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ARTIGO 340º
DO CÓDIGO DO PROCESSO PENAL
PROVA PERICIAL
Sumário
I - Embora o tribunal deva, ainda que oficiosamente, ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, competindo-lhe investigar o facto sujeito a julgamento e construir, por si, o suporte da decisão, o pressuposto princípio de investigação sofre naturais limitações impostas pelos princípios da necessidade, da legalidade e da adequação, princípios que o art.º 340.º do C.P.P. também incorpora e materializa, habilitando o juiz a apreciar e, se necessário, limitar o requerimento de prova apresentado. II - O Tribunal não deve assumir um papel completamente passivo e insensível à verdade, temperando o acusatório público com um princípio de investigação, mas esse estímulo e atividade não se desenvolve de forma desordenada, procurando uma qualquer verdade sobre um qualquer assunto com relevância criminal. Essa componente investigatória faz-se no plano do feito introduzido em juízo e do objeto do processo. III - Tendo o recorrente, na qualidade de arguido, requerido, além do mais, a realização de prova pericial por forma a demonstrar que, em consequência da atuação de um outro arguido, ocorrida anos antes, sofreu ofensa à integridade física grave, não constando da acusação tal resultado e situando-se o pretendido à margem do seu direito de defesa (pois é, nesta parte ofendido), não tendo, na qualidade de assistente requerido a abertura da instrução para incorporação daquele invocado resultado, é de indeferir a realização de prova pericial para prova de factos “potenciais” e não contidos na plêiade de factos a provar.
(Da responsabilidade do Relator)
Texto Integral
Proc. n.º 818/19.0PAVNG.P2
Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. I.1
Nos autos de processo comum n.º 818/19.0PAVNG, que correu termos no Juízo Local Criminal de ... – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por despacho de 18.01.2023 (Ref.ª 444207826), foi indeferida diligência probatória requerida pelo arguido (e agora também assistente) AA na sua contestação de 16.12.2022, no caso a realização de perícia complementar, a realizar pelo I.N.M.L.C.F., por forma a fazer constar, do relatório final e como consequência da agressão de que foi vítima, a perfuração da córnea e perda do seu olho esquerdo. I.2
Ulteriormente, realizada a competente audiência de julgamento, por sentença de 07.11.2023 (Ref.ª 453603868), decidiu-se, além do mais: Relativamente ao arguido AA 1. Condeno o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, nº 1, do Código Penal, na pena de cento e vinte dias de multa à razão diária de cinco euros, o que perfaz o montante global de 600€. (…) Relativamente ao arguido BB 4. Condeno o arguido BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, nº 1, do Código Penal, na pena de cento e vinte dias de multa à razão diária de cinco euros, o que perfaz o montante global de 600€. (…)
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I.3 I.3.1 Do recurso interlocutório
Inconformado, veio o arguido/assistente AA interpor recurso interlocutório do despacho suprarreferido (Ref.ª 34988469 – I.1) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve: I. O presente recurso vem interposto do Douto Despacho do Meritíssimo Juiz a quo que não admitiu o requerimento de perícia complementar a realizar pelo arguido e apresentado em sede de contestação. II. Não pode o arguido, ora recorrente, concordar com o entendimento apresentado no Despacho de indeferimento. Por isso mesmo, o recorrente pretende um novo juízo de apreciação, agora por parte desde venerando Tribunal. III. Sendo certo que a acusação define e delimita o objecto do processo, sendo esta que fixa os limites da atividade cognitiva e decisória do tribunal, a lei admite, no entanto, que o Tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação. IV. E essa alteração poderá ou não ser conhecida pelo Tribunal a quo, razão pela qual não pode excluir, à partida, a possibilidade de conhecer factos que poderão vir a interessar para a boa decisão da causa. V. Assim, não poderá ser considerada irrelevante ou supérflua a prova requerida, como entendeu o Tribunal a quo, mas antes, sim, relevante ao abrigo do principio plasmado no próprio art.º 340 do C.P.P. VI. E não obstante a prova requerida fazer parte do “direito de defesa” do arguido como se definiu no Douto Despacho, o Tribunal a quo encontra-se incumbido do poder-dever de investigar, o qual decorre do principio orientador da verdade material. VII. E o princípio da investigação exige que o Tribunal se empenhe no apuramento da verdade material, atendendo a todos os meios de prova relevantes que todos os sujeitos processuais lhe proponham. VIII. O art.º 340.º do C.P.P. ao determinar os princípios gerais de produção de prova em audiência de julgamento espelha bem que o nosso ordenamento jurídico processual penal além de caracterizado pelo princípio do acusatório, encontra-se igualmente orientado pelo princípio da investigação ou da verdade material. IX. Com efeito, a perícia do IML de 31/05/2019 a fls… refere o impacto no olho esquerdo do arguido e respetivo trauma associado onde ainda era visível um edema na maçã do rosto junto à órbita ocular. A perícia do IML de 22/10/2019 IML a fls… refere o processo de infecção e perfuração de córnea. X. E tendo sido elaborado relatório do IML sem ter sido analisada a real extensão dos danos e consequências, nem ter sido realizada uma última perícia que esteve marcada e não foi realizada, não obstante os pedidos do arguido para a sua marcação a 03/11/2020 (cfr requerimento a fls…), os factos vertidos na Acusação estão incompletos. XI. Razão pela qual o recorrente requereu uma nova perícia a fim de determinar a real extensão dos danos causados pelos actos do arguido BB e consequente perfuração da córnea e perda do olho esquerdo do arguido AA. XII. Atento o poder-dever de descoberta da verdade material, o Douto Despacho do Tribunal a quo que indeferiu a realização da perícia é, salvo o devido respeito, contrária ao próprio preceituado no art. 340.º do CPP. XIII. O Tribunal a quo errou ao não apreciar como útil a perícia requerida pelo recorrente na sua contestação. XIV. O Despacho recorrido violou o preceituado no artigo 340.º, n.º 1, do C.P.P., e, por isso, impõe-se a sua revogação. XV. Entende, por conseguinte, o recorrente que o Douto Despacho recorrido em deverá ser revogado e, em consequência, seja determinada a realização da perícia complementar pelo IML requerida pelo recorrente na sua contestação. Termos em que e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que determine a realização da perícia complementar pelo IML, assim fazendo um ato de JUSTIÇA.”
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I.3.2
O Ministério Público apresentou, oportunamente, articulado de resposta (Ref.ª 35227050), pugnando pela manutenção do despacho contestado, referindo, em conclusões: I A realização de diligencias de prova cinge-se ao objecto do processo não podendo extravasar o mesmo, sendo este delimitado pela acusação, pública e/ou particular e caso exista por despacho de pronúncia. II No caso dos autos, a prova requerida extravasa de modo irremediável o objecto do processo e os factos imputados aos arguidos e caso fosse admitida iria ofender as garantias de defesa dos mesmos. III Não existe na opinião do Ministério Público qualquer erro na apreciação da requerida produção de prova pelo Tribunal a quo. IV O despacho recorrido encontra-se devidamente fundamentado, quer de facto quer de direito, e não é possuidor de qualquer vicio que inquine a sua validade substancial ou formal, devendo ser mantido nos seus precisos termos, julgando-se assim o recurso improcedente. V Pelo exposto, não merece qualquer reparo a decisão recorrida. VI Não foi violada qualquer norma jurídica. Ao julgarem o recurso improcedente, mantendo a douta decisão recorrida, com a adequada tributação farão a habitual, costumada e sã, JUSTIÇA!
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I.4
Dos recursos da decisão final I.4.1
Não se conformando com a sentença prolatada, veio o arguido BB interpor recurso da mesma (Ref.ª 37498148) apresentando as seguintes conclusões: A. O Arguido vem interpor recurso da decisão que o veio condenar pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples (artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal). B. A pena aplicada foi uma pena de multa à razão diária de 5,00 € (cinco euros), perfazendo um total de 600,00 € (seiscentos euros). C. O Tribunal a quo decidiu não consubstanciando uma opção justa e correta em sede de apreciação e valoração da prova e se afasta do melhor enquadramento jurídico dos pressupostos fácticos sobre que assenta. D. Assim, deve ser proferida uma decisão diversa daquela que foi proferida nos autos. E. A Douta Sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova, impondo-se uma decisão diversa e que seria forçosamente a absolvição do Arguido. F. O primeiro fundamento de discordância da Sentença recorrida são as nulidades de que a mesma padece. G. A primeira nulidade a ser analisada é a valoração de prova proibida, nomeadamente, os vídeos gravados pelo Arguido AA e que foram juntos em anexo à sua Contestação. H. Segundo o disposto no artigo 126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, a prova obtida em que ocorre uma intromissão da vida privada, sem consentimento de outrem, é considerada prova proibida. I. Os direitos em questão são: o direito à imagem e o direito à reserva da vida privada. J. No que diz respeito ao direito à reserva da vida privada, importa analisar o vertido no artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 80.º do Código Civil. K. Já internacionalmente, convém ainda sublinhar o artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e o artigo 8.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. L. A prova junta aos autos, os vídeos, é, no mínimo, fundada na realização de prova proibida e ilegal. M. Como tal, traduz-se em prova proibida e ilegal. N. Os métodos proibidos de prova não poderão ser valorados e usados (artigo 126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal). O. A prova nula é aquela que é obtida de forma ilícita, tal como, a do caso em discussão. P. Não houve autorização e/ou consentimento nas gravações. Q. Apesar do referido em Sentença, que aqui ora se recorre, dispor que: “Os vídeos não retratam os factos: são posteriores aos factos. Não obstante, dos mesmos ressalta a linguagem agressiva e brejeira (designadamente, do arguido AA) (…)” (itálico nosso). R. Ocorreu violação do disposto nos artigos 167.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, e 192.º, n.º 1, al. b) e c), e 199.º do Código Penal. S. Além do mais, a prova apresentada pelo Arguido AA viola também a integridade moral, consistindo numa abusiva intromissão da vida privada (artigo 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa), e a proteção dos dados pessoais (artigos 26.º, n.º 1 e 2 e 15.º da Constituição da República Portuguesa e a Lei da proteção de dados pessoais n.º 67/98, de 27 de Outubro). T. O Sr. Dr. Manuel da Costa Andrade é da opinião de que, “Significativa, desde logo, a prevalência expressamente reconhecida ao critério da ilicitude penal substantiva: será inadmissível e proibida a valoração de qualquer registo fonográfico ou fotográfico (fílmico, vídeo, etc.) que, pela sua produção ou utilização represente um qualquer ilícito penal material, à luz do disposto no artigo 192º, do Código Penal, (…). Os interesses tutelados pelo processo penal, como, a realização da justiça, a estabilização contrafáctica das normas, a restauração da paz jurídica, por razões de economia, a eficácia da justiça penal, não bastam, por si só enquanto tais, para legitimar a danosidade social da produção ou utilização não consentidas de gravações ou fotografias. Ou seja, o mero propósito de juntar, salvaguardar e carrear provas para o processo penal não justifica o sacrifício do direito à imagem em que invariavelmente se transformam a produção ou utilização não consentida destas reproduções mecânicas. Na verdade, só se poderá justificar a sua produção ou ulterior valoração processual contra a vontade de quem de direito, quando forem indispensáveis como meios necessários e idóneos à protecção de superiores interesses, transcendentes ao processo penal. Só neste contexto e com esta específica direcção preventiva pode emergir um relevante estado-de-necessidade probatório”– cfr. “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra, 1992, pág. 238- 239. (itálico nosso) U. Fere, assim, de nulidade e, em consequência, os atos subsequentes (artigos 122.º, n.º 1 e 126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal). V. Acresce ainda o facto de os vídeos terem sido gravados posteriormente à ocorrência dos factos. W. O que nada releva para a motivação da decisão. X. “Assim, e em conclusão, na hipótese legal do n.º 3 do artigo 126º, as provas obtidas fora dos casos admitidos pela lei e sem o consentimento do respectivo titular, mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, não podem ser utilizadas, e o seu conhecimento é oficioso, porque afronta directamente a Constituição.”– cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18 de Junho de 2014, processo n.º 35/08.5JAPRT.P1, disponível no site www.dgsi.pt. (itálico nosso) Y. Ainda quanto a respeito da prova proibida, a jurisprudência considera que, “(…) a prova proibida terá sempre como consequência a nulidade do acórdão proferido, atento que a junção dos vídeos e áudios não foi utilizada no sentido de demonstrar qualquer crime, nem tão pouco foi autorizada pela Recorrente a sua divulgação, muito menos foi ordenada a sua obtenção por via judicial. Mas não pode concordar-se com a posição do Tribunal a quo quando refere que a prova é lícita e que contribuiu para a boa descoberta da verdade, na medida em que a prova junta aos autos é inócua para demonstrar a prática do crime (…).”– cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 293/20.7PAVFR.P1, do dia 8 de Junho de 2022, disponibilizado online na página web das bases-jurídico-documentais, www.dgsi.pt. (itálico nosso) Z. Pretende-se com isto dizer que, a prova de vídeos junta com a Contestação do Arguido AA, deve ser considerado por V. Exas. inexistente, por proibida, não sendo, em consequência, valorada na decisão proferida pelo Tribunal a quo. AA. A Douta Sentença deve ser julgada nula, por violação dos direitos à privacidade e à imagem regulado no artigo 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa (artigos 126.º e 167.º do Código de Processo Penal). BB. Em caso de Douta opinião em sentido contrário, a prova deve ser usada para demonstrar que o Arguido AA “atiçava” as pessoas à sua volta de modo a ter registo no seu telemóvel. CC. Para além de que, tal como veio dizer, se foi efetivamente agredido e afeto na sua mobilidade, não conseguiria assim mover-se com tanta facilidade. DD. O comportamento do Arguido AA não corresponde ao comportamento adotado pelo “Homem médio comum”. EE. O facto de ter gravado só vem clarificar que adotou uma postura e atitude para com os seus vizinhos de agressividade e proferindo asneiras ao longo das gravações por si registadas. FF. O Tribunal a quo nem se pronunciou quanto a este ponto. GG. A valoração da prova não pode ser contrária as regras da experiência, da lógica e da razão. HH. A Sentença que aqui ora se recorre fere de nulidade, nulidade essa que deve ser reconhecida e declarada pelos Exmos. Senhores Juízes Desembargadores. II. Ainda no que se prende à nulidade da Sentença recorrida, alega-se em sede do presente recurso a questão da legítima defesa. JJ. A legítima defesa corresponde ao “facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiros.” – cfr. o disposto legalmente no artigo 32.º do Código Penal. (itálico nosso) KK. As causas de exclusão de ilicitude encontram-se reguladas no artigo precedente, o artigo 31.º do Código Penal. LL. A legítima defesa é um requisito de exclusão da ilicitude, é uma das causas de exclusão da ilicitude e da culpa previstas legalmente (artigo 31.º, n.º 2, al. a do Código Penal). MM. O Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 23/17.0JABRG.G1, datado de 8 de Fevereiro de 2021, disponível para consulta em www.dgsi.pt, esclarece-nos que, “Como é comummente aceite pela doutrina e pela jurisprudência, para a perfectibilização desta figura jurídica torna-se necessário que se verifiquem os seguintes predicados ou requisitos: a) A existência de uma agressão actual, em execução ou iminente, a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro; b) Que essa agressão seja ilícita ou antijurídica; c) Que o agente actue com "animus defendendi", ou seja, que aja com o intuito de se defender, com o fim de pôr termo à agressão em curso ou à agressão iminente; d) Que o meio empregado seja necessário e racional; e e) Que o agente esteja impossibilitado de recorrer à força pública.” (itálico nosso) NN. Do preceito constitucional do direito de resistência, previsto no artigo 21.º (da Constituição da República Portuguesa), se retira o seguinte: “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.” (itálico nosso) OO. O Recorrente e Arguido BB em declarações prestadas em sede de audiência e julgamento, realizada a 25 de Outubro de 2023, esclareceu o Tribunal a quo do seguinte: [1:27 a 1:38 minutos] - Sra. Dra. Juiz Presidente: “A determinada altura, o Senhor AA, AA, exaltou-se e abeirou-se da Senhora CC, sua esposa, e desferiu-lhe murros nos braços.” [1:38 a 1:40 minutos] - Arguido BB: “Correto.” [1:42 a 1:48 minutos] - Sra. Dra. Juiz Presidente: “Entretanto, o Senhor, marido da Senhora CC, pegou num vaso.” [1:49 a 2:17 minutos] - Arguido BB: “Tentei demovê-lo com palavras, não o consegui demover. Disse para ele estar quieto, e ele não estava. A única coisa que me ocorreu. Estava a mudar o vaso do manjerico, um vaso pequenino, e lancei-lhe aquilo. Não havia de o ter feito, mas fiz. E temia pela vida da minha mulher, porque ele estava violento em cima da minha mulher e da Dona DD. É violência mesmo. Que eu mandei-o estar quieto e ele não parou, não é? Eu temi pela vida da minha mulher, foi com o que me veio à mão.” [2:17 a 2:18 minutos] - Sra. Dra. Juiz Presidente: “Estava a mudar um vaso.” [2:18 a 2:20 minutos] - Arguido BB: “Estava a mudar o vaso. O vaso até tinha pouca terra.” [2:22 a 2:26 minutos] - Sra. Dra. Juiz Presidente: “Estava a mudar o vaso e o quê que fez? Pegou no vaso e lançou-o mesmo na direção dele.” [2:26 a 2:28 minutos] - Arguido BB: “Exatamente. Lancei-o.” PP. A este respeito, o Tribunal a quo limitou-se a dizer o seguinte, em Sentença: “Do quadro fáctico não resulta que quando BB atuou ainda estivesse a decorrer a agressão (a agressão consistiu num murro no braço) nem que o arguido tenha atuado com animus defendendi. Por outro lado, a dimensão da agressão, não tornava necessária a ação de BB (atirar um vaso que acertou, designadamente, na cabeça do coarguido), para assegurar a defesa de CC.” (itálico nosso) QQ. A mulher do Recorrente BB, a Sra. CC, estava a ser agredida pelo Arguido AA, sendo que, este último a empurrou e lhe dirigiu um murro no seu braço – cfr. relatório médico-legal de fls. 30 e 31. RR. Considerou o Tribunal a quo que, “Entretanto, surge o arguido BB, marida da ofendida, o qual, depois de pegar num vaso existente no local, de dimensões e material não concretamente apurados, que se encontrava com terra, lançou o mesmo em direção ao arguido AA, atingindo-o no braço esquerdo – que este usou para proteger a cara – na cabeça e pé direito.” (itálico nosso) SS. A legitima defesa exercida pelo Recorrente BB foi atual, após se ter apercebido do sucedido. TT. A este respeito e cumprimento do requisito de uma agressão atual, elucida-se para o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 39/13.6JABRG.G2.S1, de 10 de Novembro de 2022, consultado em www.dgsi.pt: “A legítima defesa só é admissível contra uma agressão atual. A agressão é atual quando “iminente, já se iniciou ou ainda persiste”. Para determinar a iminência ou a atualidade é decisivo o prognóstico objetivo de um espectador experimentado colocado na situação do agente e não a representação subjetiva deste.” (itálico nosso) UU. Não se vê que outro motivo terá tido o Recorrente para arremessar um vaso em direção do Arguido AA, a não ser em defesa da sua esposa, a Sra. CC. VV. No “calor do momento”, tal como referiu nas suas declarações, “foi com o que me veio à mão.” – cfr. declarações prestadas pelo Arguido em sede de audiência de discussão e julgamento. (itálico nosso) WW. No entanto, antes da agressão por parte do Recorrente, este tentou demover o Arguido AA a parar. XX. “Tentei demovê-lo com palavras, não o consegui demover. Disse para ele estar quieto, e ele não estava.” – cfr. declarações prestadas pelo pelo Arguido em sede de audiência de discussão e julgamento. (itálico nosso) YY. Houve uma advertência por parte do Recorrente ao Arguido AA. ZZ. Viu que seria o único meio necessário para parar com as agressões de que a sua esposa estava a ser alvo naquele momento. AAA. A atitude do Recorrente tinha como propósito e intenção defensiva. BBB. Sabe e confessou que não o deveria ter feito. CCC. A sua intenção era por fim à situação. DDD. “temia pela vida da minha mulher, porque ele estava violento em cima da minha mulher e da Dona DD. É violência mesmo.” – cfr. declarações prestadas pelo Arguido em sede de audiência de discussão e julgamento. (itálico nosso) EEE. O Arguido AA aproveitou-se da sua posição em relação à Ofendida CC, ofendendo-a fisicamente em consequência. FFF. No entendimento do Recorrente encontram-se preenchidos os requisitos de exclusão de ilicitude. GGG. A legítima defesa revelou-se necessária, logo, há legítima defesa, mas não excessiva. HHH. “Haverá excesso de legítima defesa quando, pressuposta uma situação de legítima defesa, se utiliza um meio desnecessário para impedir ou repelir a agressão.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 11 de Dezembro de 2023, proferido no âmbito do Processo n.º 154/05.0GARSD.P1, e disponível em www.dgsi.pt. (itálico nosso) III. A decisão do Tribunal a quo demonstra-se nula também por não valoração da confissão do aqui Recorrente (artigo 344.º, n.º 1 do Código de Processo Penal). JJJ. As declarações do Arguido BB, nesta senda, foram as seguintes: [0:05 a 0:09 minutos] - Sra. Dra. Juiz Presidente: “O que está na acusação é verdade ou é mentira?” [0:09 a 0:10 minutos] - Arguido BB: “É verdade.” [0:10 a 0:12 minutos] - Sra. Dra. Juiz Presidente: “É verdade o que está na acusação?” (…) [6:48 a 6:56 minutos] - Sra. Dra. Juiz Presidente: “O Senhor sabe que ao dizer o que está a dizer, está a confessar a prática de um crime? Sabe? Está a confessar a prática de um crime de ofensa à integridade física. Sabe disso?” [6:56 6:58 minutos] - Arguido BB: “Sim, sim.” [6:58 a 7:00 minutos] - Sra. Dra. Juiz Presidente: “O Senhor está a confessar porque quer ou alguém o está a obrigar?” [7:00 a 7:01 minutos] - Arguido BB: “Não, porque quero.” [7:01 a 7:02 minutos] - Sra. Dra. Juiz Presidente: “Muito bem.” [7:02 a 7:03 minutos] - Arguido BB: “Porque quero.” KKK. Houve colaboração da justiça do Arguido e aqui Recorrente. LLL. A confissão é um meio de prova (artigo 124.º, n.º 1 do Código de Processo Penal). MMM. “A confissão do arguido, arrependimento sincero demonstrado, a sua disponibilidade e colaboração (…) na descoberta da verdade durante todo o processo, as dúvidas de como se processava efetivamente a atividade do arguido e junto de quem, se obtinha ou não lucros com essa atividade, a sua conduta antes e depois do facto, o cumprimento exemplar da medida de coação a que ficou sujeito, a inexistência de antecedentes criminais, atendendo a um juízo de integração e ressocialização do arguido, não ponderou e aplicou o Tribunal Coletivo os preceitos consignados nos artigos 40.º, (…) 70.º a 74º, todos do CP; Preteridos e desvalorizados que foram, pelo julgador, os critérios apontados e todos os demais aspetos que pesavam favoravelmente ao arguido, a escolha e medida da pena é deveras excessiva e desproporcional, tendo o Tribunal Coletivo desatendido evidentemente à aplicabilidade das disposições referidas violando os princípios implícitos da culpa e da proporcionalidade na escolha e medida da pena, resultantes do n.º 2, do artigo 18º, da CRP.”– cfr. Acórdão n.º 279/2012 do Tribunal Constitucional, Processo n.º 206/12, 1.ª Secção, relatora conselheira a Sra. Dra. Maria João Antunes, disponível para consulta em www.tribunalconstitucional.pt. (itálico nosso) NNN. A confissão não pode deixar de ser valorada no momento da escolha e da determinação da pena. OOO. “(…) de um modo genérico, toda a colaboração prática com as autoridades na descoberta da verdade deve ser creditada a favor do agente no balanço das necessidades preventivas do caso. Por isso, os tribunais se inclinam frequentemente a recompensar com a clemência o autor confesso.” – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal, 3.ª ed., 2011, anotação ao artigo 71.º, p. 363. (itálico nosso) PPP. Não poderá deixar de pesar favoravelmente em benefício do Arguido e Recorrente BB, o facto de ter vindo confessar os factos. QQQ. Por conseguinte, a medida da pena aplicada é inadequada. RRR. O Arguido BB encontra-se social e laboralmente bem inserido, trabalhando por contra de outrem, não auferindo rendimentos elevados, contrariamente ao Arguido AA que, apesar de ter sido condenado na mesma pena, aufere mensalmente maiores rendimentos por parte da Segurança Social. SSS. O Arguido não tem antecedentes criminais. TTT. Por último, mas não menos importante, a aplicação da pena revela-se desajustada face ao caso concreto. Nestes termos e nos melhores de Direito aplicável, que V.ª Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao recurso, devendo em conformidade ser revogada a Sentença recorrida e, por conseguinte, ser o Arguido BB absolvido do crime de que vem acusado, com as legais consequências. Termos em que V.ª Exas. farão a costumada JUSTIÇA!
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I.4.2
Igualmente inconformado, também o arguido AA interpôs recurso da decisão final (Ref.ª 37510807), referindo, em conclusão: I. Vem o presente recurso interposto da totalidade da sentença proferida pelo Tribunal A Quo, da qual consta: “Relativamente ao arguido AA 1. Condeno o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, nº 1, do Código Penal, na pena de cento e vinte dias de multa à razão diária de cinco euros, o que perfaz o montante global de 600€. 2. Condeno o arguido no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em 2UC. 3. Mantém-se a medida de coação termo de identidade e residência, até à extinção da pena. Relativamente ao arguido BB 4. Condeno o arguido BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, nº 1, do Código Penal, na pena de cento e vinte dias de multa à razão diária de cinco euros, o que perfaz o montante global de 600€. 5.Condeno o arguido no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em 1UC (reduzida por força da confissão). 6. Mantém-se a medida de coação aplicada (termo de identidade e residência) até à extinção da pena.” II. O presente recurso é apresentado na firme convicção de que a prova produzida, a matéria de facto e a matéria de direito sujeitas à apreciação do Tribunal A Quo mereciam outra interpretação. DA MATÉRIA DE FACTO III. O Recorrente considera incorrectamente julgados os factos considerados provados nos pontos 1, 2, 3, 4, 5 e 7 da sentença recorrida e, bem assim, os factos dados como não provados na alínea d). IV. Os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida são: - as declarações do Arguido/Assistente AA, prestadas no dia 25/10/2023, as quais foram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo o seu início ocorrido pelas 10 horas e 07 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 38 minutos; - as declarações do Arguido BB, prestadas no dia 25/10/2023, as quais foram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo o seu início ocorrido pelas 10 horas e 38 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 52 minutos; - o depoimento da testemunha CC, prestado no dia 25/10/2023, que foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo o seu início ocorrido pelas 11 horas e 05 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 16 minutos; - o depoimento da testemunha DD, prestado no dia 25/10/2023, que foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo o seu início ocorrido pelas 11 horas e 16 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 28 minutos; - o depoimento da testemunha EE, prestado no dia 25/10/2023, que foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo o seu início ocorrido pelas 11 horas e 28 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 38 minutos; - o depoimento da testemunha FF, prestado no dia 25/10/2023, que foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo o seu início ocorrido pelas 11 horas e 38 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 47 minutos; - o depoimento da testemunha GG, prestado no dia 25/10/2023, que foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo o seu início ocorrido pelas 11 horas e 47 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 55 minutos; - Auto de Notícia, com data de 29/05/2019, 18:04h; - Auto de Denúncia, com data de 30/05/2019, 15:12h; - Auto de Denúncia, com data de 30/05/2019, 18:58h; - Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, relativo a CC, com data de 31/05/2019; - Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, relativo a CC, com data de 31/05/2019; - Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, relativo a AA, com data de 31/05/2019; - Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, relativo a AA, com data de 22/10/2019; - Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, relativo a AA com data de 07/07/2020, com base na avaliação realizada em 22/10/2019; - Relatório Médico do Centro Hospitalar .../..., junto em 22/01/2020; - Relatório do Centro de Saúde ..., junto em 13/03/2020; - Relatório do C. H. Universitário de S. João, E.P.E., junto em 16/03/2020; - Relatório Médico do Centro Hospitalar .../..., com data de 30/06/2019, relativo ao episódio de urgência n.º ...37 - ...8-...5-...9; - Relatório Médico do Centro Hospitalar .../..., com data de 23/06/2019, relativo ao episódio de urgência n.º ...31 - ...9-...5-...9; - Nota de alta do C. H. Universitário de S. João, E.P.E., com data de 10/01/2020; - Declaração do C. H. Universitário de S. João, E.P.E., com data de 10/01/2020, relativa ao internamento verificado entre os dias 08/01/2020 e 10/01/2020; - Lista de episódios de urgência do C. H. Universitário de S. João, E.P.E., com data de 18/08/2020, relativa aos episódios com datas de: 05/07/2019; 13/09/2019; 05/10/2019; 07/10/2019; 05/11/2019; 10/11/2019; 22/11/2019; 09/12/2019; 20/12/2019; - Declarações do C. H. Universitário do Porto, E.P.E., com data de 15/02/2021, relativa ao episódio de urgência de 31/10/2019; - Declaração do C. H. Universitário do Porto, E.P.E., com data de 15/02/2021, relativa ao episódio de urgência de 16/11/2019; - Declarações do C. H. Universitário do Porto, E.P.E., com data de 15/02/2021, relativa ao episódio de urgência de 19/11/2019; - Atestado Médico de Incapacidade Multiuso com data de 18/06/2018; - Fotografias juntas com a contestação de AA de 16/12/2022; - Vídeos juntos com a contestação de AA de 16/12/2022. V. Apesar de em sede de audiência de julgamento assumir importância fundamental a livre apreciação da prova, a verdade é que tal não pode significar arbítrio, devendo ser efectuada uma apreciação e ponderação das provas que seja perceptível e objectivável, de forma a que a convicção alcançada pelo Tribunal não seja puramente discricionária e o reflexo apenas de convicções pessoais do Tribunal. VI. De facto, no inicio da contenda que deu origem aos presentes autos apenas se encontravam presentes no local o Arguido/Assistente AA, a testemunha CC e a testemunha DD, sendo que nenhum destes referiu em sede de audiência de julgamento que ocorreu qualquer discussão prévia à(s) agressão(ões), nem no jardim, nem noutro local. VII. De acordo com o depoimento destas testemunhas as supostas agressões iniciaram-se mal o Arguido/Assistente saiu da sua residência e se abeirou das testemunhas CC e DD. VIII. Por outro lado, contrariamente aquilo que é a convicção do Tribunal, desprovida de sentido e realidade fáctica, a CC não habita no mesmo prédio onde reside o AA, nem sequer as entradas para os prédios onde cada um reside são comuns: a CC reside na Avenida ... e o AA reside na Avenida ..., sendo que, inclusive, os logradouros destes dois prédios são divididos por um muro alto, com 1,50/2,00 metros de altura em função da inclinação do terreno, conforme é documentado pelas imagens, fotografias e vídeos que se encontram juntos aos autos e que foram ignoradas pelo Tribunal A Quo. IX. Da mesma forma, o Tribunal não deu qualquer relevância ao depoimento prestado pelo Arguido/Assistente AA que procurou esclarecer inumeras vezes as caracterísitcas o local, no entanto, como tal não ia de encontro ao pretendido pelo Tribunal, foi simplesmente ignorado e desvalorizado. X. A este propósito o Tribunal procurou condicionar sempre os depoimentos prestados, de forma tão insistente, que levando inclusive a que o Arguido BB depois de explicar que se tratava de prédios distintos acabasse por referir que se tratava do mesmo prédio, nada mais errado. XI. Dúvidas não podem existir de que a(s) agressão(ões) ocorreu(eram) no logradouro do prédio onde reside o Arguido/Assistente AA, ou seja, no logradouro do prédio situado na Avenida ..., .../..., .... XII. O Tribunal A Quo sustentou a tese de que a CC foi agredida pelo AA essencialmente nas declarações da própria, o que é no mínimo estranho, pois a ser verdade como sustenta o Tribunal que ela é que sentiu o impacto, portanto só ela sabe onde o mesmo ocorreu, não é menos verdade que só se queixou de tal impacto quando era iminente a chegada das autoridades e da assistência médica ao local, o que é no mínimo de estranhar. XIII. Da mesma forma, o Tribunal entende que a existência de agressões é corroborada pelas demais testemunhas, as quais afirmam a existência de agressões do AA à CC, no entanto, são completamente contraditórias quanto à forma como as referidas agressões foram produzidas bem como aos locais atingidos. XIV. Ora, toda a prova que supostamente sustenta esta agressão é contraditória e inconsistente, sendo certo que são inúmeros os elementos de prova que contrariam cabalmente a ocorrência de qualquer agressão por parte de AA a CC. XV. Desde logo, a DD no dia 28/05/2019 relatou às autoridades policiais que o AA agarrou a CC “pelos braços com muita força” (cfr. auto de noticia) e em sede de audiência de julgamento foi peremptória em afirmar que o AA não deu qualquer murro à CC que apenas a empurrou. XVI. Aliás, apesar da insistência e condicionamento da Juiz para que afirmasse que além de empurrar o AA também tinha agarrado os braços da CC, a DD nunca conseguiu ir além de um “Exactamente”, deixando a Juiz a prestar declarações por si e a colocar na sua boa aquilo que ela nunca disse. XVII. A credibilidade desta testemunha é tanta que, apesar de se encontrar no local desde o inicio da contenda, não viu qualquer agressão do BB ao AA, nem viu qualquer lesão no AA, apesar de ter dado vários safanões/estalos ao AA com este a escorrer sangue, como é perceptível nos vídeos e fotografias que se encontram juntos aos autos. XVIII. Aliás, tal era o receio da DD face ao AA que não parou de o desafiar e de o agredir, conforme retracta os vídeos e fotografias que se encontram juntos aos autos. XIX. Por outro lado, esta testemunha viu marcas nos braços da CC que mais ninguém viu, que não são perceptíveis em nenhuma das fotografias que, por sorte, retractam os braços da CC e aliás a própria CC refere que não teve marcas. XX. Por sua vez a CC referiu no dia 28/05/2019 às autoridades policiais que o AA “agarrou-a pelos braços e torceu-lhe o pulso direito” (cfr. auto de noticia), no entanto, logo em 30/05/2019 já refere às autoridades policiais que “o suspeito dirigiu-se com o propósito de agredi-la, concretizando-o, desferindo-lhe vários murros no pulso do braço direito, agarrando-a pelo braços” e em 31/05/2019 refere no INML “ter sofrido agressão com murros” e “ter assumido posição de defesa, alegando que os murros seriam dirigidos”. XXI. E, em sede de audiência de julgamento, a CC referiu que o AA a “empurrava” e “ainda me deu assim aqui um murro no braço”, não tendo resultado dores nem pisaduras de tal situação. XXII. A existência de uma qualquer agressão é totalmente contrariada pelo comportamento da CC subsequente à suposta agressão e que se encontra por demais evidenciado nas fotografias e vídeos que se encontram juntos aos autos. XXIII. Aliás, tal era a falta de coerência quanto à existência desta agressão com murros e empurrões que não causou qualquer lesão que, em sede de audiência de julgamento, tanto a CC como o marido, o arguido BB, procuraram relatar tentativas de agressão a um ou a outro, e depois a ambos, com os cacos do vaso que o BB desferiu contra a cabeça do AA. XXIV. O patético do relato apresentado pelo arguido BB é tal que alega ter pedido calma e tranquilamente ao AA para parar com as agressões à sua esposa, ao longe, e sem nunca se aproximar do local onde se encontrava o AA e a sua esposa se encontravam, mas como este não parasse com as agressões, “com muitos murros nos braços”, desfere-lhe com um vaso grande com terra na direcção da cabeça. XXV. Sendo que depois desta agressão violentíssima, e apesar de referir que o AA continuou a tentar agredir a sua esposa, o BB recolhe-se no interior de sua casa. XXVI. Por sua vez, a testemunha EE, que supostamente também estava presente no local, preparada para assistir a tudo e ser testemunha dos seus sogros, garantiu com grande grau de certeza que o murro ou pancada desferido foi no ombro da CC, que teve dificuldades em movimentar durante vários dias. XXVII. Também esta testemunha quis fazer crer ao Tribunal, tal como os seus sogros, BB e CC, que o vaso arremessado pelo BB à cabeça do AA era pequenino e que quase não tinha terra, motivo pelo qual era praticamente inofensivo, o que é totalmente contrariado pelos vídeos e fotografias que se encontram juntos aos autos. XXIX. Esta testemunha relata ainda que os cacos que ficaram do vaso minúsculo se ter partido ao cair ao solo foram utilizados pelo AA para continuar a agredir a DD e a CC, as quais estavam cheias de medo e numa atitude absolutamente passiva, o que é absolutamente contrariado pelas imagens e vídeos que se encontram juntos aos autos. XXX. Por último, a testemunha GG refere, sem margem para dúvidas que o AA agrediu a DD e não a CC, bem como não visualiza qualquer vaso partido nem quaisquer ferimentos no AA, o que merece no mínimo o nosso espanto e estranheza, já que após a contenda esta testemunha surge nas escadas de acesso à residência da DD, conforme é possível ver no vídeo que se encontra junto aos autos. XXXI. Pela análise das fotografias que se encontram juntas com a contestação de AA é possível verificar que a CC depois de supostamente ser agredida pelo AA não tem qualquer dificuldade em movimentar o braço direito, não tem qualquer vislumbre de dor, não tem qualquer marca no braço direito, nem demonstra qualquer receio relativamente a AA, bem pelo contrário. XXXII. Depois de sofrer a agressão com um vaso, e só então, o Arguido/Assistente AA foi buscar o telemóvel para gravar todos os envolvidos nas agressões que sofreu bem como os respectivos vestígios, uma vez que, depois de o agredirem, os intervenientes rápida e prontamente se prepararam para seguir as suas vidas cada um para seu lado XXXIII. O 1º vídeo permite-nos verificar que o arguido BB, ao perceber que estava a ser filmado, depois de ter agredido AA e se ter escondido em sua casa, voltou a sair, calma e tranquilamente, procurando simular a sua inocência e desconhecimento sobre o que acabara de ocorrer perguntando em voz alta: - “O que é que ele fez ao vaso? O que é aquilo?” XXXIV. Da mesma forma, este vídeo permite verificar que o vaso com que o AA foi agredido continha terra molhada, acrescentando-lhe peso, sem que o mesmo vaso contivesse flores ou vestígios delas. XXXV. Neste vídeo é possível verificar que a CC agarra o portão com o braço direito sem qualquer dificuldade ou limitação e não exprime qualquer dor nem queixa, bem pelo contrário, apenas exprime alegria, gozo e regozijo enquanto segura na mão esquerda o bouquet de flores. XXXVI. A própria DD não tem qualquer pudor ou receio em se dirigir ao AA de dedo em riste e bater-lhe no telemóvel, ao ponto de o desligar, porque sabe que este não lhe vai fazer nada. XXXVII. O 2º vídeo atesta a postura física passiva e de não agressão do arguido que, com sangue a escorrer-lhe pela cabeça e pela cara (obviamente exaltado e alterado, a insultar todos à sua volta), se recusava a responder às provocações da Ofendida CC, que vai gozando com ele dizendo-lhe: - “Olha, estás giro... Estás giro” - “Tu vais pagar lá dentro” - “Vim apanhar flores para te oferecer” XXXVIII. Por sua vez, o arguido não agride ninguém fisicamente, apesar de ainda levar mais um safanão da DD e ainda diz: - “Então vocês queriam que eu vos batesse era? Não bato não. Eu não te bato, isso querias tu que eu te batesse”. XXXIX. No 3º vídeo, ante a iminência da chegada do socorro ao local o teatro adensa-se já com a Ofendida CC no passeio, a colocar o braço em posição horizontal como se não o conseguisse mexer e lhe doesse muito. XL. É, pois, de lamentar que o Tribunal tenha encontrado nestes vídeos unicamente e apenas matéria incriminatória contra AA, pelos modos brejeiros e linguagem imprópria com que o mesmo, com a cabeça a sangrar e em estado de choque, respondia ao ataque, à injúria e à afronta contra ele lançados. XLI. Contrariamente ao pretendido pelo Tribunal, que pretendeu condenar o arguido AA a qualquer custo, a verdade é que as agressões à Ofendida CC não são corroboradas nem pelas testemunhas nem pela prova documental, nomeadamente fotografias e vídeos. XLII. Não pode o Tribunal valer-se unicamente da avaliação hospitalar e da avaliação do INML para justificar a existência de lesões porquanto estas avaliações são efectuadas apenas com base nas queixas que a Ofendida apresentou uma vez que esta não tinha qualquer hematoma/vermelhidão, nem foi detectada nenhuma lesão nos exames a que a mesma foi submetida no Hospital. XLIII. Relativamente às áreas do corpo do AA atingidas pelo vaso que o BB lançou contra si, deverá ser tida em conta a informação que constam dos relatórios médicos elaborados pelas unidades de saúde que assistiram o AA, a saber: Centro Hospitalar .../..., Centro de Saúde ... e Centro Hospitalar Universitário de S. João, E.P.E.. e ser incluída a referência ao impacto do vaso na maçã do rosto e na órbita ocular do olho esquerdo. XLIV. Relativamente aos supostos danos sofridos pela Ofendida CC, ficou já por demais supra demonstrado que esta não sofreu quaisquer agressões perpetradas pelo Arguido/Assistente AA, motivo pelo qual não existindo agressões também não existe qualquer nexo causal entre eventuais dores alegadamente sofridas e supostas agressões inexistentes. XLV. No que respeita aos danos sofridos pelo Arguido/Assistente AA, a douta sentença dá por reproduzido o conteúdo da acusação pública e do constante no relatório médico legal elaborado em 07/10/2020, relatório esse que teve por base a observação feita ao AA em 22/10/2019, sendo que após essa observação foi solicitada pelo Ministério Público nova avaliação do AA atento o agravar do seu estado de saúde, no entanto, tal observação acabou por não acontecer, por motivos que se desconhecem, não se entendendo porque motivo o Ministério Público perdeu o interesse na realização dessa diligência, sem sequer notificar as partes dessa mesma decisão. XLVI. Assim, este relatório encontra-se necessariamente incompleto e não contempla a totalidade dos danos sofridos pelo AA, pelo que sempre terá que ser ressalvada essa situação. XLVII. Por outro lado, o Recorrente não pode aceitar que seja dado como não provado que “Na sequência dos factos, AA perdeu o olho esquerdo”, simplesmente porque este não foi apreciado em sede de audiência de julgamento dado que não foi admitida a produção nem de prova testemunhal, nem documental (atendendo a que o Tribunal não considerou nomeadamente os episódios de urgência oftalmológica posteriores e constantes na sequência da agressão do dia 28/05/2019), nem tão pouco de prova pericial relativamente a este facto. XLVIII. Diga-se ainda que não é verdade que o arguido/assistente AA tenha prestado declarações inflamadas e agressivas, contrapondo o Tribunal estas declarações com as dos demais intervenientes (arguido BB e testemunhas), que como já se deixou por demais evidente mentiram em praticamente tudo o que declararam em Tribunal. XLIX. O arguido/assistente AA procurou nas suas declarações contextualizar os factos ocorridos em 28/05/2019, os quais têm o seu cerne e explicação das circunstâncias ocorridas em momentos anteriores, no entanto, o Tribunal procurou tratar o sucedido no dia 28/05/2019 como um episódio isolado, no entanto, a verdade é que o AA já tinha sido objecto de ameaças e agressões anteriormente, as quais em muito explicam o sucedido no dia 28/05/2019. L. Face a todo o exposto, deverá ser alterada a matéria dada como provada e não provada nos termos supra expostos, devendo passar a constar da sentença: A. Factos provados Em sede de audiência de julgamento, provaram-se os seguintes factos: A) Da acusação: 1 – No dia 28 de maio de 2019, cerca das 08h30m, o arguido/assistente AA encontrava-se no logradouro do prédio onde habitava, situado na Avenida ..., .../..., ..., onde também se encontrava DD e CC; 2 – Entretanto, surge o arguido BB, marido da CC, o qual, depois de pegar num vaso existente no local, de dimensões e material não concretamente apurados, que se encontrava com terra, lançou o mesmo em direção ao arguido/assistente AA, atingindo-o no braço esquerdo - que este usou para proteger a cara - na cabeça (zona parietal, maçã do rosto e órbita ocular do olho esquerdo) e pé direito. 3 – Como consequência direta e necessária do descrito o arguido/assistente AA, além de fenómenos dolorosos, sofreu, pelo menos, na zona parietal esquerda cicatriz com dois centímetros de comprimento, no membro superior esquerdo rigidez a nível do punho, com carácter permanente (as quais não desfiguram nem afetam gravemente a capacidade de trabalho do examinado) e membro inferior direito, devidamente documentadas no relatório médico-legal de fls. 183 a 186 (cujo conteúdo para os devidos efeitos legais consideramos aqui integrado) que determinaram um período de quarenta e cinco dias para a cura, com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional. 4 – O arguido BB agiu no propósito, concretizado, de molestar o corpo do arguido AA. 5 – O arguido BB atuou sempre de forma livre e voluntária, absolutamente consciente da ilicitude penal das suas condutas. B) Mais se provou relativamente ao arguido AA 5 – O arguido reside com a companheira. 6 – O arguido beneficia de Prestação social para a inclusão no montante de 298.42 €. 7 – O arguido beneficia de Pensão de invalidez no valor de 477.58€. 8 – Do seu certificado de registo criminal nada consta. C) Mais se provou relativamente ao arguido BB 9 – O arguido reside com a esposa. 10 – O arguido trabalha em empresa de construção civil, auferindo remuneração no valor de 748.70 €. 11 – Do seu certificado de registo criminal nada consta.
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B. Factos não provados Com interesse à decisão da causa, nada mais resultou provado, designadamente: a) O referido em 2, provocou a perda momentânea dos sentidos e a queda no solo de AA. b) No dia dos factos, a ofendida CC apresentou-se sozinha em frente à janela de AA, dentro do pátio pertencente ao prédio de AA, de forma desafiadora e provocatória, segurando um ramo de flores e atiçando o cão de um outro vizinho, provocando um ladrar incessante. c) CC com ajuda da DD, empurrou o arguido contra o muro, por trás do qual BB se escondia. d) Nas circunstâncias referidas em 1, o arguido AA iniciou uma discussão com a ofendida CC quando ambos se encontram no jardim do prédio onde habitavam. e) A determinado momento, o arguido AA exaltou-se e, abeirando-se de CC, desferiu-lhe um murro no braço. f) Como consequência direta e necessária do descrito a ofendida CC sofreu, além de fenómenos dolorosos, lesões no membro superior direito, devidamente documentadas no relatório médico-legal de fls. 30 e 31 (cujo conteúdo para os devidos efeitos legais consideramos integrado) que determinaram um período de cinco dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional; g) O arguido AA agiu no propósito, concretizado, de molestar o corpo da arguida CC. h) O arguido AA atuou sempre de forma livre e voluntária, absolutamente consciente da ilicitude penal da sua conduta.
DA DECISÃO DE DIREITO LI. Sendo a matéria de facto alterada nos termos supra referidos, terá necessariamente que ser alterada a decisão proferida nestes autos, devendo o arguido AA ser absolvido da prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º n.º 1 do Código Penal. LII. Por sua vez, no que respeita ao arguido BB este encontrava-se acusado e foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º n.º 1 do Código Penal. LIII. No entanto, face às circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, face ao meio particularmente perigoso utilizado para agredir o AA, um vaso de grandes dimensões com terra no seu interior, bem como ao facto de o referido vaso ter sido dirigido à cabeça do AA, com vista a potenciar o sofrimento causado à vítima e ainda ao facto de o AA ser pessoa particularmente indefesa, em razão da sua incapacidade de 95%, entendemos que deverá ser alterada a qualificação jurídica, nos termos do disposto no art.º 358º do Código de Processo Penal, uma vez que os factos praticados são subsumíveis não no art.º 143º n.º 1 do Código Penal, mas sim no crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145º, nºs 1, al. a) e 2, com referência aos artigos 143º e 132º, nº 2, al.s c) e h), todos do Código Penal. LIV. Da matéria de facto dada como provada resulta que o arguido BB atingiu o AA, essencialmente na zona da cabeça e face causando-lhe traumatismos e feridas, bem sabendo da especial perigosidade e censurabilidade que revestiu a sua actuação tendo em atenção a surpresa da sua actuação e o facto de o AA ser pessoa particularmente indefesa em razão da sua deficiência, e ciente que aquele se encontrava especialmente vulnerável perante a agressão praticada e que, por isso, só com muita dificuldade o ofendido se poderia defender. LV. Face ao exposto, verificam-se, assim, as circunstâncias agravantes constantes das alíneas c) e h) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, incorrendo o arguido na prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145º, nºs 1, al. a) e 2, devendo o Tribunal determinar a concreta medida da pena adequada ao caso. LVI. A decisão recorrida violou, pelos motivos supra expostos, entre outros, o disposto nos art.ºs 132º, 143 e 145º do Código Penal e o art.º 127º do Código de Processo Penal.
DO RECURSO RETIDO LVI. O Recorrente declara que mantém interesse no recurso com data de 08/03/2023, já admitido por despacho de 14/03/2023, pelo que requer que o mesmo seja remetido ao Tribunal da Relação do Porto, juntamente com o presente recurso, nos termos do n.º 5 do art.º 412º e n.º 3 do art.º 407º do Código de Processo Penal. Termos em que deve conceder-se integral provimento ao presente recurso, modificando-se a sentença em conformidade.
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I.4.3
Admitidos ambos os recursos, por tempestivos e legais, BB apresentou articulado de resposta (Ref.ª 37760770), com 153 artigos, concluindo pela improcedência.
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1.4.4
Também o Ministério Público apresentou articulados de resposta aos recursos (Ref.ªs 37938301 e 37838874), pugnando pela improcedência de ambos e consequente preservação do decidido na sentença, referindo: 1.4.4.1
Resposta ao recurso interposto por BB I. Não foi valorada na sentença recorrida qualquer tipo de prova nula ou obtida de forma ilícita, porquanto as imagens não foram tidas em consideração para a formação da convicção do Tribunal a quo, ou para motivar ou fundamentar a decisão. II. Ademais, ainda que tivessem tais vídeos servido para motivar ou fundamentar a decisão em crise, sempre se dirá que a jurisprudência maioritária (quase unanimemente) refere que as imagens obtidas no contexto do vídeo dos autos são um meio de prova válido, uma vez que, as imagens em crise foram recolhidas por um dos arguidos, para retratar os presentes, os ferimentos que sofreu e eventuais agressões que pudesse vir a sofrer posteriormente e os visados encontravam-se em zona comum do prédio onde residem os arguidos e as demais testemunhas. III. Não se verifica nos autos qualquer causa de exclusão de ilicitude, nomeadamente a legítima defesa por parte do arguido BB, uma vez que, quando procedeu ao arremesso do vaso ao arguido/ofendido AA já este tinha cessado a agressão à esposa do arguido BB e bem assim, que a agrediu apenas com um murro – vide factos provados n.ºs 1, 2 e 3 da Sentença. IV. Não existindo actualidade na agressão do arguido recorrente BB no momento em que agrediu o arguido/ofendido AA, pois a mesma não foi para fazer cessar qualquer agressão ou para defesa da vítima e não sendo a conduta do agente actual ao momento da agressão que pretenderia fazer cessar, não pode julgar-se verificados os pressupostos desta causa de exclusão de ilicitude. V. A pena aplicada na sentença recorrida, obedeceu a rigorosos critérios de dosimetria penal, observando escrupulosamente a culpa e a reintegração do recorrente, bem como, ponderou as exigências decorrentes das necessidades de prevenção geral e especial, é equilibrada, adequada ao caso, obedece aos critérios legais na sua determinação, não ultrapassa a medida da culpa, razões pela qual deverá valer e permanecer. VI. A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não é possuidora de qualquer vicio que inquine a sua validade substancial ou formal, devendo ser mantida nos seus precisos termos, julgando-se assim o recurso improcedente. VII. Pelo exposto, não merece qualquer reparo a decisão recorrida. VIII. Não foi violada qualquer norma jurídica. Ao julgarem o recurso improcedente, mantendo a douta decisão recorrida, com a adequada tributação farão a habitual, costumada e sã, JUSTIÇA!
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1.4.4.2
Resposta ao recurso interposto por AA I. A prova produzida em audiência de discussão e julgamento é suficientemente elucidativa da prática dos factos pelos quais o arguido vinha acusado e evidenciou o seu cometimento. II. Com efeito, essa prova, produzida, apreciada, ponderada e valorada pelo tribunal segundo os cânones legais - Cfr. Art.º 127.º do Código de Processo Penal – suporta objectivamente os factos dados como assentes na sentença recorrida e empresta a todo o processo decisório de formação da convicção da M. Juiz a quo, foros de justeza, correcção e comportabilidade juridicamente atendíveis. III. Não existe na opinião do Ministério Público qualquer erro na apreciação da prova ou na valoração da mesma pelo Tribunal a quo. IV. A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não é possuidora de qualquer vicio que inquine a sua validade substancial ou formal, devendo ser mantida nos seus precisos termos, julgando-se assim o recurso improcedente. V. A qualificação jurídica dos factos julgados como provados na douta Sentença em crise é a correcta, nomeadamente a condenação do arguido/assistente BB pela prática de um crime de Ofensa à Integridade Física, previsto e punido pelo art.º 143.º n.º 1 do Código Penal. VI. Ao contrário do que alega, o assistente/arguido AA não é uma pessoa especialmente vulnerável, tal como resulta dos vídeos juntos aos autos bem como à postura e ao comportamento do mesmo em audiência de discussão e julgamento, pelo que não se mostra correcta a sua pretensão de que o arguido BB fosse condenado do crime de Ofensa à Integridade Física qualificada (art.º 145.º do Código Penal) VII. Por outro lado, alega o assistente/arguido AA que a pena aplicada na sentença recorrida ao arguido BB, não é suficiente, porém, no nosso entendimento a pena aplicada obedeceu a rigorosos critérios de dosimetria penal, observando escrupulosamente a culpa e a reintegração do agente, bem como, ponderou as exigências decorrentes das necessidades de prevenção geral e especial, é equilibrada, adequada ao caso, obedece aos critérios legais na sua determinação, não ultrapassa a medida da culpa, razões pela qual deverá valer e permanecer. VIII. A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não é possuidora de qualquer vicio que inquine a sua validade substancial ou formal, devendo ser mantida nos seus precisos termos, julgando-se assim o recurso improcedente. IX. Pelo exposto, não merece qualquer reparo a decisão recorrida. X. Não foi violada qualquer norma jurídica. Ao julgarem o recurso improcedente, mantendo a douta decisão recorrida, com a adequada tributação farão a habitual, costumada e sã, JUSTIÇA!
*
1.4.5
Finalmente, também o arguido AA apresentou articulado de resposta (Ref.ª 37982434), com alegações igualmente extensas e, a final, formulando as seguintes conclusões: I. A sentença não merece qualquer reparo no sentido pretendido pelo Recorrente. II. Entende o Recorrente que a sentença proferida pelo Tribunal A Quo valorou provas proibidas, nomeadamente, os vídeos gravados e fotos tiradas pelo Recorrido. III. Ora, não existiu qualquer intromissão na vida privada de qualquer dos visados nas fotografias e nas filmagens, uma vez que todos se encontravam no exterior das suas residências, em espaço aberto ainda que privado (logradouros dos edificios). IV. Era do conhecimento geral que o Recorrido estava a gravar e a tirar fotografias, porquanto o anunciou, era visível e mereceu inclusive o escárnio dos visados perante tais filmagens/fotografias, pelo que sempre existiu o consentimento tácito de todos os visados (e até expresso de alguns) quanto à realização das filmagens/fotografias. V. Não se trata aqui sequer de filmagens/fotografias realizadas por um qualquer sistema de vigilância dissimulado, trata-se sim do recurso a filmagens/fotografias colhidas a partir de um telemóvel que o Recorrido vai buscar na sequência de agressão física grave sofrida, com vista à defesa da sua integridade física e à gravação do espaço onde ocorreu a agressão, das pessoas presentes e do objecto utilizado para o agredir VI. Mesmo no que respeita às gravações realizadas por sistemas de vigilância instalados por particulares de forma dissimulada, com vista à protecção de pessoas e bens, em que o particular grava ou filma imagens ou conversas, a jurisprudência e a doutrina têm vindo a aceitar tais elementos probatórios como prova válida e admissível no âmbito do processo penal – cfr., nomeadamente, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/02/2016, proferido no processo n.º 2638/12.4TALRA.C1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/02/2015, proferido no processo n.º 349/13.2PEGDM.P1, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29/04/2014, proferido no processo n.º 102/09.8GEBRG.G2 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/10/2017, proferido no processo n.º 636/15.5T9STS.P1, todos in www.dgsi.pt O Recorrente considera incorrectamente julgados os factos considerados provados nos pontos 1, 2, 3, 4, 5 e 7 da sentença recorrida e, bem assim, os factos dados como não provados na alínea d). VII. Apenas constituem prova proibida as filmagens/fotografias que atinjam o núcleo essencial da intimidade da vida privada, o que não é o caso. VIII. O Recorrido foi agredido no logradouro do prédio onde reside, ante uma enorme plateia de pessoas, que nem sequer o socorreu e ainda gozou com os ferimentos que o mesmo apresentava (a escorrer sangue da cabeça). IX. Em sede de audiência de julgamento os intervenientes tentaram convencer o Tribunal que o vaso arremessado à cabeça do Recorrido era minúsculo e que fora este que agredira fisicamente os presentes, os quais estavam todos amedrontados pelo Recorrido, sendo que, se não fossem as imagens captadas, quer em fotografias, quer em imagens, quiçá o Tribunal A Quo se tivesse acreditado nessas teorias, porquanto as testemunhas do Recorrente em maior número e com alto grau discursivo foram bem aceites pelo Tribunal, daí a contínua e frenética necessidade de que estes meios de prova sejam rejeitados. X. As gravações e fotografias visaram salvaguardar o direito à vida do Recorrido que sempre será um bem superior face ao direito à imagem ou à reserva da vida privada dos visados nos vídeos e fotografias, pelo que sempre teriam que ser aceites e valoradas pelo Tribunal. XI. As gravações e fotografias juntas aos autos não são, pois, provas proibidas e, como tal, devem ser valoradas pelo Tribunal Ad Quem de forma bem mais gravosa para o Recorrente do que aquela que foi a ponderação do Tribunal A Quo, conforme já requerido no recurso apresentado pelo Recorrido., não existindo qualquer nulidade. XII. É totalmente falso e até caricato que se alegue que o Recorrido “deambulava com o telemóvel e camara ligada, de um lado para o outro, a tentar “atiçar” as pessoas à sua volta para ter registos”. XIII. Os vídeos juntos com a contestação do Recorrido não demonstram apenas os palavrões e as injúrias do Recorrido para com os seus agressores, mas permitem-nos também aferir do estado de espirito de cada um dos intervenientes e das mentiras contadas por cada um, ainda que, como se diga na sentença ora em crise, sejam todos vídeos posteriores ao sucedido XIV. Para o que se discute nos presentes autos são mais importantes as imagens presentes nas fotografias e nos vídeos do que as falas presentes nestes últimos, sendo certo que mesmo no que respeita às falas o Recorrente apenas procedeu à transcrição de parte das mesmas, pelo que se torna essencial visualizar os vídeos e analisá-los. XV. Relativamente ao 1º vídeo este começa com uma cena digna de filme por parte do Recorrente, o qual, depois de ter agredido o Recorrido e se ter escondido em sua casa, voltou a sair, calma e tranquilamente, sendo que ao verificar que estava a ser filmado, procurando simular a sua inocência e desconhecimento sobre o que acabara de ocorrer, pergunta em voz alta: - “O que é que ele fez ao vaso? O que é aquilo?” XVI. Neste mesmo vídeo, a testemunha DD dirige-se ao Recorrido de dedo em riste e, ao mesmo tempo que em tom ameaçador lhe diz “Olha....”, dá-lhe um safanão na mão e telemóvel, ao ponto de desligar este último. XVII. O 2º vídeo atesta a postura física passiva e de não agressão do arguido que, com sangue a escorrer-lhe pela cabeça e pela cara (obviamente exaltado e alterado, a insultar todos à sua volta), se recusava a responder às provocações da testemunha CC, que vai gozando com ele dizendo-lhe: - “Olha, estás giro... Estás giro” - “Tu vais pagar lá dentro” - “Vim apanhar flores para te oferecer” - “Ui, chamem o INEM!!!” XVIII. Neste vídeo é visível que a testemunha CC, depois de atirar o bouquet de flores ao chão, que tinha sido apanhado logo pela manhã, com tanto cuidado, para o pai da testemunha DD, apesar de continuar a agarrar o corrimão sem qualquer dificuldade e sem o braço apresentar qualquer hematoma, ante a constatação de que o AA chamou as autoridades, começa a dizer: - “Olha o que me fizeste ao braço. Está aqui para a polícia ver.” IX. Por sua vez a testemunha DD depois de dizer “Eu não bato no meu cão quanto mais numa coisa destas” dirigindo-se ao Recorrido, lá aproveita para dar mais um safanão ao Recorrido. X. No 3º vídeo, ante a iminência da chegada do socorro ao local o teatro adensa-se, e a testemunha CC já não segue com a sua vidinha em direcção ao interior da residência da testemunha DD e vai para o passeio, colocando o braço em posição horizontal como se não o conseguisse mexer e lhe doesse muito, e simultaneamente, o filho e a nora da CC e do Recorrente esforçam-se por convencer todos, com proclamações alto e bom tom de que a CC foi vítima de violentíssimas agressões por parte do Recorrido. XI. A reacção do Recorrido após a violenta agressão sofrida, com um vaso de grandes dimensões, cheio de terra molhada, é preservar a sua integridade física e as provas desta mesma agressão, sendo que mesmo quando leva dois safanões da testemunha DD o Recorrido nunca reage com violência física, apenas se desviando daquela. XII. Refere o Recorrente que o Recorrido apenas teve “uma ligeira fissura” mostrando total e manifesto desprezo quer pela vida do Recorrido quer pelos danos físicos que lhe causou, o que deverá ser devidamente valorado contra o Recorrente. XIII. O Recorrente à semelhança do Tribunal A Quo apenas pretende realçar nos vídeos os modos brejeiros e linguagem imprópria com que o Recorrido, com a cabeça a sangrar e em estado de choque, respondia ao ataque, à injúria e à afronta contra ele lançados, no entanto, a valoração da prova deve ser feita em função daquilo que é visível e indiscutível e não em função de meros juízos de valor e considerações sobre a linguagem de determinado indivíduo, até porque no presente processo não se discutem quaisquer injúrias. XIV. Desta forma, conforme alegado no recurso apresentado pelo ora Recorrido, dúvidas não restam de que, face às fotografias e aos vídeos juntos aos autos, é manifesto que não houve qualquer agressão do Recorrido à testemunha CC e que a agressão perpetrada pelo Recorrente ao Recorrido foi levada a cabo com um vaso de grandes dimensões, cheio de terra molhada, com vista a pôr em causa a vida do Recorrido. XV. Por outro lado, o Recorrente procura convencer o Tribunal Ad Quem, tal como tentou convencer o Tribunal A Quo, que a sua esposa CC e a testemunha DD estavam a ser alvo de violentas agressões, nomeadamente com murros nos braços e que o Recorrente do seu alpendre ter dito calma e tranquilamente ao Recorrido para este parar e que, apenas porque o Recorrido não parou, o Recorrente lançou-lhe à cabeça um pequeno vaso quase sem terra que tinha na mão, sem nunca se aproximar do Recorrido e da sua esposa, apesar de supostamente temer pela vida da sua esposa. XVI. O Tribunal A Quo sustentou a tese de que a CC foi agredida pelo AA essencialmente nas declarações da própria, o que é no mínimo estranho, pois a ser verdade como sustenta o Tribunal que ela é que sentiu o impacto, portanto só ela sabe onde o mesmo ocorreu, não é menos verdade que só se queixou de tal impacto quando era iminente a chegada das autoridades e da assistência médica ao local, o que é no mínimo de estranhar. XVII. Da mesma forma, o Tribunal entende que a existência de agressões é corroborada pelas demais testemunhas, as quais afirmam a existência de agressões do AA à CC, no entanto, são completamente contraditórias quanto à forma como as referidas agressões foram produzidas bem como aos locais atingidos. XVIII. Ora, toda a prova que supostamente sustenta esta agressão é contraditória e inconsistente, sendo certo que são inúmeros os elementos de prova que contrariam cabalmente a ocorrência de qualquer agressão por parte de AA a CC. XIX. Desde logo, a DD no dia 28/05/2019 relatou às autoridades policiais que o AA agarrou a CC “pelos braços com muita força” (cfr. auto de noticia) e em sede de audiência de julgamento foi peremptória em afirmar que o AA não deu qualquer murro à CC que apenas a empurrou. XX. Aliás, apesar da insistência e condicionamento da Juiz para que afirmasse que além de empurrar o AA também tinha agarrado os braços da CC, a DD nunca conseguiu ir além de um “Exactamente”, deixando a Juiz a prestar declarações por si e a colocar na sua boa aquilo que ela nunca disse. XXI. A credibilidade desta testemunha é tanta que, apesar de se encontrar no local desde o inicio da contenda, não viu qualquer agressão do BB ao AA, nem viu qualquer lesão no AA, apesar de ter dado vários safanões/estalos ao AA com este a escorrer sangue, como é perceptível nos vídeos e fotografias que se encontram juntos aos autos. XXII. Aliás, tal era o receio da DD face ao AA que não parou de o desafiar e de o agredir, conforme retracta os vídeos e fotografias que se encontram juntos aos autos. XXIII. Por outro lado, esta testemunha viu marcas nos braços da CC que mais ninguém viu, que não são perceptíveis em nenhuma das fotografias que, por sorte, retractam os braços da CC e aliás a própria CC refere que não teve marcas. XXIV. Por sua vez a CC referiu no dia 28/05/2019 às autoridades policiais que o AA “agarrou-a pelos braços e torceu-lhe o pulso direito” (cfr. auto de noticia), no entanto, logo em 30/05/2019 já refere às autoridades policiais que “o suspeito dirigiu-se com o propósito de agredi-la, concretizando-o, desferindo-lhe vários murros no pulso do braço direito, agarrando-a pelo braços” e em 31/05/2019 refere no INML “ter sofrido agressão com murros” e “ter assumido posição de defesa, alegando que os murros seriam dirigidos”. XXV. E, em sede de audiência de julgamento, a CC referiu que o AA a “empurrava” e “ainda me deu assim aqui um murro no braço”, não tendo resultado dores nem pisaduras de tal situação. XXVI. A existência de uma qualquer agressão é totalmente contrariada pelo comportamento da CC subsequente à suposta agressão e que se encontra por demais evidenciado nas fotografias e vídeos que se encontram juntos aos autos. XXVII. Aliás, tal era a falta de coerência quanto à existência desta agressão com murros e empurrões que não causou qualquer lesão que, em sede de audiência de julgamento, tanto a CC como o marido, o arguido BB, procuraram relatar tentativas de agressão a um ou a outro, e depois a ambos, com os cacos do vaso que o BB desferiu contra a cabeça do AA. XXVIII. O patético do relato apresentado pelo arguido BB é tal que alega ter pedido calma e tranquilamente ao AA para parar com as agressões à sua esposa, ao longe, e sem nunca se aproximar do local onde se encontrava o AA e a sua esposa se encontravam, mas como este não parasse com as agressões, “com muitos murros nos braços”, desfere-lhe com um vaso grande com terra na direcção da cabeça. XXIX. Sendo que depois desta agressão violentíssima, e apesar de referir que o AA continuou a tentar agredir a sua esposa, o BB recolhe-se no interior de sua casa. XXX. Por sua vez, a testemunha EE, que supostamente também estava presente no local, preparada para assistir a tudo e ser testemunha dos seus sogros, garantiu com grande grau de certeza que o murro ou pancada desferido foi no ombro da CC, que teve dificuldades em movimentar durante vários dias. XXXI. Também esta testemunha quis fazer crer ao Tribunal, tal como os seus sogros, BB e CC, que o vaso arremessado pelo BB à cabeça do AA era pequenino e que quase não tinha terra, motivo pelo qual era praticamente inofensivo, o que é totalmente contrariado pelos vídeos e fotografias que se encontram juntos aos autos. XXXII. Esta testemunha relata ainda que os cacos que ficaram do vaso minúsculo se ter partido ao cair ao solo foram utilizados pelo AA para continuar a agredir a DD e a CC, as quais estavam cheias de medo e numa atitude absolutamente passiva, o que é absolutamente contrariado pelas imagens e vídeos que se encontram juntos aos autos. XXXIII. Por último, a testemunha GG refere, sem margem para dúvidas que o AA agrediu a DD e não a CC, bem como não visualiza qualquer vaso partido nem quaisquer ferimentos no AA, o que merece no mínimo o nosso espanto e estranheza, já que após a contenda esta testemunha surge nas escadas de acesso à residência da DD, conforme é possível ver no vídeo que se encontra junto aos autos. XXXIV. Pela análise das fotografias que se encontram juntas com a contestação de AA é possível verificar que a CC depois de supostamente ser agredida pelo AA não tem qualquer dificuldade em movimentar o braço direito, não tem qualquer vislumbre de dor, não tem qualquer marca no braço direito, nem demonstra qualquer receio relativamente a AA, bem pelo contrário. XXXV. Depois de sofrer a agressão com um vaso, e só então, o Arguido/Assistente AA foi buscar o telemóvel para gravar todos os envolvidos nas agressões que sofreu bem como os respectivos vestígios, uma vez que, depois de o agredirem, os intervenientes rápida e prontamente se prepararam para seguir as suas vidas cada um para seu lado XXXVI. Não pode o Tribunal valer-se unicamente da avaliação hospitalar e da avaliação do INML para justificar a existência de lesões porquanto estas avaliações são efectuadas apenas com base nas queixas que a Ofendida apresentou uma vez que esta não tinha qualquer hematoma/vermelhidão, nem foi detectada nenhuma lesão nos exames a que a mesma foi submetida no Hospital. XXXVII. As agressões à Ofendida CC não são corroboradas nem pelas testemunhas nem pela prova documental, nomeadamente fotografias e vídeos, pelo que desde logo deveria o Tribunal A Quo ter dado como não provada a suposta agressão do Recorrido à testemunha CC, uma vez que esta manifestamente nunca aconteceu. XXXVIII. Sem prescindir, e ainda que se admitisse que existiu algum toque por parte do Recorrido no braço da testemunha CC, que nem uma nódoa negra provocou, o que só por mera hipótese académica se admite, a verdade é que sempre será analisar se se verificam os requisitos da exclusão da ilicitude com base em legitima defesa. XXXIX. No que a esta apreciação diz respeito manifesta-se concordância com o decidido pelo Tribunal A Quo, uma vez que, para que se exclua a ilicitude do comportamento, é necessário o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: a) a existência de uma agressão actual e ilícita; b) o “animus deffendendi”, ou seja, o intuito de defender quem é agredido; c) a necessidade do meio empregue para fazer cessar a agressão; e, d) a impossibilidade de recorrer em tempo útil à força pública. XL. Ora, ainda que se admitisse o suposto soco no braço da testemunha CC, que nem uma nódoa negra provocou, a verdade é que desde logo não existira qualquer intuito de defender a CC, uma vez que o Recorrente, depois de agredir o Recorrido, de imediato se refugiou no interior da sua residência, apesar de referir que a sua esposa, a testemunha CC, continuava em perigo, pelo que é manifesto que a intenção do Recorrente não era nem nunca foi defender a sua esposa, mas tão só atentar contra a integridade física e a própria vida do Recorrido. XLI. Por outro lado, é evidente pelas fotografias e vídeos que o vaso não era pequeno e estava cheio de terra molhada, a que acresce o facto de o Recorrente, para atingir milimetricamente o Recorrido na cabeça, teve que se posicionar estrategicamente atrás do muro divisório dos logradouros e fazer pontaria à cabeça do Recorrido, sendo que se existisse uma intenção dissuasora nunca a pontaria seria feita à cabeça. XLII. Temos ainda que, se fosse verdade que o Recorrente antes de lançar o vaso tinha tentado dissuadir o Recorrido, este ter-se-ia apercebido da presença daquele e tinha-se tentado esquivar da agressão, o que não aconteceu. XLIII. Da mesma forma, é perfeitamente ridículo alegar que o “Recorrente atuou, após as agressões se terem iniciado à sua esposa” pois a agressão supostamente ocorrida foi apenas uma, esta esgotou-se no suposto murro no braço, que se repete nem uma nódoa negra teria causado, pelo que o suposto acto de legítima defesa foi posterior à suposta agressão e quando esta já tinha terminado. XLIV. Também não merece qualquer credibilidade a alegação de que foi no “desespero do momento” que o Recorrente arremessou o vaso à cabeça do Recorrido, pois que no vídeo junto aos autos pelo Recorrido se vê não só a calma da testemunha CC, mas também a calma do Recorrido, que nunca fez qualquer menção de abandonar o recato da sua residência, apesar de a sua esposa se encontrar nas escadas de acesso à residência da testemunha DD, bem próximo e à mercê do Recorrido. XLV. Acrescente-se ainda que, se o Recorrido estivesse a agredir a testemunha CC quando o Recorrente lhe arremessou o vaso à cabeça, ou ainda se a suposta agressão tivesse acabado de ocorrer, como se explica que a CC não tenha sido sequer salpicada por terra e pelos cacos do vaso? A única explicação é que a CC não estava próximo do Recorrido. XLVI. Por outro lado, não faz qualquer sentido dizer que o Recorrente utilizou o vaso como instrumento para a agressão porque já o tinha na mão, pois se o Recorrente estivesse dentro de casa, calmamente a fazer a muda de um vaso, como alega, o mais natural seria que, para mais rápida e facilmente acorrer à sua esposa, largasse o que tinha na mão e saísse em seu socorro, o que não aconteceu, o Recorrente saiu calma e furtivamente, de forma a escolher o sítio onde se posicionar, sem se fazer anunciar, para dessa forma agredir violentamente o Recorrido. XLVII. Face ao exposto, dúvidas não subsistem de que não estão preenchidos os requisitos da exclusão da ilicitude, pelo que nunca poderia o arguido ser absolvido da prática do crime de ofensas à integridade física. XLVIII. Alega ainda o Recorrente que a sua confissão não foi devidamente valorada. XLIX. A verdade é que o Recorrente confessou que agrediu o Recorrido, no entanto, quanto ao mais tentou contar ao Tribunal uma verdadeira fábula com vista à sua desculpabilização e à justificação dos seus actos, apesar de as provas, as evidências, as regras da experiência e da lógica, contrariam toda a narrativa do Recorrente. L. Contrariamente ao referido pelo Recorrente, a sua confissão foi demasiado considerada pelo Tribunal A Quo, beneficiando-o em demasia, uma vez que as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente a gravidade das lesões causadas, o modus operandi e a frieza de ânimo do Recorrente, deveriam ter levado à condenação do Recorrente pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, o que não veio a acontecer, sendo o Recorrente condenado apenas pelo crime de ofensa à integridade física simples, o que não se compreende nem se aceita. LI. Por último, e no que respeita à medida da pena, que se concorda que esta é desajustada face ao caso concreto porquanto a mesma deve ser agravada, conforme já requerido. Termos em que deve o presente recurso improceder.
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I.5
Neste Tribunal a Digna Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, tendo emitido parecer (Ref.ª 17776118), pugnando pela improcedência dos recursos, interlocutório e da decisão final.
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Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo os recorrentes exercido o contraditório.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
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II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto dos recursos, apreciar:
(i) Recursos interpostos pelo arguido/assistente AA
a) Do indeferimento do requerimento de prova (recurso interlocutório);
b) Do erro de julgamento;
d)Da qualificação jurídica dos factos e pena a aplicar ao arguido BB.
(ii) Recurso interposto pelo arguido BB
a) Da valoração de prova proibida;
b) Da legítima defesa;
c) Da inadequação da pena aplicada.
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II.1
Da sentença proferida
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor da sentença, na parte atinente à respetiva fundamentação, nas partes relevantes para a decisão: (…)
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II. Fundamentação de Facto A. Factos provados Em sede de audiência de julgamento, provaram-se os seguintes factos: A) Da acusação: 1 – No dia 28 de maio de 2019, cerca das 08h30m, o arguido AA iniciou uma discussão com a ofendida CC quanto ambos se encontram no jardim do prédio onde habitavam, situado na Avenida ..., .../..., .... 2 - A determinado momento, o arguido AA exaltou-se e, abeirando-se de CC, desferiu-lhe um murro no braço. 3 – Entretanto, surge o arguido BB, marido da ofendida, o qual, depois de pegar num vaso existente no local, de dimensões e material não concretamente apurados, que se encontrava com terra, lançou o mesmo em direção ao arguido AA, atingindo-o no braço esquerdo - que este usou para proteger a cara - na cabeça e pé direito. 4 – Como consequência direta e necessária do descrito: - A ofendida CC sofreu, além de fenómenos dolorosos, lesões no membro superior direito, devidamente documentadas no relatório médico-legal de fls. 30 e 31 (cujo conteúdo para os devidos efeitos legais consideramos integrado) que determinaram um período de cinco dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional; - o arguido AA, além de fenómenos dolorosos, sofreu na zona parietal esquerda cicatriz com dois centímetros de comprimento, no membro superior esquerdo rigidez a nível do punho, com carácter permanente (as quais não desfiguram nem afetam gravemente a capacidade de trabalho do examinado) e membro inferior direito, devidamente documentadas no relatório médico-legal de fls. 183 a 186 (cujo conteúdo para os devidos efeitos legais consideramos aqui integrado) que determinaram um período de quarenta e cinco dias para a cura, com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional. 5 – O arguido AA agiu no propósito, concretizado, de molestar o corpo da arguida CC. 6 – O arguido BB agiu no propósito, concretizado, de molestar o corpo do arguido AA. 7– Os arguidos atuaram sempre de forma livre e voluntária, absolutamente conscientes da ilicitude penal das suas condutas. B) Mais se provou relativamente ao arguido AA 8 - O arguido reside com a companheira. O arguido beneficia de Prestação social para a inclusão no montante de 298.42 €. O arguido beneficia de Pensão de invalidez no valor de 477.58€. 9 - Do seu certificado de registo criminal nada consta. C) Mais se provou relativamente ao arguido BB 10 - O arguido reside com a esposa. O arguido trabalha em empresa de construção civil, auferindo remuneração no valor de 748.70 €. 11 - Do seu certificado de registo criminal nada consta.
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B. Factos não provados Com interesse à decisão da causa, nada mais resultou provado, designadamente: a) O referido em 3, provocou a perda momentânea dos sentidos e a queda no solo de AA. b) No dia dos factos, a ofendida CC apresentou-se sozinha em frente à janela de AA, dentro do pátio pertencente ao prédio de AA, de forma desafiadora e provocatória, segurando um ramo de flores e atiçando o cão de um outro vizinho, provocando um ladrar incessante. c) CC com ajuda da DD, empurrou o arguido contra o muro, por trás do qual BB se escondia. d) Na sequência dos factos, AA perdeu o olho esquerdo.
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C. Motivação De acordo com o disposto no artigo 374.º, nº 2, do Código de Processo Penal, o Tribunal deve indicar as provas que serviram para fundamentar a sua convicção. A prova produzida foi apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, de acordo com o princípio ínsito no artigo 127.º, do Código de Processo Penal. Significa este princípio que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que se fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo. O Tribunal alicerçou a convicção probatória referente à factualidade provada na apreciação crítica e articulada de toda a prova produzida em julgamento, à luz das elementares regras da experiência, do senso comum e da normalidade. O arguido AA prestou declarações dizendo que é vizinho do coarguido e que foi vítima de agressão que se iniciou em 16 de janeiro de 2019. Chamado à atenção de que o objeto da acusação se reposta a uma concreta agressão, afirmou que existiram duas agressões, mas não as consegue distinguir. Afirmou que não agrediu CC. Estava a dormir e acordou com o cão do vizinho. Viu CC a atiçar o cão. Saiu descalço e em tronco nu para expulsá-la. Desceu as escadas e já não a viu. Dirigiu-se à rampa e DD e CC empurraram-no contra o muro. Tentou “detetar a presença de BB”. Virou-se para trás. As mulheres fogem. BB atirou-lhe um vaso com terra, levantou o braço e apanhou com o vaso. Desmaiou. Levantou-se e levou um murro de BB. Foi buscar o telemóvel e gravou. O Tribunal não acreditou nas declarações inflamadas e agressivas do arguido, não só pela forma como foram prestadas, mas também por se mostrarem contrariadas pela prova produzida com assertividade (cfr. declarações de CC e relatório de avaliação do dano corporal junto aos autos a fls. 29/31, decorrendo ainda das declarações de DD e de EE que o arguido agrediu CC no braço). O arguido BB prestou declarações dizendo que, no dia dos factos, AA iniciou uma discussão com a CC (esposa de BB), este exaltou-se e, abeirando-se da esposa do declarante, desferiu-lhe murros nos braços. Tentou demovê-lo com palavras, mas não conseguiu. Estava a mudar um vaso e lançou-o na direção do arguido AA. Este levantou o braço esquerdo e acertou-lhe no braço e na cabeça. O vaso caiu e não viu onde caiu – admitindo que tenha caído no pé de AA. AA não caiu ao chão nem perdeu os sentidos. De imediato tentou trepar até onde BB estava. Mais afirmou que que residiu 13 anos no prédio em apreço, sempre se deu bem com os vizinhos. Quando chegou o arguido “revolucionou todo”. Estava sempre a intimidar e a desafiar, chegando a desafiar o declarante quando este estava com o neto. Não queria problemas: não apresentou queixa, mas mudou de casa. Foram visualizados os vídeos juntos com a contestação de AA. Os vídeos não retratam os factos: são posteriores aos factos. Não obstante, dos mesmos ressalta a linguagem agressiva e brejeira (designadamente, do arguido AA) que dizendo para o vídeo que não agrediu, foi confrontado de imediato pelos presentes que lhe afirmaram de forma espontânea e indignada “Tu deste-lhe que eu vi”. A testemunha CC é esposa de BB e era (à data dos factos) vizinha do arguido AA. Afirmou que estava em casa de DD e esta pediu-lhe para ir com ela buscar flores ao seu jardim. E foram. Estavam na rampa, quando aparece AA de tronco nu a empurrar e a agredir, dando à depoente um murro no braço. O marido (BB) viu AA a agredir a depoente e atirou-lhe um vaso, tendo ficado AA com sangue a escorrer na cabeça. O vaso partiu e AA queria cortar a depoente com o caco do vaso. De forma serena e isenta (não pretendendo empolar o sucedido) disse que do por causa do murro no braço sentiu dores, mas nada de especial. Antes já tinham ocorrido insultos. Mudou de casa por causa do arguido AA. O Tribunal acreditou nas declarações sérias, serenas e assertivas da testemunha, as quais são corroboradas pelo relatório pericial de avaliação do dano corporal junto aos autos a fls. 29/31 (do qual resulta que CC ficou com edema no antebraço, com coloração e com dor). As demais testemunhas que presenciaram os factos referiram também agressão nos braços, de forma não totalmente coincidente com as declarações da ofendida (cfr. designadamente, declarações de DD). Todavia, ficou o Tribunal convencido que a agressão se deu como CC descreveu, porquanto foi quem as presenciou mais de perto e foi quem efetivamente as sentiu (as demais testemunhas, não obstante terem visto que ocorreu uma agressão e que a mesma se dirigiu aos braços, não viram tão de perto nem sentiram o resultado dessa mesma agressão). As suas declarações foram valoradas na decisão da matéria de facto vertida supra. Resultou assim provado o facto nº 2. A testemunha DD conhece os arguidos por serem vizinhos acrescentando que, entretanto, BB deixou de ser vizinho porque mudou de casa). Não viu os confrontos anteriores. No dia dos factos, estava com CC apanhar flores ao seu jardim. Apareceu o arguido AA a correr a dizer: “tu não passas aqui, tu não passas aqui”, sempre a tentar agredir CC, dando-lhe empurrões, dos quais resultaram marcas nos braços e nos pulsos, concretizando depois, que o arguido agarrou CC pelos braços e pulsos e a empurrou. Não viu BB agredir AA, mas viu o vaso no chão e um “cortezito na testa” de AA. CC não atiçou cão algum e não se recorda sequer de algum cão estar a ladrar. Mais explicou que a relação entre vizinhos era ótima. Todavia, desde que o arguido chegou ao prédio é péssima por causa do arguido e do seu feitio (acrescentando que, depois do sucedido, o arguido cortou-lhe as flores todas). Descreveu BB como um excelente vizinho, muito afável, cordial e sempre pronto a ajudar. O Tribunal valorou as declarações desta testemunha (que depôs de forma serena e sem qualquer interesse na causa), mas no que concerne à concreta agressão a CC, foram valoradas as declarações desta que foi quem mais de perto viu a agressão e a sentiu. A testemunha EE foi vizinha de AA e é nora de BB. Explicou que no dia 28 de maio de 2019 assistiu a “uma cena de pancadaria” em que AA estava a fazer investidas (concretizando depois que viu uma pancada no ombro, durante algum tempo CC não movia bem o ombro) na sogra CC e em DD. O sogro (que estava num patamar acima) apercebeu-se e foi defender a sogra da depoente (CC) e para demover as investidas de AA deu com um vaso em AA. AA ficou com uma ferida na cabeça e a depoente ligou para o 112 e para a polícia. Após levou BB para dentro de casa e deu-lhe um comprimido. Ainda disse “BB não faças, mas o vaso levou a melhor”. Depois, AA com um caco do vaso tentou desferir golpes em CC. Descreveu AA como provocatório. Mudou de casa por causa deste arguido: a depoente tem dois filhos menores (à data com um ano e outro com meses) e arguido ficava na soleira da porta a olhar com ar intimidatório. A testemunha FF, companheira do arguido, não assistiu aos factos. Chegou depois e viu AA com um corte na cabeça, nódoas negras e perturbado. Antes dos factos, AA já tinha problemas com o olho, antes dos factos fez um transplante. Depois o olho acabou por ser removido. A testemunha GG não assistiu aos factos. Quando chegou viu AA a insultar CC e DD. Viu AA a destruir o jardim de DD. Assim, o facto nº 1 resulta das declarações de CC, de DD e de EE. O facto nº 3 resulta das declarações do arguido BB (cotejadas com o relatório médico-legal de fls. 183 a 186). O facto nº 4 resulta do relatório médico-legal de fls. 30 e 31 e do relatório médico-legal de fls. 183 a 186. No que concerne ao elemento subjetivo (factos nº 5, 6 e 7), sempre se diga que estando demonstrada a factualidade de 2 e 3, valorou igualmente o Tribunal as regras da normalidade e da experiência comum, conjugadamente com todos os meios de prova produzidos, ficando assim convencido que os arguidos, enquanto “Homens médios” (nenhuma prova foi feita no sentido de que os mesmos não se inserem nesta categoria de homens), sabiam perfeitamente que não pode agredir outrem, sendo que fazendo-o estão a praticar um crime. E sabendo Homem médio que com tal conduta pratica um crime, disso sabem os arguidos. Por conseguinte, se o Homem médio decide, sabendo do exposto, atuar do modo descrito, fá-lo porque quer, o que ocorreu também com os arguidos, que não demonstraram não estar incluídos na categoria da generalidade dos homens. Acresce que em situações como a dos autos, dizem-nos as regras da experiência comum e da normalidade, que o agente age de forma livre, voluntária e consciente, sendo certo que nenhuma prova se fez no sentido de que os arguidos não agiram, nos termos descritos, livre, deliberada e voluntariamente.
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O facto a) resulta não provado por ausência de prova assertiva nesta matéria. Os factos b) e c) resultam não provado por ausência de prova assertiva nesta matéria. O facto d) resultou não provado, porquanto do relatório médico-legal de fls. 183 a 186 consta: lesões/sequelas sem relação como evento: O examinando apresenta as seguintes sequelas: face, olho esquerdo: sequelas de cirurgias anteriores, nomeadamente transplante de córnea há cinco anos. Refere ter elevada diminuição da acuidade visual e ser portador de atestado multiusos (95% de incapacidade).
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As condições económico-sociais dos arguidos resultam das declarações dos arguidos, as quais, nesta parte, não foram infirmadas pela demais prova produzida, conjugadas com os documentos juntos aos autos em 06.11.2023 (informação constante da base de dados da Segurança Social relativamente a cada um dos arguidos). A ausência de condenações resulta dos respetivos certificados de registo criminal.
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(…)
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III. III.1
Recursos interpostos pelo arguido AA III.1.1
Do recurso interlocutório
Quanto ao recurso interlocutório, o despacho recorrido tem o seguinte teor: (…) Da prova pericial requerida pelo arguido AA na contestação de 16.12.2022 Veio o arguido AA requerer a realização de perícia complementar a realizar pelo IML de forma a fazer constar do relatório final e como consequência da agressão a perfuração da córnea e perda do seu olho esquerdo.
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No presente processo foram acusados os arguidos: - AA da prática de um crime de Ofensa à integridade física simples, p. e p. no art 143.º, nº 1, do Código Penal, contra CC; - BB da prática de um crime de Ofensa à integridade física simples, p. e p. no art 143.º, nº 1, do Código Penal, contra AA.
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A perícia requerida não se insere no seu direito de defesa (está acusado da prática de um crime de Ofensa à integridade física simples, p. e p. no art 143.º, nº 1, do Código Penal, contra CC), no âmbito do qual foi notificado para apresentar contestação. A perícia requerida insere-se no “direito à acusação” contra o arguido BB, que poderia e deveria ter exercido atempadamente, constituindo-se assistente, requerendo a abertura de instrução, descrevendo os factos, apresentando as respetivas provas e concluindo que o arguido BB praticou um crime de ofensa à integridade física grave, nos termos do disposto no artigo 144.º, alínea a), do Código Penal. Todavia, não fez (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido nos presentes autos). Assim, constitui objeto do processo a acusação de 29.01.2021: ou seja, a prática pelo arguido BB de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no art 143.º, nº 1, do Código Penal, contra o arguido AA. Pela proficuidade de exposição seguimos de perto o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-10-2011 (processo nº 141/06.0JALRA.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt). I - O objeto do processo é o objeto da acusação, no sentido de que é esta que fixa os limites da atividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o thema decidendum. II - A atividade do tribunal penal, consubstanciada na investigação e prova de determinados factos não pode sair fora dos limites traçados pela acusação, sob pena de nulidade, salvo em casos permitidos por lei em que, respeitadas certas condições, se pode proceder a uma alteração dos factos – arts. 303.º, 309.º, 358.º e 359.º, entre outros, do CPP. III -Por seu turno, a atividade decisória do tribunal também tem de se confinar ao objeto da acusação (art. 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal); é por força dessas exigências que se diz que o objeto do processo tem de se manter o mesmo – eadem res –, desde a acusação até ao trânsito em julgado, daí derivando os princípios da identidade, da unidade e da indivisibilidade. IV -É ainda dentro dos limites da acusação que se define a extensão do caso julgado, visto que o tribunal deve apurar tudo o que diga respeito a esse objeto (aos factos que dela constam e são imputados ao arguido) de uma forma esgotante, sendo certo que, se os não tiver apurado, tudo deve passar-se como se o tivessem sido, segundo o princípio designado da consunção. V - A delimitação do objeto do processo está relacionada fundamentalmente com todas as garantias de defesa, assegurando-se que nenhum outro indivíduo, que não o arguido, seja julgado pelos factos constantes da acusação e permitindo-se-lhe uma defesa eficaz, subordinada aos princípios do contraditório e da audiência, mas também garantindo, dentro de certa maleabilidade, conjugada com a rigidez que lhe é característica, a investigação da verdade material. VI -Se é a acusação que delimita o objeto do processo, são os factos daquela constantes imputados a um concreto arguido e constituindo crime que fixam o campo delimitador dentro do qual se tem de mover a investigação do tribunal, a sua atividade cognitiva e decisória. Dispõe o artigo 340.º, nº 4, alínea b), do Código de Processo Penal: os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas. É o que sucede no presente caso: o alegado constitui matéria que não se pode conhecer no âmbito do julgamento a realizar, sob pena de nulidade da sentença a proferir, por excesso de pronúncia. Com efeito, no presente caso, os factos que AA (arguido) pretende provar com a perícia requerida, extravasam o objeto do processo delimitado pela acusação deduzida contra BB, situando-se fora do campo delimitador da atividade do Tribunal e não respeitando as garantias de defesa deste arguido. Face ao exposto, inexiste matéria (que o Tribunal possa conhecer) que permita concluir pela utilidade de tal diligência, pelo que se considera, desnecessária a realização de uma perícia ao arguido.
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Pelo exposto, indefere-se a requerida perícia complementar a realizar pelo IML de forma a fazer constar do relatório final e como consequência da agressão a perfuração da córnea e perda do olho esquerdo do arguido AA. Notifique. (…)
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Em contraponto aos argumentos convocados pelo despacho alvo de impugnação defende o recorrente, em síntese apertada, que a prova requerida (e indeferida) é relevante pelo que, ao abrigo do estatuído no art.º 340.º do C.P.P. impunha-se que o Tribunal investigasse a extensão das lesões, empenhando-se no apuramento da verdade material, norma que entende ter sido violada.
Apreciando.
Nos termos do disposto no art.º 311.º-B do C.P.P., na redação introduzida pela Lei n.º 13/2022, de 01.08, “1 – O arguido, em 20 dias a contar da notificação do despacho referido no artigo anterior, apresenta, querendo, a contestação acompanhada do rol de testemunhas, sendo aplicável o disposto no n.º 14 do artigo 113.º. 2 – A contestação não está sujeita a formalidades especiais. 3 – Juntamente com o rol de testemunhas, o arguido indica os peritos e consultores técnicos que devem ser notificados para a audiência, bem como qualquer outra prova que entenda adequada à sua defesa. 4 – Ao rol de testemunhas é aplicável o disposto no alínea e) do n.º 3 e nos n.ºs 7 e 8 do artigo 283.º”.
Por sua vez estatui o art.º 340.º do C.P.P., na parte aqui relevante, que “(…) 3 – Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis. 4 – Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que: a) … b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória”.
Por fim importa referir, como premissa da decisão a que nos propomos, que o recorrente solicitou a produção do meio de prova em causa na qualidade de arguido. No momento da prolação do despacho final de encerramento do inquérito, se inconformado com a real extensão dos danos físicos infligidos, poderia o ora requerente ter-se constituído assistente e requerido a abertura da instrução, o que não fez (sendo essa constituição posterior).
Dito isto.
A omissão de produção de meio de prova necessário, quer a sua produção haja sido ou não requerida, constitui nulidade relativa, nos termos da al. d) do n.º 2 do art.º 120º do C.P.P. Quando a omissão ocorre na sequência de indeferimento de requerimento para a sua produção, a impugnação do decidido deve ser feita por via de recurso. Na situação inversa – inexistência de requerimento motivante da ação - o interessado na produção da prova deve arguir a nulidade até ao encerramento da audiência, sob pena de sanação e, fazendo-o, deve interpor recurso da respetiva decisão de indeferimento.
Retomando e em análise dirigida à posição do recorrente.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª Ed., em anotação ao artigo 315.º do C.P.P. na redação então vigente, pág. 807, notas 8 e 9] “Com a contestação o arguido pode juntar o “rol de testemunhas” e a lista das demais provas, isto é, os meios de prova e de obtenção de prova cuja produção ou exame são requeridos e os factos que através deles se espera provar. Com efeito, qualquer pedido de produção ou exame de meios de prova e de meios de obtenção de prova deve ser acompanhado da respectiva justificação, isto é, da indicação do facto que se pretende provar, para efeitos do artigo 340.º, n.º 4. É assim durante a audiência e também na contestação. De outro modo, o juiz ficaria impedido de apreciar a legalidade dos meios de prova requeridos e de proferir decisão sobre a sua admissibilidade. As testemunhas não têm, contudo, de ser arroladas com indicação de quesitos ou de perguntas a que devam responder, pois a lei não estabelece limite atinente ao número de quesitos ou perguntas a pôr a cada testemunha”.
No sentido da possibilidade de o julgador poder avaliar da admissibilidade/utilidade/pertinência dos meios de prova/produção de prova requeridos com o oferecimento da contestação se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.11.2016 [proc. n.º 204/14.9JAGRD.C1, Rel. Maria Pilar de Oliveira, acedido em www.dgsi.pt], aí se podendo ler e que sufragamos:
“A questão proposta não dispensa um breve excurso sobre o objecto e finalidades do processo penal em que é manifesta uma tensão entre a necessidade de realizar a justiça criminal (punindo os autores de crimes como meio essencial de defesa e pacificação da vida em sociedade) e de garantir aos suspeitos da prática de crimes efectivas garantias de defesa consentâneas com a total possibilidade de prova da inocência ou de instalar a dúvida sobre a culpabilidade (cfr. artigos 32º, nº 1 e 2 da CRP).
Nos termos do artigo 18º, nº 2 da Constituição a equação está sempre na necessidade de harmonização entre direitos liberdades e garantias e outros interesses constitucionalmente protegidos, admitindo-se as restrições necessárias de uns para salvaguardar outros. Esta filosofia deve determinar tanto as soluções legislativas como a sua interpretação (cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda – Rui Medeiros, Tomo I, em anotação ao citado preceito).
(…)
É essencial ao exercício da acção penal a liberdade de indicação dos meios de prova que a sustentam, sendo certo que se trata de uma liberdade adstrita ao princípio da legalidade que deve impedir não só a indicação de meios de prova não legalmente admissíveis como de meios de prova inócuos. (…).
O que justifica que apenas devam ser produzidos os meios de prova relevantes para a boa decisão da causa é a necessidade do eficaz exercício da acção penal que podia ser seriamente comprometido com a irrestrita admissão de todos os meios de prova indicados, ainda que completamente inúteis e até com objectivo de entorpecer o processo.
A pedra de toque da distinção está, como resulta do exposto, em que os meios de prova que sustentam a acusação foram previamente produzidos e não têm aptidão para entorpecer a celeridade processual, enquanto os meios de prova a produzir na fase de julgamento podem ter essa potencialidade, importando, portanto, produzir apenas os que efectivamente sejam necessários para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Ora, desde já adiantamos uma conclusão.
Na indicação de meios de prova inúteis para a boa decisão da causa não se pode encontrar o verdadeiro exercício do direito de defesa e este será sempre perfeitamente acautelado com solução legal que admita a produção dos meios de prova relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, sem que isso represente qualquer compressão inadmissível à luz da constituição. Antes será solução que se impõe pela necessidade de compatibilização do direito de defesa e do efetivo exercício da acção penal.
(…)
Sendo certo que a mencionada disposição legal [art.º 340.º do C.P.P.] se encontra inserida nas disposições da audiência de julgamento, não deixa de ser aplicável a toda a prova que pela primeira vez vai ser produzida e que não se encontra subtraída expressamente a esse regime.
A tese da irrestrita possibilidade de apresentação de meios de prova a produzir na fase de julgamento e que consentiria, portanto, a realização de diligências inúteis para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, poderia conduzir no limite à própria frustração da justiça penal.
E se tanto a prova requerida em julgamento, como aquela a produzir na fase de julgamento e requerida na contestação não podem colidir com o interesse da realização da justiça penal, tanto se justifica a aplicação do disposto no artigo 340º a uma como a outra, sendo decisivo para tal conclusão o teor já salientado dos artigos 283º, nº 3, alínea f) e 315º, nº 3 do Código de Processo Penal.
(…)
Como não se pode vislumbrar o exercício efectivo do direito de defesa em provas não necessárias à descoberta da verdade, cremos ser manifesto que o preceito citado na interpretação pugnada não atenta contra o disposto no artigo 32º da CRP, nomeadamente o disposto no seu nº 1 quando consagra que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa.
Aliás, o nº 2 do mesmo artigo estipula que o arguido deve ser julgado no mais curto prazo compatível com o exercício do direito de defesa, numa clara manifestação constitucional de que não se pode vislumbrar o exercício do direito de defesa no requerimento de provas não necessárias à descoberta da verdade e que tenham como única virtualidade retardar o julgamento. (…)”.
Efetivamente, seria incoerente e ilógico que o juiz, a quem se concede o poder de conformação do processo e de direção da audiência, estivesse completamente coartado e subjugado à vontade incontestável do requerente, quanto à espécie e amplitude dos meios de prova a produzir.
Embora o tribunal deva, ainda que oficiosamente, ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, competindo-lhe investigar o facto sujeito a julgamento e construir, por si, o suporte da decisão, o pressuposto princípio de investigação sofre naturais limitações impostas pelos princípios da necessidade, da legalidade e da adequação, princípios que o art.º 340.º do C.P.P. também incorpora e materializa, habilitando o juiz, nos termos já abordados no aresto supra transcrito, a apreciar e, se necessário, limitar o requerimento de prova apresentado.
Como refere Oliveira Mendes [Código de Processo Penal Comentado, 3ª Ed., Almedina 2021, pág. 1062-1063] “A procura da verdade material, tendo em vista a realização da justiça, constitui o fim último do processo penal. O processo penal não é um processo de partes, não existindo o ónus da prova. Por isso, a lei atribui ao tribunal o poder/dever de ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova que entenda necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. (…). O juízo de necessidade ou desnecessidade de produção de prova cabe ao tribunal, ou seja, aos juízes que o compõem, isto é, ao juiz ou aos juízes e jurados, consoante o tribunal que julga a causa. A decisão sobre a necessidade ou desnecessidade da prova, sobre a admissibilidade da prova, pertence naturalmente àqueles que têm de apreciar a prova e julgar a causa. (…)”.
Ora, permitindo-se ao Juiz apreciar a adequação do requerido e a sua conformidade ao objeto do processo – dado que o dever de investigação e da procura da verdade se desenvolve e conforma no âmbito daquele objeto - resta então saber se o indeferimento da pretensão se mostra adequado.
Assim, no que tange ao mérito, em substância, do decidido, entendemos que o despacho recorrido – aliás bem fundamentado - não merece censura.
Efetivamente, o principal argumento convocado em subsídio do indeferimento prendeu-se com a relevância do pretendido para o objeto do processo. Embora o recorrente afirme – e bem – que o Tribunal não deve assumir um papel completamente passivo e insensível à verdade, temperando o acusatório público com um princípio de investigação, a verdade é que esse estímulo e atividade não se desenvolve de forma desordenada, procurando uma qualquer verdade sobre um qualquer assunto com relevância criminal. Essa componente investigatória faz-se no plano do feito introduzido em juízo.
Um dos princípios constitucionais estruturantes do nosso sistema processual penal é o da acusação (art.º 32.º, n.º 5 da C.R.P.) considerando-se, na sua génese, que a imparcialidade e objetividade, conjuntamente com a independência próprias da função de julgar, só poderão estar asseguradas se a entidade que julga e decide for distinta daquela que, a montante, exerceu funções de investigação preliminar e acusação, distinguindo-se desta e liberta para julgar dentro dos limites pré-definidos por aquela [cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1988, pág. 99].
Como decorrência e implicação do sobredito princípio, a acusação (ou a pronúncia) define e fixa, perante o Tribunal de julgamento, o objeto do processo, o núcleo factual sobre o qual incidirá a produção de prova, colocando as devidas estremas nos poderes de cognição do Tribunal. A este efeito, denominado vinculação temática, se agregam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e o da consunção que, em efeito útil, se traduzem na afirmação de que o objeto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ou equivalente pronúncia até ao trânsito em julgado da sentença e deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (de forma unitária e indivisível) e, quando o não tenha sido, deve considerar-se assim decidido [cfr. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1968, pág. 199 e Eduardo Correia, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, pág. 29].
A matriz acusatória e a vinculação temática, associadas à identificação da amplitude e extensão dos poderes de cognição do Tribunal de julgamento são, também elas, o garante da estabilização do feito introduzido em juízo (e que mais adiante se entroncam nos limites do caso julgado e na proibição do ne bis in idem) e conferem conteúdo útil aos direitos de defesa do arguido na execução do exercício pleno e eficaz do contraditório. Perante a imputação de determinados factos com relevância criminal, carece o arguido de conhecê-los (bem como a qualificação jurídica proposta) por forma a organizar convenientemente a sua defesa, na certeza de que não será surpreendido com a imputação de factos distintos.
Em síntese e como referem Teresa Beleza e Frederico Costa Pinto [Direito Processual Penal I, Objeto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado (texto introdutório), F.D.L. 2001, pág. 17] “(…) A estabilidade, identidade, indivisibilidade e consunção do objeto do processo são condições essenciais para garantir o direito de defesa, o princípio da acusação e a estrutura acusatória do processo penal. Desses aspetos depende ainda a efetivação do contraditório, o respeito pelo caso julgado e a aferição da litispendência, bem como o respeito pela proibição da dupla condenação pelo mesmo crime. (…)”.
Reafirmando-se a ideia de que, definido o objeto do processo, o Tribunal não deve, em regra, poder considerar quaisquer outros factos ou circunstâncias que possam fazer perigar a defesa que o arguido estruturou, esta mesma manifestação do princípio do acusatório não se transmuta numa completa impossibilidade de alteração do objeto do processo. Na verdade, a conformação prática dessa garantia pode envolver, em contraponto, razões ponderosas de eficácia do processo penal, de descoberta da verdade e, até, de estabilização da paz do arguido perturbada com a sujeição a procedimento de natureza criminal e, eventualmente, a um estatuto coativo limitador que potenciem e venham a permitir a modificabilidade daquele objeto que, assim, não se constitui numa realidade imutável. As garantias de defesa não se esboroam se o pedaço de vida sujeito a julgamento puder sofrer adaptações, desde que se processem no seio de um processo justo e equitativo que garanta um efetivo direito ao contraditório, na concretização das variações que da apontada plasticidade possam advir e que, a final, se proíba o ne bis in idem.
Decompondo e exemplificando.
Se, por princípio, é desejável que os factos que delimitam o objeto do processo, no caso plasmados no despacho de acusação, se mantenham nuclearmente inalterados e, a final, provados ou não provados de acordo com a prova produzida e prontos para a subsunção ao Direito, nem sempre tal é possível ou sequer desejável.
Por um lado, não sendo o nosso sistema processual penal, como vimos supra, de estrutura acusatória pura, embora com caraterísticas de subsidiariedade, vigora também, intrassistematicamente, o princípio da investigação ou da verdade material, com concretizações nos art.ºs 154.º, n.º 1, 164.º, n.º 2, 174.º, n.º 3, 288.º, 289.º, n.º 1, 290.º, n.º 1, 340.º, 348.º, n.º 5 e 354.º do C.P.P., nos termos do qual o Tribunal (ainda que sob a égide do objeto do processo) investiga o facto sujeito a julgamento ou elementos conexos relevantes, independentemente dos contributos da acusação ou da defesa e na prossecução da verdade material. Nesta medida e com este fito, os factos efetivamente apurados podem diferir daqueles que, com virtudes estáticas, constavam da peça processual delimitadora do objeto do processo.
Por outro lado e sendo a recolha de informação indiciária - e sua qualificação como violadora de normas merecedoras de tutela jurídico-penal, enformada na delimitação do objeto do processo – coligida em fases preliminares do processo, mediante a produção de prova que terá de ser reproduzida e valorada em audiência, não raras vezes, por ação do processo de degradação da memória própria dos processos mnemónicos, pela recusa legítima em depor, pela indisponibilidade, em audiência, de determinado meio de prova ou por ação do princípio do contraditório pleno que vigora nesta fase, o processo de relato e reconstrução da verdade, a afirmação do efetivamente acontecido, pode não reproduzir, ipsis verbis, o que constava da acusação ou equivalente e, assim sendo, esta realidade inevitável não pode constituir escolho ou regra inultrapassável que, no limite, paralise a eficácia do processo penal, os interesses públicos que prossegue ou a consecução de uma efetiva descoberta da verdade.
Os factos desconformes à lei penal que, no relato do pedaço de vida, irão subsumir-se aos elementos típicos podem, no decurso do processo, sofrer alteração, quer por não demonstração parcial ou total, quer por ação contraditória, quer pela aquisição de novos conhecimentos não disponíveis (por inépcia ou sem culpa) nas fases preliminares que, a final, irão defluir numa realidade reconstruída do sucedido, com a eventual emergência de novos factos não constantes da acusação. Não sendo nada de raro ou novo, a própria lei acomoda a possibilidade (ou impossibilidade) desses novos factos poderem ser considerados pelo Tribunal, tematicamente vinculado como vimos, e agregados na sentença. Essa nova realidade, ou o alcance da diferença (por referência ao que configurava o objeto do processo), pode constituir alteração substancial (art.º 1.º, al. f) do C.P.P.), seguindo o regime do art.º 359.º do C.P.P., ou não substancial, neste caso com observância do estatuído no art.º 358.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.P.
Ora, no caso, na parte relevante, vinha o arguido BB acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, nº 1, do C.P., sendo, nesta parte, ofendido, o ora recorrente AA.
Na qualidade de arguido o recorrente contestou requerendo, além do mais, a realização de prova pericial por forma a demonstrar que, em consequência da atuação daquele BB, perdeu a visão num dos olhos, transmutando o ilícito imputado na eventual prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art.º 144.º do C.P., caso em que, em acrescento e na própria acusação delimitadora do objeto do processo, teria que constar tal resultado.
Destarte e a demonstrar-se aquele resultado, tratar-se-ia de alteração substancial dos factos (art.º 1.º, al. f) do C.P.P.), não autonomizável, não podendo aqueles (novos) factos ser considerados a não ser que houvesse acordo nesse sentido.
Ainda assim – sendo de prever que da parte da defesa do arguido BB não houvesse acordo – importa relembrar que a estrutura acusatória do processo determina que o thema decidendum e a consequente atividade probatória/investigatória esteja previamente identificado e delimitado, no caso pela acusação e, sendo assim, o que se mostra relevante para a descoberta da verdade, impelindo ou permitindo a atividade investigatória do Tribunal, não é toda e qualquer verdade mas aquela que se contém naqueles parâmetros delimitados. Pode haver investigação mas esta é delimitada pelo tema factual já fixado, não sendo o papel do Tribunal e na fase de julgamento continuar a investigação ou completar o inquérito.
Assim, no que tange às potenciais consequências da atuação do arguido BB, poderia o ora recorrente ter requerido a abertura da instrução, na qualidade de assistente, a fim de poder integrar esses factos excrescentes. O que não pode, quer porque nada tem a ver com o seu direito de defesa (sendo, na parte que se discute, ofendido), quer por extravasar o objeto do processo (sendo por isso irrelevante) é pretender a realização de prova pericial para prova de factos “potenciais” e não contidos na plêiade de factos a provar.
Destarte, subscrevendo a argumentação do despacho recorrido, nenhuma censura merece o decidido, sendo improcedente o recurso interlocutório.
*
III.1.2
Do recurso da decisão final III.1.2.1
Do erro de julgamento
Invoca o recorrente a existência de erro de julgamento quanto à matéria de facto constante de 1, 2, 3, 4, 5 e 7 da sentença recorrida, tendo a Mm.ª Juiz efetuado uma incorreta valoração da prova produzida.
Em traços muito gerais, no entender do impetrante, a prova produzida, se devidamente valorada e de acordo com as regras da experiência, não poderia defluir na afirmação, como provados, dos factos atinentes à comissão do crime pelo qual foi condenado.
Vejamos, então, começando por estabelecer os parâmetros da sindicância a que se procede.
Como é consabido, o julgamento da matéria de facto, em primeira instância, é efetuado segundo o princípio da imediação – possibilitando o contacto direto e pessoal entre o julgador e a prova, tangível ao (e próprio do) juiz a quo – sendo “(…) as provas apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas” [Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212]. Além disso, o julgamento da matéria de facto far-se-á segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do C.P.P., interpretado, não num sentido que desonere o julgador de justificar o seu raciocínio e percurso interior para chegar à afirmação do facto ou à sua desconsideração – caso em que falaríamos de arbítrio - mas, apenas, no sentido de que o valor a atribuir a determinado meio de prova não é tarifado ou vinculado (salvo as exceções consignadas na lei), orientando-se o julgador de acordo com os ditames da lógica e da experiência, podendo, por exemplo, atribuir relevância a um depoimento em detrimento de vários e mais numerosos de sinal contrário, desde que o justifique.
A convicção do Tribunal é, reforça-se, formada livremente, de acordo com as regras da experiência, enquanto postulados decorrentes da observação social e dos conhecimentos da técnica e da ciência. A afirmação positiva dos factos deverá fazer-se, não por razões ou argumentos puramente subjetivos e insindicáveis, mas sim concluindo-se através de uma “(…)valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo “objetivar a apreciação” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo 1993, pág. 111 a propósito da definição do conceito de livre apreciação da prova.].
Destarte, se a decisão do Tribunal recorrido se ancorar numa fundamentação compreensível, com as naturais opções próprias efetuadas com permissão da razão e das regras da experiência comum e a coberto da caraterizada livre apreciação, cumprir-se-á o necessário dever de fundamentação e afirmar-se-á a correção do decidido.
Neste percurso, note-se, não raras vezes louvar-se-á o julgador em elementos indiciários/probatórios obtidos por via indireta, consequentemente envolvendo presunções obtidas por via judicial sendo até, amiúde, o único meio de chegar ao esclarecimento de um facto criminoso e à descoberta dos seus autores.
Como se escreve no acórdão desta Relação de 18.03.2015 [proc. n.º 400/13.6PDPRT.P1, Rel. Neto de Moura, acedido emwww.dgsi.pt], a propósito do papel preponderante, da atendibilidade e da valoração da prova indireta, “I – Quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum. II – Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), pelo que não pode ser excluída a prova por presunções (art. 349.º do Cód. Civil), em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro. III – O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta. IV – A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.”.
Em síntese, neste capítulo, a prova indireta, que contém momentos de presunção ou inferência, pode igualmente justificar certeza bastante para fundar uma convicção positiva do Tribunal, desde que se assegure, na formação dessa convicção, uma valoração conjugada e coerente dos vários elementos indiciários a considerar, de forma motivada, objetivável e numa leitura que se afigure consentânea com as regras da experiência.
Naturalmente, qualquer dos sujeitos processuais destinatários da decisão poderá discordar do juízo valorativo assim firmado. Ou porque entende que outro meio de prova se sobreporia, ou porque outro, que foi valorado, seria, para si, de credibilidade questionável mas, lembre-se, o poder de valorar a prova e de se determinar de acordo com essa avaliação pertence ao ente imparcial e constitucionalmente designado para a função de julgar - o Tribunal – porque descomprometido com o interesse dos sujeitos processuais.
Aqui chegados, a decisão da matéria de facto – com a qual o recorrente não se conforma – só pode ser sindicada, em sede de recurso, por duas vias distintas:
- Por verificação, ainda que oficiosa, dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., a denominada revista alargada que, a proceder, deflui na realização de um novo julgamento, total ou parcial, apenas excecionalmente o podendo fazer o próprio tribunal superior (art.ºs 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do C.P.P.);
- Através da impugnação ampla, prevista no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P., com eventual correção do decidido pelo tribunal superior (cfr. art.º 431.º, al. b), do C.P.P.).
No segundo caso, que agora nos ocupa – impugnação ampla – a sindicância pode envolver o próprio processo e resultado da formação da convicção do julgador sobre a prova produzida, designadamente a suficiência ou insuficiência desta para justificar a materialidade considerada, a capacidade e a segurança do convencimento que emerge dos meios de prova a valorar, seja à luz dos critérios legais da avaliação (art.º 127.º do C.P.P.), seja sob o espectro das disposições sobre prova vinculada.
Porém, importa ainda reter que mesmo abrangendo o próprio juízo decisório revidendo, a sua verosimilhança e consistência, no cotejo com a prova produzida, o processo de (re)apreciação não envolverá um novo julgamento, sobreposto ao realizado em primeira instância e que usufruiu do aporte irrepetível oferecido pela oralidade e imediação. A impugnação, ainda que ampla, constitui, tão só, o remédio jurídico apropriado para a deteção de eventuais erros in judicando ou in procedendo, considerando o exame crítico da prova efetuado na primeira instância que está, naturalmente, vinculado a critérios objetivos, jurídicos e racionais e sustentado nas regras da lógica, da ciência e da experiência comum, sendo por isso mister para o sucesso do recurso que se demonstre a impossibilidade lógica e probatória da valoração seguida e a imperatividade de uma diferente convicção.
Mais.
No caso da impugnação ampla, - em que a atividade do Tribunal de recurso não se restringe ao texto da decisão, expandindo-se à análise da prova concretamente produzida em audiência de julgamento e devidamente registada – o juízo de apreciação e conformidade far-se-á de acordo com os limites fornecidos pelo recorrente e decorrentes do cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do C.P.P.. Ou seja, sempre que o recorrente vise impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar (i) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) As concretas provas [ou falta delas] que impõem decisão diversa da recorrida; (iii) As provas que devem ser renovadas, ao que acresce que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas (…) fazem-se por referência ao consignado na ata (…) devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Em epítome e em tese geral, não bastará ao recorrente configurar hipóteses decisórias alternativas, da sua conveniência ou modo de ver, mais ou menos compagináveis com a prova produzida, sendo ainda necessário que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta de apreciação alternativa, a prova que foi produzida, imponham, como conclusão lógica, uma decisão distinta e, em concreto, aquela que na argumentação de recurso se defende.
Neste último aspeto referido importa reforçar que não basta a afirmação do dissídio, a apreciação crítica ou depreciativa do decidido ou a asseveração de considerandos ou propostas de decisão alternativa. Se assim fosse, a sindicância, a este nível, traduzir-se-ia na realização de novo julgamento já que ver-se-ia a segunda instância na contingência de revisitar toda a prova produzida para, ante aquelas manifestações gerais de subjetividade, sobrepor ou não a sua.
Por tudo isto, impõe-se ao recorrente um dever de fundamentação que torne evidente que as provas indicadas impõem decisão diferente, com o mesmo grau de argumentação e convencimento que é exigível ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, só assim se percebendo qual o raciocínio seguido pelo impetrante para se poder concluir que o mesmo impõe decisão diversa da recorrida [cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal].
Dito isto e avançando.
Depreende-se do teor da argumentação expendida que o recorrente considera incorretamente julgados os pontos assinalados, retendo as provas apreciadas pelo Tribunal, ou seja, a seu ver e como defluência da sua subjetividade, aquelas provas, consideradas pelo Tribunal, não permitiriam a afirmação positiva dos factos considerados provados em desabono do seu interesse, designadamente quanto a ação imputada ao recorrente e que está a montante da condenação.
Um primeiro reparo e que limita a apreciação da pretensão do recorrente:
No sentido de afirmar que a prova produzida – se devidamente apreciada – produziria um resultado diverso, designadamente no sentido da descredibilização do depoimento da testemunha CC e quanto aos factos insertos em 2, invoca o recorrente o que aquela terá referido ao agente autuante e por este incorporado no auto de notícia, com data de 29/05/2019 e, também, o que a mesma CC terá feito constar do auto de denúncia de 30/05/2019.
Ora, conforme resulta do disposto nos art.ºs 355.º, n.º 1 e 356.º, n.ºs 2 e 4 do C.P.P. do C.P.P., não podiam ser valorados a montante e, em sede recursória também não, os depoimentos prestados ou declarações imputadas a testemunhas constantes do inquérito.
O auto de notícia, como documento autêntico, (nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 169.º do C.P.P. e 371.º, n.º 1, do C.C.), pode ser valorado, exclusivamente, quanto aos comportamentos/eventos que tenham sido presenciados e percecionados, diretamente, pela autoridade policial autuante, excluindo-se dessa possibilidade outros contributos que possam constar desse documento, designadamente declarações de terceiros, como a visão ou o relato do previamente sucedido por parte do queixoso, do suspeito ou de testemunhas. Nessa parte, trata-se, em boa verdade, de declarações de arguidos ou de potenciais testemunhas, atinentes a factos já ocorridos e não presenciados pelo autuante, com um regime de valoração específico pois que as declarações e os depoimentos produzidos, na qualidade de lesado, de arguido ou de testemunha, só poderão atendidos à luz dos art.ºs 355º, 356º e 357º do C.P.P..
Destarte, é inócua a referência às “declarações” prestadas pela testemunha noutros momentos processuais exteriores à audiência de julgamento como forma de sindicar o depoimento prestado por esta nesta sede e por contraponto a outras putativas declarações contraditórias. Da mesma forma as preditas “declarações”, insertas no auto de notícia e convocadas em sede de resposta pelo arguido BB para a demonstração da falta de fundamento do recurso em apreciação também não podem, pelas mesmas razões, ser valoradas.
Prosseguindo.
Fazendo uma recensão do argumentário seguido pelo recorrente e considerando as conclusões formuladas (pois, como já se disse, são estas que delimitam o objeto do processo e “se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (…) o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões” – v.d. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª Ed., pág. 103, nota 116) o Tribunal a quo terá errado porquanto:
(i) Relativamente ao ponto 1, nem o recorrente, nem as testemunhas CC e DD, as únicas que se encontravam no local, referiram que ocorreu qualquer discussão a anteceder as pretensas agressões. Também os factos não terão ocorrido no logradouro comum, conforme resulta das declarações do arguido BB, da testemunha EE e das próprias declarações do recorrente;
(ii) Quanto ao ponto 2, excluindo os elementos do inquérito não valoráveis (cfr. supra), o depoimento de CC apenas permite afirmar a existência de um murro no braço sem que tenha provocado nódoa negra, relativizando a atuação do seu marido. O arguido BB também procurou sublimar a sua atuação, desvalorizando a contundência do vaso arremessado. A testemunha DD não viu o recorrente desferir murros mas, tão só, empurrões que, ainda assim, deixaram marcas. A testemunha EE referiu, por sua vez, que o recorrente desferiu uma pancada no ombro da testemunha/ofendida CC. Por fim, a testemunha GG refere que a agressão imputada ao recorrente terá sido perpetrada sobre a testemunha DD.
Os vídeos realizados pelo recorrente permitem aferir do estado de espírito dos intervenientes, designadamente a postura desafiante das sobreditas testemunhas ante o impetrante, conferindo verosimilhança às suas declarações no sentido de não ter agredido ninguém.
(iii) No que tange ao ponto 3, o vaso arremessado atingiu, ainda, a zona parietal, a maçã do rosto e a órbita ocular do olho esquerdo do recorrente, conforme resulta da informação clínica e pericial, o que deverá ser aditado.
(iv) Relativamente ao ponto 4 dos factos provados, as lesões observadas na ofendida CC não decorrem de quaisquer agressões perpetradas pelo recorrente. Quanto às lesões sofridas pelo assistente, a sua descrição, extensão e consequências mostra-se incompleta “pois em consequência directa do traumatismo sofrido face ao impacto do vaso, o olho esquerdo acabou por sofrer um rompimento da córnea nas semanas seguintes e foi necessário tomar medidas profilácticas extremas no sentido da remoção urgente desse órgão para evitar uma infecção sistémica, conforme consta dos relatórios médicos quer do Centro Hospitalar .../... quer do Centro Hospitalar Universitário de S. João, E.P.E., bem como da nota de alta após a intervenção cirúrgica para remoção do olho esquerdo”.
(v) No que concerne aos factos constantes de 5 e 7, é falso que o recorrente tenha molestado fisicamente a testemunha CC.
(vi) Quanto ao facto não provado constante de d), o recorrente foi inibido pelo Tribunal de provar o que ali consta.
Vejamos, pois.
Procedemos à audição das declarações e depoimentos, registados em ficheiros áudio, prestados por:
- AA (20231025100717_16282179_2871625.wma, 20231025103758_162821179_2871625.wma e 20231025121017_16282179_2871625.wma);
- BB (20231025103852_16282179_2871625.wma);
- CC (20231025110510_16282179_2871625.wma);
- DD (20231025111601_16282179_2871625.wma)
- EE (202310251112842_16282179_2871625.wma) e
- GG (20231025114731_16282179_2871625.wma).
Vista a fundamentação da decisão de facto e reproduzidos os indicados ficheiros, desde já adiantamos que os trechos convocados não impõem (e é esta a exigência proclamada pelo art.º 412.º, n.º 3, al. b) do C.P.P.) decisão diversa.
Quanto ao facto 1, atinente às circunstâncias espácio temporais da contenda e a preexistência de uma discussão, o Tribunal louvou-se nos depoimentos das testemunhas CC, DD e EE, insurgindo-se o recorrente, nesta parte, quanto à inexatidão da referência à situação de vizinhança e defendendo a inexistência de qualquer discussão.
Ora, ouvida a prova produzida, efetivamente, sendo subjetiva a referência a jardim (mas irrelevante, existindo um canteiro onde a testemunha DD cultivará flores e de onde provinha, juntamente com a testemunha CC), na verdade o arguido e a testemunha CC não habitam no mesmo prédio, residindo o recorrente no n.º 306 e a ofendida no n.º 302, tendo os eventos ocorrido, consensualmente, em área comum afeta ao n.º 306. Contudo, a precisão pretendida é completamente irrelevante, dado que os prédios são contíguos (como se alcança das fotos) e, nesta perspetiva, existirá uma relação de vizinhança.
Quanto à existência de discussão, os meios de prova indicados pelo recorrente não preconizam, inequivocamente, uma decisão diversa.
Em pormenor.
O próprio recorrente afirmou que saiu de sua casa ao encontro da testemunha CC descalço e em tronco nu, a fim de a expulsar do espaço em que se encontrava o que acomoda, pela premência e imagética associada, que fosse gerado algum tipo de fricção, acomodando a afirmada prévia existência de “discussão”.
Em acrescento, o depoimento da testemunha CC, embora não afirmando ou densificando a existência e conteúdo da discussão, não a exclui ao mencionar que o arguido surgiu pelas escadas abaixo, em tronco nu e começou a empurrar, perpassando do relato que fez que essa sua atuação não ocorreu em silêncio.
Também a testemunha DD refere a chegada abrupta do recorrente, a correr, com gestos exaltados, a referir, dirigindo-se à ofendida “tu não passas aqui”.
Ora, neste entorno, não é esdrúxula a afirmação de que o recorrente iniciou uma discussão: - chegou de forma repentina, “a correr”, exaltado, a impedir a ofendida de passar ali, entorno que representa, em linguagem comum, uma discussão.
Quanto à agressão que lhe é imputada, no essencial, o Tribunal a quo considerou - para sedimentar probatoriamente tal ação - o depoimento das testemunhas CC, DD e EE, essencialmente o depoimento da primeira, corroborado pelo teor do relatório pericial de avaliação do dano corporal.
Efetivamente, na ótica do Tribunal a quo, tendo em conta o ambiente de altercação existente e a aferição pericial de lesões compatíveis com o relato efetuado pela ofendida, aliado à forma (imediação) como esta terá prestado o seu depoimento (em que até relativizou as consequências corporais do sucedido), convenceu-se da sua veracidade, ainda que as restantes testemunhas referidas, não excluindo as agressões, não tenham feito das mesmas um relato completamente coincidente.
Em conclusão, o iter seguido pelo Tribunal a quo é legítimo, lógico, encadeado, não se surpreendendo desprovido de consistência argumentativa ou oferecendo contrariedade às regras da experiência, ao que acresce o facto de o tribunal a quo ter beneficiado do património único da oralidade e da imediação.
Retido o teor das declarações e depoimentos, a não valoração das declarações prestadas pelo recorrente ou a forma como foram valorados os depoimentos das testemunhas indicadas não constitui, quanto a nós, qualquer erro de julgamento.
Efetivamente, aqui estamos, tão só, no campo da convicção do Tribunal a quo, formada com o aporte exclusivo e irrepetível da imediação, declarações que afirmam a existência de conflito e que acomodam a verosimilhança do apurado.
Assim, os meios de prova referidos não impõem, inexoravelmente, como seria necessário para a procedência da impugnação, outra decisão. Estes meios de prova e o que, na ótica do recorrente, deles deveria extrair-se, é apenas a manifestação da opinião do recorrente, necessariamente subjetiva, mas não impositiva de decisão diversa. No essencial, nesta parte, o recorrente glosa criticamente o decidido, quanto à “qualidade” ou “suficiência” da prova produzida, sendo o dissídio essencialmente centrado na credibilização ou descredibilização que os meios de prova mereceram à julgadora.
Quanto ao ponto 3, o vaso veio a atingir a cabeça (entendendo-se como tal do pescoço para cima), o que é depois compatível com as lesões verificadas e expressas em 4 com referência à zona parietal esquerda, em consonância com o referido na acusação e com o que consta do relatório pericial, não implicando, por isso, alteração do decidido.
No mais, quanto aos elementos de ordem interna e à consequente afirmação do dolo, porque não confessados, foram extraídos da objetividade dos factos em moldes que se nos afiguram sem mácula.
No que tange ao facto não provado d), não fazendo parte do objeto do processo, em rigor poderia não constar do acervo considerado não provado. No entanto a sua consideração como não provada resulta do facto de, conforme relatório pericial, (cfr. 4) não ter resultado do episódio qualquer desfiguração ou afetação da capacidade para o trabalho), sendo certo que, conforme consta do predito relatório, “lesões/sequelas sem relação como evento: O examinando apresenta as seguintes sequelas: face, olho esquerdo: sequelas de cirurgias anteriores, nomeadamente transplante de córnea há cinco anos. Refere ter elevada diminuição da acuidade visual e ser portador de atestado multiusos (95% de incapacidade).”, isto é, as lesões existentes no olho são preexistentes, teriam, inclusivamente, motivado a atribuição da incapacidade de que era portador (e que invoca para que seja considerado uma vítima especialmente vulnerável) estando o indeferimento de nova avaliação pericial justificado, conforme apreciado supra.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto que se considera, assim, definitivamente fixada (com a ressalva, irrelevante, de que a ofendida CC não habita no n.º 306, devendo o facto conter, apenas, a seguinte redação: - No dia 28 de maio de 2019, cerca das 08h30m, o arguido AA iniciou uma discussão com a ofendida CC quando ambos se encontravam em área comum do prédio situado na Avenida ..., .../..., ...).
*
III.1.2.2
Da qualificação jurídica dos factos
Contesta o recorrente a condenação do arguido BB pela prática (apenas) de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º n.º 1 do C.P..
A este propósito refere o recorrente que: (…) “No entanto, face às circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, face ao meio particularmente perigoso utilizado para agredir o AA, um vaso de grandes dimensões com terra no seu interior, bem como ao facto de o referido vaso ter sido dirigido à cabeça do AA, com vista a potenciar o sofrimento causado à vítima e ainda ao facto de o AA ser pessoa particularmente indefesa, em razão da sua incapacidade de 95%, entendemos que deverá ser alterada a qualificação jurídica, nos termos do disposto no art.º 358º do Código de Processo Penal, uma vez que os factos praticados são subsumíveis não no art.º 143º n.º 1 do Código Penal, mas sim no crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145º, nºs 1, al. a) e 2, com referência aos artigos 143º e 132º, nº 2, al.s c) e h), todos do Código Penal. (…) Conforme já ficou dito, da matéria de facto dada como provada resulta que o arguido BB atingiu o AA, essencialmente na zona da cabeça e face causando-lhe traumatismos e feridas, bem sabendo da especial perigosidade e censurabilidade que revestiu a sua actuação tendo em atenção a surpresa da sua actuação e o facto de o AA ser pessoa particularmente indefesa em razão da sua deficiência, e ciente que aquele se encontrava especialmente vulnerável perante a agressão praticada e que, por isso, só com muita dificuldade o ofendido se poderia defender. O arguido BB agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de atingir o ofendido AA na sua integridade física, sem que este antecipasse a sua presença, o que diminui significativamente a possibilidade de defesa do ofendido. Entendemos que a conduta do arguido assim descrita é susceptível de revelar uma personalidade desconforme às mais elementares regras de convivência em sociedade. Face ao exposto, verificam-se, assim, as circunstâncias agravantes constantes das alíneas c) e h) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, incorrendo o arguido na prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, punido com pena de prisão até 4 anos, devendo o Tribunal determinar a concreta medida da pena adequada ao caso.”.
Apreciando, desde já se refere que a pretensão do recorrente não poderá proceder.
Objetivamente, pretende o recorrente obter distinta qualificação jurídica dos factos que subjazem à condenação do arguido BB e, por essa via, o agravamento da pena que lhe foi aplicada, ante a moldura mais gravosa prevista abstratamente para o crime proposto.
Tratando-se do co-arguição meramente formal, o recorrente, enquanto arguido, só pode recorrer das decisões contra si proferidas e, no caso, da sua própria condenação, como aliás fez. Relativamente ao outro arguido e à condenação por este sofrida (assumindo o recorrente, neste caso, a posição de ofendido e assistente), a questão concita a própria admissibilidade do recurso, quando desacompanhado (como no caso sucede) do Ministério Público.
Prevê o art.º 401.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do C.P.P. que “têm legitimidade para recorrer(…)o arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas”, e que “não pode recorrer quem não tiver interesse em agir”.
Por seu turno estatui o art.º 69.º, n.ºs 1 e 2, al. c) que “os assistentes têm a posição de colaboradores do MP, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei”, e que lhe compete em especial “interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o MP o não tenha feito (…)”.
Da concatenação das disposições convocadas resulta, pois, que a legitimidade processual própria do assistente não lhe permite, em recurso, exigir, desacompanhado do Ministério Público, pena mais gravosa para o arguido pois que é o Ministério Público quem representa o interesse comunitário na realização da justiça e este, na prossecução desse interesse, conformou-se com o decidido.
Como vem sendo entendimento jurisprudencial que cremos maioritário, só assim não será se a pretensão recursória assentasse no pressuposto de um reflexo sério que essa alteração pudesse ter para a vida e interesses próprios da assistente.
Efetivamente, o Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/99 [de 30.10.97, publicado em DR I-A a 10/08/99], uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”.
Aquela posição foi ulteriormente reiterada, novamente pelo mais alto Tribunal, no acórdão de 24.10.2002 [proc. 02P3183, Rel. Carmona da Mota, acessível em www.dgsi.pt], referindo-se, em sumário, que “num processo em que o arguido foi condenado, na primeira instância, pela autoria de um crime de homicídio voluntário, na pena de catorze anos de prisão, a redução dessa pena pela Relação, sem oposição do MP, para doze anos de prisão, não é uma decisão que afecte o assistente; logo, este – que, no processo, tem a posição de colaborador daquele (o MP) – só pode recorrer isoladamente se alegar e demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”, e em conclusão se manifestando ali que “o recurso é de rejeitar, na medida em que o assistente/recorrente não dispõe de [concreta] legitimidade para recorrer (pois que a decisão recorrida não a ‘afeta’ nem foi ‘contra ela proferida’ – art. 69.º, 2.º, al. c), e 401.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP) nem alegou – e, menos ainda, ‘demonstrou’ – “um concreto e próprio interesse em agir".
O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 5/11 [de 09.02.2011, publicado em DR I-A a 11/05/2011], manteve o entendimento de que o interesse em agir do assistente no recurso depende da invocação de um concreto interesse próprio, afetado pela decisão recorrida, acrescendo que sobre a matéria se pronunciara, já, o Tribunal Constitucional, que, no seu acórdão n.º 205/2001, de 09/05/2001, julgou conformes à C.R.P., designadamente ao princípio do Estado de Direito e ao direito de intervenção do ofendido no processo penal, as normas constantes dos art. 69.º, n.º 1 e 2, al. c), e 401.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do C.P.P., na interpretação fixada pelo já referido Assento n.º 8/99, que restringe a legitimidade do assistente para contestar a decisão condenatória no que concerne à escolha e medida concreta da pena imposta ao arguido, condicionando-a à alegação e prova de específico interesse em agir.
Como afirmam António Henriques Gaspar e outros [Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 3ª edição revista, 2021, pág. 1254], "parece impor-se a conclusão de que o assistente, porque portador de interesses alheios àquelas "ideias e exigências transcendentes" que o Estado visa com a aplicação das penas, carece de legitimidade para atacar a sentença na parte em que esta fixa a espécie e medida da pena por não o afectar e não ser contra ele proferida (…) a lei, em situações idênticas, só permite ao assistente a impugnação da absolvição tout court, não já a espécie e medida da pena fixada na decisão”.
No caso, lido o articulado, o assistente não pretende, apenas, uma mera discussão jurídica, mas inconsequente, quanto à correta qualificação dos factos. Pretende, isso sim, o agravamento da pena aplicável e a aplicar através da alteração da qualificação sendo que, esse potencial agravamento, insere-se no exercício do jus puniendi do Estado, que ao Ministério Público cabe promover, tendo-se abstido, neste caso, de contestar, por via do recurso, a posição do Tribunal a quo, aliás igual à proposta na acusação.
Assim, na parte em que o assistente pretende a aplicação de pena mais gravosa ao arguido, por falta de legitimidade, à luz dos art. 69.º, n.º 1 e 2, al. c), e 401.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do C.P.P., não deverá a pretensão ser conhecida, o que não conduziu à sua rejeição em momento liminar tendo em conta o recurso interlocutório para conhecer em conferência, a junção da pretensão recursória cumulativa na parte em que é arguido, e a existência de jurisprudência e doutrina divergente do entendimento sufragado.
*
III.2
Recurso interposto pelo arguido BB III.2.1
Nota prévia
Alega o recorrente, genericamente (cfr. conclusão E), a existência de “erro notório na apreciação da prova, impondo-se uma decisão diversa e que seria forçosamente a absolvição do Arguido”.
Nos termos do art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P. «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova».
Assim e como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam exógenos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339], isto é, qualquer um dos referidos vícios tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão» [Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 340].
No caso específico do vício decisório prevenido na al. a), a indicada insuficiência determina a formação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto (não os meios de prova que a sustêm) é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, estando, pois, associado à insuficiência da matéria de facto para a decisão.
No segundo caso, o da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), este consiste na incompatibilidade, de inviável ultrapassagem através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal vício ocorre quando um mesmo facto, obviamente com interesse para a decisão da causa, seja julgado como provado e não provado simultaneamente e logicamente anulando-se, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode prevalecer, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Por fim, o invocado “erro notório na apreciação da prova”, prevenido no inciso da al. c), ocorre quando um homem, medianamente sagaz, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente intui e percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação notoriamente errada, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou inverosímeis.
De igual sorte, aponta-se a ocorrência de erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª edição, pág. 61 e ss.].
Trata-se, no caso, de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., pág. 74], não se verificando se a discordância resulta apenas da forma como o tribunal aprecia a prova produzida, por desconforme àquela que, na ótica do recorrente, deveria ter sucedido.
No caso sub judice, embora o recorrente faça alusão a “erro notório na apreciação da prova” tê-lo-á feito em sentido impróprio, na defluência do que, para si, seria a decisão correta – a absolvição – tendo com conta a valoração de prova proibida e a verificação de uma causa de exclusão da ilicitude e não, em sentido próprio, como afirmação da existência de vício decisório, já que não isola qualquer passagem concreta da decisão de onde resulte evidente, do texto da própria decisão, a existência do vício proclamado.
Efetivamente, lida a decisão posta em crise e considerado o seu conteúdo, desse texto não se alcança a existência dos vícios acima caraterizados.
O erro notório não se assume ante mera discordância quanto à opção tomada pelo Tribunal recorrido sobre a prova produzida. Erro notório na apreciação da prova é a classificação a dispensar a falha grosseira e ostensiva na análise da prova, que não passa despercebida ao comum dos observadores, que “entra pelos olhos dentro”, que não necessita de explicação para se notar existente o que, no caso, não se verifica.
Tendo a prova o conteúdo objetivo que o Tribunal considerou, as consequências que dali extraiu e perante o texto da decisão são consentâneas com aquela objetividade, acolhendo as conclusões que, indiretamente, delas possa ter retirado, em atividade contida no espetro da livre apreciação, sem que se surpreenda a existência do vício.
*
III.2.2
Da valoração de prova proibida
Refere o recorrente que o Tribunal a quo valorou vídeos realizados e fotografias captadas pelo arguido AA, elementos que foram obtidos mediante intromissão na vida privada, sem consentimento, sendo, por isso, consideradas provas proibidas.
Tendo com conta a argumentação da recorrente – gravação vídeo/fotografias não consentidas - poderíamos equacionar a utilizabilidade daqueles registos para efeitos de formação da convicção do Tribunal.
A ser como pretende o recorrente, estaríamos no campo do regime extrassistemático das proibições de prova, caso em que não haveria condicionamento para a eventual exclusão dos meios de prova contestados pela excussão do prazo de arguição de nulidades pressupostamente cometidas em face processual anterior (cfr. art.ºs 118.º, n.º 3, 126.º e 310.º, n.º 2 do C.P.P.), sendo, inclusivamente, fundamento de recurso de revisão.
Vejamos.
Dispõe o art.º 125.º do C.P.P., sob a epígrafe legalidade da prova, que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
Do preceito convocado resulta a existência de um princípio geral de aproveitamento de todos os sinais, sem concretização prévia ou tarifa, que possam ser relevantes para os efeitos prevenidos no art.º 124.º do mesmo diploma, ou seja, que possam ser adjuvantes da demonstração da existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.
Por outro lado, ao prever, desde logo, a eventualidade da proibição legal de produção ou utilização de determinadas provas, deixa-se antever a coexistência de um regime de proibição que iniba - não obstante a sua relevância ou utilidade para o objeto da prova - a produção ou valoração de determinadas provas.
Nos termos do disposto no art.º 126.º “1. São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas. 2. São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante: a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos; b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação; c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei; d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto; e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível. 3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. 4 - Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.”.
O dever de encontrar a verdade, que se quer próxima da verdade ontológica ou naturalística, apela à reunião de factos ou sinais que, a coberto do princípio geral plasmado no art.º 125.º do C.P.P., a que acima se aludiu, permitam servir de apoio à afirmação dessa verdade, de forma objetivável e sindicável. Só que essa verdade processual não é possível de obter a todo o transe pois encontra um limite inerente na existência e definição do Estado de Direito, fundado sobre o axioma ético da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana (art.º 1.º da C.R.P.), consubstanciado nas proibições de prova que, por um lado e numa dimensão individual, protegem os direitos fundamentais do arguido e, sob o enfoque comunitário e holisticamente, protegem a integridade constitucional do Estado, preservando a necessidade de probidade e lisura nos procedimentos.
Servindo como limite à descoberta da verdade e mesmo que o seu acolhimento possa defluir num prejuízo para a eficácia e efetividade do processo penal e do Direito Penal, as proibições de prova, com fundamento jurídico-constitucional no art.º 32.º, n.º 8, da C.R.P., - interditando temas, meios, métodos ou suscetibilidade de valoração de provas - são o garante da preservação do núcleo essencial dos direitos fundamentais do cidadão/arguido e a garantia do acolhimento dos padrões éticos na descoberta e demonstração da verdade, dando expressão concreta à categorização como Estado de Direito do regime vigente. Numa palavra, mesmo que prosseguindo interesses comunitários relevantes, os fins não podem justificar os meios.
Assim sendo, a obtenção da verdade deve obedecer a padrões de probidade, proibindo-se que seja alcançada sob a imagem do decesso da integridade física e moral do indivíduo. Quando assim não for, as provas obtidas mediante tortura, coação, utilização de meios enganosos ou de contorno de um grau nuclear de autonomia do indivíduo ou em violação não consentida do núcleo essencial da reserva da vida privada, são fulminadas com o anátema da não utilizabilidade o que, ao arrepio do que sucede com as nulidades gerais, mesmo ditas insanáveis, prolonga os seus efeitos destrutivos mesmo para além do limite do caso julgado.
Revertendo ao caso em apreço, aquando da ocorrência dos factos, o arguido AA procedeu à elaboração de vídeos a partir do seu telemóvel e à captação de fotografias, o que foi reproduzido e valorado.
Porém, a nosso ver, sem mácula.
Nos termos do disposto no art.º 167.º do C.P.P. «as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal».
Considerada a referência lei penal substantiva, dispõe o art.º 199.º do C.P. que "1 - Quem sem consentimento: a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas; é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. 2 – Na mesma pena incorre quem, contra a vontade: a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos (...)".
O indicado crime de gravações e fotografias ilícitas tem, como elemento objetivo, o registo fotográfico ou audiovisual da imagem de qualquer parte do corpo de outra pessoa ou na sua utilização ou permissão de utilização dessas imagens por terceiro, contra a vontade do visado, protegendo-se o direito à imagem e à palavra, em consonância com o disposto no art.º 79º nº 1 do C.C. e com o direito fundamental de personalidade constante do art.º 26º da Lei Fundamental.
Na vertente subjetiva do tipo trata-se de um crime doloso, em qualquer uma das suas modalidades.
Não obstante, nem o direito à imagem, nem o direito à palavra são direitos fundamentais absolutos, estando sujeitos a operações de conformação, nos termos previstos no art.º 18º nº 2 da C.R.P., podendo, por isso, sofrer as limitações que se mostrem indispensáveis à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
No caso, nem a captação de imagens, em ambiente público e nas circunstâncias em que os factos ocorreram (documentando os presentes e as lesões verificadas) não é violadora do núcleo essencial da reserva da vida privada, para efeitos do estatuído no art.º 126.º, n.º 3 do C.P.P., nem aquela captação constitui, em princípio, crime, atuando o agente ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude, pelo que não se trata de meio proibido de prova nem, para efeitos do estatuído no art.º 167.º, n.º 1 do C.P.P., de registos ilícitos, podendo, por isso, ser valorados nos termos do disposto nos art.ºs 125.º e 127.º do C.P.P.
Ademais e ao contrário do afirmado pelo recorrente, aqueles registos foram utilizados (também) para aferir da postura belicosa do próprio autor das gravações.
Não se verifica, assim, qualquer vício decorrente da utilização dos registos de imagem.
*
III.2.3
Da legítima defesa
Refere o impetrante que atuou após as agressões à sua esposa se terem iniciado e como forma de por fim às mesmas, estando verificados os pressupostos da causa de exclusão convocada.
Apreciando.
A legítima defesa, como causa de exclusão da ilicitude (cfr. art.ºs 31.º, n.ºs 1 e 2 al. a) e 32.º do C.P.) assenta em pressupostos factuais que, quando verificados, permitirão a afirmação de que o agente terá agido numa situação excludente da ilicitude, factos esses que, como todos os outros, serão sujeitos a prova.
No caso, vistos os factos provados, não se demonstra factualmente tal situação, sendo até contraditório que o recorrente venha convocar a falta de valoração de uma pretensa confissão integral e sem reservas dos factos e, cumulativamente, pressuponha verificada uma causa de exclusão da ilicitude incompatível com o sentido dos factos supostamente confessados.
Estabelece o art.º 31°, n.°s 1 e 2, al. a), do C.P. que o facto não é punível quando praticado em legítima defesa, definindo o art.º 32° do mesmo diploma a legítima defesa, enquanto causa de exclusão da ilicitude, como “o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”.
A legítima defesa pressupõe, assim, uma agressão atual - o que significa em execução ou iminente -, e ilícita, ilicitude que se deve considerar relativamente à globalidade da ordem jurídica, não apenas ao direito penal. Deve, ainda, o facto praticado em defesa constituir meio necessário para pôr termo à agressão, incluindo o referencial da proporcionalidade dos meios mobilizados, o que significa a utilização dos mais idóneos e menos gravosos que estejam disponíveis para atingirem o objetivo [Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, tomo I, 2.ª ed., pág. 404 e ss; e Taipa de Carvalho, Direito Penal, 2.ª ed., pág. 348 e ss.].
A doutrina mais representativa defende, ainda, que o elemento subjetivo da ação de legítima defesa se restringe à consciência da «situação de legítima defesa», isto é, ao conhecimento e querer dos pressupostos objetivos daquela concreta situação, o que se justifica e fundamenta no facto de a legítima defesa ser a afirmação de um direito e na circunstância do sentido e a função das causas de justificação residirem na afirmação do interesse jurídico (em conflito) considerado objetivamente como o mais valioso, a significar que em face de uma agressão atual e ilícita se deve ter por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação (animus defendendi), pratica os atos que, objetivamente, se mostrem necessários para a sua defesa [Taipa de Carvalho, ibidem, pág. 375 a 387, Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal (1992), pág. 189 a 191, Fernanda Palma, A Justificação por Legítima Defesa como Problema de Delimitação de Direitos (1990), pág. 611-58 e 693, Figueiredo Dias, Direito Penal, I, pág. 408 e Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, II, pág. 97.].
Note-se, ainda, que «A necessidade da defesa deve ser negada sempre que se verifique uma insuportável (do ponto de vista jurídico) relação de desproporção entre ela e a agressão: uma defesa inadmissivelmente excessiva e, nesta aceção, abusiva não pode constituir simultaneamente defesa necessária: logo porque não pode de modo algum representar- se como uma defesa do Direito contra o ilícito na pessoa do agredido». [Figueiredo Dias, Direito Penal, I, pág. 405].
Em resumo, a exclusão da ilicitude de uma conduta, ao abrigo do art.º 32.° do C.P. exige a verificação de cinco requisitos objetivos e um elemento subjetivo [vd. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.01.2004, proc. n.º 6821/2003-3, Rel. Carlos Almeida, acedido em www.jurisprudencia.pt]:
(i) a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro,
(ii) a atualidade da agressão
(iii) a ilicitude da agressão
(iv) a necessidade da defesa
(v) a necessidade do meio e
- o conhecimento da situação de legítima defesa.
Na sentença recorrida refere-se, a propósito deste segmento recursório, que: (…) “No que concerne à legítima defesa (invocada em sede de alegações por BB) Sob a epígrafe Legítima defesa dispõe o artigo 32.º do Código Penal: constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. Os requisitos para que se verifique a exclusão da ilicitude, por legítima defesa, são os seguintes: “a) A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. Tal agressão deve ser atual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter direito de a fazer; não se exige que ele atue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legítima defesa contra atos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo por erro; b) Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a atuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspeto da necessidade do meio. Trata-se de um afloramento do princípio de que deve ser a força pública a atuar, quando se encontre em posição de o fazer, sendo à força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela C.R.P. c) Animus deffendendi, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-05-2011, processo nº 165/10.3GASEL.C1, disponível em www.dgsi.pt).
*
No presente caso, entendemos que a situação não se pode enquadrar na legítima defesa. Na verdade, resultou provado que AA exaltou-se e, abeirando-se de CC, desferiu-lhe um murro no braço. Entretanto, surge o arguido BB, marido da ofendida, o qual, depois de pegar num vaso existente no local, lançou o mesmo em direção ao arguido AA, atingindo-o. Do quadro fáctico não resulta que quando BB atuou ainda estivesse a decorrer a agressão (a agressão consistiu num murro no braço) nem que o arguido tenha atuado com animus defendendi. Por outro lado, a dimensão da agressão, não tornava necessária a ação de BB (atirar um vaso que acertou, designadamente, na cabeça do coarguido), para assegurar a defesa de CC. Pelo exposto, a situação sub judice não preenche a causa de justificação legítima defesa.
*
Inexistem causas de justificação ou de exclusão da culpa aplicáveis.”
*
(…)
Tendo em conta a argumentação transcrita, mesmo interpretando o requisito do animus defendendi nos moldes supra referidos, entendemos que, efetivamente, não se mostram verificados os requisitos da causa de exclusão da ilicitude convocada.
Na verdade, temos, apenas, um ato de agressão (murro num braço) que foi, inclusivamente, desvalorizado pela vítima (que se encontrava acompanhada), estando o recorrente em condições de se aproximar e prestar auxílio, sendo o arremesso de um vaso à cabeça de AA desproporcional e desnecessário.
Tendo em conta os factos apurados, o recorrente quis (aliás admitiu) ofender corporalmente o AA, após a (única) agressão, sobre a sua mulher, ter cessado (vd. facto 3), não se mostrando, pois, reunidos os necessários pressupostos da legítima defesa, conforme assinalado na decisão recorrida.
*
III.2.4
Da (in)adequação da pena aplicada
Por fim, insurge-se o recorrente no que tange à pena que concretamente lhe foi aplicada.
Para tanto refere que não foi devidamente valorada a sua confissão, sendo a pena “desadequada face aos factos apurados”, sendo que “se mostra desadequado por excesso o valor da multa aplicada”.
Apreciando.
Incidindo o recurso sobre a medida da pena, a extensão dos poderes deste Tribunal para conhecer a questão em sede de recurso merece uma nota introdutória.
Assim, a sindicância do decidido não se efetivará como se inexistisse decisão recorrida, ou como se este Tribunal da Relação se predispusesse a aplicar as penas pela primeira vez. Ademais, note-se que “(…) o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta, apenas quando se justifique uma alteração minimamente substancial, isto é, quando se torne evidente que foi aplicada sem fundamento, com desvios aos citérios legalmente apontados” [cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.03.2015, proc. 109/14.3GATBU.C1, Rel. Inácio Monteiro, consultado em www.dgsi.pt].
Como se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.03.2018 [proc. n.º 827/17.4GAEPS.G1, Rel. Armando Azevedo, consultado em www.blook.pt], em alinhamento com a doutrina e jurisprudência aí citada, “(…) quanto aos limites de controlabilidade da determinação da pena em sede de recurso - entendemos ser de seguir o entendimento da doutrina e da jurisprudência no sentido de que é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de fatores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas a determinação do quantum exato de pena só pode ser objeto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada”.
Efetivamente e tendo existido, a montante, um julgamento – com contraditório pleno, oralidade e imediação – e uma atividade jurisdicional de fixação concreta da pena no culminar daquela audiência, na dependência do Tribunal ad quem não estará a realização de nova e originária determinação da pena mas, tão só, a sindicância do quantum da pena e a sua natureza, seguindo e tendo por referencial os critérios de determinação utilizados pelo Tribunal a quo, respetiva motivação, escrutinando a eventual existência de falhas ou omissões, exercendo a sua função corretiva se o resultado da operação se revelar ilegal ou manifestamente desproporcionado.
Do exposto resulta que a intervenção em segunda instância deverá ser sempre pautada pelo princípio da mínima intervenção, intercedendo se o processo determinativo se revelar insuficiente ou desajustado à luz dos critérios legais de determinação da pena, tendo por matriz os factos assentes.
Na verdade, a individualização judiciária da pena não é imune a um grau controlado de discricionariedade, inexistindo uma pena concreta inquestionável ou uma sentença certa e ideal, mas, antes, uma gama de decisões que, numa faixa de razoabilidade e proporcionalidade, poderão ser adequadas, conquanto os tribunais, aplicando os mesmos critérios de determinação das penas concluam, em casos semelhantes, por penas aproximadas.
Regressando ao caso em apreço, como é consabido e resulta expressamente do estatuído no art.º 40.º, n.º 1, do C.P., a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Em síntese e pela sua clareza, retenha-se o constante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2010 [proc. n.º 1687/04.0GDLLE.E1.S1, Rel. Pires da Graça, www.dgsi.pt]: - “1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. A moldura de prevenção, comporta ainda abaixo do ponto ótimo ideal outros em que a pressuposta tutela dos bens jurídicos “é ainda efetiva e consistente e onde portanto a pena pode ainda situar-se sem que perca a sua função primordial de tutela de bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico – abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.” (idem, Temas Básicos…, p. 117, 121): Tal desiderato sobre as penas integra o programa político-criminal legitimado pelo artº 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa e que o legislador penal acolheu no artigo 40º do Código Penal, estabelecendo, contudo, o nº 2 que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Neste conspecto, atentas aquelas finalidades, o art.º 71.º do C.P. estabelece os critérios da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação desta, dentro dos limites definidos na moldura legal, efetua-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, valorando o Tribunal todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra o agente, tendo sempre por limite a culpa que, axiologicamente estranha a finalidades retributivas, estabelece o limite superior da pena que ainda seja concordante com as exigências de preservação da dignidade da pessoa humana.
No caso que nos ocupa, o Tribunal a quo, após optar pela pena de multa (operação que, para efeitos do estatuído no art.º 70.º do C.P. o recorrente não contesta) individualizou a pena aplicada ao recorrente com a seguinte argumentação: - Atuaram com dolo direto (facto desfavorável); - Em termos de ilicitude, entendemos que esta é mediana (corresponde ao normal modo de cometimento do crime), elevando-se relativamente a BB na medida em que as consequências do crime foram mais gravosas e elevando-se relativamente a AA, porquanto foi este que desencadeou o quadro de agressão (agredindo a esposa de BB) - O arguido BB confessou os factos (facto favorável). - Os arguidos estão familiarmente inseridos (facto favorável) estando o arguido BB ainda laboralmente inserido (facto favorável). - Não têm antecedentes criminais (facto favorável).
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Sindicando o decidido, subscrevemos integralmente os fundamentos e o sentido da decisão.
Considerada a moldura abstratamente aplicável, não se pode dizer que o Tribunal não valorou a confissão (estando esta expressamente referida como fator individualizador) nem que o resultado da operação seja manifestamente desadequado, impondo a intervenção corretiva deste Tribunal ao abrigo da proibição constitucional do excesso.
Sendo a moldura abstratamente aplicável de 10 a 360 dias de multa (cfr. art.ºs 143.º, n.º 1 e 47.º, n.º 1 do C.P.), a sua fixação em 120 dias, no terço inferior daquela moldura, não se mostra desadequada, pelo menos por excesso, tendo em conta o resultado da atuação do recorrente, ainda que considerada a prévia ação do arguido AA sobre a mulher do recorrente.
Se, como parece dar a entender o recorrente, a sua pena é desadequada comparativamente à aplicada ao arguido AA (que, neste raciocínio, deveria ser mais elevada), reiteramos, aqui, a falta de legitimidade do recorrente para sustentar a eventual elevação da pena aplicada ao outro arguido.
Quanto à taxa diária, a mesma foi fixada pelo mínimo legal pelo que nem poderá ser aqui contestada.
Improcede, pois, in totum, o recurso interposto.
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IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto, em:
1. Determinar a correção da matéria constante do ponto 1 dos factos provados, passando a assumir a seguinte redação: “No dia 28 de maio de 2019, cerca das 08h30m, o arguido AA iniciou uma discussão com a ofendida CC quando ambos se encontravam em área comum do prédio situado na Avenida ..., .../..., ...”.
2. Não conceder provimento ao recurso interlocutório interposto pelo arguido AA da decisão proferida em 18.01.2023 e que indeferiu o requerimento de prova apresentado;
3. Não conceder provimento ao recurso da sentença interposto pelo arguido AA e, consequentemente, mantendo, quanto a este, a decisão recorrida;
4. Não conhecer do recurso interposto pelo assistente AA, na parte em que pretende o agravamento da pena aplicada ao arguido BB;
5. Não conceder provimento ao recurso da sentença interposto pelo arguido BB e, consequentemente, mantendo, quanto a este, a decisão recorrida.
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Custas da responsabilidade do arguido/recorrente na parte atinente ao recurso interlocutório, fixando-se em 3 (três) UC´s a taxa de justiça (cfr. art.ºs 513º do C.P.P. e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último).
Custas do recurso da decisão final pelos arguidos recorrentes, fixando-se em 4 (quatro) UC´s a taxa de justiça (cfr. art.ºs 513º do C.P.P. e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último).
Custas pelo assistente AA na parte atinente ao agravamento da pena aplicada ao arguido BB, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s (art.º 515.º, n.º 1, al. b) do C.P.P.)
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Porto, 20 de novembro de 2024
José Quaresma (Relator)
Pedro Vaz Pato (1.º Adjunto)
Paulo Costa (2.º Adjunto)