CONDUÇÃO COM ÁLCOOL
FALSAS DECLARAÇÕES
Sumário

A declaração feita pelo condutor de um veículo rodoviário à GNR, indicando falsamente que a condutora era a sua companheira, preenche os elementos do crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A, n.º 1, do Código Penal, dado que da “qualidade” de condutor emergem, direta e automaticamente, diversos efeitos jurídicos.

Texto Integral

Recurso: 458/18.1GCVFR.P1 (processo Comum singular)
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2

Sumário:
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Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
I.1. Por sentença datada de 02.05.2022 o arguido AA foi condenado pela prática de:
- Um crime agravado de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelos artigos 291.º, n.º 1, alínea b), 294.º, n.º 1 e 3, 285.º, 137.º, n.ºs 1 e 2, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, em conjugação com os artigos 25.º, n.º 1, alínea c), e 27.º, n.º 1 e 2, alínea a), 2.º, ambos do Código da Estrada, na pena de 20 (vinte) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período (vinte meses), com subordinação a regime de prova, assente em plano de reinserção social e vinculada à obrigação de, no prazo máximo de um ano, comprovar documentalmente nos autos a frequência de curso de prevenção rodoviária, a suas expensas; e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 14 (catorze) meses.
- Um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 90 (noventa) dias de multa, fixando-se o quantitativo diário em € 8 (oito euros), perfazendo o montante global de € 720 (setecentos e vinte euros).
Foi absolvido do crime de falsas declarações, previsto e punido pelos artigos 348.º-A, n.º 1 e 2, e 14.º, n.º 1, do Código Penal (CP).

I.2. Recursos da decisão
I.2.1. O Ministério Público interpôs recurso da decisão, tendo extraído da sua motivação as seguintes CONCLUSÕES (transcrição):
I. Para efeitos da previsão do crime de falsas declarações (art.º 348º-A, C.P.), alguém intitular-se falsamente como condutor de um veículo integra a previsão do referido crime; com efeito, a referida condição integra-se no conceito de qualidade do agente, “a que a lei atribui efeitos jurídicos”;
II. Considerando que nesta situação as necessidades de prevenção geral associadas ao crime de falsas declarações se situam num patamar elevado, as necessidades de prevenção especial não são significativas porque o arguido está profissionalmente inserido e não tem antecedentes criminais, o grau de culpa é intenso (dolo direto) bem como a ilicitude dos factos, o modo de execução do crime (mesmo depois de ter tido tempo para refletir no que fez, horas depois do acidente e quando já estava em casa mentiu aos militares da GNR), os fins que motivaram a prática do crime (impedir que fosse submetido ao teste de despistagem de alcoolemia e que fosse detido pelo crime de condução sem habilitação legal), as consequências da sua conduta (que ainda assim, por fatores externos (existência de duas testemunhas presenciais) não impediram a descoberta da verdade material) e a conduta posterior ao facto (em julgamento não conseguiu explicarm porque mentiu), entendemos que somente a aplicação de uma pena de prisão efetiva de 3 meses satisfaz as necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir;
(…)

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Delimitação do objeto do recurso
O recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, que estabelecem os limites da cognição do tribunal superior, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, como os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP (cf. art.ºs 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do CPP).
Passamos a delimitar o thema decidendum:
(…)
Do recurso do Ministério Público:
- A verificação dos elementos do tipo legal de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A, n.º 1, do CP.
(…)
II.2. Decisão Recorrida
A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição parcial, na medida do necessário ao conhecimento do objeto dos recursos):
Factos provados:
Da acusação pública:
1). No dia 18 de Novembro de 2018, pelas 14:50 horas, o arguido AA conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-FC-.., marca “BMW”, modelo “...”, na Rua ..., sentido ...-..., localidade ..., Santa Maria da Feira.
2). O arguido não era titular de licença de condução ou de qualquer outro documento que legalmente o habilitasse à condução daquele veículo.
3). Pela mesma hora, na Rua ..., BB conduzia o veículo com a matrícula ..-..-XM, de marca “Ford”, modelo “...”.
4). No lugar do passageiro desta viatura seguia CC, mãe da condutora.
5). Na referida Rua ..., ao aproximar-se do entroncamento com a Rua ..., o arguido imprimia ao veículo com a matrícula ..-FC-.. uma velocidade não concretamente determinada, mas situada entre 83 e 97 quilómetros/hora.
6). Por sua vez, proveniente da Rua ..., a condutora BB arrancou e iniciou manobra de viragem da sua viatura à esquerda, introduzindo-se no entroncamento da Rua ... em direcção à hemi-faixa de rodagem do lado direito.
7). Nesta manobra, a viatura “Ford ...” atingiu uma velocidade não concretamente determinada, mas não superior a 35 quilómetros/hora.
8). Nestas circunstâncias, ao aproximar-se do entroncamento da Rua ... com a Rua ..., atenta a velocidade que imprimia ao “BMW” que conduzia, o arguido, apesar de ter iniciado travagem ao avistar o veículo “Ford”, não conseguiu parar a sua viatura, nem desviar a trajectória, e colidiu violentamente com a frente no vértice esquerdo dianteiro do outro veículo.
9). Em resultado desta colisão, o “Ford ...” foi projectado para o lado oposto em relação ao qual havia iniciado manobra de viragem, embatendo no muro do imóvel com o n.º ... da Rua ..., ficando parado a uma distância de 13,10 metros do “BMW”.
10). Por sua vez, na sequência da colisão, o “BMW” despistou-se e colidiu com as viaturas com as matrículas ..-RL-.. e ..-EJ-.., estacionadas no lado contrário da Rua ..., quedando parado em posição perpendicular na mesma via.
11). Como consequência directa e necessária da colisão e do embate na viatura em que se encontrava, CC sofreu traumatismos de natureza contundente nas zonas do tórax, da sua coluna vertebral e da medula que provocaram as seguintes lesões:
i. Paredes: infiltração sanguínea do tecido celular subcutâneo e muscular adjacente às fracturas costais de seguida descritas.
ii. Clavícula, cartilagens e costelas direitas: fractura transversal, infiltrada de sangue, do arco médio da 1.ª à 3.ª costelas, do arco anterior das 4.ª à 10.ª costelas e do arco posterior da 6.ª costela.
iii. Clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: fractura transversal, infiltrada de sangue, do arco médio das 1.ª e 2.ª costelas, do arco médio das 3.ª à 8.ª costelas e do arco posterior das 1.ª à 5.ª costelas.
iv. Pericárdio e cavidade pericárdica: íntegro, com infiltração sanguínea focal na sua face anterior. Líquido pericárdico de aspecto hemático em quantidade vestigial.
v. Coração: área de contusão, com aspecto hemorrágico do tecido adiposo epicárdio, na face anterior ápex. Laceração transfixiva da parede anterior do ventrículo direito, imediatamente inferior à emergência do tronco pulmonar, com 1,5 cm de comprimento. Morfologia e dimensões cardíacas preservadas. Ao corte, miocárdio de tonalidade vermelha acastanhada pálida uniforme, sem evidência de outras lesões traumáticas nem isquémicas. […].
vi. Artérias coronárias: Dominância direita. Placas de ateroma excêntricas, condicionando obstrução macroscópica do lúmen em cerca de 25% do ramo descendente anterior da coronária esquerda e da coronária direita, e inferior a 25% do ramo circunflexo da coronária esquerda.
vii. Tórax:
- Artéria Aorta: secção transversal, completa, infiltrada de sangue, na transição entre a crossa aórtica e a sua porção descendente. Infiltração sanguínea dos tecidos moles peri-aórticos bilateralmente. Placas de ateroma dispersas.
- Artéria Pulmonar: sem lesões traumáticas, sinais de tromboembolia ou outras alterações macroscópicas.
viii. Pleura parietal e cavidade pleural direita: Hemotórax de 300 centímetros cúbicos. Infiltração sanguínea pleural adjacente às fracturas costais descritas. Sem aderências.
ix. Pleura parietal e cavidade pleural esquerda: Hemotórax de 200 centímetros cúbicos. Infiltração sanguínea pleural adjacente às fracturas costais descritas. Sem aderências.
x. Pulmão direito e pleura visceral: Morfologia bilobada. Pulmão crepitante. Infiltração sanguínea difusa peri-hilar. Dois focos de contusão, o maior com 3 por 2 cm de maiores dimensões e o outro, com laceração da pleura visceral, de dimensões pericentimétricas, na face anterior do lobo superior. Ao corte parênquima rosado pálido; deposição escassa de pigmento antracótico; tonalidade ligeiramente arroxeada escura traduzindo hipostase na sua face posterior; sem outras alterações macroscópicas Via aérea intrapulmonar sem lesões objetiváveis ou corpos estranhos endoluminais. Peso: 240 g.
xi. Pulmão esquerdo e pleura visceral: Morfologia preservada. Pulmão crepitante. Infiltração sanguínea difusa peri-hilar. Hematoma subpleural aplanado, com cerca de 3 cm de base, na face anterolateral do lobo superior; ligeira infiltração sanguínea subpleural na base pulmonar. Ao corte, parênquima rosado pálido; deposição escassa de pigmento antracótico; tonalidade ligeiramente arroxeada escura traduzindo hipostase na sua face posterior; sem outras alterações macroscópicas. Via aérea intrapulmonar sem lesões objetiváveis ou corpos estranhos endoluminais. Peso: 220 g.
xii. Na coluna vertebral e medula: luxação atlanto-occipital, infiltrada de sangue, associada a secção completa do cordão medular na sua transição com o tronco cerebral e da artéria basilar. Sem outras lesões traumáticas objetiváveis.
12). Tais lesões traumáticas torácicas e vertebro-medulares constituíram causa directa e necessária de paragem cardiorrespiratória e, consequentemente, da morte de CC, verificada no local pelas 15.35 horas do dia 18 de Novembro de 2018.
13). E a condutora da mesma viatura automóvel BB sofreu as seguintes lesões: dores nos quadrantes esquerdos do abdómen, com esboço de defesa no hipocôndrio e flanco esquerdos; ferida corto-incisa na face anteromedial distal da coxa direita, com cerca de 2 cm; hematoma na face anteromedial da perna direita; hematoma na fossa ilíaca e na raiz da coxa esquerdas; deformidade do membro inferior esquerdo, com fractura comitiva da diáfase do fémur e fractura não articular do côndilo medial.
14). Tendo sido submetida a cirurgia para encavilhamento do fémur e sutura da ferida no joelho direito, com alta hospitalar no dia 28 de Novembro de 2018, mantendo, todavia, a imobilização do membro inferior, com tala, até ao dia 8 de Janeiro de 2019 e, desde então, apoio da marcha com canadianas.
15). A consolidação das lesões dos membros inferiores ocorreu em data posterior ao dia 21 de Junho de 2019.
16). A Rua ... configura-se como uma faixa de rodagem com duas vias de trânsito, uma em cada sentido, de largura total de 6,15 metros, com separação de linha longitudinal descontínua, sendo ladeada de pequenas bermas pavimentadas, residências e estacionamentos do lado esquerdo e entroncamento do lado direito (Rua ...).
17). No dia 18 de Novembro de 2018 (Domingo), pelas 14:50 horas, o piso encontrava-se limpo, sem quaisquer obstáculos ou obras que impedissem a normal circulação.
18). No percurso efectuado pela viatura conduzida pelo arguido AA eram visíveis eventuais veículos que se lhe deparassem pela frente.
19). Nesta via, o limite máximo legalmente permitido para a circulação é de 50 quilómetros/hora.
20). A velocidade imprimida pelo arguido ao veículo que conduzia ultrapassava em pelo menos mais de 33 quilómetros/hora o máximo legalmente permitido para a circulação na Rua ... (50 km/h).
21). A travagem da viatura “BMW” iniciada pelo arguido deixou marcas na via com extensão aproximada de 6,8 metros.
22). No dia do acidente descrito, pelas 18.30 horas, na Rua ..., ..., em Vale, Santa Maria da Feira, perante o Militar da Guarda Nacional Republicana DD, devidamente uniformizado e no exercício de funções, o arguido declarou que quem conduzia o veículo era EE.
23). Sabia, contudo, o arguido que era ele próprio o condutor, que tais declarações se destinavam a constar de auto de notícia e participação de acidente de viação e que serviriam de meio de prova em processo judicial.
24). O acidente de viação e as suas consequências ficaram a dever-se à circunstância de o arguido conduzir em desrespeito da obrigação legalmente imposta de circular dentro do limite de velocidade (50 km/h), em condições de travar em segurança no espaço livre e visível à sua frente, a fim de não embater em obstáculos ou colidir com outras viaturas que pudessem circular na mesma via.
25). O arguido AA agiu com o propósito, concretizado, de conduzir o veículo automóvel nas descritas condições, isto é, com perfeito conhecimento de que imprimia uma velocidade muito superior ao limite legalmente estabelecido, que sabia ser de 50 km/hora, tendo representado a possibilidade de, conduzindo com o indicado excesso de velocidade, poderia causar um acidente de viação, por não ser capaz de parar em segurança no espaço livre e visível à sua frente, a fim de não embater em obstáculos, pessoas ou colidir com outras viaturas que circulassem na mesma via, conformando-se com essa representação.
26). O arguido sabia que circulava dentro de uma localidade e em grosseiro desrespeito pelas regras de condução estradais essenciais para uma circulação rodoviária segura, concretamente o limite de velocidade e a obrigação de tomar todas as precauções para não provocar colisões com qualquer viatura em circulação na estrada.
27). Tinha consciência de que a sua conduta era susceptível de colocar em perigo a segurança da circulação rodoviária e punha necessariamente em risco a vida e a integridade física dos demais utentes da estrada, como efectivamente colocou, ao ponto de provocar a morte de CC.
28). Procedeu à condução do mencionado veículo naquela via pública sabendo que não era titular de licença de condução ou de qualquer outro documento que legalmente o habilitasse à condução estradal.
29). Ao declarar perante Militar da GNR que EE foi a condutora da viatura, sabia que prestava informações contrárias à verdade por si bem conhecida, com o propósito de enganar a autoridade pública, logrando não ser alvo de teste de pesquisa no sangue de álcool e/ou substâncias psicotrópicas e visando não ser pessoalmente responsabilizado pelo acidente e suas consequências.
30). Ao proferir tais declarações, teve também o objectivo de evitar ser fiscalizado e alvo de processo-crime por não possuir título de habilitação legal para condução, o qual só obteve no dia 21 de Maio de 2019.
31). O arguido praticou os actos supra descritos de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que tais comportamentos são proibidos e punidos por lei.
32). Ao não adoptar na condução os cuidados necessários e de que era capaz para evitar a morte de CC, actuou também de forma livre e consciente, sabendo que tal conduta era criminalmente punível.

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Da contestação:
33). No entroncamento da dita Rua ..., pela qual circulava o veículo ..-..-XM, com a Rua ..., existe, e existia à data do acidente, um sinal “Stop”, obrigando à paragem, nesse entroncamento, dos veículos que circulem pela Rua ..., na direcção da Rua ....
34). Quando ocorreu o acidente caía uma chuva miúda e o piso estava molhado.
35). O arguido requereu, em 03/12/2018, ao Ex.mo Senhor Procurador da República, a prestação de novas declarações, em rectificação das anteriormente prestadas.
36). O requerido foi-lhe deferido, sendo-lhe designadas as novas declarações para 31 de Janeiro de 2019, data em que foram prestadas.
37). Está bem inserido na sociedade, é pessoa cordata e educada e goza da estima e consideração de todos os que o conhecem, na freguesia em que nasceu, no local em que vive e no meio em que trabalha.
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(…)
Aspecto jurídico da causa:
Enquadramento jurídico-penal
(…)
Do crime de falsidade de declaração
O arguido vem ainda acusado da prática de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A, n.os 1 e 2, do Código Penal.
Em conformidade com a previsão contida no referido preceito incriminador, «Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.».
São assim seus elementos típicos objectivos:
a) A declaração ou o atestar falso;
b) Acerca da identidade, estado ou outra qualidade a que a Lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios,
c) Perante autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções.
Na exposição de motivos da PL 75/XII quanto ao introduzido crime de falsas declarações, explana-se o seguinte:
«Aproveita-se para clarificar o tipo do crime de falsas declarações, que deixa de se confinar às declarações recebidas como meio de prova em processo judiciário, ou equivalente, passando a constituir ilícito criminal igualmente as falsas declarações que sejam prestadas perante autoridade pública ou funcionário público no exercício das suas funções e se destinem a produzir efeitos jurídicos.
Protege-se desta forma a autonomia intencional do Estado e dá-se conteúdo normativo às múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime».
Esta previsão legal surge no seguimento de diversos acórdãos que vinham declarando a inconstitucionalidade da condenação de um arguido por falsas declarações prestadas, nomeadamente perante notário em sede de escrituras (de justificação ou de habilitação), nos termos do artigo 97.º do Código do Notariado, pretendendo esta punição abranger igualmente as falsas declarações prestadas à Autoridade Tributária.
Através da incriminação da conduta assim descrita procura o legislador assegurar «(…) a tutela da integridade da função administrativa nas suas diversas manifestações e da capacidade funcional da administração, exercida em conformidade com as exigências de legalidade e objetividade que num Estado de Direito devem presidir às funções públicas. Ao declarar ou atestar falsamente identidade, estado ou outra qualidade própria ou de terceiro, o agente induz a autoridade ou funcionário a quem se dirige a praticar ato objectivamente viciado nos seus pressupostos, pondo em causa a própria administração e a sua imprescindibilidade para a realização ou satisfação de finalidades fundamentais, indispensáveis em qualquer sociedade organizada.» (cfr. António Latas, “As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei 19/2013 de 21 de Fevereiro”, Revista do CEJ n.º 1, 2014, págs. 55-103).
No período de discussão que antecedeu a aprovação da Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, que introduziu o preceito incriminador em referência, foram expressas algumas preocupações e reservas, em especial pela falta de densificação da conduta típica, existindo alguma indeterminação na descrição típica, suscitando alguma apreensão a aparente amplitude do âmbito de aplicação.
Fernanda Palma, pronunciou-se nestes termos: «A nova incriminação tem óbvios problemas de tipicidade pois recorre a conceitos normativos pouco explícitos e pouco acessíveis a uma valoração paralela na esfera dos leigos, para utilizar a linguagem de Figueiredo Dias. Com efeito, a norma é excessivamente ampla quanto à ação e ao seu significado.
Qualquer falsa declaração quanto a uma qualquer qualidade a que a lei atribua quaisquer efeitos jurídicos preenche o tipo. Mas de que qualidades e de que efeitos jurídicos se trata? Que bens jurídicos são tutelados pela incriminação? A mentira ou o exagero sobre o estado de saúde (que, aliás, encerra um elevado grau de subjetividade) é já um crime de falsas declarações? A desculpa falsa de que se está doente ou se teve um problema familiar apresentada a um professor para justificar a falta a um teste é um crime de falsas declarações? [e conclui que] As qualidades deveriam ser explicitadas e os efeitos jurídicos deveriam ser tipificados como consequências que atingem outros direitos, alteram condições de igualdade de oportunidades ou põem em causa bens de valor social.
Tal como está prevista, a norma abrange condutas irrelevantes e torna imprevisível e dependente da atuação da autoridade pública ou do funcionário a concretização do crime.».
No caso dos autos, afigura-se que é precisamente a densificação da conduta típica relevante que afastará a afirmação do preenchimento do tipo objectivo.
Com efeito, para a consumação do ilícito típico que nos ocupa – importa salientá-lo ainda – não é necessário que da falsidade das declarações prestadas venha em consequência a resultar para terceiros ou para o Estado efectivo e real prejuízo: mercê duma antecipação da tutela penal conseguida através do recurso à categoria dos crimes de perigo abstracto, a prestação falsas declarações é punida em si mesmo e enquanto tal, independentemente da verificação concreta de qualquer efeito danoso ou lesivo que dela pudesse eventualmente vir a resultar, pelo que é inócua a circunstância de não se ter confirmado que foi levantado auto de notícia ou elaborada participação de acidente de onde ficou a constar o falsamente indicado pelo arguido.
Deste modo, dispensando o preenchimento da factualidade típica a verificação efectiva de um resultado de dano ou perigo-violação, o crime consuma-se logo que pelo agente sejam prestadas as declarações contrárias à verdade.
Quedemo-nos então pela tentativa de concretização da conduta típica relevante, qual seja, pela determinação de quais serão os factos cuja falsidade declarada ou atestada perante autoridade pública, poderá fazer incorrer um agente na prática deste crime.
O arguido, na sequência de acidente de viação e aquando a fiscalização policial, mentiu quanto à identidade do condutor do veículo, repudiando ser o condutor, ao contrário do que era verdade.
Donde que, não se referindo a mentira do arguido à sua identidade ou ao seu estado, será que podemos entender que mentiu relativamente a uma qualidade a que a lei atribui efeitos jurídicos?
A resposta, afigura-se-nos, não pode deixar de ser negativa, concordando-se com as objecções inicialmente apostas à incriminação quanto ao excessivo e intolerável âmbito de aplicação, sendo patente que o tipo legal é demasiado amplo, pelo que incumbirá à doutrina e jurisprudência preencher o que se deve entender por «qualidade a que a lei atribui efeitos jurídicos», restringindo as condutas típicas ao verdadeiro escopo da norma, isto é, tendo em consideração o que se visou proteger (a falsidade de declarações em escrituras públicas ou perante a administração fiscal), tanto mais que, quanto a essa qualidade, a de condutor, poderia inclusivamente colocar-se a questão da garantia do direito à não auto-incriminação, uma vez que, necessariamente, sabia o arguido que estaria comprometido com a prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviária e de um crime de condução de veículo sem habilitação legal e, nessa medida, não só não era obrigado a responder, como não era obrigado a fazê-lo com verdade.
No sentido que agora propugnamos, decidiu já o Tribunal da Relação de Guimarães (acórdão de 23 de Janeiro de 2017, publicado no sítio da DGSI), onde se expendeu a seguinte argumentação:
«Concretamente, a questão sub judice centra-se no que se deve entender por “qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos”.
Neste conceito “está em causa o estado ou outra qualidade em que o próprio ou outra pessoa é tomada pela lei para determinado efeito jurídico (v.g. estado civil, nacionalidade, residência, maioridade, ser proprietário), o que não se confunde com afirmações do agente sobre factos concretos que não correspondam necessariamente àquelas qualidades típicas, ainda que deles, juntamente com outros, possam retirar-se conclusões sobre as mesmas” (António Latas, estudo citado).
Temos para nós que alguém assumir-se como condutor de um veículo, ainda que interveniente em acidente de viação não é assumir uma qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos. E se assim é, então assumir-se falsamente como condutor de um veículo interveniente em acidente de viação não é declarar falsamente uma qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos. Interpretação diversa seria alargar de forma injustificada o tipo incriminatório.»
Face ao exposto, e por muito censurável que tenha sido o comportamento do arguido, a demonstrada conduta não integra a previsão típica do crime imputado ao arguido, impondo-se, assim, a sua absolvição.
(…)

II.3. Da análise dos fundamentos dos recursos
(…)
II.3.2. Enquadramento jurídico do crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A, n.º 1, do CP (recurso do Ministério Público)
1. O Ministério Público argumenta que alguém declarar-se falsamente como condutor de um veículo enquadra-se no crime de falsas declarações. Contudo, ao contrário do que alega o Ministério Público (conclusão I), o arguido não afirmou ser o condutor, mas sim que não o era, indicando que era a sua companheira quem conduzia.
2. Passando à análise do tipo, estatui o artigo 348.º-A, n.º 1, do CP, sob a epígrafe “falsas declarações”, que é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal “[q]uem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios”.
Este tipo legal foi introduzido pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, com o intuito de clarificar que o crime de falsas declarações “deixa de se confinar às declarações recebidas como meio de prova em processo judiciário, ou equivalente, passando a constituir ilícito criminal igualmente as falsas declarações que sejam prestadas perante autoridade pública ou funcionário público no exercício das suas funções e se destinem a produzir efeitos jurídicos.” (exposição de motivos da PL 75/XII).
A razão para a sua criação foi dotar de “conteúdo normativo as múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime” após a revogação do art.º 22º, do Decreto-Lei 33725, de 21.06.1944, que previa o crime de falsas declarações perante autoridade pública. Tal revogação originou decisões de declaração de inconstitucionalidade de normativos remissivos.
Conforme a exposição de motivos, o bem jurídico protegido é “a autonomia intencional do Estado”, o que se alinha com o enquadramento deste crime nos “crimes contra a autoridade pública”. António Latas defende que “ao declarar ou atestar falsamente identidade, estado ou outra qualidade própria ou de terceiro, o agente induz a autoridade ou funcionário a quem se dirige a praticar ato objectivamente viciado nos seus pressupostos, pondo em causa a própria administração e a sua imprescindibilidade para a realização ou satisfação de finalidades fundamentais, indispensáveis em qualquer sociedade organizada" (in “As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei 19/2013 de 21 de fevereiro”, estudo publicado no site do Tribunal da Relação de Évora).
O tipo objetivo matricial exige:
- Uma declaração ou atestado falso;
- Relativo à identidade, estado ou outra qualidade, própria ou de terceiro, a que a lei atribua efeitos jurídicos;
- Perante autoridade pública ou funcionário no exercício das suas funções.
No plano subjetivo, trata-se de um crime doloso, admitindo qualquer modalidade de dolo, não exigindo uma intenção específica, como a de enganar.
3. Para o objeto do recurso, importa discutir o alcance da expressão “ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios", que a decisão recorrida considerou não estar preenchida.
Com esta expressão, o legislador pretendeu ampliar o âmbito de aplicação do tipo. Contudo, o uso de conceitos indeterminados, como “outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos”, deixou ao aplicador da lei a tarefa de os interpretar e densificar, o que origina diversos entendimentos sobre o seu significado e sobre as condutas neles abrangidas.
Pergunta-se, então, se uma falsa declaração a um OPC no exercício das suas funções, relativa à pessoa que conduzia um veículo envolvido num acidente de viação, constitui uma “qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos”, quando o declarante afirma não ser ele o condutor, mas uma terceira pessoa, sem falsear a sua própria identificação.
Para Paulo Pinto de Albuquerque “não podem ser consideradas como típicas as declarações sobre factos ou acontecimentos, mesmo que tenham sido vividos pelo declarante (…) como o modo de aquisição da posse de um imóvel ou um modo de condução de um veículo automóvel. Portanto, não cometem o crime aqueles arguidos que, mentindo ao militar da GNR a respeito da identidade da pessoa que vinha a conduzir a viatura e que interveio em acidente de viação, ao afirmarem que era o JR, quando afinal o condutor fora o JJ, mas não mentiram sobre as identidades fornecidas” (in “Comentário do Código Penal”, 4ª ed., 2021, Universidade Católica Portuguesa, p. 1187).
O Acórdão do TRG, proc. n.º 303/14, de 23 de janeiro de 2017, conclui no mesmo sentido, considerando que a declaração sobre quem conduzia um veículo num acidente não constitui uma qualidade com efeitos jurídicos.
A decisão recorrida alinha-se com esta posição ao afirmar: “Temos para nós que alguém assumir-se como condutor de um veículo, ainda que interveniente em acidente de viação não é assumir uma qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos”.
M. Migues Garcia e J. M. Castela Rio delimitam negativamente o âmbito normativo da expressão legal nos seguintes termos: “No tipo objetivo relevam os elementos pessoais (“identidade, estado ou outra qualidade), ligados à natureza própria do agente” (in “Código Penal Parte Geral e Especial”, Almedina, 3ª ed. atualizada, 2018, p. 1358), i.e., outras qualidades atinentes à pessoa, que, por si só, direta e imediatamente, produzam efeitos jurídicos.
António Latas estende o conceito a quaisquer qualidades dos agentes ou de terceiros que produzam efeitos jurídicos, não se restringindo às qualidades relacionadas com a identificação pessoal lato sensu, assinalando que “está em causa o estado ou outra qualidade em que o próprio ou outra pessoa é tomada pela lei para determinado efeito jurídico (v.g. estado civil, nacionalidade, residência, maioridade, ser proprietário), o que não se confunde com afirmações do agente sobre factos concretos que não correspondam necessariamente àquelas qualidades típicas, ainda que deles, juntamente com outros, possam retirar-se conclusões sobre as mesmas" (estudo citado).
Em consonância, o TRE, proc. 2119/13.9TAPTM.E1, de 16 de junho de 2015, relatado por Maria Leonor Esteves (em que era adjunto António Latas), decidiu que “Os arguidos, ao mentirem ao militar da GNR a respeito da identidade da pessoa que vinha a conduzir a viatura e que interveio em acidente de viação, afirmando que era o JR, quando afinal o condutor fora JJ, incorreram na prática do crime de falsas declarações, já que declararam falsamente a uma autoridade pública a identidade do condutor que conduzia a viatura automóvel e visto que a lei atribui efeitos jurídicos a tal declaração.”
O TRC, no proc. 116/15.9GTLRA.C1, de 11 de janeiro de 2023, relatado por Pedro Lima, decidiu que “outra qualidade” inclui dados como “a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho ou similares”, e ainda condições como “cargos, funções, títulos, categorias ou meras condições como a de proprietário, de possuidor, representante legal ou voluntário e a de condutor de um veículo.”
Neste sentido, veja-se ainda o Acórdão do TRG, proc. 405/18.0GAEPS.G1, de 25 de maio de 2020, entre outros citados pelo recorrente.
Concordamos com este entendimento.
A lei impõe ao condutor de um veículo o dever de identificar-se como tal, sob pena de incorrer no crime de falsas declarações.
A qualidade de “condutor” não é apenas um facto ou mera identificação funcional, está associada a responsabilidades legais e a vários efeitos jurídicos no contexto da circulação rodoviária. Esses efeitos incluem a necessidade de habilitação legal para conduzir, a obrigação de sujeição a fiscalizações de álcool ou substâncias psicotrópicas, a responsabilidade por infrações rodoviárias, a responsabilidade por crimes cometidos durante a condução, bem como obrigações de colaboração. Um exemplo disso é o artigo 89.º do Código da Estrada, que impõe ao condutor o dever de se identificar perante os outros intervenientes no acidente e de permanecer no local até à chegada de agentes de autoridade quando houver feridos ou mortos. A qualidade de “condutor” também tem relevância para o seguro e as responsabilidades civis.
Assim, a declaração falsa à GNR, indicando que outra pessoa conduzia o veículo, configura uma declaração inverídica sobre uma qualidade juridicamente relevante. No caso em apreço, a afirmação de que era a companheira, e não o próprio arguido, quem conduzia integra uma falsa declaração sobre uma qualidade de que emergem efeitos jurídicos.
4. Tendo isto em conta, com base nos factos apurados, conclui-se estarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A, n.º 1, do CP.
Em concreto, mostra-se provado que no dia do acidente [18 de Novembro de 2018, pelas 14:50 horas], pelas 18.30 horas, o arguido declarou falsamente ao Militar da Guarda Nacional Republicana (GNR) DD, em exercício de funções, que a condutora do veículo no momento do acidente era EE, quando sabia que era ele próprio o condutor (pontos 22 e 23 dos factos provados). Esta declaração falsa, relativa à "qualidade" de condutor, é juridicamente relevante, dado os vários efeitos que a lei atribui a essa condição.
O dolo direto fica evidenciado pelo facto de o arguido ter querido prestar uma declaração que sabia ser falsa. O seu propósito (atípico) foi iludir a autoridade e evitar as responsabilidades legais associadas à sua condução, como a sujeição ao teste de alcoolemia ou a responsabilidade pelo acidente.
A posterior retificação das declarações (solicitada em 3 de dezembro de 2018, ou seja, cerca de duas semanas após as declarações iniciais, e concretizada a 31 de janeiro de 2019) não elimina a ilicitude da conduta inicial, embora revele uma tentativa de mitigar as consequências da declaração falsa.
Assim, considera-se que o arguido preencheu os elementos constitutivos do crime de falsas declarações, conforme o artigo 348.º-A, n.º 1, do CP, ao prestar uma declaração falsa sobre a identidade do condutor, visando eximir-se às responsabilidades legais associadas ao seu ato de condução.
(…)

III. DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.
- Julgar parcialmente procedente o recurso do Ministério Público e, em consequência, condenar AA pela autoria, na forma consumada, de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A, n.º 1, do CP, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €8,00 (oito euros), perfazendo €1.200,00 (mil e duzentos euros).
- Proceder ao cúmulo jurídico das penas de multa pelos crimes de condução sem habilitação legal (art.º 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro) e falsas declarações (art.º 348.º-A, n.º 1, do CP) e condenar o arguido AA numa pena única de 185 (cento e oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €8,00, totalizando €1.480,00 (mil quatrocentos e oitenta euros).
- No restante, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s (art.ºs 513.º, n.º 1, do CPP, e 8.º, n.º 9, do RCP, com referência à tabela III anexa).
Quanto ao recurso do Ministério Público, isento de custas (art.ºs 522.º, n.º 1, CPP, e 4.º, n.º 1, al. a), RCP).
Notifique-se e D.N.

Porto, 20/11/2024
Madalena Caldeira
José Quaresma
Luís Coimbra