pena única a fixar devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade dos arguidos.
Ora, neste âmbito e para além de tudo o que já se disse a nível da fixação das penas parcelares, importa constatar que estamos a falar de factos com uma gravidade não elevada, perpetrados em duas ocasiões distintas mas próximas da separação do casal, que mesmo após a separação se mantinham em contacto, e que tiveram a sua génese em questões relativas à regulação do poder paternal da filha em comum, por um arguido bem integrado profissionalmente e sem quaisquer outras condenações averbadas no seu CRC que, actualmente tal questão se encontra ultrapassada, tendo, alias, a ofendida BB, contraído matrimónio com outra pessoa.
Por tudo isto, julga-se adequada e proporcional a aplicação de uma pena única de 110 (cento e dez dias de multa).
Neste domínio, relativamente ao arguido CC, sabe-se que exerce a actividade profissional de operário fabril e aufere o vencimento mensal de €900,00, o seu cônjuge €860,00, recebe, a título de ajuda do seu filho que reside consigo a quantia de €140,00, liquida, de empréstimo à habitação a quantia mensal de € 400,00 e gasta, em média €200,00 em despesas com electricidade, água, luz e gás.
Nestes termos, reputa-se como proporcionado fixar em € 8,00 o quantitativo diário da multa aplicável ao arguido.
No que concerne ao arguido AA, apurou-se que o mesmo exerce a actividade de operário fabril, na área da Cortiça, aufere cerca de €900,00 mensais. Deste valor dá aos progenitores, com quem reside cerca de €140,00.
Nestes termos, reputa-se como proporcionado fixar em € 10,00 o quantitativo diário da multa aplicável ao arguido.
Porém, no caso do arguido AA, haverá que chamar à colação o que vai disposto no artigo 3º, da Lei nº 38-A/2023, de 02 de Agosto o qual dispõe: |
Perdão de penas (…) |
IV. Do pedido de indemnização civil
Dispõe o artigo 129º do Código Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, donde, consequentemente, resulta a necessidade de recurso a tais normativos, concretamente ao disposto nos artigos 483º e seguintes e 562º e seguintes, todos do Código Civil, para deste modo aferir da responsabilidade dos arguidos CC e AA face ao pedido de indemnização civil deduzido contra os mesmos por BB.
O artigo 483º do Código Civil estabelece que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. São vários os pressupostos da responsabilidade civil por atos ilícitos, tal como se extrai do artigo 483º, do Código Civil, a saber:
- O facto do agente;
- A ilicitude;
- O nexo de imputação do facto ao lesante ou a culpa do agente;
- O dano;
- Nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
Temos, então, como primeiro pressuposto da responsabilidade civil por actos ilícitos, o facto.
O facto deve traduzir-se numa conduta voluntária do agente, isto é, num comportamento objectivamente dominável ou controlável pela vontade, que tanto pode consistir numa acção como numa omissão [artigo 486° do CC].
O segundo pressuposto corresponde à ilicitude do facto.
A ilicitude traduz-se, numa primeira dimensão, na violação de direitos absolutos alheios [direitos reais, direitos de personalidade, direitos familiares, de autor e da propriedade intelectual.
Uma segunda dimensão da ilicitude reconduz-se à violação de preceitos legais destinados a proteger interesses alheios, isto é, de normas que, tutelando certos interesses públicos, visam ao mesmo tempo proteger determinados interesses particulares, exigindo-se então que à lesão dos interesses dos particulares [interesses alheios legítimos ou juridicamente protegidos] corresponda a ofensa de uma norma legal, que a tutela dos interesses particulares figure entre os fins da norma violada, e que a lesão se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar, isto é, no seu âmbito de protecção.
O terceiro pressuposto da responsabilidade civil corresponde ao nexo de imputação do facto ao lesante ou a culpa do agente.
A culpa consubstancia um juízo de censura ou reprovação ao agente por parte da ordem jurídica.
Segundo PESSOA JORGE [apud MENEZES CORDEIRO, em “Direito das Obrigações”, Volume II, Reimpressão, página 308], "o comportamento axiologicamente reprovado é-o por deter uma determinada caracterização juridicamente intolerável. Essa caracterização é a culpabilidade, isto é, o conjunto de qualidades que, por integrarem certas previsões normativas, concitam, ao ato praticado, um juízo de desvalor ou de desaprovação".
O juízo de censura em que a culpa consiste pressupõe a imputabilidade do agente, em conformidade com o que dispõe o artigo 488º nº 1, do Código Civil, segundo o qual o agente só responde pela sua conduta se no momento em que a praticou estava capaz de entender e querer, ou seja, se possuía discernimento [capacidade intelectual e emocional] e liberdade de determinação [capacidade volitiva].
A culpa envolve um nexo psicológico entre o facto e o agente, que pode assumir as modalidades de dolo [directo, necessário ou eventual] ou de negligência [consciente ou inconsciente] e é apreciada em abstracto a partir do critério do bonus pater familias, em face das circunstâncias de cada caso [artigo 487º nº 2 do Código Civil], incumbindo ao lesado provar a culpa do lesante, salvo se existir presunção legal de culpa [artigo 487º nº 1 do Código Civil].
Como quarto pressuposto temos o dano.
O dano consiste na lesão de direitos ou interesses, os quais podem ser susceptíveis de avaliação pecuniária, logo, de reconstituição natural, ou, quando aquela não seja possível, não repare integralmente os danos, ou seja excessivamente onerosa para o devedor, indemnização por equivalente [artigo 566º, nº 1 do Código Civil], ou constituir antes direitos ou interesses de natureza imaterial, que apenas podem ser compensados [danos não patrimoniais] [artigo 496º do Código Civil]. Finalmente, como quinto e último pressuposto da responsabilidade civil por actos ilícitos temos o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Os danos relevantes são os que estão ligados ao facto por adequado nexo de causalidade.
Ou seja, de acordo com a doutrina da causalidade adequada, são danos relevantes os danos que constituam, em abstracto ou em geral, uma consequência normal ou típica do facto, segundo o curso natural das coisas, em termos de se poder dizer que, verificado o facto, se pode prever o dano como um efeito provável dessa verificação [artigo 563° do Código Civil; vejam-se ALMEIDA COSTA, em “Direito das Obrigações”, 5ª Edição, Coimbra, 1991, páginas 631 a 633; e ANTUNES VARELA, em “Das Obrigações em Geral”, Volume I, 9ª Edição, Coimbra, 1996, páginas 916 a 930].
A avaliação do nexo de causalidade atenta sempre nas circunstâncias conhecidas do agente e naquelas que ele podia conhecer.
Pela demandante BB foi deduzido pedido de indemnização civil contra os arguidos/demandados CC e AA pedindo a condenação do primeiro ao pagamento de uma indemnização, a título de danos patrimoniais no montante de €26,60 e de danos não patrimoniais/morais no montante de €6.000,00 e ao segundo a titulo de danos patrimoniais a quantia de €300,00 e de danos não patrimoniais a quantia de €13.000,00.
Resulta provado que o arguido CC desferiu murros na face da ofendida. Mais resulta provado que, com a actuação descrita, o arguido CC provocou em BB, as lesões: face: equimose amarelada, situada na metade esquerda da região frontal, com 6cm por 2cm de maiores dimensões. Equimose amarelada, situada na região malar esquerda, com 4cm de maior eixo. Escoriação avermelhada, situada na metade esquerda da região frontal, com 6cm por 1cm de maiores dimensões, ultrapassando a linha de implantação capilar, o que lhe determinaram, em conjunto com as lesões provocadas pela conduta do arguido AA, para a sua cura, 5 (cinco) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional e que agiu o arguido CC com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde da ofendida e de lhe produzir as lesões verificadas, resultado esse que representou e logrou conseguir. Mais resultou provado que a ofendida recorreu aos Serviços hospitalares e com isso despendeu a quantia de €26,60.
Ora, da factualidade que acabamos de descrever resulta que se mostram efectivamente verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, quais sejam: o facto do agente; a ilicitude; o nexo de imputação do facto ao lesante ou a culpa do agente; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
Acresce referir que os danos não patrimoniais em causa constituem direitos ou interesses de natureza imaterial que apenas podem ser compensados [artigo 496º do Código Civil].
Importa agora fixar o montante indemnizatório.
Recorrendo à equidade, assim segundo um critério de justiça concreta, ponderando a gravidade dos danos não patrimoniais em causa e os critérios usados na mais recente jurisprudência, tendo ainda em conta as condições económicas do demandado, temos como justo e adequado fixar a título dos demais danos não patrimoniais o montante de €450,00. A este valor acrescerá a quantia de €26,60, a titulo de danos patrimoniais, perfazendo o total de€476,60 [quatrocentos e setenta e seis euros e sessenta cêntimos]. Não se condena no pagamento de juros de mora, uma vez que não foram pedidos cfr. AUJ de 14.05.2015, publicado no DR, I SÉRIE, 121, 24 DE JUNHO DE 2015, P. 4420 - 4427.
Por seu turno, agora relativamente ao demandado AA, resultou da factualidade provada que este, no interior da sua residência, deu empurrões à ofendida, puxou-a pelos braços, em direcção à porta de casa dele. Mais resulta provado que, com a actuação descrita, o arguido AA provocou em BB, as lesões: membro superior direito: equimose arroxeada-amarelada, situada no terço médio da face posterior do braço, com 4cm por 5cm de maiores dimensões. Escoriação acastanhada situada na face dorsal do cotovelo, com 1cm de diâmetro; sem défice de mobilização do cotovelo; Membro superior esquerdo: equimose arroxeada-amarelada, situada no terço médio da face postero-medial do antebraço, com 4cm de maior eixo. Equimose arroxeada-amarelada, situada no terço médio da face posterior do braço, com 4,5cm por 4,5cm de maiores dimensões, o que lhe determinaram, em conjunto com as lesões provocadas pela conduta do arguido CC, para a sua cura, 5 (cinco) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional, que a demandante sentiu dores nos membros superiores e inferiores e que agiu o arguido AA com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde da ofendida e de lhe produzir as lesões verificadas, resultado esse que representou e logrou conseguir.
Resultou ainda apurado que via telefone, o demandante AA dirigiu à demandante a seguinte expressão: “se tu tentas mexer comigo ou com os meus eu furo-te toda, a ti e ao teu namoradinho, entre outras!”, mais resultando apurado que com tal conduta quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e sossego de BB, dando a entender que sabia onde e com quem se encontrava, o que levou a que a ofendida sentisse medo, receio e inquietação.
Ora, da factualidade que acabamos de descrever resulta que se mostram efectivamente verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, quais sejam: o facto do agente; a ilicitude; o nexo de imputação do facto ao lesante ou a culpa do agente; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
Recorrendo à equidade, assim segundo um critério de justiça concreta, ponderando a gravidade dos danos não patrimoniais em causa e os critérios usados na mais recente jurisprudência, tendo ainda em conta as condições económicas do demandado, temos como justo e adequado fixar a título dos demais danos não patrimoniais o montante de €300,00, pelos danos causados pela prática do crime de ofensa à integridade física simples e de €150,00 pela prática do crime de ameaça agravada, perfazendo o total de €450,00 [quatrocentos e cinquenta euros]. Não se condena no pagamento de juros de mora, uma vez que não foram pedidos cfr. AUJ de 14.05.2015, publicado no DR, I SÉRIE, 121, 24 DE JUNHO DE 2015, P. 4420 - 4427.
O pagamento de tal indemnização constitui condição resolutiva do perdão concedido, devendo ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação para o efeito, considerando-se tal condição satisfeita caso de BB não declare que não foi indemnizada ou reparada. (…)
Apreciando o recurso interposto pela assistente, sendo a impugnação em parte centrada na decisão da matéria de facto, cabe aferir essa impugnação nos termos do art.412º nº3 do CPP, a qual constitui o ponto central do objeto do recurso, estabelecendo os pressupostos dos poderes de cognição do Tribunal Superior
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, Proc. nº 07P4375 (in www.dgsi.pt) a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e ás concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações (aqui merecendo a nossa discordância parcial, porquanto, é subsistente uma parcela importante de imediação na audição das gravações);
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita á indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo á sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b), do nº 3, do citado artº 412º).
Com efeito, no Acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril do corrente ano (processo n.º 360/08-1.ª, www.dgsi.pt) sustentou-se «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.»
Não basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o tribunal de recurso tenha fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento. O recurso com esses fundamentos apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância [cfr. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999].
Com efeito, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» [cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt]
O Tribunal de recurso, apreciando os fundamentos da impugnação da matéria de facto e os meios de prova indicados nos termos do art.412º nº3 do CPP (quando conste do objeto de recurso), deve aferir se o Tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular, exceto se essa convicção enfermar de erros.
Em sede de apreciação da prova rege o princípio da livre apreciação, expressamente consagrado no artigo 127.º do C.P.P.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do Tribunal “a quo” se estribou nestes pressupostos, como já se enfatizou, o Tribunal “ad quem” não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Com as limitações que decorrem de alguma parcela da mediação (embora não determinante) e da impugnação parcelar dos factos, o Tribunal de recurso somente poderá alterar a decisão de facto quando se “imponha” (usando a expressão legal), ou seja, quando o processo decisório de reconstituição do acontecer histórico da 1ª Instância se fundou fora da razoabilidade na ponderação sobre as incidências dos depoimentos, aferindo em erro da credibilidade das testemunhas, designadamente em juízos destituídos de lógica, ou distintos dos padrões da experiência comum.
Mas esta formulação nunca poderá supor que uma análise critica aparente e formalmente correta constante do texto da sentença, na exposição dos seus argumentos na motivação da decisão da matéria de facto, é por si só, imune à impugnação, situando-se ao largo da arguição do erro da decisão da matéria de facto nos termos do art.412º nº3 do CPP. Ou seja, uma exposição crítica e formalmente adequada no texto da sentença, no uso que se fez dos argumentos sobre a análise das regras da experiência comum e da lógica, não dispensa a audição dos depoimentos (cfr.nº6 do art.412º do CPP), assim como a suscitada ponderação sobre a importância dos depoimentos, a qual deve ser aferida pelo Tribunal de recurso, ouvindo as gravações dos depoimentos mais críticos.
Com efeito, a génese da aferição de um erro de julgamento de facto, por regra, situa-se e funda-se, a montante, na análise da suposta credibilidade da testemunha, assim entendida pelo Tribunal “A Quo”, mas que a final, o Tribunal de recurso ouvida a prova vem a entender que as testemunhas não gozam da credibilidade que lhe fora atribuída, ou vice versa.
Os parâmetros do princípio da imediação, não torna a aferição da credibilidade dos depoimentos, competência insindicável do Tribunal “A Quo”, a ponto de se pretender apenas surpreender o erro de julgamento na argumentação formal, somente quando desconforme com as regras da experiência comum. A ser assim estar-se-ia a reconduzir os limites da impugnação do art.412º nº3 à forma de ponderação dos vícios que decorrem dos limites do texto da decisão previstos no art.410º nº2 do CPP
Existindo correspondência entre o substrato do depoimento e as ilações que dele foram extraídas pelo tribunal “A Quo”, então só com essa correspondência e com bom uso das regras da experiência comum, é que a livre convicção se torna intransponível nos termos do art.127º.
A divergência sobre os juízos de credibilidade desta ou daquela testemunha (cujos trechos se transcrevem), devemos afirmar categoricamente, é o cerne da impugnação prevista no art.412ºnº3 e especialmente na audição das gravações previstas no nº6 do CPP. O erro de julgamento ocorre, quando o Tribunal “A Quo” dá relevância a uma testemunha com uma razão de ciência questionável ou de importância relativa. Mas o erro associado à prova que impõe decisão diversa, pode ocorrer de forma mais subtil, quando o tribunal “A Quo” não afere corretamente as qualidades do testemunho, na categoria mais ampla da credibilidade.
No douto acórdão do TRP (relator Dr Paulo Costa) proferido a 6/11/2024 (ainda não publicado) no processo nº329/10.0JAAAVR.P1, sustentou-se na categoria dos erros mais ostensivos “Os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso (cfr. arts. 428º e 431º do CPP) consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal([1]); dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram([2]); dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado ou não provado um facto com base em presunção judicial erradamente aplicada([3]).”
O erro de julgamento verifica-se quando o Tribunal “A Quo” se funda em pressupostos defeituosos, analisando incorretamente a razão de ciência detetada nos depoimentos, quer na suposta isenção da testemunha, ou falta dela, qualificando em erro as qualidades de um ou de vários depoimentos. Quer, quando o juiz por omissão de análise, não ponderou e valorizou as qualidades do depoimento da testemunha (influentes na sua credibilidade), concretamente quando a testemunha não exagerou, efabulou na descrição dos factos; quando o Tribunal “A Quo” não valorizando o detalhe com que a mesma descreveu os factos, condição própria de quem presenciou ou vivenciou os factos, apenas referindo conclusivamente na motivação da sua decisão que não lhe mereceu credibilidade, ou referindo que a testemunha fez um relato genérico dos factos (quando não foi isso que aconteceu); ou quando o Tribunal de 1ª instância empolou um pormenor, sem interesse algum, na ótica da lógica ou das regras da experiência comum.
Alguma jurisprudência sustenta que quando a credibilidade de uma testemunha é fundada pelo Tribunal de 1ª instância, em razões de ordem subjetiva determinadas pela imediação, essa circunstância impede o Tribunal de recurso de aferir o erro do julgador nessas circunstâncias[4]. Mas este é um problema sério, porque toda a convicção do julgador tem o dever de ser objetivável e racionalizada, assim expressa na fundamentação. A lei não concede ao juiz qualquer núcleo ou refúgio insindicável sobre a sua convicção[5]. Afirmamos que será o contrário: sobre o julgador impende o dever constitucional de fundamentar criticamente o percurso da sua convicção de forma a ser percebido e sindicado. Depois, deve afirma-se sem rodeios que, o Tribunal de recurso quando ouve as gravações tem acesso ao núcleo essencial da imediação, apenas lhe sendo coartada a imagem, desenrolando-se perante si a oralidade dos depoimentos. Verdadeiramente limitador da imediação e da oralidade, seria a simples leitura pelo Tribunal Superior de depoimentos reduzidos a escrito, cuja aferição probatória, nessas condições, são de uma qualidade muito reduzida e extremamente limitadora.
Continuando sobre os termos do erro do julgador, pode igualmente o mesmo ocorrer no juízo de concatenação e de valoração de vários depoimentos entre si, ou com outros meios de prova de ordem documental. O juiz erra, quando na aferição de dois depoimentos antagónicos, se basta em afirmar o caráter contraditório entre dois depoimentos, para desvalorizar ambos, sem atentar que os dois entre si, são completamente distintos no seu valor probatório, não valorando essa diferença.
O legislador quando usou a expressão “as concretas provas que impõem decisão diversa” (cfr.art.412º nº3 alínea b) do CPP), fê-lo, sem que com isso quisesse conferir ao erro de julgamento invocado perante o Tribunal Superior uma dimensão manifesta, exuberante ou de erro magno, para que, só nesse caso, a decisão de 1ª instância fosse suscetível de ser alterada. A livre convicção do juiz nos termos do art.127º do CPP não assume um valor transcendente ou dotado de parâmetros, em certo grau, insindicáveis, antes é impugnável em todas as suas dimensões. Diversamente, a impugnação do recorrente permite e habilita o Tribunal “Ad Quem” a aferir os parâmetros do “bem julgado”, sem que a quebra de parte da imediação, por falta de imagem, possa impedir ou comprometer a eficácia da impugnação, e bem assim o controlo da prova por parte do Tribunal superior.
Deve sublinhar-se que a informação que a imagem possibilita, pelos gestos, expressões faciais ou a linguagem corporal, muitas vezes (ou, as mais das vezes) tem caráter muito relativo, e por isso pouco racionalizável, não devendo, por essa razão, ser sobrevalorizada essa parcela da imediação[6]. Diversamente, deve enfatizar-se que o Tribunal de recurso quando ouve as gravações (como deve ouvir) tem acesso a uma parcela muito relevante da imediação, quando “presencia e está perante” o depoimento das testemunhas e sua oralidade, apercebendo-se das sucessivas e insistentes questões que lhe são formuladas, nas respostas que vão sendo dadas, com as hesitações e interjeições que são captadas, nas instâncias que se somam do MP, de todos mandatários, assim como dos esclarecimentos do juiz do julgamento. Já não seria assim se o Tribunal de recurso, como se referiu, apenas tivesse mero acesso aos depoimentos reduzidos a escrito, aqui sim, haveria quebra importante e total do princípio da imediação e da oralidade. A única grande diferença relevante perante o julgador em 1ª instância, será a não realização de um segundo julgamento em fase de recurso, mas tão só a aferição do erro que incide sobre parte do que foi julgado e é impugnado.
Por sua vez, o “impor uma decisão diversa”, significa que, mesmo que se verifiquem erros do julgador na análise de um depoimento, porém, se os outros depoimentos estiveram corretamente valorados, aquele erro não determinará, por si, a alteração da decisão da matéria de facto, sobretudo se o recorrente não lograr indicar prova que imponha decisão diversa. O Tribunal de 1ª instância dando como não provado os factos típicos do delito imputado, mesmo errando na análise e aferição de todos os depoimentos, contudo, tal circunstância, por si, não é suscetível de alterar a decisão da matéria de facto, a não ser que o recorrente indique prova que fosse produzida e que imponha uma decisão diversa. Portanto, a imposição em causa, (alínea c) do nº3 do art412º do CPP), é apenas e só, a imposição de prova em processo penal, e não é pouca coisa, tendo em conta as exigências que rodeiam o processo de formação da convicção do julgador. Quer na solução probatória do julgador em 1ª instância, quer na solução probatória no Tribunal de recurso, em ambas se impõem a prova para o efeito.
O erro que determinar a alteração do julgamento da matéria de facto, será, por definição[7], sempre um erro relevante - não admissível por parte do julgador -, porque comporta a aferição indevida de parâmetros imprescindíveis ao bom ato de jugar a prova e que inquinam a cognição probatória do julgador. O verbo impor, tem a mesma graduação para os Tribunais de primeira e de segunda instância, significando a imposição do juízo de prova, com todos os seus parâmetros (incluindo as regras da experiência comum e da lógica), e não uma qualquer imposição probatória especial, que se possa sobrepor à colocação da livre convicção do julgador, a qual também deve ser mensurada e pesada na sua justa medida.
Com efeito, se já fora firmado um juízo probatório por um Tribunal, a aferição que é pedida ao Tribunal de recurso, exige que este, sem realizar um segundo julgamento, tenha de questionar o bom uso da livre convicção. Recorde-se que, tal como já foi decidido no acórdão do TRP de 10/05/2023 (por nós relatado) no processo nº5961/20.0T9LSB.P1 “O centro da liberdade que o legislador consagrou ao julgador no artigo 127.º do Código de Processo Penal (…) tem pouco a ver com a discricionariedade; tão só significa que o juiz não está sujeito a prova tarifada e a outras condicionantes (exceto as proibições e limitações que a lei processual impõe), exprimindo-se a liberdade, essencialmente, como a possibilidade de lançar mão das regras e máximas da experiência e da lógica para construir o raciocínio probatório.
Costumam ser confundidas a liberdade e a amplitude de pensamento judicial na tarefa exegética que pode socorrer-se de um ou outro raciocínio dedutivo, desse modo atribuindo-se-lhe discricionariedade, mas sem razão.
O juiz está estreitamente vinculado na escolha das máximas da experiência adequadas e pertinentes ao caso e ao cumprimento das regras da lógica, de tal forma que a solução probatória correta é uma só.”
Com isto, quer-se significar que não se trata de contrapor convicções probatórias possíveis e alternativas, pois esse cenário não é processualmente compaginável. A admissibilidade de outra convicção não poderia competir, nunca, com a “livre convicção” do juiz quando esta também é admissível. Se a solução correta probatória só poderá ser uma, essa realidade probatória, exclui por natureza, cenários de convicções em competição.
Admitir como possível a existência de outras soluções ou convicções[8], porque antagónicas com a do julgador, não é, sequer, processual e constitucionalmente admissível. Pois essa possibilidade ou concurso de convicções choca, não só, com o inalienável princípio do “in dúbio pro reo”, como sobretudo com o standard de prova em processo penal, o qual exige um grau de prova com probabilidade muito elevado, o que não convive com outra convicção com esse grau.
Portanto, do que se trata, não é de discutir o concurso de convicções, ou da prevalência da “admissível” convicção do juiz (que a tornaria insidicável), pois esse cenário nunca ocorre. Antes, caberá apreciar a relevância do erro invocado, e a indicação de prova que imponha decisão diversa.
Como se referiu a verificação do erro não tem de assumir manifestações de erro flagrante, magno ou ainda menos o chamado “erro crasso”. Basta que exista um ou vários erros relevantes que, inquinem irremediavelmente a validade da convicção do Tribunal “A Quo”, e assim do processo cognitivo da prova, em um ou vários pontos da decisão da matéria de facto. E se a alteração pretendida implicar a comutação de não provado para provado, isso implicará a aferição de prova indicada que imponha essa alteração. É essa a práxis do conhecimento das impugnações da decisão de facto nos Tribunais da Relação (embora a formulação teórica que muitas vezes se faz, apele ao caráter quase manifesto do erro), em particular quando o Tribunal de recurso diverge da aferição sobre a credibilidade, que foi conferida a este ou àquele depoimento.
O juízo probatório judicial, por definição, é sempre um juízo que se impõe. A convicção probatória resulta de um esforço complexo de ponderação incidente em diversas variáveis.
Feito este excurso que visou localizar o centro de impugnação e a ação do Tribunal de recurso na tarefa de apreciação da decisão da matéria de facto, cabe referir que a recorrente centra a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto na circunstância do Tribunal “A Quo” haver desvalorizado as declarações da assistente que considerou indevidamente genéricas, destacando as declarações do arguido que negou os factos, defendendo que o Tribunal “A Quo” não julgou corretamente os pontos da acusação que imputavam as agressões verbais e físicas e o dolo de violência doméstica, que o Tribunal veio a julgar não provados.
Analisando as discordâncias concretas da recorrente face aos parâmetros da decisão agora impugnada, este Tribunal de recurso ouviu as declarações da assistente, do arguido e os depoimentos da irmã daquela, e muito diferentemente do que foi entendido pelo Tribunal “A Quo” considera que a ofendida descreveu com manifesta espontaneidade e com o detalhe possível, as situações em discussão na acusação pública, sem que se notasse qualquer efabulação, exagero, ou alteração da conotação das agressões. O cliché e o estereotipo de que a ofendida, por o ser, não merece credibilidade, é raciocínio que não colhe por si só, sobretudo quando possuindo uma razão de ciência direta e privilegiada no conhecimento, depôs de forma espontânea e objetiva.
A descrição detalhada do contexto das agressões, não resultou das instâncias da Srª Juíza presidente do Tribunal, mas antes das instâncias prosseguidas pelo Procuradora do MP e dos mandatários. A espontaneidade da ofendida foi manifesta e evidente, dado que, sempre que lhe foram solicitados esclarecimentos sobre as circunstâncias dos factos que acabara de descrever, e foram-no várias vezes, a mesma descreveu o concreto contexto dessas situações com o grau de pormenor que lhe foi possível, mas de forma que somente quem os viveu os podia descrever, sendo manifesta a sua credibilidade, concretamente nas agressões que sofreu no primeiro ano que viveram juntos entre 2017 e 2018, a propósito das discussões que aconteciam pelos ciúmes do arguido pelo facto da assistente trabalhar no café. Portanto, a ofendida depôs de forma coerente, com absoluta sinceridade todas as situações que efetivamente vivenciou, devendo-lhe ser conferida credibilidade. A qual apenas foi conferida pelo Tribunal “A Quo” nas agressões ocorridas no dia 4 de julho de 2022 perpetradas por CC (pai do arguido), mas a declarações da assistente não revelaram apenas essa credibilidade pontual (tal como fora considerado pelo Tribunal “A Quo”, mas sem razão). Diversamente, a assistente também nesses factos, mais uma vez, foi credível, não exagerando qualquer atitude por parte do arguido AA, antes referindo que o mesmo se dirigiu ao pai para parar.
Também aqui se apuraram a consistência das ameaças dirigidas pelo CC à assistente nesse dia 4 de Julho, de que a mesma se ressentiu, conforme deu nota nas suas declarações impressivas, também a este respeito.
Sobre a suficiência das declarações da assistente com importância probatória para a necessária concretização dos factos, vale a pena recuperar o que foi sustentado no Ac.TRP de 16/03/2022 (por nós relatado) no processo nº613/20.4PDVNG.P1 “A singularidade do facto fixa-se nos seus contornos ônticos, o que, no caso de uma conduta reiterada no tempo, torna mais fácil a sua identificação, atentos os comportamentos ou mau trato que se repete durante o referido período temporal. A repetição, réplicas e a frequência das condutas ao longo de determinado período de tempo (“x” vezes por mês; por ano; ou um número indeterminado durante 3 anos), integram a singularidade e a ontologia desse facto (maus tratos), enriquecendo o processo de identificação do mesmo pela defesa.”
Deste modo, o juízo de prova firma-se, porquanto nas numerosas vezes que o arguido e a assistente discutiram no primeiro ano em que viveram juntos entre 2017 e 2018, por força do seu emprego no café, a assistente descreveu que foi vitima de repetidos empurrões e estaladas (sendo que, quanto aos murros a assistente aí foi mais imprecisa, referindo que os murros não eram comuns, no entanto, repetiu que fora agredida essencialmente com empurrões e estaladas). Ora, a repetição dessas agressões nesse contexto de discussões que identificou no referido período temporal de um ano, marca e identifica ontologicamente os factos em questão, sendo a singularidade marcada pela sua repetição, pelo menos por duas vezes. A qualidade das suas declarações verificou-se em todas as situações de ambiente de agressão verbal, com injúrias, patentes desconsiderações, referindo que “lhe fazia falta um pai para lhe dar dois pares de estalos” era uma forma do arguido a atingir duramente, pois a ofendida perdera o pai durante o namoro com o arguido. Assim como nos episódios marcantes de agressão física cometidas.
Também foram convincentes as suas declarações, quando descreveu o comportamento do arguido assim que tornaram a viver juntos desde janeiro de 2021, onde passado algum tempo, o arguido voltou a mostrar-se despreocupado e agressivo (não colaborando com a lida da casa e não ajudando com a LL, filha de ambos), e mais adiante, próximo de junho de 2022, chegou a apertar-lhe o pescoço à frente da LL, momento em que também partiu a porta e a fechadura da casa de banho (crendo que destruiu essas coisas para não lhe bater mais). Neste ponto, em alguma medida circunstancial, mereceram a corroboração no depoimento da irmã quando observou a porta danificada na residência da assistente, no último período que arguido e assistente viveram juntos até 2022. Mais referiu a assistente que mentiu ao senhorio quando este foi arranjar a fechadura, dizendo-lhe que fora uma rajada de vento, altura em que este lhe respondeu que escusa de mentir porque nós ouvimos. Depois destes factos, a ofendida concluiu que não podia viver com o arguido, não querendo sujeitar a sua filha a essa vivência, pedindo ao arguido que saísse de casa o que esse consumou em junho de 2022.
Embora se haja produzido prova sobre as injúrias, o certo é que, autonomizáveis ou não, as mesmas vieram a ser amnistiadas e como tal, não existindo recurso sobre essa decisão, transitado em julgado a mesma, inviabiliza que sobre esses factos recaia apreciação por este Tribunal de recurso.
Diversamente do que fora referido pelo Tribunal “A Quo”, as declarações da ofendida não devem ser descredibilizadas, nem desvalorizadas quando foram adjetivadas de genéricas. Pois, inversamente, a ofendida concretizou dentro do que a memória lhe permitiu, que o arguido, no primeiro período em que viveram juntos, entre 2017 e 2018 (até que se separaram nesse ano de 2018), trabalhando a assistente no café, o arguido movido por ciúmes, muitas vezes discutiram (no caso, pelo menos uma vez por semana) e no decurso das mesmas, este, por diversas vezes, agrediu a ofendida com empurrões e chapadas.
Assim, a incidência repetida destas agressões neste período de tempo, com o contexto acima referido (com a pluralidade de, em pelo menos, duas ocasiões ter agredido com estaladas e empurrões), estabelece os contornos ônticos do facto, na sua singularidade, que permite o seu apuramento.
No segundo período em que viveram juntos, entre janeiro de 2021 a junho de 2022, e próximo desta última data, o arguido em discussão com a ofendida, partiu vários objetos no interior da residência, apertou o pescoço à assistente na presença da filha de ambos, o que levou a assistente a tomar a decisão de pedir ao arguido para sair de casa e se separarem. Igualmente, estes factos foram descritos de forma muito concreta.
Por fim, a soma destas agressões cometidas pelo arguido, onde se integram as que já se encontravam provadas na decisão “A Quo”, assim como a forma desrespeitosa como se dirigia à ofendida, permite apurar, o carácter agressivo e violento do arguido, a sua conduta dolosa dentro dos parâmetros da violência doméstica, com sucessivas desconsiderações e rebaixamentos, que visavam diminuir a assistente, o que importará o apuramento do elenco de factos, sobre a atitude subjetiva, que o Tribunal “A Quo” indevidamente deu como não provados.
Portanto, temos de entender que o Tribunal “A Quo”, na matéria indicada que deu como não provada, e sobre a atitude subjetiva do arguido (que igualmente julgou não provada), fundou a sua convicção sem o apoio das normas da experiência comum, errando no juízo probatório, quando desconsiderou, sem razão, as declarações da assistente, dada as agressões, muitas vezes contundentes, do arguido. Com efeito, sem apoio válido na aferição probatória, foram subavaliadas várias violências físicas e psicológicas exercidas pelo arguido, desconsiderando-se a prova validamente produzida a esse respeito.
Em consequência, a redação dos pontos 1, 2, 3, 4, 6, 21 e 22 dos factos provados deverá ser alterada; aditando-se os factos 2.1, 2.2, 6.1, 22.1, 22.2, 22.3 e 23.1 (estes últimos que integravam o elenco dos factos não provados), tudo nos seguintes termos:
1. O arguido AA e a ofendida BB iniciaram uma relação de namoro em meados de 2016 que se prolongou com vivências em comunhão de casa, nos períodos adiante referidos, até 2022.
2. Após um ano de namoro, por volta do ano de 2017, o arguido AA e ofendida BB decidiram ir viver juntos, em comunhão de mesa, cama e habitação, como se marido e mulher fossem, fixando residência em ....
2.1 Cerca de três meses depois de estarem a viver juntos, as discussões entre o casal aconteceram com frequência semanal, altura em que o arguido AA dirigia à ofendida BB as seguintes expressões: “o teu pai não te deu educação, faz-te falta um pai para te dar uma chapada, só queres é peso”.
2.2 Nessa altura, até à separação referida no ponto 3 dos factos provados, durante as discussões, o arguido AA pelo menos duas vezes, desferiu empurrões e estalos no corpo da ofendida BB.
3.No ano de 2018, o arguido AA e a ofendida BB separaram-se, passando a residir em casas diferentes.
4. Em 2020, o arguido AA e a ofendida BB reataram a relação de namoro, mas sem coabitação.
(…)
6. Na altura do nascimento da filha comum, o arguido AA e a ofendida BB voltaram a residir juntos em janeiro de 2021, como se de marido e mulher se tratassem, na residência sita na Rua ..., Casa ..., ..., ....
6.1 Em data não concretamente apurada, mas próxima de junho de 2022, ou seja pouco tempo antes de se tornarem a separar, AA discutindo com BB, no decurso da mesma, partiu bens no interior da residência, vindo a colocar ambas as mãos no pescoço da ofendida, fazendo pressão com as mesmas, o que concretizou na presença da filha menor de ambos.
(…)
21. O arguido AA agiu da forma descrita nos pontos 2.2, 6.1 e 12 dos factos provados com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde da ofendida, o que quis e conseguiu.
22. Com a descrita conduta em 2.1, 2.2, 6.1, 12 e 20, dos factos o arguido AA quis e conseguiu maltratar física e psiquicamente a ofendida BB, criando-lhe ansiedade e sentimentos de instabilidade, tristeza, humilhação e vergonha.
22.1. O arguido AA também estava ciente de que praticou os factos atrás descritos no ponto 6.1 na residência comum do casal e na presença da filha menor de ambos, o que coarctava as hipóteses de defesa da ofendida BB.
22.2. Mercê das condutas do arguido AA, BB viveu num clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, medo, fragilidade e humilhação, temendo pela sua integridade física e até pela sua própria vida.
22.3 Mais quis o AA, com o que se apurou no ponto 20 dos factos provados, perturbar a vida privada, a paz e sossego de BB, dando a entender que sabia onde e com quem se encontrava, o que levou a que a ofendida sentisse medo, receio e inquietação.
(…)
23.1 Com as expressões que dirigiu à ofendida apurada no ponto 13, o arguido CC sabia que as mesmas eram aptas a colocar a ofendida BB num estado de medo e de inquietação e agiu, por isso, com o propósito concretizado de colocar a ofendida BB num estado de receio pela sua vida e integridade física.”.
Face ao que se apurou nas agressões apuradas; na atitude evidenciada pelo arguido, ao seu dolo e projetado ambiente de condicionamento da ofendida, determina-se excluir do elenco dos factos não provados as alíneas f), i), j), k), l), n) e o) e parte dos factos das alíneas a), b), c), e e) alíneas estas que permanecem no elenco dos factos não provados, mas com as seguintes alterações de redação:
“a) Cerca de três meses depois de estarem a viver juntos, as discussões entre o casal tornaram-se frequentes, altura em que o arguido AA dirigia à ofendida BB as seguintes expressões: “tu és uma puta, uma vadia, a tua mãe é uma badalhoca, vai à merda, vai para a puta que te pariu, tu andas com outros homens, só queres é peso”.
b) Por diversas vezes, durante as discussões, o arguido AA desferiu murros no corpo da ofendida BB.
c) No entanto, o arguido AA começou a discutir novamente com BB, sendo que, no decorrer das mesmas proferia as seguintes expressões contra a ofendida: “tu és uma puta, és uma vaca, se queres dinheiro vai para as quatro estradas dar o cú”.
e) Para além do que se apurou no ponto 6.1 o arguido AA, por outras vezes, colocou ambas as mãos no pescoço da ofendida, fazendo pressão com as mesmas, na tentativa de asfixiá-la.”.
Nesta parte procedendo o recurso interposto.
No enquadramento jurídico-penal.
Para analisar o mérito sobre o perfil dos factos provados, cabe estabelecer as fronteiras típicas do crime que fora imputado ao arguido em sede de acusação, pois só assim se poderá interpretar a importância jurídica dos factos provados. Depois, caberá saber se a análise que o Tribunal “A Quo” procedeu, sobre a tipicidade do art.152º do CP, e na posterior condenação do arguido AA no crime de ofensa à integridade física, foi certeira.
Contrariamente ao que se possa supor, o quadro normativo que deriva do tipo especial de violência doméstica, emerge entre sujeitos que estão ligados por especiais deveres de respeito, consideração e dedicação implicadas na vida em comum (onde é imanente o dever de cuidar e respeitar o “outro”), os quais assentam numa relação de proximidade, de conhecimento mútuo e por isso de elevada exposição. É necessário sublinhar que o conteúdo dos deveres recíprocos, elevam e substanciam o estatuto da dignidade de um perante o outro, nessa relação.
O Ac.TRP de 28.09.2011, veio sintetizar “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.”
O reforço da tutela prevista no art.152º do CP surge porque o agressor pode vitimizar a ofendida de forma dramática. Para o cometimento do crime não é necessário que ocorra o drama das múltiplas e continuadas agressões, o legislador quis antecipar a tutela. Com efeito, quando uma única agressão ultrapassa os limites ao respeito devido à companheira, que nunca deviam ter sido ultrapassados, subsiste o perigo de se iniciar irremediavelmente um ciclo de violência (composto pelo seguinte iter: a agressão, pedido de perdão pelo agressor; o perdão concedido; nova agressão e assim sucessivamente) que tendencialmente se agravará. Portanto, basta uma agressão que atinja os referidos limites (não exigindo o tipo uma especial gravidade desta agressão tal como vem sendo sustentado por diversos acórdãos), para consumar o crime previsto no art.152º do CP, e é aqui se surpreende na previsão legal um tipo de perigo, tutelando o perigo abstrato na reiteração de futuras agressões, que poderão vir a seguir àquela “única” agressão. O perigo é abstrato porque na formulação legal não se tipifica o perigo concreto. Depois, a única agressão que tem a virtualidade de fechar a tipicidade deste crime de perigo (nesta componente de agressão única), é aquela que em potência se renovará em futuras agressões, acompanhada, claro está, do dolo de domínio e de subjugação, associada à intenção de lesar a dignidade. Esta potencialidade reside nas agressões desrespeitosas, que diminuam a ofendida e a coloquem numa posição de sujeição perante futuras agressões. Com efeito, existem agressões, como um soco na face ou uma violenta chapada (a face identifica-se com os parâmetros da personalidade do individuo), que não sendo muito relevantes em termos de gravidade objectiva nos termos do art.143º do CP, significam, no entanto, no seio da comunhão conjugal o que nunca poderia ter acontecido, ou seja, a sujeição da companheira ao medo, que a imobiliza perante futuras agressões, o que o agressor sabe, aproveitando para, a partir daí, impor a sua vontade, no seio dessa comunhão, exercendo então a tirania do mais forte, passando a desferir chapadas quando se quiser impor. É o perigo dessa tirania que o tipo de perigo do art.152º na “única agressão” visa tutelar e esconjurar, sem necessidade de esperar pela consumação do intenso e continuado sofrimento que decorre da reiteração. O legislador perante uma única agressão perigosa, quis antecipar a tutela, punindo logo o agressor como crime de violência doméstica.
É que, ultrapassados os importantes limites do respeito pela dignidade da vítima no seio da comunhão conjugal, iniciado este grau de agressões está “aberta a porta” para a sucessão dos ciclos de violência que caracterizam a violência doméstica.
Subsumir as agressões com a potencialidade de iniciar ciclos de violência conjugal aos tipos previstos nos arts.143º, 153º, 181º do CP, contraria o regime especial previsto no art.152º do CP.
Com as agressões e os maus tratos psíquicos, os deveres de respeito na comunhão, ao serem frontalmente violados, “por regra”, ou melhor, em princípio, ferem a dignidade do cônjuge ou da companheira, assim se mostrando quase inerentemente atingidos, tornando os tipos legais das ofensas à integridade física ou de injúrias (cfr.art.143º e 181º) tutelares de agressões de escala menor ou residual (porque também desacompanhados de dolo de querer dominar e de atingir a dignidade), por isso inaplicáveis àqueles maus tratos.
A ontologia normativa de uma violenta bofetada, um soco ou uma cabeçada, infligidos na face de uma mulher, altera-se por completo se essa mulher for um cônjuge ou companheira, pois, os planos da dignidade mostram-se reforçados e encimados pela relação de proximidade afetiva, pela comunhão de vida. No art.152º do CP não é tutelada a dignidade humana, mas sim da dignidade da mulher ou do homem companheiro ou cônjuge.
No naipe gradativo de agressões, é claro que um simples empurrão ou uma palmada num braço ou a injúria com um nome de carga ofensiva moderada (embora criminosa); coações ou ameaças de baixa densidade ou meramente isoladas; ou mesmo uma bofetada depois de uma provocação desnecessária, previamente dirigida pela vítima (bofetada que pode resultar de uma reação mal medida do arguido) não integram o dolo de maus tratos físicos da violência doméstica (pois, embora dolosa, é de baixa densidade e a tipicidade desse dolo situa a agressão fora da violência doméstica, antes se integrando no art.143º do CP, não obstante a agressão na face). Daí que o recenseamento destas agressões constituindo delitos disponíveis pela vítima, porque semipúblicos ou privados, serão subsumíveis aos arts.143º, 153º, 154º 181º todos do CP, respetivamente, sem prejuízo pela agravação que deriva da especial censurabilidade cfr.arts.145º nº1 alínea a) e 132º nº2 do CP. É que, sendo a carga de indignidade das agressões, um resultado desvalioso, situa-se na ilicitude e não na culpa (aqui se discordando que os maus tratos implicam uma culpa especialmente censurável). A culpa até poderá ser especialmente censurável, mas o tipo não o exige, bastando o dolo de domínio e de lesar a dignidade. Ou seja, certa agressão física a uma companheira pode não ter a carga de indignidade típica do crime de violência doméstica (precisamente porque o desvalor do resultado não é acentuado), mas ser especialmente censurável, e, por isso, integrar o art.145º nº1 alínea a) do CP.
No entanto, pode ocorrer que, sucessivas desconsiderações, pressões psicológicas (sem que integrem injúrias, coações ou ameaças) e atitudes que não preencham, sequer, a tipicidade de algum dos delitos previstos nos arts.143º, 153, 154º ou 181 do CP, no seu conjunto constituam maus tratos degradantes e desumanos, assim aviltando a dignidade da companheira, o suficiente para subsumir o art.152º. Tudo isto para significar que a realidade do crime de violência doméstica é inteiramente distinta daquela que é tutelada pelos citados tipos legais “atomísticos”.
A questão é sensível porque alguma jurisprudência reclama para o patamar típico do crime de violência doméstica uma maior carga de indignidade no patamar da ilicitude concreta, densificando-a para além da literalidade típica (e até a contrariando, quando exige um padrão de frequência) assim direcionando a subsunção de agressões, ameaças e injúrias (que atinge a dignidade da companheira ou companheiro) para os tipos previstos nos arts.143º, 153º, 181º do CP (que deveriam, a nosso ver, ser classificadas de violência doméstica, mas que por força dessas especiais interpretações, vem a ser subsumidas para crimes de ofensas à integridade física, injúrias), desqualificando estes comportamentos. Concretamente, pretende ler-se e substanciar a violação da dignidade em contextos e situações como a subjugação ou dominação da vítima, associados a padrões de frequência.
Este tipo de densificações, alteram a tipicidade dos delitos, sendo muito questionáveis dado que, facilmente, ferem o princípio da legalidade. Com efeito, podem bem existir maus tratos físicos e psíquicos típicos do art.152º do CP, sem o efetivo ambiente de subjugação ou dominação (não obstante ser esse o dolo do agente), e como se sabe a lei dispensa expressamente o padrão de frequência. Ou seja, o agente tendo o dolo de domínio, o crime consuma-se mesmo que não exista essa situação concreta de subjugação.
Assente que está o recorte exegético do art.152º do CP, interessa agora aferi-lo em face da matéria de facto provada.
Face aos pressupostos acima desenhados é por demais evidente que a conduta ilícita desenvolvida pelo arguido durante vários anos, concretamente durante o primeiro relacionamento entre 2017 e 2018, exercendo desconsiderações à ofendida, e agredindo fisicamente de forma repetida com chapadas e empurrões num contexto de discussões dominadas pelo ciúme; vindo depois a agredir com expressão a ofendida, frente à filha de ambos (partindo vários objetos em casa), em data próxima de junho de 2022, motivando nova separação; agredindo-a pouco depois, conforme o ponto 12 dos factos provados, e ameaçando-a subsequentemente. O conjunto dessas agressões físicas, associadas à violência psicológica exercida, contêm a imagem social do delito de violência doméstica (sobretudo quando comparado com outros tipos legais). Com efeito, não só o arguido empreende uma sucessão de agressões, violentando a ofendida, que justamente humilharam e vexaram a mesma, como é exuberante a forma como o arguido dolosamente tratou com desumanidade a ofendida.
Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso nesta parte merece provimento, devendo condenar-se o arguido pelo crime de violência doméstica.
Deverá assim, o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo disposto no artigo 152.º, n.º s 1, alínea b) 2, alínea a), do Código Penal, na pessoa da companheira BB, deixando de recair sobre aquele a imputação atomística dos delitos de ofensa à integridade física e de ameaça agravada, delitos que perdem autonomia típica.
Considerando a participação do arguido, cabe sopesar o grau de ilicitude na prática do crime, com destaque para o período temporal, onde no primeiro período que viveu com a demandante, agrediu esta pelo menos por duas vezes, com empurrões e chapadas; vindo posteriormente, próximo de junho de 2022, a tornar a agredir fisicamente a ofendida no interior da residência de ambos defronte da filha de ambos, a par da agressões que também consumou em 4 de julho de 2022, e da ameaça posterior em 2023, onde o arguido também exerceu violências psicológicas no referido primeiro período em que viveram juntos. Este facto ilustra o ambiente imposto pelo arguido à vítima, com forte perturbação sentida por esta, agindo aquele com vigorosa energia criminosa, cometendo agressões físicas múltiplas, verificadas ao longo de vários anos.
As acentuadas exigências de prevenção geral no crime de violência doméstica são generalizadas em todo o país, o que incrementa a ponderação mínima.
De igual forma, a culpa do arguido é elevada, dado que, persistiu no propósito de molestar e maltratar ao longo do período apurado, sem nunca recuar, mantendo o duro ambiente, a que somaram os contundentes episódios apurados (onde os episódios posteriores em que arguido e assistente se tornaram a encontrar, de forma amorosa, em nada diminui a ilicitude ou a culpa daquele, sendo até, em certa medida, despropositada a insistência na sua indagação). A inserção profissional e a sua primariedade atenuam as exigências de prevenção especial, embora não possa beneficiar de uma confissão que não existiu.
A pena concreta a cominar ao arguido deverá refletir a gravidade inerente, sem perder de vista o peso da ilicitude, que não é de todo diminuto, dado que a ofendida padeceu durante vários anos diversos episódios de sucessivos maus tratos, com o inerente desgaste psicológico. Deste modo, perante a moldura penal, deverá o arguido ser sujeito à pena de 2 anos e 8 meses de prisão.
O arguido apresentando-se inserido socio-profissional, e sendo primário, torna possível formular um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro, perante a mera ameaça da pena nos termos do art.50º nº1 do CP, o que possibilita a suspensão da execução da pena, a qual ficará condicionada ao pagamento da indemnização em que viera a ser condenado, no primeiro ano do período da suspensão da pena.
Por fim, quanto ao perfil e duração das sanções acessórias, nos termos do art.152º nº4 e 5 do CP, não tendo sido requerido em sede de acusação, o Tribunal a este respeito nada determinará.
Deste modo, deverá ao arguido ser aplicada uma pena suficientemente dissuasora de comportamentos delituosos, e que, no mesmo passo, tenham a vantagem de o motivar a agir de acordo com as normas sociais, consciencializando-se da censurabilidade da sua conduta, prevenindo-se a prática de futuros crimes.
Na aferição equitativa do montante da indemnização pelos danos não patrimoniais que há de fazer-se sobre a parcela de qualidade de vida afetada, interessa ponderar a natureza das lesões sofridas; o condicionamento dos hábitos de vida nesse período, com o sofrimento inerente a esse circunstancialismo francamente merecedor de tutela.
A indemnização a fixar tem de encontrar um quantitativo que atenda, segundo critérios de equidade, aos sofrimentos havidos, inclusive nas perturbações do sistema afetivo; às possibilidades económicas do lesado e do lesante procedendo-se à devida compensação pelos danos sofridos, sempre à luz do nível de vida do responsável pelo ilícito e das vítimas, porque é com esse grau de satisfação e de serviços que normalmente a vítima frui, que se pautará a indemnização compensadora da qualidade de vida perdida e que venha ainda a perder (cfr.arts.496º nº3 e 494º ambos do Cód.Civil).
A operacionalidade destes requisitos abaixo do limite máximo - fixado no valor do dano -, atuam do seguinte modo, se o lesado tiver um elevado nível de vida, essa circunstância incrementará os níveis da indemnização (porque só assim se atinge um grau de compensação eficiente, face ao padrão de utilidades que normalmente usufrui) e esse agravamento não significa um desequilíbrio da posição do lesado porque o limite máximo não pode ultrapassar o valor do dano; por sua vez, a condição económica do lesante também é responsiva, consoante aquela condição seja elevada ou baixa; sendo elevada poderá a indemnização atingir o valor adequado à compensação do dano; sendo baixa, associada a uma culpa moderada, equitativamente a indemnização poderá fixar-se num patamar inferior.
Chegados a este ponto, importando aferir o quantitativo que segundo critérios de equidade, proceda à compensação da parcela de qualidade de vida equivalente àquela que foi afetada (operação de compensação feita à luz dos critérios correctores acima referidos cfr.arts.483º, 496º nº3 e 494º ambos do Cód.Civil), deve afirmar-se que, face ao sofrimento apurado e à qualidade de vida atingida, fixa-se a indemnização por danos não patrimoniais no valor de 3.500 euros, como adequado a compensar a qualidade de vida afetada .
Deste modo, procedem parcialmente as conclusões da recorrente.
DECISÃO.
Pelo exposto, os Juízes Desembargadores deste Tribunal da Relação concedem parcial provimento ao recurso, alterando o elenco da matéria de facto provada e não provada do acórdão, nos termos supra referidos, determinando condenar o arguido AA pela prática em autoria de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo disposto no artigo 152.º, n.º s 1, alínea b) 2, alínea a), do Código Penal, na pessoa de BB, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, cuja execução se suspende pelo mesmo período de tempo, devendo o arguido no prazo do primeiro ano do período de suspensão, depositar nos autos mediante depósito autónomo a quantia em que viera a ser condenado pelo ressarcimento de danos, que depois será entregue à demandante. Ficando sem efeito as condenações constantes do acórdão quanto a este arguido.
Mais se condena o demandado AA a pagar à ofendida a título de indemnização por danos morais a quantia de € 3.500 (três mil e quinhentos euros), acrescidos de juros vencidos desde a sua notificação do pedido de indemnização civil deduzido, e nos juros vincendos;
Mais se condena o arguido CC, para além da condenação pelo crime que já consta do acórdão, em concurso como autor material, com um crime de ameaça agravada previsto e punido pelos arts.153º nº1 e 155º nº1 alínea a) ambos do CP, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa á taxa diária de oito euros.
Em cúmulo jurídico condena-se o arguido CC na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de 8€ (oito euros), ou seja, na multa global de 1.440€ (mil quatrocentos e quarenta euros).
Efetuem-se as comunicações legais.
No mais, mantém-se o que fora decidido no acórdão de primeira instância.
Após trânsito remeta boletins ao Registo Criminal.
Condena-se a demandante custas que decorrem da proporção do decaimento.
Notifique.
Sumário.
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Porto, 20 de novembro de 2024.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Juiz Desembargador Relator
Dr Nuno Pires Salpico
Juíza Desembargadora 1ª Adjunta
Drª Madalena Caldeira
Juíza Desembargadora 1ª Adjunta
Drª Maria Joana Grácio
______________________________________
[1] Cfr. Ac. da R.P. de 04/02/2016, relatado por Antero Luís, no proc. nº 23/14.2PCOR.L1-9, acedido in www.dgsi.pt
[2] Cfr. Ac. da R.C. de 25/10/2017, relatado por Inácio Monteiro, no proc. nº 444/14.0JACBR.C1, acedido in www.dgsi.pt
[3] Cfr. Ac. da R.L. de 14/07/2022, relatado por João Abrunhosa, no proc. nº 103/22.0PWLSB.L1, não publicado na www.dgsi.pt.
[4] Ver neste sentido ver os acórdãos AC.TRL de 18/02/2014 proc. Nº1426/12.2GLSNT.L1; Ac.TRC de 6/03/2002 in C.J. XXVII, Tomo II, p.44; Ac.STJ de 29/10/2008 in WWW.dgsi.pt.
[5] Consta do Ac.TRP por nós relatado, datado de 19/04/2023 no processo nº16/21.3GAAVR.P1 publicado no ITIJ. “A livre convicção probatória nada tem de discricionário, constituindo uma atividade profundamente vinculada ao cumprimento dos princípios e regras do direito probatório, às normas da experiência comum pertinentes e da lógica, sendo alvo de um denso escrutínio pelos sujeitos processuais.
- A convicção do julgador não poderá ser íntima, nem ter segmento algum indecifrável, mas antes, transmissível e partilhável com as partes (num esforço de convencimento e esclarecimento) e com o Tribunal superior, havendo recurso. Se o juiz não souber explicar de forma racional a sua convicção, então tem de reconhecer que a mesma não é juridicamente válida, encontrando-se fora dos domínios do artigo127.º do Código de Processo Penal”
[6] A linguagem não verbal acessível pela imagem, é mais relativa e de racionalidade pouco evidente, pelo que da falta de imagem não derivam perdas relevantes na aferição probatória, como, por vezes, se pretende.
[7] Não sendo necessário defini-lo como erro capital, como erro flagrante, como única forma de atingir “a livre convicção do julgador. Esta premissa não decorre da lei, e menos da prática das apreciações dos recursos nos Tribunais da Relação, onde os erros relevantes, uma vez detetados, são assim apreciados e corrigidos pelo Tribunal superior, com as consequências necessárias.
[8] Na formação da convicção probatória em processo penal, a solução correta é uma só, não sendo admissível que subsistam, como possíveis várias convicções probatórias (a do recorrente e a do julgador), porque as mesmas disputam o mesmo espaço, que só admite como facto provado aquele a quem se consagra uma probabilidade muito elevada, fora de qualquer dúvida atendível, circunstâncias que excluem, por definição, o convívio com outras convicções probatórias alternativas, ou com possibilidade atendível. Portanto, a discussão não se dá no plano de diferentes convicções, mas no plano do erro, que afeta, ou não, a convicção do julgador.