I - Se é certo que o art. 355º, nº 1, estipula não valerem em julgamento (…) nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, logo o nº 2 do mesmo artigo exceptua (…) as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas nos termos dos artigos seguintes, relevando no caso de que agora cuidamos o disposto no nº 4 do art. 356º, que dispõe que é permitida a reprodução ou leitura de declarações prestadas perante a autoridade judiciária se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento. A garantia de legalidade na utilização da prova referida neste último normativo exige que ela seja submetida ao contraditório. Esse contraditório, nos casos de impossibilidade de comparecimento por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apuramento do paradeiro, não tiver sido possível a notificação para comparecimento, é assegurado através da leitura das declarações em audiência, que poderão assim ser questionadas pelo arguido, tal como toda a demais prova produzida, tendo a solução normativa vertida no art. 356º acautelado as garantias de defesa do arguido relativamente a cada uma das leituras permitidas em função da sua natureza e das garantias processuais com que os actos foram praticados;
II - Se a conduta típica integrar vários actos dos quais apenas um se subsume a crime mais gravemente punido, existe uma relação de concurso efectivo de crimes, a ser punido nos termos do artigo 77º do CP, entre o crime de violação e o crime de violência doméstica, não apenas porque constituem crimes dolosos puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, mas ainda porque os factos relativos a cada um dos crimes são dotados de unidade de sentido social diferenciado e foram autonomizados, como tal, na sentença.(…)”;
III - O princípio da necessidade e da subsidiariedade das penas, segundo o qual, consistindo em privações ou sacrifícios de determinados direitos, só serão, elas próprias, constitucionalmente admissíveis, quando também se afigurem necessárias, adequadas e proporcionadas à proteção do direito ou interesse constitucionalmente protegido pela incriminação. No fundo, exige-se a adequação, necessidade e proporcionalidade não só da tipificação de crimes, como também da tipificação das penas (e respetiva execução).
Sumário:
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Acordaram, em conferência, as Juízas Desembargadoras da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
Por acórdão datado de 26/06/2023 foi proferida a seguinte:
«Decisão
Pelo exposto, decide este Tribunal Colectivo:
Condenar AA pela prática, em autoria material, na pessoa de BB, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do CP, na pena parcelar de 4 (quatro) anos de prisão.
Condenar AA pela prática, em autoria material, de um crime de coacção agravado na pessoa de CC, p. e p. pelos arts. 154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do CP, na pena parcelar de 2 (dois) anos de prisão;
Condenar AA pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado na pessoa de BB, p. e p. pelos art. 131º e 132º, n.º 2, als. a) e j), do CP, na pena parcelar de 21 (vinte e um) anos de prisão.
Em cúmulo jurídico condenar AA na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.
Desde logo o arguido não beneficia da Lei nº 38-A/2023 de 02.08, por força do seu art. 2º, n.º 1 (à contrário).
Absolver AA dos demais crimes imputados.
Declarar AA indigno para suceder à herança aberta por morte de BB, nos termos do disposto nos arts. 69.º-A, do C.P., 2034.º, al. a), e 2037.º, do C.C.
Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4UC.
Ao abrigo do disposto nos arts. 67º-A e 82º-A do CPP e 16º da Lei 130/2015, de 4-9, condenar AA a pagar à menor DD, devidamente representada por EE e mulher FF a compensação, oficiosamente arbitrada, no montante de € 50.000,00.
Ao abrigo do disposto nos arts. 67º-A e 82º-A do CPP e 16º da Lei 130/2015, de 4-9, condenar AA a pagar ao ofendido CC a compensação, oficiosamente arbitrada, no montante de € 2.000,00.
(…)»
Recurso\s da decisão
Inconformado veio o arguido AA, impugnar a decisão recorrida, retirando-se da respectiva motivação as devidas conclusões, que infra se transcrevem:
« CONCLUSÕES:
I - De acordo com o disposto no artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito. E de harmonia com o disposto no artigo 431.º do mesmo diploma, a decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto pode ser modificada se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base e se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada nos termos do artigo 412º, n.º 3, do C. P. P., o que se pretende com o presente Recurso.
II - Tribunal “a quo”, não fez uma correta apreciação da prova que lhe foi oferecida, não tendo designadamente, interpretado e valorado corretamente o depoimento do arguido e de diversas testemunhas que prestaram declarações durante a audiência de julgamento, acabando por condenar o arguido de forma injusta.
III – Assim, nunca o Tribunal a quo poderia ter dado como provados os fatos 3 a 29 do Acórdão, uma vez que assentam sobretudo nas declarações prestada pela própria vítima em 28.09.2022, que em momento algum foram objeto de contraditório por parte do arguido. devendo, por outro lado, ter sido considerados não provados os mesmos pontos, 3 a 29 do acórdão ora recorrido, fazendo-os constar da matéria não provada.
IV – Ao ter atuado como atuou, o Tribunal “a quo” fez uma errada interpretação da prova que lhe foi oferecida e violou, designadamente, o Princípio da Livre Apreciação da Prova (artigo 127º do C. P. P.) e o Princípio “in dubio pro reo, o que o levou a fazer uma incorrecta apreciação da prova que lhe foi oferecida, não tendo interpretado e valorado correctamente o depoimento do arguido aqui recorrente alvo de contraditório, oralidade e imediação, ao contrário do que sucedeu com as declrações da vítima BB, que apenas prestou depoimento em sede de inquérito, e não tendo também aplicado correctamente o Princípio da Livre Apreciação da Prova (Artigo 127º do C. P.P.) e o Princípio “in dubio pro reo”, acabando por condenar a recorrente, com base num conjunto de circunstâncias que não passam de meros indícios.
Assim,
V – o arguido/recorrente não cometeu o crime de violência na pessoa de BB, em que veio acusado e condenado, pois existe um insuficiência de matéria de fato e um crasso erro de julgamento, que levou a que o Tribunal a quo decidisse pela imputação objetiva e subjetiva do tipo legal de crime ao recorrente/arguido.
VI - O Tribunal a quo valurou, erradamente as declarações prestadas pela Malograda ofendida BB, prestadas em 28.09.2022, e a um par de afirmações e depoimentos indiretos e sem nunca terem presenciado algo de relevante, a não ser discussões entre o casal.
VII – O Tribunal a quo preferiu dar credibilidade ao depoimento/testemunho indireto da malograda vítima, constante de auto de inquirição de fls…, ao arrepio de tudo o que seria normal, em detrimento do testemunho e depoimento do arguido, que se predispôs ser sujeito ao contraditorio, à imediação e à oralidade das instâncias.
VIII - O testemunho indireto prestado pela vítima BB, em momento algum foi passível de contraditório, da imediação e da oralidade.
IX - Pelo que nunca poderia o Tribunal a quo ter partido da permissa que tal depoimento seria e/ou se apresenta como absoluto, único e verdadeiro, pois diga-se, nunca passou no crivo do contradiório, transparecendo que que o arguido para o crime de violência doméstica, foi condenado à intuição!
X - Sem qualquer tipo de fato verosímel, a não ser um testemunho indireto, e a confirmação dos O.P.C. que nada souberam relatar em sede de audiência de julgamento, ou por nada recordarem ou remetendo para o que foi escrito nos respetivos autos.
XI – Aliás, e tal intuição facilmente é transparecida pelo Tribunal a quo, pois são inúmeras as vezes que este se repete e invoca que tudo está a analisar em consunância com as regras da experiência comum e de juízos de normalidade.
XII – Descurando assim a objetividade probatória e fatual que se lhe impunha.
XIII - E com tal atuação e valoração do depoimento indireto da vitima, acabou o Tribunal a quo por reconhecer à fonte (vítima/ofendida) um poder de controlar, com o seu depoimento sem qualquer tipo de contraditório, a valoração da prova disponível.
XIV - Sendo flagrante assim a violação assentida pelo Tribunal a quo, pelo disposto nos artigos 128.º n.º1, 129.º n.º1 e 134.º nº. 1 al. b), todos do Código de Processo Penal, tendo sido, assim, utilizada prova nula.
Pois,
XV – Se Tribunal a quo não tivesse olvidado ou melhor, tivesse valorado devidamente determinados testemunhos e provas nos autos, e preferisse (porque até é mais fácil) valorar mais o depoimento da vítima, em detrimento do depoimento do arguido/recorrente, teria chegado a conclusão bem distinta do que a que chegou.
No essencial:
XVI - GG referiu que antes do nascimento da DD nada viu e de nada teve conhecimento e só em 2022 é que presenciou uma discussão e o arguido a dizer à ofendida “vai para o caralho, vai à merda”.
- Referiu que o arguido começou a telefonar à 1h00 e a enviar mensagens, o que fez várias vezes;
- nunca viu marcas no corpo da ofendida;
- no ano de 2003/2004 apesar de ter visto a ofendida chorosa, náo viu qualquer marca de agressão.
XVII - Como tambéem olvidou, que não raras vezes foi o próprio arguido/recorrente a apresentar queixas nas Autoridades competentes na qualidade de ofendido, nomeadamente, que era a ofendida que injuriava o arguido.
XVIII – Para além de que tudo o que as Testemunhas O.P.C, foram confirmar em julgamento foi o que fizeram/escreveram no expediente, com base nas declarações dos queixosos.
XIX – Ora, como se deu e dá à evidência, as testemunhas nada visualizaram ou presenciaram de relevante – a não serem discussões mútuas – a levando à errada, subsunção dos fatos ao tipo de crime de violência doméstica.
Assim,
XX – o Tribunal “a quo” não fez uma correcta apreciação da prova que lhe foi oferecida, não tendo interpretado e valorado correctamente o depoimento do arguido aqui recorrente alvo de contraditório, oralidade e imediação, ao contrário do que sucedeu com as declrações da vítima BB, que apenas prestou depoimento em sede de inquérito, e não tendo também aplicado correctamente o Princípio da Livre Apreciação da Prova (Artigo 127º do C. P.P.) e o Princípio “in dubio pro reo”, acabando por condenar a recorrente, com base num conjunto de circunstâncias que não passam de meros indícios.
XXI - O artigo 127.º do C.P.P. não consagra uma liberdade discricionária ao Tribunal, mas uma liberdade de convicção orientada por um critério formal de descoberta da verdade. Pelo que, não obstante as vantagens do princípio da oralidade e da imediação, deverão ser tidas em consideração tais restrições ao Princípio da Livre Apreciação da Prova (artigo 127º do C. P. P.).
XXII - No nosso entender, na fundamentação da sua convicção, o Tribunal “a quo” não foi objetivo, racional e coerente, não explicando devidamente, a partir da prova produzida, as razões pelas quais se convenceu de que os factos haviam decorrido tal como havia dado como provado nos pontos supra referidos.
XXIII - Com efeito, de uma forma até bastante discricionária, limitou-se a não atribuir credibilidade ao depoimento do arguido. Mas, na verdade esta conclusão é mais uma “intuição” do que uma valoração racional e objectiva dos factos. O Tribunal “a quo” deduz que se a o que ofendida declarou é absoluto e sintético, em detrimento do declarado pelo arguido em sede de audiência de julgamento.
XXIV – Assim e em conclusão, na ausência de qualquer prova cabal e, chamando à colocão, ainda, o princípio do in dubio pro reu, deverá ser o arguido/recorrido ser absolvido do crime de violência doméstica que foi condenado.
Ainda, e no caso de confrimação da punibilidade do Recorrente pelo crime de violência doméstica, sempre se concluir, sem prescindir que:
XXV – Existe, in casu, uma situação de concurso aparente de crimes, entre o crime de violência doméstica e o crime de homicídio (ainda que qualificado) em que o arguido/reocrrente acabou por ser condenado, o que, desemboca no caso de consução deste último crime perante o primeiro crime.
XXVI – Fato esse que o Tribunal a quo olvidou, e nem sequer ponderou ao longo do Acórdão Condenatório.
XXVII – Diz a própria letra da lei do artigo 152.º do C.P. diz que um agente só é condenado pelo crime de violência doméstica se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
XXVIII - Só se pode falar de concurso aparente de crimes se vários tipos legais – no que aqui importa – são preenchidos pela conduta do arguido.
XXIX - Para que possa verificar-se concurso aparente de crimes, que não foi objeto sequer se escrutínio por parte do Tribunal a quo, é necessário que o comportamento concreto do arguido que se traduz no referido de homicídio possa considerar-se também ato de materialização da violência doméstica abrangida pelo tipo legal respetivo, previsto no art. 152.º do C. Penal.
XXX - Independentemente das questões de política criminal que esta opção legislativa suscita, sobretudo em virtude de apenas ser aplicável a pena correspondente ao crime mais gravemente punido em que se materializou a violência doméstica sem qualquer agravação em função desta violência, o art. 152.º do C. Penal deixa claro que no caso de a factualidade integradora de violência doméstica ser punida com pena mais grave será essa situação que será efetivamente tutelada, resultando desconsiderados no seu conjunto os maus tratos físicos ou psíquicos sofridos pela vítima do ponto de vista da sua punição pelo tipo previsto no art. 152º do C. Penal, sem prejuízo, porém, da sua consideração em sede de medida da pena.
XXXI - Ora, considerando que o bem jurídico protegido corresponde à saúde da vítima, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, a questão a decidir nesta sede recursiva que se impõe a Venerando Tribunal ad quem - independentemente de a conduta dolosa daquele que mata outrem (homicídio consumado) poder ser abrangida pelo tipo legal de violência doméstica – começa por reconduzir-se a saber se o agente que mata alguma das pessoas abrangidas pelas alíneas do n.º1 do art. 152.º num contexto de violência doméstica, é enquadrável na inflição de maus tratos físicos e psicológicos a que se reporta o artigo 152.º do C. Penal, desde que praticada contra uma das pessoas a que reporta o n.º1 do art. 152.º.
XXXII - Crê a defesa que é de responder afirmativamente a esta questão, considerando que o homicídio pode constituir ato de materialização de violência doméstica abrangido pelo tipo legal do art. 152.º do C. Penal quer do ponto de vista objetivo, por constituir ato suscetível de afetar a saúde da vítima, enquanto bem jurídico complexo que é expressão da dignidade pessoal da vítima, pelo menos nas hipóteses de não consumação do crime, quer subjetivo, na medida em que o dolo de homicídio pressupõe o dolo necessário ou eventual, consoante os casos, de lesão à saúde da vítima enquanto bem jurídico complexo tutelado pelo tipo legal de violência doméstica.
XXXIII - Entende-se e deveria ter entendido também o Tribunal a quo verifica-se, pois, uma relação de subsidiariedade expressa entre ambos os tipos legais que conduz à punição do arguido pelo crime de homicídio qualificado na pessoa de BB, p. e p. pelos artºs. 131.º, 132.º n.º1 al. a) e j), e que alias é entendimento que se pugna ser confirmado por este Venerando Tribunal ad quem.
XXXIV – Pelo que, mais um vez, deve o arguido/recorrente ser absolvido do crime de violência doméstica de que veio condenado.
Ainda, e sem prescindir sempre se dirá que,
XXXV - o Tribunal a quo violou os artigos 40.º, 71.º e 77.º todos do Código Penal, pois a pena de prisão de 23 (vinte e três) anos a que o arguido/recorrente foi condenadon é excessiva e desajustada Às necessidades preventivas que o caso reclama, não podendo, de maneira alguma, colher o Juízo realizado pelo Tribunal a quo sobre as finalidades de prevenção geral e especial que aqui se impõem.
XXXVI – Note-se que, segundo o Tribunal a quo a moldura aplicável para os diferentes tipos de crimes a que o recorrente foi condenado é:
- para o crime de violência doméstica a moldura penal abstrata é de dois a cinco anos de prisão;
- para o crime de coação agravada a moldura penal abstrata é de um a cinco anos de prisão;
- para o crime de homicídio qualificado a moldura penal abstrata é de doze a vinte e cinco anos de prisão.
XXXVII - Tendo o Tribunal a quo condenado o recorrente nas penas parcelares de:
- de 4 (quatro) anos de prisão pela prática, em autoria mateiral, na pessoa de BB, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do C.P.;
- de 2 (dois) anos de prisão pela prática, em autoria material, de um crime de coação agravado na pessoa de CC, p. e p. pelos arts. 154.º, n.º1 e 155.º n.º 1, al, a), do C.P.;
- de 21 (vinte e um) anos de prisão pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado na pessoa de BB, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.º2, als. a) e j) do C.P.
XXXVIII – O Tribunal a quo descosiderou e/ou não valorou convenientemente, as declarações prestadas pelo Recorrente, a postura por si assumida em Julgamento e após o cometimento dos atos, a crispação mútua do casal, ainda, a ausência de crimes relavantes no Certificado de Registo Criminal do Recorrente, a idade do Recorrente, as condições pessoais e profissionais em momento anterior à prisão preventiva, as condições sociais e familiares que apresenta e ainda os relatórios periciais e sociais juntos aos autos.
XXXVIX - O arguido após o fatídico dia entregou-se voluntáriamente na G.N.R. ..., assumindo a cometimento dos fatos relativos ao Homicídio na pessoa de BB, auxiliou as entidadas judiciais e judiciárias na reconstituição de fato, em tudo colaborando com a justiça, demonstrando a nosso ver arrependimento sério e sincero ao longo de toda a audiência de julgamento, fosse perante o Tribunal a quo, fosse até pelos assistentes, Pais da vítima.
XL - Resulta claramente do teor dos relatórios periciais ínsitos nos autos que o Recorrente é um bom Pai, e com características positivas, vide designadamente o teor do relatório datado de 14.12.2022, designadamente: “o examinado encontra-se perfeitamente capaz de manejar intelectualmente a informação, de distinguir entre bem e mal, certo e errado e de operar de acordo com essa mesma avaliação, sugerindo, ainda, reunir um conjunto de capacidades que lhe permitem responsabilizar-se pelos seus atos, não apresentando psicopatologia que o impeça de assumir a voluntariedade, intencionalidade e responsabilidade pelos seus comportamentos”; “o examinando revelou afetos muito positivos face à DD e às suas principais necessidades”; “
Ainda,
XLI - resulta, em suma, do teor do relatório psicológico feito à Menor DD, filha do Recorrente e da Vítima BB, datado de 14.12.2022, “à data deste exame, não identificamos indicadores de eventuais conflitos de lealdade ou de instrumentalização por parte dos progenitores, tendo a examinada recorrido a um vocabulário consistente com a sua faixa etária, grau académico e com o seu enquadramento sociocultural. De igual forma, a nível psicoafetivo, a criança revelou sentimentos muito positivos relativamente a ambos os progenitores, sugerindo manter com ambos uma relação de vinculação do tipo seguro. A DD destacou ambos os pais como figuras de referência do seu universo relacional, tendo, concomitantemente, dado mostras de laços afetivos de relevo com os irmãos. Não demonstrou rejeição relativamente a nenhum dos progenitores…”.
Mais,
XLII – o exame de psiquiatria da Infância datado de 15.01.2023, onde em conclusão se pode ler que “ ao longo da avaliação a examinanda descreveu vivências gratificantes com ambos os pais, assim como vinculações afetivas estruturas e seguras com ambos. No entanto, os vínculos afetivos com a mãe não parecem tão relevantes como os que tem com a figura paterna”.
XLIII - O que, é bem ilustrativo que a menor vê no Pai a figura de bonus pater familias, e que tem nele figura referência no seu desenvolvimento e crescimento.
XLIV - O arguido à data dos fatos contava com 47 (quarenta e Sete) anos de idade e à data da Prolação do Acórdão, com 49 (quarenta e nove) anos de idade, sendo que se encontra em situação de prisão preventiva desde o dia 23.02.2023, estando em meio cárcere há sensivelmente 1 (um) ano e 6 (seis) meses.
XLV - Resulta do teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos, resulta, efetivamente, algumas condenações sofridas pelo arguido, mas não com a ênfase e gravidade dada pelo Tribunal a quo, que nos merece o maior respeito.
XLVI - O que consta sim, é o averbamento de práticas delituosas mas de origem rodoviária, e outras bagatelas penais, que em nada se comparam e/ou aproximam com as práticas em questão nos presentes autos, e quase todas anteriores ao ano de 2010 e mais antigas!
XLVII – Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo fucou-se muito, mas diga-se MAL, no teor do C.R.C. do arguido, olvidando de fazer uma análise objetiva e concreta aos fatos em julgamento (e só a estes) e não outros.
XLVIII - Na análise dos fatos em julgamento, não podia o Tribunal a quo aferir a ilicitude e a culpabilidade do arguido/recorrido, através de uma análise global e abstrata do C.R.C. deste, imputando-lhe juízos de censura que, diga-se, em nada tem a ver com os fatos em julgamento.
XLIX - Pelo que, mal andou, mais uma vez o Tribunal a quo, ao julgar o arguido pelo teor do seu CRC, ao inves de ter feito uma concreta e objetiva análise aos fatos em julgamento.
L - Pelo que ao ter dado ênfase ao teor do C.R.C. do arguido, em vez de outras virtualidades, mal andou, o que o fez desembocar na aplicação de penas parcelares e consequentmente, na pena única, injusta e desproporcinal.
Ainda,
LI – Desvalorizou o Tribunal a quo o teor do relatório social elaborado em 05.02.2024, donde resulta que o recorrente se encontra laboralmente ocupado, beneficiando de apoio clínico nas áreas de psicologia e psiquiatria, mantendo apoio por parte da família através de visitas regulares, nomeadamente dos seus filhos e de uma tia que lhe facultaram apoio em meio livre.
LII - Resultando, claro, que o arguido tem o propósito de assimilar o desvalor das suas condutas, almejando a sua ressocialização após cumprimento da pena que vier a ser fixada por este Venerando Tribunal da Relação do Porto.
LIII - Tudo isto, salvo o devido respeito por douto entendimento diverso, não poderia ter sido desvalorado pelo Tribunal a quo, pois são fatos reveladores da personalidade do recorrente. LIV - Não podendo, além do mais, descurar-se que a sujeição a uma pena de prisão efetiva tão longa e pesada compromete sériamente a possibilidade de reintegração do arguido na sociedade, para além de que não visa o fim das penas e das medidas de segurança.
LV - A verdade é que, a pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão em que acabou condenado o arguido, para além de não se mostrar devida e suficientemente fundamentada, é manifestamente excessiva sobretudo tendo em atenção às condições/caraterísticas acerca da personalidade do arguido e das suas condições sócio-pessoais em momento anterior à prática dos crimes em questão, quando, comparado com aquela que vem sendo bitola firmada pela Jurisprudência.
LVI - se impõe concluir pela inegável necessidade de redução substancial da pena única de prisão aplicada ao arguido/recorrente. Até porque,
LVII - sujeitar o arguido a uma tao longa e pesada carreira enquanto recluso de 23 (vinte e três) anos de prisão, significará que a pena apenas se extinguirá quando o arguido tiver mais de 70 (setenta) anos de idade, já em avançado estado de velhice, dificultando assim a sua reintegração na sociedade, a possibilidade de viver e presenciar o crescimento e desenvolvimento dos seus filhos, designadamente, da pequena DD, que terá 35 (trinta e cinco) anos de idade.
LVIII - Pois não é por a pena única aplicada ser rigorosa e elevada que se conseguirá fazer com que o desvalor das condutas seja interiorizado pelo recorrente.
LIX - O que a pena e o seu fim devem verificar, é que o agente prevaricador interiorize convenientemente o desvalor das suas condutas ao longo do cumprimento da pena, preparando-o para conseguir uma reintegração em meio livre e na sociedade.
Pois,
LX - Nos termos do artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, a pena é determinada em função da culpa e da prevenção, não podendo ultrapassar a medida da culpa.
LXI - Por seu turno, estatui o seu n.º 2 que, na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, entre outros fatores, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
LXII - Sustenta, por isso, a defesa, e em jeito de conclusão que, atendendo às considerações efetuadas sobre o grau de ilicitude, a valoração das declarações e os dados do Relatório Social, as penas parcelares aplicada ao recorrente, e consequentemente a pena única a que o mesmo foi condenado, excede a medida da culpa do arguido, violando o disposto nos artigos 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal, e que tudo ponderado seria adequada as seguintes penas parcelas, em caso de confirmação da condenação do arguido pelos crimes condenados:
- a uma pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, (em caso de confirmação pela prática deste crime);
- a pena de 1(um) ano de prisão pela prática do crime de coação agravada;
- a pena de 16(dezasseis) anos de prisão pela prática do crime de Homicídio Qualificado.
LXIII - E na pena única de nunca superior a 19 (dezanove) anos e 6 (seis) meses de prisão,tendo em conta os factos constantes do seu relatório social, mais concretamente o facto de o recorrente ter um forte apoio dos seus familiares, ter um projeto e atividade profissional na área da mecânica, ter um excelente comportamente intra muros contando, também com o apoio da sua Tia,
LXIV - sendo que o cumprimento de tal pena única a aplicar, se demonstra, indubitavelmente proporcional e ajustada a cumprir com as finalidades da pena e suficientemente duradoura para que o recorrente possa assumir e interiorizar o desvalor das suas condutas,
Permitindo-o, ainda, a final
LXV - lograr conseguir a sua RESSOCIALIZAÇÃO NA SOCIDEDADE.
Termos em que se requer a V.as Ex.as se dignem admitir o presente recurso e. em consequência:
Ser o arguido/recorrente absolvido do crime de violência doméstica que foi condenado, por não se verificar o preenchimento dos elementos objeticos e subjetivo do tipo de crime, com as legais consequências que dessa absolvição resultarem.
Caso não proceda a alínea a) supra,
sempre terá que ser, igualmente, absolvido o arguido/recorrente do crime de violência doméstica, por se verificar um concurso aparente de crimes, por o crime de homicídio (qualificado) consumir o crime de violência doméstica.
Sem prescindir,
Sempre deverá ocorrer a redunção substancial das penas parcelas e consequentemente da pena única, tudo de acordo com o grau de culpa do agente de acordo com as motivações e conclusões enunciadas, não podendo a pena única a aplicar ultrapassar o grau da culpa do agente.
Só assim sucedendo, farão V.as Ex.as a tão almeja Sã e inteira JUSTIÇA.
Pede Deferimento: (…).»
O Ministério Público deduziu Resposta ao recurso interposto e, em suma, concluiu que o presente recurso deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida nos seus precisos termos, apresentando, as seguintes conclusões:
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416°, do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto acompanhou a resposta da Exma. Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância à motivação do recurso interpostos pelo arguido. emitindo parecer no sentido de que seja julgado improcedente o presente recurso, confirmando-se o acórdão proferido pelo Tribunal a quo.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. A delimitação do objeto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, n.º 2, ou 379º, n.º 1, ambos do CPP (cfr. art.º 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, ambos do CPP), conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
Da análise das conclusões do recorrente extraímos as seguintes questões que importam apreciar e decidir:
A - Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – art. º410 CPP - A -Da utilização de Prova Nula/violação do princípio do contraditório;
B - Erro de julgamento com impugnação alargada da matéria de facto no que se reporta à factualidade assente sob os n. ºs 3 a 29;
C - Da violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dúbio pro reo”; violação dos artigos 127. º, 128 .º1, 129 n. º1, 134 n.º1 b), todos do C.P.Penal;
D - Erro de julgamento na matéria de Direito - o concurso aparente dos crimes de violência doméstica e do crime de homicídio;
E- Erro quanto à pena concretamente aplicada na dosimetria das penas parcelares e do cúmulo jurídico daí decorrente; violação dos art. º 71 e 77.º do C. Penal.
II.2 A Decisão Recorrida:
A decisão recorrida tem o seguinte teor:
« Relatório.
PCC n.º 276/22.2PAGDM
Nos presentes autos de processo comum, com intervenção de Tribunal Colectivo, o Ministério Público deduziu acusação contra:
AA, nascido a ../../1975 em ..., ..., filho de EE e de HH, mecânico, residente na Rua ..., ..., ..., ... e actualmente preso preventivamente á ordem dos presentes autos;
Imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de:
Um crime de homicídio qualificado, previsto e punido, pelas disposições conjugadas do arts. 131º e 132º, nº 1 e nº 2, als. b), f) e j) do Código Penal;
Dois crimes de violência doméstica agravados, previstos e punidos, pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do Código Penal (em relação à ofendida BB);
Um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido, pelo art. 152º, nº 1, al. d) e e) e n.º 2, al. a), do Código Penal (por exposição da menor DD à violência interparental);
Um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo art. 152º, n.º 1, al. d) e e) e n.º 2, al. a), do Código Penal (por privação da menor DD à figura materna);
Um crime de coacção agravada, previsto e punido, pelos arts. 154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do CP;
Mais requereu o MP a aplicação das sanções acessórias previstas pelo nº 4 a 6, do art. 152º e pelo art. 69-A, ambos do Código Penal, tudo pelos factos constantes da acusação de fls. 1254 a 1276, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
GG e II vieram, na qualidade vítimas e ascendentes da falecida BB, deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido, conforme referência 25382182 de 22.09.2023, o qual não foi admitido, pelos fundamentos constantes do despacho de 30.10.2023 (refª 4530501319), cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
O arguido foi notificado nos termos do disposto nos arts 82º-A, n.º 2 do CPP ex vi do art. 21º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e art. 16º do Estatuto da Vítima aprovado pela Lei 130/2015 de 04.09, relativamente às vítimas DD e CC para querendo se pronunciar/contestar.
GG e II foram admitidos a intervir nos autos na qualidade de assistentes.
O arguido apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos e arrolou testemunhas, conforme refª 37688374 de 29.12.2023, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, tendo no seu decurso sido comunicada uma alteração não substancial dos factos, conforme art. 358, n.º 1, do CPP.
O arguido requereu prazo para preparação de defesa o que lhe foi concedido e que exerceu, tudo conforme consta da acta de 11.06.2024, referência 460989369 e do requerimento de 20.06.2024, referência 39409915, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade que presidiram à prolação do despacho que designa dia para julgamento, nada ocorrendo posteriormente que obste ao conhecimento do mérito da causa.
Fundamentação.
De facto.
Factos Provados.
Instruída e discutida a causa resultou provada a seguinte matéria fáctica, com interesse para a decisão (tendo presente que “a elencação dos factos provados (...) refere-se apenas aos factos essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena e não aos factos inócuos (...)” - cfr. Ac. do TRC, de 19-03-2014, proc. n.º 811/12.4JACBR.C1, in www.dgsi.pt):
1. Depois de um período de coabitação iniciado no ano de 2004, a 4 de Agosto de 2012, a ofendida BB e o arguido contraíram matrimónio, adoptando sucessivas moradas até passarem a residir na Rua ..., em ....
2. Em comum, têm uma filha menor: a DD, nascida a ../../2012.
3. Após o início da coabitação, o arguido, por via dos ciúmes que sentia, adoptou comportamentos de controle sobre a BB, o que acontecia com uma regularidade inicial de duas vezes por mês e, posteriormente, com uma maior regularidade, pelo menos, de duas vezes por semana.
4. Assim, quando a ofendida, em 2005, começou a exercer actividade profissional, o arguido passou a controlar-lhe o horário laboral; demonstrava desagrado quando a ofendida pretendia conviver/sair com terceiros, como tomar café com uma vizinha ou com uma colega de trabalho, questionando-a se não tinha o que fazer em casa; vistoriava a carteira que BB usava, para aceder ao seu telemóvel e fiscalizar/controlar o seu conteúdo, achando-se no direito de o fazer, tanto que questionado pela mesma, respondia «vou ver o teu telemóvel»; censurava o modo de vestir de BB visando vedar a possibilidade de aquela usar roupa decotada, dizendo: «Tu não vais sair com isso. Isso não tem jeito nenhum». BB chegou a ir trocar de roupa para não se incomodar mais.
5. Concomitantemente, o arguido entendia ser ele o «chefe de família» e, portanto, ser a ele que competia, exclusivamente, tomar decisões pelos dois, devendo a ofendida acatar o que o mesmo determinasse e sempre que a BB tomava alguma iniciativa ou manifestava opinião discordante, o arguido, instava-a a calar-se e apodava-a de «puta», «vaca», «cabra» e «filha da puta”.
6. O arguido nunca se inibiu de destratar verbalmente a ofendida BB com tal tipo de impropérios, na residência do casal e fora dela (à porta do emprego da ofendida no escritório em ..., ... e na residência da sua entidade patronal em ...), algumas vezes na presença do filho do arguido, dirigindo-lhe recorrentemente àquela dizendo-lhe: «Cala-te. Isso não tem jeito nenhum. Puta. Vaca. Filha da puta», o que acontecia quando o arguido implicava com os horários de chegada a casa da vítima, quando esta falava do pagamento das despesas de casa ou quando ingeria álcool em excesso (cerveja), factos que davam lugar a discussões entre o casal.
7. A 4 de Novembro de 2006, na habitação comum, o arguido agrediu a ofendida BB com socos, tendo-lhe ainda tentado apertar o pescoço. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida sofreu hematoma molar esquerdo e hematoma occipital, bem como dores, tendo recorrido à urgência do Centro Hospitalar ..., onde deu entrada pelas 22h18m e onde foi observada por cirurgia, tendo tido alta pelas 23h55m.
8. Na noite de 7 de Novembro de 2007 o arguido agrediu a ofendida com um muro na cara, sem, contudo, causar sequelas físicas.
9. Ao início da tarde de 6 de Janeiro de 2016, no estabelecimento do «Clube ...», sito na Rua ..., em ..., ..., porque a ofendida questionou o arguido se este já tinha contactado o fornecedor de café, o arguido exaltou-se, dirigiu-se à mesma e, sem mais, desferiu-lhe um murro na face. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida sofreu dores e as seguintes lesões: na face: equimose arroxeada ténue imediatamente superior à metade esquerda do lábio superior com 1 cm de diâmetro, e ligeiro edema subjacente; duas áreas equimóticas arroxeadas, uma na face interna do lábio superior à esquerda com 1,5cm de diâmetro e outra na face interna do lábio inferior à direita com 1cm de diâmetro; tais lesões demandaram para a respectiva cura 5 (cinco) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral.
10. Em Março de 2017 o arguido começou a explorar o estabelecimento denominado «Café ...», sito em ....
11. Com o avançar do mau relacionamento entre o casal, a ofendida passou a pernoitar, com a filha menor, DD, nas instalações do dito «Café ...». No entanto, esta mudança teve a sua principal causa no facto de o arguido ter deixado de pagar o consumo de água e electricidade da residência comum do casal, então, sita em ..., ..., provocando, deste modo, o corte do respectivo fornecimento.
12. Então, BB decidiu ir residir com os seus pais, na Rua .../..., em ..., ..., o que fez a 01.08.2017, levando a menor DD.
13. O arguido continuou a privar com a sua filha DD, com o consentimento da ofendida, e após desentendimentos a propósito da entrega da DD à mãe, a 16 de Outubro de 2017, o arguido deslocou-se, pela 01h00, à então morada da ofendida, pretendendo - ainda que contra a vontade desta - chegar à fala com a mesma e aceder a um telemóvel que a mesma tinha na sua posse.
14. Para o efeito, o mesmo tocou e ligou para o telemóvel da BB, mas também para o telefone fixo instalado na referida habitação, tudo de forma insistente, perturbando a tranquilidade/repouso da ofendida.
15. Quando a GNR chegou, ou seja, pelas 02h50, o arguido ainda se encontrava no local.
16. Também à época, o arguido, de forma não apurada acedeu ao perfil da ofendida na rede social Facebook, e ali escreveu:
«Um Sogro que chama cornudo ao genro o a filha e p…ta ou vaca
Ganhe vergonha na cara Sr GG e você dona II
Contribui para o divórcio da própria filha», colocando uma fotografia daqueles pais da ofendida;
«esta visto que não queres falar com a tua filha»;
«Ganha vergonha nunca te proibi de ver.s a tua filha dizes q não tens carro mas tens caminetas… BB»;
«Infelizmente nem a tua filha vens ver Interessa te e os passeios».
17. O casal voltou a viver junto no final de Outubro/ principio do Novembro de 2017, altura em que o arguido manteve um comportamento mais calmo.
18. No entanto no decurso de 2018, o arguido, na residência do casal e fora dela, várias vezes por semana, dirigiu-se à ofendida dizendo-lhe: «Cala-te. Isso não tem jeito nenhum. Puta. Vaca. Cabra. Filha da puta», o que acontecia quando implicava com os horários de chegada a casa da vítima, quando esta última falava do pagamento das despesas de casa ou quando ingeria álcool em excesso (cerveja), o que dava lugar sempre a discussões.
19. E sempre que a ofendida manifestava intenção de cessar com a relação, o arguido declarava-lhe - em tom sério, convincente e intimidatório
«mato-te», «não me importo de ir preso» e «não ficas com a filha», isto para além de lhe propalar intenções de, uma vez mais, a agredir/«bato-te».
20. Desde Julho de 2022 o casal deixou de dormir no mesmo quarto.
21. Cerca das 22:30 horas, do dia 7 de Setembro de 2022, no interior da residência comum - sita na Rua ..., em ... - o arguido instou a menor DD a ir dormir para o seu quarto, tendo a ofendida retorquido que a filha ia ficar ali consigo (no quarto do casal), ao que o arguido reagiu aos gritos e, com uma sapatada, partiu o candeeiro da mesinha de cabeceira.
22. Na madrugada de 14 de Setembro de 2022, a propósito de uma discussão, sobre o facto de pelas 15:00 horas do dia anterior, o arguido ter ido recolher a filha menor no Centro de Estudo, foi solicitada a presença da Polícia de Segurança Pública na residência comum do casal, a quem o arguido se queixou que a ofendida não levava o lixo para a rua há já três dias, que não lhe lavava a roupa, nem fazia a comida para ele.
23. Nesse mês, o arguido efectuou uma série de chamadas telefónicas à ofendida e, pelo menos, no dia 23.09.2022 deslocou-se ao local de trabalho da ofendida, apelidando-a de «puta», causando naquela receio/medo.
24. No dia 16 de Setembro de 2022, a ofendida contactou com o arguido no sentido se inteirar se o mesmo estaria com a filha menor (uma vez que esta não se encontrava no Centro de Estudo).
25. No dia 17 de Setembro de 2022, pelas 00:25 horas, a Polícia de Segurança Pública foi, uma vez mais, chamada à citada residência.
26. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, instado, o arguido, pelos elementos policiais a recolher e levar para casa a DD (que se encontrava no interior da viatura daquele), o arguido saiu do local, com a menor.
27. A partir de 26.09.2022, o arguido deixou de pernoitar na referida habitação, tendo levado consigo a filha menor, impedindo a ofendida de a contactar pessoalmente e afirmando que a mesma não tinha que saber do respectivo paradeiro.
28. A menor DD assistia às discussões do casal, quando as mesmas decorriam em casa, ouvindo o que era dito, o que, por vezes a levava a telefonar ao seu meio irmão, JJ, filho do arguido, que logo se prontificava para a ir buscar para dar um passeio, o que fazia.
29. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de controlar, subjugar e menorizar a ofendida BB, sentindo-se superior à mesma; de molestar a ofendida no seu corpo e saúde; de aterrorizar a ofendida, causando-lhe medo pela sua integridade física e vida, afectando-a na sua capacidade de reacção e locomoção; bem sabendo que violava o direito de confiança da mesma no estabelecimento da relação de intimidade (e com filha comum) de que ele se absteria daquele tipo de condutas, agindo, amiúde, no interior da residência comum e na presença da sua filha menor, DD, a coberto da reserva de intimidade que tal locus proporcionava, e num espaço que deveria servir de conforto e de segurança para ofendida BB e para a menor DD. Mais sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei.
30. A 30 de Setembro de 2022, o arguido foi detido e conduzido a interrogatório judicial, onde ficou sujeito às medidas de coacção de proibição de contactar (por qualquer meio) com a ofendida ou dela se aproximar num raio de 500 metros; bem como proibido de frequentar, permanecer ou aceder à residência da ofendida e locais de trabalho daquela, tudo a fiscalizar por meios tecnológicos de controlo à distância.
31. Os equipamentos de vigilância electrónica para fiscalização das medidas de coacção impostas foram instalados no dia 05.10.2022.
32. O arguido passou a ter como morada a Rua ..., ..., .../..., residência da sua tia KK.
33. Não obstante as medidas de coacção judicialmente aplicadas, o arguido não se absteve de contactar com a ofendida, fazendo-o através do telemóvel da filha comum, de outros números e através da rede social Facebook, onde a destratou apelidando-a de «falsa» e «fria».
34. O arguido percebendo que a ofendida estava, agora, decidida a divorciar-se e que, em face deste processo, existiam fortes probabilidades de a filha menor ficar à guarda daquela, na manhã de 22 de Fevereiro de 2023 - primeiro dia útil seguinte à conferência de divórcio - o arguido muniu-se de uma faca de cozinha, escolhendo a que tinha 20 (vinte) centímetros de lâmina e, da sua residência em ..., dirigiu-se ao local de trabalho da BB, sito na Rua ..., ..., em ..., ..., percorrendo uma distância de cerca de 25Km.
35. Para o efeito, o arguido deslocou-se na viatura de marca ...», modelo ... de cor ... e com a matrícula ..-..-TO.
36. Nesse dia, pelas 8h15m, já BB fazia limpeza nas instalações da «A...» (do grupo «B...»), sitas na morada supra indicada.
37. Pelas 8h13m, do aludido dia 22.02.2023, foi reportado pelo sistema de monitorização electrónica o afastamento do arguido relativamente à UPM (unidade de posicionamento móvel), equipamento de geolocalização que se encontrava obrigado a transportar consigo em permanência, uma vez que se tratava do equipamento que fornecia a sua localização geográfica e permitia identificar eventuais aproximações à ofendida, no âmbito da medida de coacção a que estava sujeito.
38. Nessa sequência, a Equipa de Vigilância Electrónica, em ordem a procurar a reposição da normal fiscalização, efectuou tentativas de contacto com o arguido, sem sucesso, uma vez que o telemóvel daquele estava desligado.
39. Paralelamente a Equipa de Vigilância Electrónica enviou à ofendida um SMS a informar da perda da monitorização do arguido.
40. Pelas 08h51m daquele dia, ocorreu uma aproximação do arguido à ofendida junto da Conservatória Registo Civil de Gondomar, sita Rua ..., ..., ..., ..., ou seja, próximo do local onde a ofendida estava a trabalhar (cerca de 14 metros a pé).
41. De imediato, a Equipa de Vigilância Electrónica estabeleceu contacto com a ofendida que confirmou que o seu equipamento de geolocalização sinalizara a proximidade do arguido e informou que havia avistado o arguido a passar de carro, mas que se encontrava em segurança.
42. Pelas 08h55m, do referido dia, o arguido afastou-se do aludido local.
43. Ás 9h19m daquele dia, ocorreu nova aproximação do arguido à ofendida, de novo, junto da Conservatória Registo Civil de Gondomar, sendo que contactada pela Equipa de Vigilância Electrónica, a ofendida reiterou encontrar-se em segurança.
44. Pelas 09h24m, do referido dia, o arguido afastou-se do local.
45. Assim, o arguido rondou o local de trabalho da ofendida e confirmou a sua presença no local.
46. O arguido estacionou o veículo em que se fazia transportar numa outra artéria, ocultou a referida faca na roupa que envergava e entrou nas instalações da «A...» (do grupo «B...»), cuja porta se encontrava aberta e onde a BB, no interior, mais precisamente no hall de entrada, efectuava limpeza.
47. Ao entrar nas referidas instalações o arguido fechou a porta de acesso às mesmas.
48. Não obstante a ofendida se ter apercebido da passagem de carro por parte do arguido e de ter sido contactada pela Equipa de Vigilância Electrónica nos termos supra-referidos, a mesma foi surpreendida pela presença do arguido no local, começando a gritar por socorro.
49. De imediato o arguido desferiu um estalo em BB, tendo esta em consequência sido projectada para o chão, onde ficou caída sobre o seu lado esquerdo, a gritar por socorro.
50. Ao aperceber-se dos gritos de socorro da ofendida, um dos funcionários da referida empresa, CC, acorreu em auxílio daquela, mas foi impedido de se aproximar, uma vez que o arguido empunhou a referida faca na sua direcção e brandiu-a na direcção do seu corpo, assim fazendo crer a CC, que se aproximasse usaria tal instrumento contra si, nomeadamente no seu corpo, atentando contra a sua vida e integridade física.
51. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, CC, temendo pela sua vida e integridade física viu afectada a sua capacidade de reacção e movimentação e assim viu-se incapaz de auxiliar a ofendida, como pretendia.
52. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de fazer crer CC que poderia ser atingido, no seu corpo, com a referida faca, assim o intimidando, tolhendo-lhe a sua capacidade de agir e de o impedir de atentar contra a vida da ofendida, tal como o pretendia fazer, o que logrou. Mais sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei.
53. Com efeito, imediatamente a seguir a ter imobilizado CC, e perante este, o arguido, com a descrita faca, que movimentou, com força, de cima para baixo e inclinando-se sobre a BB, desferiu-lhe um golpe profundo na face lateral do hemitórax direito, com trajecto penetrante no tecido celular subcutâneo da face lateral da porção médiodistal do hemitórax direito; músculo serrátil anterior direito; tecidos moles do 6º espaço intercostal direito; hemicúpula diafragmática direita; fígado; hemicúpula diafragmática direita; pleura parietal direita e porção torácica da artéria aorta, o que determinou directa e necessariamente a morte, quase imediata, de BB.
54. De seguida, o arguido ergueu-se e, antes de fugir do local, desferiu um pontapé na cabeça da ofendida.
55. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito - previamente delineado - de tirar a vida à ofendida, sua mulher e mãe da sua filha DD, o que conseguiu, usando um instrumento idóneo para o efeito (de que previamente se munira) na zona torácica e, portanto, numa zona vital do corpo da vítima. O arguido sabia que ia, necessariamente, privar a filha menor de ambos da figura materna e da vinculação afectiva à mesma. Mais sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei.
56. Como consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, a ofendida DD padeceu de elevado sofrimento psicológico e de sintomatologia de linha depressiva e ansiosa, mal-estar psicológico exacerbado, sofreu reacção grave com características compatíveis com um quadro de Perturbação de Stress Pós-Traumático (medo, raiva, irritabilidade, tristeza, culpa; pensamentos ou imagens perturbantes sobre a experiência [flashbacks]; tenta não pensar, falar ou ter sentimentos relacionados com a experiência; apresenta uma postura de evitamento perante elementos potencialmente agressores, que se assemelham ao trauma experienciado; revela menos interesse em fazer coisas que costumava fazer; revela problemas de concentração, ser excessivamente cautelosa, verificando quem e o que a rodeia; facilmente se assusta; interferência negativa em várias áreas da sua vida).
57. Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, a ofendida DD revelou sentimentos ambivalentes relativamente ao arguido, descrevendo os acontecimentos de forma bastante tensa e sofrida.
58. Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, a ofendida DD apresentar um conjunto de sinais e sintomas que lhe causam intenso sofrimento e mal-estar, pelo que os mesmos deverão ser objecto de atenção clínica. Sofreu uma forte reacção emocional ao tomar conhecimento da morte da mãe (e.g., “atirou-se para o chão… ficou a chorar…”, sic), revelou um comportamento lábil, com oscilações entre a apatia, a tristeza e a dissimulação de sintomas (e.g., “a chorar, mas depois, fora da igreja, fazia palhaçadas… a dançar…”, sic), o que se apresenta como uma estratégia para lidar com as dificuldades sentidas. Padeceu de acentuada sintomatologia ansiosa e depressiva (e.g., “sente falta da mãe, do cheiro, do carinho, da voz da mãe, de dormir com a mãe…”; “tem tido vários episódios de choro. Nos dias a seguir, andava bem, saltava e corria… o irmão diz que «ela tem de se mexer, é como eu, por estar nervosa»… ela guarda para dentro… há noites que diz que dorme bem, outras em que dorme mal…”, sic), revelou sentimentos de autoculpabilização pelo sucedido e, mais recentemente, exibiu um comportamento de maior impulsividade e de fraca resistência à frustração, tendo neste contexto surgido um comportamento de automutilação (e.g., “mordi-me… porque pensava que era culpa minha…”, sic), como forma de libertação da dor emocional de difícil gestão. Revelou uma marcada confrontação com a vulnerabilidade de si própria e com a imprevisibilidade dos acontecimentos, com fenómenos hipnagógicos, tais como sensações cinestésicas, visuais ou auditivas (e.g., “choro muito… todas as noites… sinto-me… como que vigiada… pela presença da mãe… penso naquilo que aconteceu”; “em sítios como na escola, na casa dos meus avós… também já senti a mão da minha mãe duas vezes no meu ombro… a sensação que a estou a ouvir… os sonhos…”, sic). Estes fenómenos são relativamente frequentes e pouco significativos do ponto de vista patológico, contudo, são causa de uma maior angústia e conduzem a dificuldades de adormecimento.
59. A menor DD continua a usufruir de acompanhamento psicológico especializado e ainda hoje chora e sente desespero.
60. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, descrita em 50) a 52), CC ficou incrédulo, intimidado, impotente, receou pela sua vida e integridade física; mais ficou perturbado, tendo dormido mal durante, pelo menos, duas semanas.
61. O arguido entregou-se na esquadra ..., pelas 11h00 do dia 22.02.2023.
62. O arguido sofreu as seguintes condenações:
Processo | transito | decisão | factos | crime | pena | ||||||
….. | 2000/11/03 | 1998/06/12 | condução sem habilitação legal | 120 dias de multa, à taxa diária de 900 escudos, convertida em 80 dias de prisão subsidiária, declarada perdoada (lei 29/99, de 12.05) | |||||||
….. | 2004/09/29 | 2004/08/10 | 2004/07/17 | condução sem habilitação legal | 75 dias de multa, à taxa diária de €1,50
extinta pelo cumprimento | ||||||
…. | 2004/09/30 | 2004/08/30 | 2004/08/05 | condução sem habilitação legal | 7 meses de prisão, suspensa por 1 ano
extinta pelo cumprimento | ||||||
… | 2004/11/09 | 2004/10/25 | 2002/06/07 | condução sem habilitação legal | 200 dias de multa, à taxa diária de 2,00
data de extinção: 2010/06/07 | ||||||
... | 2006/06/01 | 2006/05/17 | 2002/10/13 | ameaça | 90 dias de multa, à taxa diária de 4,00
data de extinção: 2010/06/01 | ||||||
… | 2007/03/14 | 2007/02/08 | 2006/06/09 | condução sem habilitação legal | 150 dias de multa, à taxa diária de 5,00
extinta pelo cumprimento | ||||||
… | 2007/06/21 | 2007/06/06 | 2005/02/03 | falsidade de depoimento | 240 dias de multa, à taxa diária de 5,00
| ||||||
… | 2007/06/27 | 2007/06/12 | 2006/04/11 | falsificação de documento | 250 dias de multa, á taxa diária de 5,00
data da extinção: 2008/05/28 | ||||||
... | 2007/07/11 | 2007/06/26 | 2006/04/10 | ameaça | 150 dias de multa, à taxa diária de 3,00
data da extinção:2008/09/09 | ||||||
… | 2013/11/18 | 2013/11/18 | 2013/10/17 | condução sem habilitação legal | 1 ano, 6 meses de prisão, suspensa por 1 ano, 6 meses, com regime de prova
data de extinção: 2015/05/18 | ||||||
... | 2018/06/04 | 2018/05/04 | 2018/04/19 | condução sem habilitação legal | 1 ano de prisão substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade | ||||||
… | 2019/01/31 | 2018/12/10 | 2017// | abuso de confiança | 1 ano, 6 meses de prisão, suspensa por 1 anos, 6 meses, com sujeição a deveres
data de extinção: 2020/07/31 |
63. Com efeito, por sentença transitada em julgado a 01.06.2006, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de ameaça, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €4,00, por após o termo da relação de namoro (Outubro de 2002), com duração de três meses, com LL e durante um mês ter efectuado chamadas telefónicas e enviado mensagens escritas àquela, dizendo que a havia de matar (PCS ...).
64. E por sentença transitada em julgado a 11.07.2007, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de ameaça, na pena de 150 dias de multa, á taxa diária de €3,00, por no dia 10.04.2006, a propósito de problemas relacionados com o arrendamento de um imóvel, ter empunhado um ferro com um metro de comprimento e dirigindo-se a MM, ter-lhe dito para abandonar o local, pois se o não fizesse dava-lhe com o ferro na cabeça (PCS ...).
65. Na data dos factos o arguido tinha 47 anos de idade.
66. No período a que se reportam os factos, AA havia fixado residência, mais propriamente no mês de Fev./2023, na R. das ... - ... - ..., que corresponde a uma habitação arrendada num local com características predominantemente rurais.
67. Profissionalmente, AA mantinha-se a trabalhar como mecânico de automóveis por conta própria, tendo o arguido abandonado a escola após a conclusão do 6º ano para se dedicar a essa actividade.
68. Decorrente daquelas funções, auferia um rendimento médio de 800€, valor que considerava escasso face aos encargos, sendo os mais expressivos os relativos à renda da habitação e da oficina mecânica (290€). Em Nov./2022, o Tribunal de Família e Menores decidiu que AA deveria entregar a quantia de 90€ à ofendida BB, a título de prestação de alimentos à descendente.
69. Contudo, o arguido não lhe entregou qualquer valor, justificando que BB nunca lhe havia facultado o número de identificação bancária - NIB.
70. AA recebia o apoio da tia materna, KK, principalmente ao nível da alimentação.
71. No âmbito dos presentes autos, por despacho proferido em 30.09.2022, AA ficou sujeito às obrigações decorrentes do TIR e de proibição de contactos com a então mulher/ofendida, BB, e de frequentar, permanecer ou aceder à sua residência e aos locais de trabalho tudo controlado por monitorização electrónica, cuja instalação dos meios electrónicos se concretizou em 05.10.2022.
72. Foi nesse contexto que o arguido se instalou inicialmente em casa da tia acima referida.
73. BB e a filha do casal, DD, permaneceram na habitação do casal sita na Rua ... - ... – .... Posteriormente, mudaram-se para a casa da mãe de BB, residente em ..., ....
74. No período temporal em que AA esteve sujeito à medida de afastamento, BB caracterizava o arguido como um indivíduo ciumento, obsessivo e que adoptava atitudes de controlo traduzidas em contactos telefónicos reiterados e comportamentos de perseguição.
75. Nos momentos de maior tensão/discussão, AA recorria à violência física, sendo que, nos últimos anos de vivência conjugal, usava de violência verbal, com impacto ao nível psicológico junto da ofendida. Naquela altura, BB considerava que o arguido devia submeter-se a tratamento ao consumo de bebidas alcoólicas, uma vez que, quando sob o seu efeito, tornava-se ainda mais agressivo.
76. Porém, como AA nunca reconheceu o hábito alcoólico enquanto problema, que nega também no momento actual, pelo que nunca recorreu a tratamento especializado.
77. O quadro de violência levou a períodos de separação do casal, revertendo-se, porém, em situações de reconciliação.
78. Também as técnicas da CPCJ de ..., que tiveram intervenção na situação da filha do casal, avaliaram que AA tendia a assumir uma postura de controlo face à ofendida, a qual expressava constante desassossego pelo temor das suas ameaças.
79. AA admite a existência de conflitos entre o casal a que atribui ao facto da então mulher/ofendida não assumir as tarefas domésticas e a questões de natureza económica, justificadas pela falta de vontade daquela em assumir uma actividade laboral que pudesse contribuir para o orçamento doméstico.
80. O agregado, ainda na altura em que dele faziam parte também os dois filhos do arguido, fruto da anterior relação conjugal de AA, registou significativa mobilidade, devido à falta de pagamento da renda e da contracção de dívidas por parte de AA.
81. AA deu entrada no EP... em 23.02.2023 na situação de preventivo à ordem dos presentes autos.
82. Não se trata do primeiro contacto do arguido com o sistema da Justiça penal, tendo o arguido evidenciado dificuldade de adesão à supervisão dos serviços de reinserção social e consequentemente no cumprimento de medidas executadas na comunidade.
83. Por decisão de em 23.10.2023, proferida no processo nº ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 1, no qual foi condenado pela prática do crime de condução sem habilitação legal, na pena de 1 ano de prisão substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade com regras de conduta, AA viu revogada a pena, devendo cumprir 58 dias de prisão efectiva.
84. Relativamente aos crimes já cometidos e de que foi alvo de condenação, o arguido tende a negar os factos ou recorre a mecanismos de minimização da sua gravidade. Nomeadamente, face à prática de um crime de ameaça, em que é vítima LL, com quem o arguido manteve uma relação amorosa passageira. AA assume uma atitude de desvalorização face ao crime.
85. Na sequência da reclusão do arguido e da morte da mulher/ofendida, a filha do casal, DD, ficou entregue judicialmente aos cuidados do filho mais velho, EE.
86. AA não foi capaz de analisar/avaliar as repercussões/impacto dos factos na menor, que desvalorizou, tendo-se limitado a proferir que “talvez esteja mais stressada” (sic).
87. Relativamente à presente situação jurídico-penal, o arguido identifica como principal impacto a privação da liberdade e consequências daí inerentes, como ter deixado a sua actividade profissional.
88. Em meio institucional, AA verbaliza ameaças de suicídio, nomeadamente com técnicos do SAEP e dos serviços de reinserção social aquando da entrevista, caso não fosse ouvido pela defensora.
89. Ao nível da saúde, por apresentar indicadores de vulnerabilidade pessoal, começou a ser acompanhado em consultas de psicologia, desde 05.04.2023, e na especialidade de psiquiatria, com início em 21.04.2023, as quais se mantêm, por com a reclusão ostentar labilidade emocional, humor depressivo, perturbação do sono com actividade onírica intensa e sintomatologia ansiosa. Quadro este reactivo ao motivo e circunstâncias que determinaram a detenção. Nas consultas, manifesta sentimento de culpa e de arrependimento. Tem tido uma evolução clínica favorável, apesar de manter sintomatologia ango-depressiva e labilidade emocional. Actualmente encontra-se sem ideação suicida e demonstra adesão e motivação para a manutenção do tratamento.
90. Em termos ocupacionais, trabalha no sector das oficinas. Ao nível do apoio, é visitado pelos filhos, sendo que a filha acompanha o irmão mais velho, e tia.
91. No campo da conjugalidade, os dados obtidos indicam uma vivência conflituosa, cujo modo de funcionamento do arguido parece evidenciar a existência de comportamento impulsivo e de mecanismos de controlo sobre a ex-mulher/ofendida.
92. Mantém o apoio por parte da família através de visitas regulares, nomeadamente filhos e de uma tia, que já lhe facultou apoio em meio livre.
93. O exercício das responsabilidades parentais da menor DD está atribuído a EE e mulher FF.
Factos não provados.
Após saneamento de argumentações, considerações adjectivas e juízos de valor tecidos, conclusões e/ou direito, não se provaram quaisquer outros factos dos alegados nos autos ou em audiência, nem outros, além dos provados, não escritos, contrários aos provados, incompatíveis com os provados, com virtualidade “jus” penalmente relevante e com interesse, atento o objecto do processo, para a decisão final, nomeadamente que:
A) Ao agir nos termos descritos em 3) a 29), o arguido de forma livre, voluntária e consciente, quis e conseguiu, ao longo do tempo, molestar a saúde física, psíquica e emocional da menor DD, violando o direito de confiança desta que o mesmo proveria pelo seu desenvolvimento livre e saudável. Mais sabia ser a sua conduta e proibida e punida por lei.
B) Ao agir nos termos descritos em 34) a 49), 53) a 55), o arguido fê-lo por a ofendida ser do sexo feminino, ou seja, ser mulher.
C) Nas circunstâncias descritas 53), o arguido agiu com a intenção de afectar gravemente a menor DD no desenvolvimento físico, psíquico e emocional, resultado a que aderiu ou aceitou, violando (uma vez mais) o direito de confiança desta de que o mesmo se absteria de condutas de tal natureza. Mais sabia e quis actuar contra a sua filha menor.
Motivação.
A convicção do Tribunal teve por base a análise critica e comparativa da prova produzida, sempre em conjugação com as regras da experiência comum, a saber:
O arguido prestou declarações, tendo confirmado a factualidade provada vertida em 1) e 2), o que se mostra corroborado pelos assentos de fls. 60 e 61 (fls. 777-778 e 779-780).
Referiu que o relacionamento entre o casal, desde o início, não era bom por a ofendida BB se enervar, sendo que entre 2010 e 2012, a ofendida mudou e o relacionamento foi mais tranquilo.
A partir do nascimento da menor, ou seja, em 2012, o casal começou a ter zangas, com uma regularidade de duas vezes por semana.
Negou demostrar que ficasse desagradado por a ofendida conviver com outras pessoas.
Referiu que a ofendida BB pouco ou nada trabalhou. Em 2005 fazia limpezas, mas depois não trabalhou até 2016/2017.
Disse que era a ofendida que ia ter com ele ao trabalho, porque terminava o seu serviço mais cedo e assim iam os dois juntos para casa.
Negou aceder ao telemóvel da ofendida BB (que não tinha qualquer código de acesso) e fiscalizar o mesmo, bem como negou mexer na carteira da ofendida.
Disse que a ofendida era livre de vestir o que quisesse.
Todas as decisões em casa eram tomadas de comum acordo.
A ofendida tinha ciúmes seus, o que dava lugar a discussões, duas vezes por mês e, posteriormente, a discussões com uma regularidade que disse não saber precisar. Nessas discussões apelidava a ofendida de “filha da puta” e aquela apelidava-o de “boi”.
Não apelidava a ofendida com outras palavras.
Logo de seguida, referiu que, também, apelidava a ofendida de “puta e vaca”, explicando que o fazia quando a mesma lhe chamava “boi” ou lhe dizia “vai ter com as vacas das tuas amigas”.
Tais discussões não ocorriam à frente de ninguém e era a ofendida quem as provocava.
Só nos últimos tempos de vida em comum é que a ofendida o começava a provocar em frente da filha DD, sendo que então saía de casa.
Era a ofendida BB que fazia as lides domésticas, só o tendo deixado de fazer para o final da relação. Referiu não se queixar de tal facto.
Quanto à factualidade vertida em 7), primeiro alegou talvez ter desferido um soco na ofendida BB, depois disse já não se recordar; mais disse pensar que não apertou o pescoço da ofendida, para a seguir dizer não saber se o fez e, por fim, declarar que nunca o fez.
No que concerne à factualidade vertida em 8) negou ter agredido a ofendida. No entanto, veio a dizer que “se lhe dei uma chapada na cara” foi por a ofendida ter dado uma chapada no seu filho mais velho, EE, nascido a ../../1993 (data de nascimento obtida aquando a audição da testemunha EE), quando o mesmo tinha 13 anos de idade.
Assim, temos que a 07.11.2007, o dito filho do arguido ainda tinha 13 anos de idade.
Quanto a este episódio, mais referiu que a ofendida, nas circunstâncias supra descritas, não se ficou e ferrou-o no braço.
Quanto à factualidade vertida em 9) referiu que explorava o bar do “Clube ...” e que a ofendida o ajudava.
Disse não se recordar do motivo, mas que não foi por causa do fornecedor de café, que desferiu na ofendida um chapo/murro. Houve uma discussão, cujo motivo não recorda.
Em Fevereiro de 2017 deixou de explorar o bar do “Clube ...”, tendo em Março desse ano passado a explorar o «Café ...», em ....
Referiu que a ofendida só ia ao dito café fazer as refeições para o casal e para a menor DD.
Depois a ofendida começou a trabalhar no café, ao meio-dia e à noite.
O café tinha um quarto, com casa de banho. Em Junho – Agosto de 2017, durante quinze a três semanas toda a família chegou a dormir no café. Tal aconteceu porque tinha uma casa mesmo em frente ao café e a BB não queria dormir lá.
Negou que a ofendida e a filha tivessem ficado sozinhas a dormir no café.
Explicou que nunca deixou de pagar a água e a electricidade do café.
Deixou de pagar a água e a electricidade da residência comum do casal, então, sita em ..., ..., porque tinha de entregar a casa, já que tinha outra em frente ao referido estabelecimento.
Disse que numa sexta-feira à noite, no café, a BB queria ir ao hospital – “porque era diabética ou outra coisa qualquer, dizia que tinha problemas de coluna” – o que o levou a chamar o seu filho para transportar aquela. No entanto, quando o seu filho chegou, a ofendida já tinha mudado de ideias, o que deu lugar a uma discussão, tendo no dia seguinte ido para casa dos pais, com a menor DD.
Estiveram separados cerca de 2 meses, mas mantiveram contactos, tanto que no domingo ou na segunda-feira seguinte, foi buscar a DD. A DD ficou consigo, porque não queria estar com a mãe.
O arguido confirmou, no essencial, a factualidade vertida em 13) e 14), referindo que se deslocou a casa dos pais da ofendida e onde esta estava, pela 1h00, por ter sido a hora a que saiu do café.
Após comunicação da alteração não substancial dos factos, referiu que queria o telemóvel que estava na posse da ofendida por ser seu.
Referiu que o Facebook que tinha era de ambos (AA e BB).
Nunca acedeu ao Facebook da ofendida.
Confirmou parte da factualidade vertida em 16), dizendo que o fez, porque o seu sogro o havia chamado de “corno”, logo a filha daquele, a ofendida “era puta ou vaca”. Quanto ao escrito sobre a ofendida não ir ver a filha, disse talvez ser da sua autoria, mas não sabe se foi tudo escrito por si.
Fizeram as pazes no final de Outubro, principio de Novembro de 2017, tendo voltado a viver juntos. Até meados do ano de 2020 o relacionalmente era mais ou menos, mas então a ofendida disse que queria o divórcio, começando a ocorrerem discussões diárias.
Negou ter alguma vez ameaçado a ofendida de morte.
Em 2021, a ofendida continuava a querer o divórcio.
Desde Julho de 2022 que deixaram de dormir no mesmo quarto.
Disse que no dia 7 de Setembro de 2022, cerca das 22h30, estava deitado no quarto de casal (a casa tinha dois quartos) e a ofendida estava no hall de entrada da casa. Então a BB foi ao quarto de casal chamar-lhe nomes sem, contudo, se recordar dos motivos subjacentes ou dos “nomes” com que a ofendido o apelidou.
Ocorreu uma discussão entre o casal, cujo teor, também, não recorda, mas não houve gritos, nem agrediu a ofendida.
A menor DD estava no quarto.
Admitiu ter então dado uma sapatada ao candeeiro da mesinha de cabeceira
No que concerne ao dia 14 de Setembro de 2022, referiu cerca das 22h30, na residência, o casal discutiu por causa da guarda da menor DD e a ofendida arranhou-o no braço, pelo que chamou a polícia que só apareceu cerca de meia noite.
Pegou na filha e foi para o carro à espera.
Quando a PSP chegou foi com o agente a casa. O agente da PSP disse para deixar a filha no carro. Queixou-se que a ofendida o havia agredido e que não fazia a comida para a filha. Não se queixou que a ofendida não levava o lixo para a rua, que não lhe lavava a roupa, nem fazia a comida para si. Queixou-se só relativamente à menor DD.
Disse que não confiou o agente (sem apresentar qualquer explicação para tanto) e que, por isso, se meteu no carro e foi para ..., com a DD, para o posto PSP.
Em Setembro de 2022, fez várias chamadas telefónicas para a BB, por causa da menor DD, altura em que a apelidava de puta, tal como ela fazia consigo.
Acabou por levar a DD para ..., tendo ficado com a menor de sexta para sábado e disse à ofendida BB que não tinha de ligar para a filha dele a saber onde ele estava com a menor.
Só deixou de viver com a BB quando foi detido a 30.09.2022 e sujeito a interrogatório judicial.
Quanto à factualidade vertida em 33), referiu reconhecer as mensagens, mas alegou que nada tinham a ver com a ofendida.
A BB pediu o divórcio
Referiu que na internet apareceu um perfil com ameaças de morte, mas não o criou, nem sabe quem o fez.
As declarações assim prestadas pelo arguido, apresentaram-se evasivas, refugiando-se em expressões como “talvez”, na falta de recordação e imputando sempre a culpa à ofendida, pois era esta quem o provocava. Nos factos que relatou visou sempre colocar a ofendida numa posição paritária à sua, era esta que, por ciúmes, iniciava as discussões, o agredia, ambos os membros do casal se tratando da mesma forma.
Só que esta versão apresentada pelo arguido não convenceu o Tribunal, face à demais prova produzida.
Lidas as declarações prestadas a 28.09.2022, em sede de inquérito pela ofendida, temos que a mesma confirmou a factualidade vertida em 1) e 2).
Disse que após o início da coabitação, o arguido adoptou uma atitude agressiva para consigo por via de ciúmes excessivos.
Ao longo do relacionamento, o arguido também controlava as suas movimentações, por via dos ciúmes que nutria, impedindo-a de se relacionar livremente com terceiros e controlando as suas saídas da habitação.
O arguido não queria que saísse por exemplo para tomar um café com uma vizinha ou colega de trabalho, dizendo-lhe: «não tens que fazer em casa?».
Quando começou a exercer actividade profissional, o arguido passou a controlar-lhe os horários laboral.
Começou a laborar quando viviam na ..., ..., sendo que o arguido exigia saber com quem se relacionava ao longo do dia e para onde se deslocava, controlando as comunicações do seu telemóvel e das redes sociais Facebook e Messenger e vasculhando a sua mala.
O arguido tinha a palavra passe do seu telemóvel.
Chegou a ver o arguido a mexer na sua mala, tendo-lhe perguntado: «o que estás a fazer?», ao que o arguido respondia: «vou ver o teu telemóvel».
O arguido exigia permanentemente controlar a sua indumentária, vedando-lhe a possibilidade de usar roupas decotadas, dizendo: «Tu não vais sair com isso. Isso não tem jeito nenhum». Chegou a ir trocar de roupa para não se “chatear”.
Quando tentava manifestar uma opinião divergente da do arguido, este não o permitia, deixando permanentemente claro que entendida que era o chefe de família e quem tinha razão era ele, criticando de forma recorrente qualquer iniciativa ou decisão da ofendida, assim coibindo a mesma de se expressar livremente e gerando nela um sentimento de inferioridade.
Nessas alturas o arguido dizia-lhe: «Cala-te. Isso não tem jeito nenhum. Puta. Vaca. Cabra. Filha da puta».
Na residência do casal e fora dela (por exemplo à porta do emprego da ofendida no escritório em ..., ... e na residência da sua entidade patronal em ...), algumas vezes na presença do filho, o arguido dizia recorrentemente à ofendida: «Cala-te. Isso não tem jeito nenhum. Puta. Vaca. Filha da puta».
Isto acontecia quando o arguido implicava com os seus horários de chegada a casa, quando a ofendida falava do pagamento das despesas de casa ou quando o arguido ingeria álcool em excesso (cerveja).
Antes de ter apresentado uma denuncia em 2016 nos Serviços de ..., o arguido, várias vezes por semana, dirigia-se a si nos mesmos termos.
Depois apresentou nova denúncia porque apesar de se ter mantido «mais calmo» depois desse inquérito ser arquivado, o arguido voltou a ter o mesmo tipo de comportamento e por isso apresentou nova denuncia em 2017.
A primeira agressão física ocorreu no primeiro ano depois da coabitação no interior do lar.
Já não tem presente o modo de actuação do arguido, mas recorda-se que ele lhe deu um soco na cara e que a empurrou com força para o chão.
Nessa data apresentou uma denúncia.
Já não se recorda se foi ao Hospital.
Numa das ocasiões, recorda-se de ter ido ao instituto de medicina legal.
Depois dessa data, foi agredida fisicamente, cerca de meia dúzia de vezes, mas nem sempre apresentava denúncia.
No decurso de 2018 e 28.09.2022, o arguido voltou a adoptar os comportamentos de controle acima descritos.
Na residência do casal e fora dela (por exemplo à porta do emprego da declarante no escritório em ..., ... e na residência da sua entidade patronal em ...), algumas vezes na presença do filho, várias vezes por semana, o denunciado dirige-se recorrentemente à ofendida dizendo-lhe: «Cala-te. Isso não tem jeito nenhum. Puta. Vaca. Cabra. Filha da puta».
Isso acontecia quando o arguido implicava com os seus horários de chegada a casa, quando a ofendida falava do pagamento das despesas de casa ou quando o arguido ingeria álcool em excesso (cerveja).
A partir de 2018, não se verificaram agressões físicas.
Já antes de 2018 e depois de 2018, várias vezes por ano, o arguido anunciava-lhe: «Mato-te. Não me importo de ir preso».
Por várias vezes, disse ao arguido que se pretendia separar, sendo que então o arguido lhe dizia «não ficas com a filha. Bato-te».
A 28.09.2022, a ofendida referiu que já estava bastante esgotada, não conseguindo descrever mais pormenores das ocasiões durante as quais o arguido se dirigiu a si nesses moldes.
O seu arguido sabe que apresentou a denúncia que originou o presente inquérito porque no decorrer do mês de Setembro de 2022, a Policia já foi duas vezes à casa de morada de família.
Desde então o arguido tem-se tornado ainda mais controlador e chegou por variadas vezes a seguir a ofendida até ao seu local de trabalho.
Ainda na sexta-feira da semana passada, dia 23.09.2022, o arguido foi atrás da ofendida. A ofendida conduzia um ..., ..-..-QN, sendo que o arguido conduzia um .... A ofendida ia para o escritório em ..., nas proximidades da Camara, onde trabalha. O arguido estacionou o carro que conduzia e foi falar com a sua entidade patronal, NN, enquanto a ofendida estava a executar serviços de limpeza.
No domingo, dia 25.09.2022, o arguido saiu com a filha de manhã, sem lhe dizer para onde iam, sendo que regressaram pelas 23h30.
Na segunda, dia 26.09.2022, a sua filha queixou-se de dores de cabeça e o arguido decidiu que ela não ia para a escola. Depois, pelas 8h30, o arguido e a menor saíram de casa.
A filha disse que não queria ir para o Centro de Estudo.
A filha depois disse-lhe que esteve com o pai no local de trabalho dele.
Desde então que o arguido não tem dormido em casa, nem deixa a ofendida contactar pessoalmente com a filha (do que se conclui que o arguido deixou a casa de morada de família no dia 26.09.2022 e não como o mesmo afirmou na data em que foi sujeito a interrogatório judicial).
Desde o dia 26.09.2022 a ofendida apenas mantém contacto telefónico com a menor.
A ofendida tem perguntado ao arguido: «onde está a nossa filha?», ao que este lhe responde «Não tens que saber».
A sua filha, por sua vez, diz: «Estou em casa da tia KK. Anda me buscar.».
A mãe do arguido já faleceu, sendo a referida tia irmã da mãe do arguido.
A dita tia do arguido, a 27.09.2022 ligou à ofendida e disse-lhe «O teu marido disse que ela vai dormir aqui».
A ofendida não vai buscar a filha porque o arguido não deixa e porque tem medo dele.
Não pretende manter o casamento. Quer divorciar-se.
Não pretende regressar à casa de morada de família.
Quer ter uma casa nova para si e para a sua filha para viver em paz.
Actualmente pensa que o seu arguido não tem armas de fogo na sua posse.
A sua filha presenciou alguns factos.
O arguido é «agressivo» e a ofendida teme pela sua vida.
No auto de inquirição da ofendida, como foi feito constar, aquela tinha o seu telemóvel ligado e recebeu várias tentativas de contacto do arguido, que insistentemente ligou até de um número privado.
A dada altura, a ofendida teve que atender a chamada a fim de pôr cobro a tais insistências, uma vez que não conseguia desligar o telemóvel.
Depois de atender e de ter transmitido: «estou a trabalhar, não posso falar», foi interpelada com agressividade pelo arguido que lhe ordenou: «Liga-me assim que forem 5h. Estás a trabalhar e rejeitaste-me as chamadas».
As declarações prestadas pela ofendida em sede de inquérito são merecedoras de credibilidade, credibilidade este reforçado pelo trágico desfecho deste caso, ocorrido no dia 22.02.2023, com a morte de BB.
Com efeito, tal trágico desfecho contraria as declarações do arguido ao imputar a BB um comportamento ciumento, causador/provocador de toda a discórdia entre o casal, bem como a assunção por ambos os membros do casal de um comportamento paritário.
Acresce que, in casu, importa ainda valorar os depoimentos indirectos ou de ouvir dizer, conforme excepcionado na parte final do n.º 1, do art. 129º, do CPP.
No que concerne à valoração dos depoimentos indirectos ou de ouvir dizer, como se expressa no Ac. do TRP de 15-12-2021, processo 67/19.8GBBAO.P1, in https://www.dgsi.pt/jtrp:
“I - No âmbito do testemunho indireto, “a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos”(…) “é o vulgarmente designado testemunho de ouvir dizer”. O Prof. Costa Pinto nos elucida no sentido de que “O depoimento indireto consiste na revelação processual de factos que não foram objeto do conhecimento direto da testemunha que os descreve, tendo antes origem numa informação que lhe foi transmitida por outra pessoa”. Assim, a regra é que o testemunho indireto só serve para indicar outro meio de prova direto. Mas o artº 129.º do CPP permite que o depoimento indireto seja prestado, embora condicione a possibilidade da sua utilização processual subsequente.
Desde logo, a testemunha de ouvir-dizer terá de identificar a “testemunha-fonte”, ou seja, a fonte material de onde provém o conhecimento dos factos. No caso de a testemunha de ouvir-dizer não estar em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos ou se recusar a fazê-lo, o n.º 3 do artº. 129.º impede que o seu depoimento sirva como meio de prova.
II - A obrigação de indicar a fonte tem como finalidade dissuadir relatos que não possam ser confirmados na fonte em resultado da testemunha de ouvir-dizer ser incapaz de identificar ou individualizar aquela fonte ou por não pretender identificá-la. Um conhecimento desta natureza não tem consistência para servir de prova em processo penal pois a recusa ou impossibilidade de identificação da fonte de informação afetam não apenas a possibilidade de provar o facto probando, mas também a própria credibilidade da testemunha e a possibilidade de contraditório sobre o facto em causa.
III - Fora dos casos excepcionais em que a inquirição da fonte não seja possível, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada (parte final do nº 1 do artº 129º), a admissibilidade do depoimento indireto está dependente do poder-dever de o tribunal chamar a depor a testemunha fonte. Nesse caso, chamando o juiz a fonte a depor, o depoimento indireto pode ser valorado, uma vez que se torna possível o exercício do contraditório na audiência de julgamento, através do interrogatório e do contra-interrogatório, quer da testemunha de ouvir dizer, quer da testemunha fonte, assim se assegurando o respeito pela estrutura acusatória do processo criminal, imposto pelo art. 32º nº 5 da CRP.
IV - Para que possa ser devidamente valorado o depoimento de ouvir-dizer, basta-se a lei que o tribunal chame a fonte a depor, não se exigindo a necessidade de prestação efetiva de depoimento, nem a confirmação da conversa mantida com a testemunha de ouvir-dizer, nem tão pouco a coincidência de conteúdo na descrição do facto probando. A lei limita-se a exigir que o tribunal diligencie no sentido de obter o depoimento da fonte. A proibição de valoração inerente ao artigo 129.º cessa de imediato com o chamamento a depor da fonte originária, mesmo que posteriormente a mesma se recuse legitimamente a depor, pois a valoração não depende do conteúdo do depoimento da mesma.
V - Sendo a fonte da informação chamada ao processo, uma de duas situações se pode verificar: ou é impossível encontrar a fonte para esta ir depor ou ela comparece em juízo. Quer um caso quer o outro, basta para ser ultrapassada a proibição de valoração enunciada no artigo 129.º n.º1 do CPP. Não faria sentido que o legislador condicionasse a relevância de um meio de prova à obtenção de outro meio de prova, sem contemplar no elenco de exceções a impossibilidade jurídica de o conseguir efetivamente obter, quando essa impossibilidade pode resultar da opção do próprio legislador (v.g. em casos de impedimentos ou recusa, previstos nos artigos 133.º e 134.º do CPP).
VI - Se assim se não entender acaba por se reconhecer à fonte um poder de controlar, com o seu depoimento ou com a sua recusa, a valoração da prova disponível. Aliás, o que a lei reconhece no artº 134º do Cód. Proc. Penal, é o direito a certas pessoas, e devido a laços familiares que tenham com o arguido, de se recusarem a depor, de forma "a poupar a testemunha ao conflito de consciência que resultaria de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um arguido com quem tem parentesco ou afinidade próximos", protegendo "as relações de confiança, essenciais à instituição familiar". Mas a faculdade de se recusarem a depor não tem o alcance de impedir a valoração de todo e qualquer meio de prova que possa colidir com o exercício desse direito.
Não ocorreu, pois, a pretendida violação do disposto nos artºs 128º n.º1, 129.º n.º1 e 134.º nº 1 al. b), todos do Código de Processo Penal, não tendo sido utilizada qualquer prova nula e, muito menos, ocorre qualquer proibição de prova.”
Patente é que, no presente processo, não sendo possível a inquirição da malograda vítima, BB, por a mesma ter falecido, estamos perante a excepção consagrada parte final do nº 1 do art.º 129º, do CPP, sendo, pois, de atender aos depoimentos indirectos.
Vejamos.
GG, assistente nos presentes autos e pai de BB, referiu que antes do nascimento da DD nada viu e de nada teve conhecimento.
Em 2022, esteve em casa do casal, sita na Rua ..., tendo presenciado uma discussão, e o arguido a dizer à ofendida “vai para o caralho, vai à merda”.
Em Setembro de 2022, ainda a BB vivia na casa de morada de família, cortou relações com o arguido.
Só em Outubro de 2022 é que a ofendida foi, definitivamente, viver para sua casa.
Referiu que BB, por estar a viver num café, foi para sua casa.
Relatou a factualidade atinente ao ponto 13), referindo que o arguido começou a telefonar à 1h00 e a enviar mensagens, o que fez várias vezes.
Nessa altura, o arguido, não destratou a sua filha pelo telefone.
Recorda-se de, quando o casal vivia nos ..., a sua filha lhe relatar que havia ido ao hospital por ter sido agredida pelo arguido, mas nunca viu marcas no corpo daquela.
Em 2003/2004, lembra-se de a sua filha lhe ter telefonado e lhe ter pedido para a ir buscar a casa, por estar a ser agredida/maltratada pelo arguido. Assim, fez e deparou-se com BB nervosa e a chorar, mas não viu qualquer marca de agressão.
O arguido chegou a ligar-lhe a dizer que “era um filho da puta e que a filha era uma vaca.”
A policia foi a sua casa duas ou três vezes, sendo que até era o arguido quem chamava a policia a dizer que a menina, a menor DD, estava a ser maltratada
Enquanto BB esteve em sua casa, o arguido estava sempre a ligar para o telefone, umas vezes o arguido nada dizia, outras vezes falava.
A ofendida disse-lhe que o arguido mexia na sua carteira e no seu telemóvel.
Nunca viu a filha reagir contra o arguido, ela ficava-se
A filha disse-lhe que estava decidida a por fim ao casamento, bem como lhe disse que estava cansada da situação que vivia. BB andava triste e, no fim, já dizia que não tinha medo do arguido.
A DD não fazia queixas do pai.
OO, chefe da PSP, que elaborou o auto de notícia de 06.09.2022, constante a fls. 28 a 32, referiu que BB se queixou que o arguido a perseguia no trabalho, mostrava ciúmes possessivos, fiscalizava o seu telemóvel e que a apelidava de “puta, vaca e filha da puta”, que as discussões eram constantes. Confirmou o teor de fls. 31Vº e 32, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
Mais referiu que a ofendida se mostrava ansiosa/receosa que alguma coisa pudesse acontecer.
PP, agente da PSP, referiu ter elaborado dois aditamentos, um referente ao dia 07.09.2022 e outro ao dia 14.09.2022. Tudo o que registou foi o que percepcionou e o que lhe transmitido por BB, tendo em ambas as situações se deslocado à residência do casal.
Assim, conforme resulta de fls. 23, a testemunha, no dia 07.09.2022, deslocou-se a casa do casal, altura em que a ofendida BB lhe relatou a factualidade vertida em 21); mais disse que o arguido lhe confirmou a discussão, mas estava muito exaltado, não apresentando um discurso coerente.
Conforme resulta de fls. 39, a testemunha, no dia 14.09.2022, pelas 00h45m deslocou-se a casa do casal, altura em que a ofendida BB relatou que pelas 15h30, do dia 13.09.2022, o arguido foi buscar a filha ao centro de estudos sem a sua autorização e que após várias tentativas de contacto com o arguido o mesmo disse que, era o pai e que podia ir buscar a filha quando lhe apetecesse. Esta situação gerou uma discussão momentos antes da chamada da policia. O arguido confirmou a discussão, mas disse que a mesma teve origem no facto de a ofendida BB “não levar o lixo há 3 dias, não lhe lavar a roupa, nem fazer a comida para ele.”
Ora o consignado e dito pelo arguido, contraria as declarações prestadas pelo próprio de que só se queixou á policia por causa de a ofendida não lavar a roupa e não fazer a comida da menor DD.
QQ, agente da PSP, confirmou o aditamento de fls. 44, tendo registado o que viu e o que lhe foi relatado. A testemunha no dia 17.09.2022, pelas 00h25, deslocou-se á residência do casal, tendo verificado um desentendimento, sendo que a menor DD estava num veículo automóvel.
O arguido queixou-se de ter sido injuriado pela ofendida, na presença da menor, motivo pelo qual mandou a menor DD de volta para o carro. Por seu turno, a ofendido negou as imputações que lhe estavam a ser feitas, dizendo que no dia 16.09.2022, pelas 23h15 ligou ao arguido a perguntar pela filha por não saber da mesma durante todo o dia, altura em que foi injuriada e ameaçada. Mais referiu que, o arguido lhe telefona insistentemente e se desloca ao seu local de trabalho apelidando-a de “puta” na presença da sua patroa, causando-lhe receio/medo. Mais disse que, o arguido tem retirado a menor do centro de estudos e que a leva para a oficina onde trabalha.
A testemunha solicitou ao arguido que fosse buscar a menor ao carro, uma vez, que tendo em conta a hora não era próprio a menor estar sozinha na viatura, tendo o arguido se dirigido para a viatura e encetado fuga. Contactado o arguido disse que se estava a dirigir para um departamento policial para apresentar queixa e que menor ia ficar com ele.
Esclareceu a testemunha que o ambiente era mau e com acusações mútuas.
RR, agente da PSP, que elaborou a participação de fls. 187, referiu que apenas registou o que lhe foi transmitido pela ofendida, nomeadamente que já não estava com a filha há 10 dias, que só contactava a mesma por telefone e na presença do arguido.
SS, cabo da GNR, confirmou o aditamento de fls. 202.
TT, militar da GNR, confirmou o auto de denúncia de fls. 472 a 475, tendo a ofendida comparecido no posto da GNR, no dia 01.08.2017, dando conta da factualidade vertida em 11) e 12).
UU, militar da GNR, confirmou o aditamento de fls. 512-513 (fls. 555 a 558), referente à factualidade vertida em 13) e 14).
O arguido dizia que a ofendida tinha um telemóvel seu e que não o entregava.
A ofendida referiu que o arguido estava a bater à porta e a telefonar insistentemente
A ofendida não sabia da filha de 5 anos de idade e estava com medo de ser seguida para o trabalho ou que o arguido lhe viesse a fazer mal.
VV, militar da GNR, referiu nada recordar quanto ao aditamento de fls. 543.
WW, militar da GNR, confirmou o auto de noticia de fls. 412 a 414, atinente à factualidade vertida em 9) e referiu que o arguido se mostrava agitado.
XX, militar da GNR, confirmou o auto de denúncia de fls. 946, sendo certo que a acusação não imputa ao arguido tais factos.
Os depoimentos das testemunhas ouvidas revelaram-se sérios, isentos e credíveis e o teor dos autos/aditamentos por aqueles elaborados devem ser valorados, tendo em conta as regras da experiência comum e os juízos de normalidade, por não ser possível ouvir a vítima dos factos.
Tudo isto sem olvidar as declarações da ofendida lidas em audiência de julgamento e inclusive as declarações do arguido, na parte, em que vai admitindo alguns dos factos.
Com efeito, a vaga admissão de alguns dos factos efectuada pelo arguido e nos termos em que a fez, mostra-se afinal comprovada pelas ditas declarações da ofendida, pelo depoimento de GG, pelo depoimentos das testemunhas supra indicadas, respectivos autos e aditamentos, pelo auto de notícia de fls. 359, conjugado com a perícia de fls. 388 a 390, e ainda com os registos clínicos de fls. 392 a 396 e perícia de fls. 440 a 442.
Do teor de fls. 547, resulta sem dúvidas a factualidade vertida em 16), sendo que o declarado pelo arguido ao confirmar ter sido o autor de umas mensagens, mas já não de outras, revela-se incoerente e contrário às regas da experiência comum e juízos de normalidade.
Mais se valoraram os e-mails de fls. 126, 135, 171.
Com a prova supra exposta, impõe-se ainda valorar o documento de fls. 235-239, resultando claro o constrangimento da menor DD em falar com a ofendida, sua mãe, quando o arguido estava ao pé de si e que o arguido apelida a ofendida de falsa e claramente no “facebook” a ela se referia como falsa e fria.
Cumpre ainda realçar que JJ, filho do arguido, referiu que, quando o casal vivia junto, a sua irmã DD lhe telefonava dando conta que os pais estavam zangados, pelo que ia buscar a menor e levava-a a passear.
Temos assim, que a menor assistia às discussões do casal, quando as mesmas decorriam em casa, ou seja, presenciava os factos, tendo o seu irmão o cuidado e a disponibilidade de retirar a menor de casa e de com ela passear, claramente para a retirar o ambiente familiar gerado.
A factualidade vertida em 30) e 31) teve por base o teor de fls. 92-93, 100 a 111 e 133vº.
Vejamos agora.
O arguido referiu que a BB pediu o divórcio, sendo que em 22.02.2023, morava em ..., confirmando, no essencial, a factualidade vertida em 34).
A distância percorrida pelo arguido teve por base uma mera consulta no “Google maps”.
Disse que já tinha a faca na mala da ferramenta que trazia na mala do carro. Usava a dita faca para cortar soldas de plástico.
A explicação do arguido para estar na posse de tal faca não teve colhimento por a solda plástica ser conhecida pela sua resistência e durabilidade, tendo características como: resistência elevada à tensão; maior rigidez e dureza; alta resistência à tracção e compressão; suportar altas temperaturas; elevada resistência química; resistência a riscos.
Assim, tal explicação não se compagina com as regras da experiência comum e os juízos de normalidade.
Disse que levou a faca no bolso, tendo entrado no local de trabalho de BB, pela porta das instalações que se encontrava aberta e que fechou atrás de si.
Só queria falar com BB.
Questionado porque motivo levou a faca se era só para falar com a sua mulher, nada explicou
BB quando o vê entra em pânico e começa a gritar.
Desfere-lhe um estalo e em consequência BB cai no chão (altura em que não grita mais).
Aparece CC para defender BB, mas “faz peito” ao CC e este foge.
De seguida deu dois pontapés na BB, talvez na zona da cabeça.
O CC volta a aparecer, altura em que lhe diz para sair dali, para ir embora e o CC volta a fugir.
Enquanto BB está caída sobre o braço esquerdo, junto ao primeiro degrau das escadas, tira a faca do bolso e espeta-lhe a dita faca.
Não quis esfaquear BB, só a queria picar no braço, mas aquela movimentou-se e acabou por cortá-la.
A seguir fugiu.
Disse estar envergonhado e arrependido de ter tirado a vida a BB.
Os seus filhos foram criados por si e por BB.
O arguido admitindo alguns dos factos acusados, não assumiu o seu comportamento para com a testemunha CC, nem tão pouco admitiu o seu comportamento para com BB, ou seja, que efectivamente quis tirar a vida daquela e diga-se que, como arguido, não o tinha de fazer, não tinha que se auto-incriminar, podendo até exercer o direito ao silêncio.
No entanto, não chega verbalizar arrependimento e perdão, como fez o arguido no final do julgamento, para que fique demonstrado um verdadeiro arrependimento ou constrangimento, tanto mais que o arguido voltou a refugiar-se, a justificar-se num comportamento da vítima - só a queria picar o braço de BB, mas esta movimentou-se e acabou por cortá-la -, o que é revelador de dificuldades ao nível do sentido crítico da gravidade e censurabilidade do seu comportamento.
Com efeito, CC, administrativo na «A...», referiu já conhecer o arguido do exercício da sua actividade laboral e conhecer a BB por ser a empregada de limpeza do edifício.
De forma, séria e isenta, relatou como chegou ao local, entrou pela porta principal que deixou aberta, colocou o cavalete a anunciar a «A...», viu e cumprimentou BB, tendo subido as escadas para o seu local de trabalho.
Minutos mais tarde ouviu gritos e foi ver o que estava a acontecer, tendo descido dois lances de escadas e um patamar.
A BB já estava caída no chão sobre o seu lado esquerdo. Viu o arguido que não identificou logo porque tinha um carapuço.
O arguido estava com a faca na mão e de pé, enquanto a BB estava no chão, consciente e a pedir auxilio.
Teve a percepção que o arguido ficou surpreendido com a sua presença.
Ia continuar a descer as escadas para auxiliar BB, ainda disse ao arguido “sai daqui”, mas este empunhando a faca brandiu-a na direcção do seu corpo, pelo que parou por ter receado pela sua vida.
Acto contínuo, o arguido que está de pé movimenta a dita faca, de cima para baixo, inclina-se sobre BB e esfaqueia.
Antes de fugir o arguido desfere um pontapé na cabeça de BB.
Ficou incrédulo, intimidado, impotente, receou pela sua vida e integridade física.
Em consequência da conduta do arguido dormiu mal, pelo menos duas semanas, ficou sem choque, sem conseguir separar os dois acontecimentos, ou seja, os factos de que foi vítima e o homicídio que presenciou.
Foi uma situação que ainda hoje lhe custa partilhar.
Nos dias seguintes andava perturbado e trabalhou o máximo possível para ter a mente ocupada.
YY, que explora uma frutaria ao lado das instalações da «A...» e que, por isso, conhecia de vista BB, referiu ter chegado ao seu local de trabalho pelas 8h15m
Cerca das 9h00, quando estava a colocar a fruta à porta do seu estabelecimento, viu BB a varrer.
Pouco depois, chegou a sua amiga/colega YY que abriu a loja dela. Quando estavam as duas para ir tomar o pequeno almoço, ouviram um estrondo, ficaram a olhar uma para a outra, mas logo ouviram gritos de socorro – “alguém me ajude” – eram gritos de quem estava numa aflição a pedir ajuda.
A porta das instalações da «A...» costumava estar sempre aberta, mas não estava. Bateram à porta, mas ninguém abria. Entretanto sai um individuo com uma faca na mão direita, apontada para a frente, em direcção a elas. Fugiram/afastaram-se. O individuo segue sempre/foge.
Estiveram um minuto a bater à porta, nem tanto.
Não sabe quem era o individuo porque entrou em pânico, só recorda a faca e uma barba branca.
As pessoas, na zona, ficaram revoltadas e assustadas.
Teve de tomar medicação para dormir
Ainda viu a BB no chão, já morta.
ZZ, empregada de balcão, amiga da anterior testemunha, conhecia BB de vista.
Referiu que chegou cerca das 9h10/9h15, altura em que viu BB a varrer.
Estava com a testemunha anterior, YY, sendo que ainda no interior do estabelecimento onde trabalha ouviram um estrondo e depois a BB a gritar por socorro e ajuda.
A porta das instalações da «A...» estava fechada e a BB gritava por socorro. Não se conseguia ver para o interior por os vidros da porta serem foscos.
Depois saiu um individuo com uma faca na mão direita e apontada para a frente em direcção a elas com a lamina, e que vestia uma camisola cinzenta com o carapuço na cabeça.
Foi ver como estava BB, tendo-se deparado com a mesma caída junto ao ultimo degrau, ainda com os olhos abertos e agarrada a uma folha.
Colocou a sua mão no rosto da BB e disse-lhe que ia ficar tudo bem.
Os olhos de BB estavam muito “arregalados”, via-se sofrimento, mas depois fechou os olhos, voltou a abri-los e morreu.
As pessoas ficaram todas em choque.
A factualidade vertida em 37) a 44) teve por base o teor de fls. 303 a 308, o que conjugado com as regras da experiência comum e os juízos de normalidade, levam à conclusão segura da factualidade vertida em 45).
KK, tia do arguido, referiu que o casal se zangava muitas vezes.
Disse que cerca de dois meses antes do falecimento de BB, esta foi buscar a DD a sua casa, nessa altura, o arguido que consigo residida, chegou do café e a BB disse “estás aí seu animal”. Nessa altura a BB começou a chorar.
A DD estava presente e ao ver a mãe a chorar, também começou a chorar.
A DD está bem, chora por ter saudades do pai e encontra-se estável.
Aquando do falecimento de BB, a menor DD chorou, ficou triste e, hoje sente saudades da mãe, mas nunca viu a menor revoltada ou desesperada.
Mais disse que a menor dizia que a sua mãe BB, também tinha contribuído para o desfecho de toda a situação.
O depoimento em causa foi claramente tendencioso, não sendo minimamente credível que a menor ao saber da morta da sua mãe tivesse dito ou pensado que a mesma para tal contribuiu. Por outro lado, a testemunha quis passar a ideia que a menor neste momento se encontra perfeitamente bem, o que não corresponde à verdade, como infra se verá.
Para além disse, mesmo que a ofendido tenha reagido, como relatado pela testemunha, quando foi buscar a filha e se deparou com a presença do arguido, importa não olvidar que, na data, o arguido encontrava-se sujeito às medidas de coacção vertidas na factualidade 30).
EE, filho do arguido, nascido a ../../1993, referiu ter conhecido BB quando tinha 10 anos de idade e ter morado com o casal desde os seus 12/13 anos até aos 19/20 anos de idade.
Referiu que o casal tinha discussões e se insultavam mutuamente de “cabra e cabrão”.
Sendo a testemunha quem tem a guarda da menor, referiu que a menor DD quando a mãe morreu entrou em estado de choque (só queriam dizer à menor o que tinha acontecido com o auxilio de um psicólogo, mas a menor veio a saber por intermédio de uma colega da escola que usou as redes sociais). A menor chorou muito, nem conseguida falar, precisou de apoio psicológico, apoio que ainda hoje tem.
Ainda hoje a menor sente desespero, não obstante tentar não o demonstrar, e ainda hoje chora.
Na altura a menor só questionava o porquê de a mãe ter sido morta.
A menor quis ver o pai e este pediu-lhe perdão, o que a menor verbalizou aceitar.
Quanto a factos passíveis de integrarem o crime de violência doméstica, nada disse de relevo, esclarecendo que quando a menor DD nasceu, já a testemunha tinha 19 anos, tendo deixado de viver com o casal.
Relativamente ao dia 22 de Fevereiro de 2023, referiu que o arguido lhe telefonou a dizer que tinha morto BB, para irem buscar a menor DD.
Encontraram-se em casa da sua tia KK, altura em que o arguido contou que tinha levado uma faca, que queria assustar BB, que apareceu a testemunha CC, que só queria picar o braço de BB.
Relatou como começou a chorar, com ficou incrédulo, estupefacto, com o que o seu pai contava.
Telefonou ao seu irmão para este telefonar ao pai de BB para o avisar.
JJ, filho do arguido, nascido a ../../1997, tendo vivido com o casal até aos 18 anos de idade.
O casal discutia e ambos se insultavam (“vai-te foder”).
Chegou a ver BB com lesões no corpo, mas não se recorda onde, quanto ao seu pai viu-o uma vez arranhado.
Quando o casal se zangava/discutia, a sua irmã DD telefonava-lhe contando o que se estava a passar em casa, pelo que a ia buscar para darem um passeio e assim a tirar de casa.
Perguntado à testemunha o que via ou ouvia entre a casa, quando ia buscar a menor a casa, disse que de nada se apercebia.
Referiu que no dia 22 de Fevereiro de 2023, o seu irmão lhe ligou a contar que o que o arguido tinha feito. Telefonou ao pai de BB.
Quando chegou a casa da sua tia KK, encontrou o arguido nervoso a dizer que tinha matado ou que se calhar tinha morto BB, tendo-lhe pedido para o levar à policia.
A DD quando soube do falecimento da mãe ficou num choro constante.
Os depoimentos de EE e JJ, filhos do arguido, contrariam o declarado por KK quanto às consequências sofridas pela menor DD pelo falecimento da mãe.
E se ambas as testemunhas se revelaram evasivas ou com recordações selectivas quanto ao relacionamento do casal, tentando de alguma sorte corroborar o declarado pelo arguido, ou seja, um relacionamento paritário, o certo é que, como nos ditam as regras da experiência comum e os juízos de normalidade, era a toxicidade desse mesmo relacionamento que levava AA a retirar a menor DD de casa, quando a mesma lhe telefonava a dar conta do que estava a acontecer.
Por fim valoraram-se os seguintes documentos:
- Relatório de Inspecção Judiciária de fls. 637 a 642;
- Exame de fls. 652 a 677;
- Relatório pericial de fls. 678 a 686;
- Auto de apreensão de fls. 687;
- Auto de apreensão de fls. 688;
- Auto de busca e apreensão de fls. 690-691;
- Reportagem fotográfica de fls. 696 a 700;
- Auto de reconhecimento de fls. 723-724 (reconhecimento positivo do arguido efectuado pela testemunha CC;
- Autos de reconhecimento de fls. 725-726;
- Ficha do Instituto Nacional de Emergência Médica de fls. 744;
- Informação da equipa de vigilância electrónica de fls. 803;
- Documentos/certidão de fls. 998 a 1041;
- Certidão de fls. 1046 a 1055 e de onde resulta ter sido agendado, no âmbito do processo de divórcio, o dia 20.02.2023 para a tentativa de conciliação, a qual não se realizou por o arguido não estar em condições físicas e psicológicas para tanto;
- Assento de nascimento do arguido, com os respectivos averbamentos de fls. 1117;
- Documento de fls. 1124-1126;
- Relatório pericial do INML fls. 1178;
- Relatório de autópsia de fls. 1179-1193;
- Perícia junta a 26.10.2023 (referência 37081689);
- Relatório de psicologia – perícia médico-legal referente à menor DD de fls. 1213-1223 que conjugado com o depoimento de EE, relevou para a factualidade vertida em 56) a 59);
- Relatório pericial de fls. 1230 a 1234;
- Certidão da sentença proferida no PCS ... de fls. 1060 a 1071 (fls. 1087 a 1098);
- Certidão da sentença proferida no PCS ... de fls. 1073 a 1078;
- Certidão junta a 20.10.2023 (refª 37018722) regulação do exercício das responsabilidades parentais da menor DD, atribuído a BB e posteriormente a EE e mulher, FF;
- Relatório social de 05.02.2024 (refª 38056610), conjugado com a informação clínica junta a 06.05. 2024 (refª citius nº 38948105);
- Certificado de registo criminal de 21.06.2024 (refª 39413701).
Os depoimentos das testemunhas ouvidas relativamente aos factos ocorridos a 22.02.2023 revelaram-se sérios, isentos e credíveis, sendo certo que o arguido não negou ter esfaqueado a ofendida, apenas tentou, mais uma vez, minimizar a sua culpa imputando à própria ofendida um gesto corporal que o fez acertar com a faca de que se havia munido numa zona do corpo que não visava.
E dizemos mais uma vez, pois esse foi também o comportamento do arguido quanto aos factos alegados e integradores do crime de violência doméstica, sendo que neste âmbito cumpre sublinhar que nada impede que o agente cometa o crime de violência doméstica e o outro membro possa cometer até um outro qualquer crime -– de ofensas corporais, de ameaças, de injúrias –.
Aliás, não é de exigir à(s) vitíma(s) que permaneça(m) eternamente numa passividade total perante a subjugação do agente do crime.
As declarações da ofendida, lidas em audiência, como já referido mereceram inteira credibilidade ao Tribunal e conjugadas com toda a demais prova produzida, sempre conjugada com as regras da experiência comum e juízos de normalidade, dúvidas não se suscitaram quanto aos factos dados como provados e que configuram o crime de violência doméstica.
Quanto ao crime de coacção, os factos alegados e provados resultaram do cristalino depoimento da testemunha CC que, não obstante, ser ofendido, depôs de forma tranquila, transparente, sem demonstrar qualquer animosidade contra o arguido
Por fim, a factualidade atinente ao crime de homicídio decorre, em parte, das próprias declarações do arguido, sendo certo que o arguido praticou tais actos na presença da testemunha CC que, igualmente, descreveu os factos de forma séria, isenta e credível, como dos depoimentos das testemunhas YY e ZZ, sempre conjugados com a prova supra elencada, as regras da experiência comum e os juízos de normalidade.
Impõe-se ainda sublinhar que, a demonstração dos elementos psicológicos constitutivos de um tipo legal de crime, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta e assim só são passíveis de apreensão através dos factos materiais comuns conjugados com as regras da experiência e os juízos de normalidade.
Para tanto, impõe-se descortinar com objectividade e detalhe o evento histórico de onde se retira a possibilidade de imputar uma infracção criminal ao agente, o que será alcançado pela conjugação daqueles dados objectivos com a regra da experiência comum do modo normal de agir livre, consciente e deliberado de um ser humano adulto e desde que se verifique a coincidência entre o objecto da vontade do agente com o fim ou objecto da acção externa, do referido evento histórico.
Ora, tendo em conta tudo o que vai exposto, conjugando de forma crítica e analítica toda a prova produzida, quer as declarações do arguido, quer as declarações da malograda BB, quer os depoimentos das testemunhas ouvidas, atentas as considerações já tecidas, e a razão de ciência de cada uma devidamente sindicada, com a prova documental supra elencada, sempre tendo em conta as regras da experiência comum e juízos de normalidade, dúvidas não se suscitam quanto à intenção do arguido relativamente aos ilícitos em causa.
O arguido agiu sempre com dolo directo.
Assim, analisada a prova na sua globalidade, sempre em conjugação com as regras da experiência comum e os juízos de normalidade, dúvidas não subsistem quanto à veracidade dos factos levados à matéria de facto assente.
A matéria de facto não provada decorre do já supra exposto e de nenhuma prova ter sido produzida relativamente à mesma.
Nenhuma outra prova foi produzida.
Enquadramento Jurídico-Penal.
Do crime de violência doméstica.
Estabelece o art. 152º, do C.P., que:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.”
Como se diz no Ac. do TRP de 29-02-2012 (in http://www.dgsi.pt/jtrp.), “Neste ilícito tutela-se uma vertente específica da individualidade física ou psíquica, mais precisamente aquela dimensão intransigente da dignidade humana que cada um tem o direito de preservar e de ver acautelado, de quem se situa, no âmbito das relações familiares ou análogas ou então de coabitação referenciadas no tipo legal, numa posição de vulnerabilidade.
Daí que a tutela penal se situe no núcleo irredutível da dignidade humana, sabido que o contexto familiar, os relacionamentos entre casais e a coabitação geram relações de dominação e de subalternidade decorrentes de uma posição de superioridade de um dos parceiros, designadamente ao nível físico, em relação ao outro parceiro mais débil, em relação ao qual se exerce certa violência individual.
É esta posição de vulnerabilidade de certas condições individuais que, perante manifestações de prepotência física ou psíquica, pode redundar na “coisificação” de um ser humano, o que significa a eliminação ou limitação insuportável da respectiva dignidade humana, quando esta tem uma consagração constitucional [art. 1.º, 24.º, n.º 1, 25.º, da C. Rep.] e é uma referência inabalável dos direitos humanos [5.º da DUDH; 3.º, n.º 1 da CEDH; 7.º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do PIDCP; 1.º, 3.º, n.º 1, 4.º da CDFUE].
Tudo isto resultante de uma nova consciência da gravidade que tais comportamentos violentos, muitos deles ocorridos “intra-muros”, têm na ruptura do relacionamento em sociedade e nas disfunções pessoais que os mesmos podem provocar e que pode até conduzir à mutilação ou eliminação do parceiro mais vulnerável.
Trata-se, por isso, de “uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.
Assim, o que se pretende criminalmente proibir são aqueles maus-tratos conducentes à violação ostensiva da saúde física ou psíquica das pessoas que integram aquelas relações familiares ou análogas ou então de coabitação, podendo ainda abarcar a afectação da sua privacidade, seja ao nível da sua liberdade pessoal em geral ou da sua autodeterminação sexual em particular.
Nesta conformidade, podemos assentar e partindo do bem jurídico aqui tutelado que os maus tratos proibidos pelo crime de violência doméstica têm sempre subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, de modo a eliminar ou a limitar claramente a sua condição humana, reduzindo-a praticamente à categoria de coisa.” – Cfr. Ac. TRC de 18-05-2022, processo 924/19.1PBLRA.C1, in http://www.dgsi.pt/jtrc.
Estamos perante um crime específico pois pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação com o sujeito passivo daqueles comportamentos.
As condutas típicas podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas corporais simples) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, injúrias, ameaças mesmo que não configuradoras, em si, do crime de ameaça).
O tipo de crime pressupõe uma reiteração das condutas que integram o tipo objectivo e que são susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem, em si mesmas, outros crimes: ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria, difamação.
De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime as condutas que integram o tipo-de-ilícito não são individualmente consideradas, enquanto, eventualmente, integradoras de um tipo de crime, para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus tratos sobre, nomeadamente o cônjuge ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com o agente coabite.
Ou seja, entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria e difamação (que o podem integrar) estabelece-se uma relação de concurso aparente, só se aplicando a pena estabelecida pelo artigo 152.º, e deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os crimes que o podem integrar.
A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime.
O tipo legal inclui na descrição da acção uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é designado por realização repetida do tipo. (Cfr., designadamente, HANS-HEINRICH, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., pp. 998-999, e Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, pp. 546-547).
Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se expressa no artigo 19.º, n.º 3, do C.P.P., mas que são um só crime; não há pluralidade de crimes, mas pluralidade no modo de execução do crime.
A execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único.
No entanto, pode não existir reiteração como prevê o tipo de ilícito, pelo que a incriminação também ocorrerá quando “a gravidade intrínseca das condutas agressivas, mesmo que praticadas por uma só vez se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura dos maus tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana ...” (veja-se neste sentido Ac. da TRP de 31.01.01 e 3.07.02, in www.dgsi.pt.)
No que concerne ao elemento subjectivo do crime em apreço, estamos perante um crime doloso - art. 14º do C.Penal.
O dolo, como conhecimento e vontade de realização do tipo, é expressão de uma atitude contrária ou indiferente ao direito penal. É composto por três elementos: o elemento intelectual - conhecimento da ilicitude do facto -, o elemento volitivo - vontade de realização do tipo -, e o elemento emocional - atitude pessoal contrária ou indiferente à violação do bem jurídico protegido.
O dolo do agente, assim entendido tem de abarcar todas as circunstâncias relativas à sua acção - dolo genérico.
Face ao supra exposto e atenta da factualidade provada em 1) a 29), somos a afirmar ter o arguido, com o seu comportamento, preenchido todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo, incorrendo, assim, na prática, na pessoa de BB de um único crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do CP, já que os factos ocorreram na presença de menor e no domicílio comum do casal.
Quanto à exposição da menor DD à violência interparental, não tendo resultado provado nenhum acto de violência concreto contra a menor, temos que constituiu mera agravante do crime de violência doméstica, como previsto no tipo e não um crime autónomo.
Por outro lado, a factualidade vertida 33) configura uma violação da medida de coacção, prevendo a lei processual penal a solução para tais situações, nomeadamente um agravamento da medida de coacção imposta, não configurando, por si, um crime punível autonomamente.
Por fim, a privação da menor DD da figura materna, por força do falecimento desta, igualmente, não configura um crime de violência doméstica na pessoa da menor.
Com efeito, o art. 132º, n.º 2, al. b), do CP, qualifica o crime de homicídio por o facto ser praticado contra o cônjuge ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau.
Por outro lado, como decorre das regras da experiência comum e juízos de normalidade ao actuar nos termos descritos em 53), o arguido tinha necessariamente de saber que ia privar a sua filha menor da figura materna, mas nada permite concluir que o arguido o fez com a intenção de afectar gravemente a menor DD no desenvolvimento físico, psíquico e emocional, resultado a que aderiu ou aceitou, violando (uma vez mais) o direito de confiança desta de que o mesmo se absteria de condutas de tal natureza.
Não se provou que ao agir nos termos em causa o arguido sabia e quis actuar contra a sua filha menor.
Não se nos afigura possível autonomizar, nestas descritas circunstâncias, a prática de um crime de violência doméstica tendo por vitima a menor DD, autonomização essa que redundaria num alargamento do âmbito da norma incriminatória do art. 152º, do CP de forma incomportável.
Do crime de coacção.
Dispõe o art. 154º, n.º 1 do Código Penal que: “Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Prevendo o art. 155º, do citado diploma que:
“1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou
b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas;
d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;
e) Por determinação da circunstância prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º;
o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C, com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos casos dos n.º 1 do artigo 154.º e do artigo 154.º-A, e com pena de prisão de 1 a 8 anos, no caso do artigo 154.º-B.
2 - As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça, da coação, da perseguição ou do casamento forçado, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.”
O tipo objectivo de ilícito da coacção consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção ou suportar uma acção.
Os meios de coacção são a violência ou a ameaça com mal importante.
Do conceito tradicional de violência, como intervenção da força física (absoluta ou relativa, consoante elimina, ou não, qualquer possibilidade de resistência do coagido) sobre a própria pessoa do coagido, tem a doutrina e a jurisprudência evoluído para um conceito mais amplo de violência que abrange também a violência psíquica, o que implica que possam ser consideradas como violentas condutas omissivas e condutas que, apesar de não se traduzirem na utilização da força física, eliminam ou diminuem a capacidade de decisão ou resistência da vítima.
A violência tanto pode dirigir-se contra a pessoa do coagido como contra a pessoa de terceiros.
Necessário é apenas que o terceiro, objecto da violência, se encontre numa relação de proximidade existencial do coagido, pois que, só existindo uma tal relação se poderá considerar o acto de violência sobre um terceiro como adequado a afectar sensivelmente a liberdade de acção da pessoa que o agente pretende constranger.
A violência, pressuposta pelo crime de coacção, também pode consistir numa intervenção física sobre coisas. As coisas, sobre as quais o agente faz recair o seu acto violento, tanto podem ser do coagido como de terceiro. Necessário é que o mal causado nas coisas seja adequado a afectar sensivelmente a liberdade de acção do coagido, de forma a constranger este a adoptar o comportamento visado pelo agente.
A coacção também pode realizar-se através da ameaça com mal importante.
A distinção principal entre o conceito de violência e o conceito de ameaça reside na actualidade ou na futuralidade do mal.
A ameaça, enquanto meio do crime de coacção, tem que ter por objecto um mal importante.
Deve, em primeiro lugar, ter-se por firme que o mal importante, em si mesmo considerado, tanto pode ser ilícito como não ilícito, isto é, o mal ou dano não tem que ser necessariamente ilegítimo.
Por outras palavras, a execução da conduta, objecto da ameaça, não tem que constituir um ilícito, seja penal ou de qualquer outra espécie. O segundo critério orientador da definição concreta do “mal importante” é o da adequação da ameaça a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante.
Isto é, só deverá considerar-se mal importante aquele mal que é, nas circunstâncias do caso concreto, susceptível ou adequado a fazer “dobrar” a vontade do ameaçado.
Por outras palavras, mal importante é igual a mal adequado a constranger o ameaçado e mal adequado é igual a mal que, tendo em conta as circunstâncias concretas do ameaçado, é visto pelo homem comum como susceptível de coagir o ameaçado.
Em conclusão, o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objectivo-individual: objectivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual, uma vez que tem de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça.
Sendo o bem jurídico protegido a liberdade de acção, a consumação deste crime exige, consequentemente, que a pessoa objecto da acção de coacção tenha, efectivamente, sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade.
Para haver consumação, não basta a adequação da acção e a adopção, por parte do destinatário da coacção, do comportamento conforme à imposição do coactor, mas é ainda necessário que entre este comportamento e aquela acção de coacção haja uma relação de efectiva causalidade.
Se a conduta do sujeito passivo, apesar de coincidente com a que o coactor impunha, foi livremente decidida ou devida a apelo de terceiros, e não consequência ou resultado directo da acção de coacção, isto é, do medo da concretização da ameaça, não há consumação, mas apenas tentativa.
A consumação do crime de coacção basta-se com o simples início da execução da conduta coagida.
Se o objecto da coacção for a prática de uma acção, a coacção consuma-se, quando o coagido iniciar esta acção. Se o objecto da coacção for a omissão ou a tolerância de uma determinada acção, a coacção consuma-se no momento em que o coagido é, por causa da violência ou da ameaça, impedido de agir ou de reagir.
No que concerne ao tipo subjectivo de ilícito, estamos perante um crime doloso, bastando, no entanto, o dolo genérico.
In casu, perante a factualidade provada em 50) a 52), temos que o arguido com a sua actuação, preencheu claramente, todos os elementos constitutivos do crime de coacção agravada, pela al. a), do n.º 1, do art. 155º, do CP, ameaçando de morte o ofendido que, temendo pela sua vida e integridade física, viu afectada a sua capacidade de reacção e movimentação e assim viu-se incapaz de auxiliar a ofendida BB, como pretendia, antes ficou imobilizado assistente ao assassinato daquela.
Mais agiu o arguido com dolo directo.
Do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. b) (praticar o facto contra cônjuge ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau), f) (ser determinado pela identidade de género da vítima), j) (agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados)
Dispõe o art. 131º, do CP, que, “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos”.
O bem jurídico protegido é a vida de outra pessoa já nascida.
O tipo objectivo de ilícito consiste em matar outra pessoa.
O crime consuma-se com o resultado morte.
O tipo subjectivo de ilícito exige o dolo em qualquer das suas formas (contempladas no art. 14º do Código Penal).
No presente caso resultou provado que, o arguido se encontrava sujeito desde 30 de Setembro de 2022, às medidas de coacção de proibição de contactar (por qualquer meio) com a ofendida ou dela se aproximar num raio de 500 metros; bem como proibido de frequentar, permanecer ou aceder à residência da ofendida e locais de trabalho daquela, tudo a fiscalizar por meios tecnológicos de controlo à distância.
Os equipamentos de vigilância electrónica para fiscalização das medidas de coacção impostas foram instalados no dia 05.10.2022.
O arguido passou a ter como morada a Rua ..., ..., .../..., residência da sua tia KK.
O arguido percebendo que a ofendida estava, agora, decidida a divorciar-se e que, em face deste processo, existiam fortes probabilidades de a filha menor ficar à guarda daquela, na manhã de 22 de Fevereiro de 2023 - primeiro dia útil seguinte à conferência de divórcio - o arguido muniu-se de uma faca de cozinha, escolhendo a que tinha 20 (vinte) centímetros de lâmina e, da sua residência em ..., dirigiu-se ao local de trabalho da BB, sito na Rua ..., ..., em ..., ..., percorrendo uma distância de cerca de 25Km.
Para o efeito, o arguido deslocou-se na viatura de marca ...», modelo ... de cor ... e com a matrícula ..-..-TO.
Nesse dia, pelas 8h15m, já BB fazia limpeza nas instalações da «A...» (do grupo «B...»), sitas na morada supra indicada.
Pelas 8h13m, do aludido dia 22.02.2023, foi reportado pelo sistema de monitorização electrónica o afastamento do arguido relativamente à UPM (unidade de posicionamento móvel), equipamento de geolocalização que se encontrava obrigado a transportar consigo em permanência, uma vez que se tratava do equipamento que fornecia a sua localização geográfica e permitia identificar eventuais aproximações à ofendida, no âmbito da medida de coacção a que estava sujeito.
Nessa sequência, a Equipa de Vigilância Electrónica, em ordem a procurar a reposição da normal fiscalização, efectuou tentativas de contacto com o arguido, sem sucesso, uma vez que o telemóvel daquele estava desligado.
Paralelamente a Equipa de Vigilância Electrónica enviou à ofendida um SMS a informar da perda da monitorização do arguido.
Pelas 08h51m daquele dia, ocorreu uma aproximação do arguido à ofendida junto da Conservatória Registo Civil de Gondomar, sita Rua ..., ..., ..., ..., ou seja, próximo do local onde a ofendida estava a trabalhar (cerca de 14 metros a pé).
De imediato, a Equipa de Vigilância Electrónica estabeleceu contacto com a ofendida que confirmou que o seu equipamento de geolocalização sinalizara a proximidade do arguido e informou que havia avistado o arguido a passar de carro, mas que se encontrava em segurança.
Pelas 08h55m, do referido dia, o arguido afastou-se do aludido local.
Ás 9h19m daquele dia, ocorreu nova aproximação do arguido à ofendida, de novo, junto da Conservatória Registo Civil de Gondomar, sendo que contactada pela Equipa de Vigilância Electrónica, a ofendida reiterou encontrar-se em segurança.
Pelas 09h24m, do referido dia, o arguido afastou-se do local.
Assim, o arguido rondou o local de trabalho da ofendida e confirmou a sua presença no local.
O arguido estacionou o veículo em que se fazia transportar numa outra artéria, ocultou a referida faca na roupa que envergava e entrou nas instalações da «A...» (do grupo «B...»), cuja porta se encontrava aberta e onde a BB, no interior, mais precisamente no hall de entrada, efectuava limpeza.
Ao entrar nas referidas instalações o arguido fechou a porta de acesso às mesmas.
Não obstante a ofendida se ter apercebido da passagem de carro por parte do arguido e de ter sido contactada pela Equipa de Vigilância Electrónica nos termos supra-referidos, a mesma foi surpreendida pela presença do arguido no local, começando a gritar por socorro.
De imediato o arguido desferiu um estalo em BB, tendo esta em consequência sido projectada para o chão, onde ficou caída sobre o seu lado esquerdo, a gritar por socorro.
Ao aperceber-se dos gritos de socorro da ofendida, um dos funcionários da referida empresa, CC, acorreu em auxílio daquela, mas foi impedido de se aproximar, uma vez que o arguido empunhou a referida faca na sua direcção e brandiu-a na direcção do seu corpo, assim fazendo crer a CC, que se aproximasse usaria tal instrumento contra si, nomeadamente no seu corpo, atentando contra a sua vida e integridade física.
Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, CC, temendo pela sua vida e integridade física viu afectada a sua capacidade de reacção e movimentação e assim viu-se incapaz de auxiliar a ofendida, como pretendia.
Com efeito, imediatamente a seguir a ter imobilizado CC, e perante este, o arguido, com a descrita faca, que movimentou, com força, de cima para baixo e inclinando-se sobre a BB, desferiu-lhe um golpe profundo na face lateral do hemitórax direito, com trajecto penetrante no tecido celular subcutâneo da face lateral da porção médiodistal do hemitórax direito;músculo serrátil anterior direito; tecidos moles do 6º espaço intercostal direito; hemicúpula diafragmática direita; fígado; hemicúpula diafragmática direita; pleura parietal direita e porção torácica da artéria aorta, o que determinou directa e necessariamente a morte, quase imediata, de BB.
De seguida, o arguido ergueu-se e, antes de fugir do local, desferiu um pontapé da cabeça da ofendida.
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito - previamente delineado - de tirar a vida à ofendida, sua mulher e mãe da sua filha DD, o que conseguiu, usando um instrumento idóneo para o efeito (de que previamente se munira) na zona torácica e, portanto, numa zona vital do corpo da vítima. O arguido sabia que ia, necessariamente, privar a filha menor de ambos da figura materna e da vinculação afectiva à mesma. Mais sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei.
Face ao exposto, considera-se o arguido autor material de um crime de homicídio, previsto e punido pelo art.131º do Código Penal.
Vejamos agora.
A qualificação do crime de homicídio (art. 132º do Código Penal) “emerge de um incremento adensado da intencionalidade e das circunstâncias atinentes ao comportamento subjectivo e/ou objectivo do agente. São circunstâncias antepostas e circunstancias à acção que inculcam e induzem atitudes de ser e estar do agente perante a vítima, de modo de agir e realizar a acção, do seu planeamento, do estado de relacionamento social-familiar existente entre o agente e a vítima, de satisfação pessoal de instintos e emoções despojadas de sentir e agir humano, ou seja de uma atitude do agente perante o valor da vida e de factores circunstanciais que lhe conferem, pela proximidade e especial relacionamento do agente com a vítima um especial respeito e/ou um distanciamento e alheamento do valor da vida que reverberam um especial desvalor da atitude e uma incapacidade de acolher valores de respeito e asseguramento da vida humana. Instigam, como resulta da representação intelectual-cognitiva que inculcam, uma propensão do individuo perante o significado individual da vida a relevar na aferição da culpabilidade do acto.” – Ac. STJ de 25-11-2020, processo 1302/19.8JABRG.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.
Mais, pode suceder que a verificação de qualquer uma das circunstâncias qualificativas não implique, por si só, a qualificação do crime pelo que, então, deixará de operar tal qualificação. E isto porque as circunstâncias descritas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 132º, do CP não são de funcionamento automático (neste sentido, cf. Maia Gonçalves na anotação ao art. 132º do Código Penal; Actas das sessões da Comissão Revisora do Código Penal - Parte Especial, p. 21/24; e na jurisprudência, para além doutros, os acórdãos do STJ de 12/05/83, in BMJ 327/458; de 08/02/84, in BMJ 334/258; de 05/01/83, in BMJ 323/121; de 26/04/89, in BMJ 386/273, de 05/12/90, in BMJ 402/195).
A “especial censurabilidade” integra aquelas condutas em que “o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas”, e a “especial perversidade”, integra aquelas em que “o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas” (cfr. Dias, Jorge de Figueiredo/BRANDÃO, Nuno, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pág. 55).
Convém ter presente que os elementos constitutivos dos exemplos-padrão esgotam o seu sentido e a sua função na indiciação exemplificativa de um tipo de culpa agravado pela especial censurabilidade ou perversidade do agente, pelo que, em matéria de dolo, ter-se-á sempre que partir da situação real como ela foi representada pelo agente e, a partir daí, verificar se ela corresponde ou não à dos exemplos-padrão ou a uma situação substancialmente análoga e se, no caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
No presente caso, resulta da matéria de facto provada que ocorreu a morte de BB, resultado típico do crime de homicídio, tendo o mesmo sido causado nos termos supra descritos, por o arguido a ter esfaqueado, comportamento objectivamente idóneo a provocar aquele resultado.
A morte dolosa do cônjuge comporta, em regra, uma quebra radical da solidariedade que é, em princípio, devida pelo agente à vítima, o que normalmente será susceptível de indiciar uma especial perversidade, fundada num pesado desvalor da atitude revelado por esta perversão da relação dialógica do “ser-com-o-outro” e do “ser-para-o-outro” (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo/BRANDÃO, Nuno, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pág. 59).
Ora, no presente caso, pela imagem global do facto praticado, estando o arguido casado com a malograda vítima desde 2012 (sendo que já coabitavam desde 2004) e tendo uma filha menor em comum, querendo a vítima o divórcio devido aos maus tratos a que era sujeita e já estando o respectivo processo em curso, mostra-se preenchida a qualificativa prevenida no n.º 2, al. b) do art. 132º, do CP.
Quanto à qualificativa do n.º 2, al. f), do art. 132º, do CP, ser determinado pela identidade de género da vítima, ou seja, pela malograda vítima ser mulher, afigura-se-nos que dos factos provados decorre que o arguido decidiu matar, por a vitima ter tomado a firme decisão de se divorciar dele e por em face deste processo, existirem fortes probabilidades de a filha menor ficar à guarda daquela e não por a vítima ser apenas mulher (facto que aliás resultou não provado), assim, os factos apurados são insusceptíveis de integrar a qualificativa em apreço.
Atentemos agora na qualificativa “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados”, para efeitos da al. j) do n.º 2 do art.º 132.º do CP.
Como expressa o Ac. do STJ de 07-04-2022, proc. 92/20.6GAPNI.C1.S1 (in https://www.dgsi.pt/jstj.) “a doutrina tem entendido que a frieza de ânimo se reporta a momento anterior à prática do crime.
E, o mesmo entendimento tem sido seguido pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, que considera que a frieza de ânimo se tem por verificada quando o agente formula a sua decisão de matar antes da prática do crime.
Neste sentido, veja-se:
O Sumário do Ac. STJ de 17/04/2013, onde se lê que: “VI -O exemplo padrão previsto na al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP refere-se à frieza de ânimo, que é um dos possíveis entendimentos da premeditação, uma das suas manifestações; a premeditação pressupõe uma reflexão do agente, incluindo ponderação sobre os meios empregados, um plano e decurso de tempo, em que persista a intenção de matar. A frieza de ânimo é um conceito que pressupõe uma vontade formada de modo lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e na execução e persistente na resolução. Para tanto, há que provar que o agente decidiu definitivamente tirar a vida à vítima, antes dos factos, aguardando apenas o momento propício para o fazer. A frieza de ânimo pressupõe que interceda um hiato temporal entre a ideação do meio a usar e a passagem à acção, por seu intermédio”.
Ainda, citando este aresto, e quanto a esta qualificativa:
“Este exemplo padrão está previsto na alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, que diz: «j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas».
Não está em causa no caso concreto, claramente, situação que corporize persistência na intenção de matar por mais de 24 horas, nem reflexão sobre os meios empregados, restando indagar se a conduta do arguido integra a outra forma ou manifestação de premeditação que se traduz no conceito indeterminado de frieza de ânimo.
A frieza de ânimo é um dos possíveis entendimentos da premeditação, uma das suas manifestações; a premeditação pressupõe uma reflexão do agente, incluindo ponderação sobre os meios empregados, um plano e decurso de tempo, em que persista a intenção de matar.
Como acentuam os acórdãos de 21-05-1997, processo n.º 107/97, SASTJ, n.º 11, pág. 82 e de 15-04-1998, BMJ n.º 476, p. 238 – A frieza de ânimo é um conceito que pressupõe uma vontade formada de modo lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e na execução e persistente na resolução. Para tanto, há que provar que um agente decidiu definitivamente tirar a vida à vítima, antes dos factos, aguardando apenas o momento propício para o fazer.
Na expressão do acórdão de 30-09-1999, processo n.º 36/99-3.ª Secção, SASTJ, n.º 33, p. 94 (citado no acórdão de 30-10-2003, processo n.º 3281/03-5.ª), a frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.
No acórdão de 30-10-2003, processo n.º 3252/03-5.ª, in CJSTJ 2003, tomo 3, p. 208 (citando-se o já referido acórdão de 30-09-1999 e ainda os constantes do BMJ 358, p. 260 e BMJ 476, p. 238, CJ 1990, tomo 3, p. 19, RC, CJ 1983, tomo 4, p. 68 e RE, BMJ 352-450 e por sua vez citado no acórdão de 21-06-2006, processo n.º 1913/06-3.ª), afirma-se que “actua com frieza de ânimo quem forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.
Do mesmo modo, o acórdão de 20-12-2005, proferido no processo n.º 2887/05-5.ª, publicado na CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 238 (em caso de uxoricídio), onde pode ler-se: A frieza de ânimo significa uma calma ou imperturbada reflexão no assumir, o agente, a resolução de matar. Consiste em a vontade se formar de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução. (A este propósito, cfr. acórdão de 30-11-2011, proferido no processo n.º 238/10.2JACBR.S1-3.ª, onde se expõem posições de doutrina e vária jurisprudência sobre o tema)”.
Também, no sumário do Ac. STJ de 06/01/2010, se lê que: “VII - A circunstância da frieza de ânimo traduz-se numa actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto”.
Estamos perante uma agravante que tem que ver com uma culpa acrescida daquele que nele pensa com frieza e com calma, que reflecte sobre o modo como o vai fazer, ou seja, que pensa previamente como fazê-lo.”
Ora, da factualidade provada decorre que pela 8h13m, do dia 22.02.2023, foi reportado pelo sistema de monitorização electrónica o afastamento do arguido relativamente à UPM (unidade de posicionamento móvel), equipamento de geolocalização que se encontrava obrigado a transportar consigo em permanência, uma vez que se tratava do equipamento que fornecia a sua localização geográfica e permitia identificar eventuais aproximações à ofendida, no âmbito da medida de coacção a que estava sujeito.
O arguido muniu-se de uma faca de cozinha, escolhendo a que tinha 20 (vinte) centímetros de lâmina e deslocou-se da sua residência em ... até ao local de trabalho da BB, sito na Rua ..., ..., em ..., ..., percorrendo uma distância de cerca de 25Km.
Como decorre da factualidade provada em 36) a 43) o arguido, depois de fazer aquele percurso, andou a rondar o local de trabalho da ofendida, confirmou a sua presença no local, estacionou o veículo em que se fazia transportar, ocultou a referida faca na roupa que envergava e entrou nas instalações da «A...», cuja porta se encontrava aberta e onde a BB, no interior, mais precisamente no hall de entrada, efectuava limpeza.
Ao entrar nas referidas instalações o arguido fechou a porta de acesso às mesmas.
BB ao ver o arguido, logo começou a gritar por socorro, tendo, de imediato o arguido desferido um estalo em BB que a projectou para o chão, onde ficou caída sobre o seu lado esquerdo, a gritar por socorro.
E não obstante, ter aparecido CC em socorro da ofendida, o arguido, não se inibiu, nem se refreou, antes, empunhou a referida faca na direcção daquele e brandiu-a na direcção do seu corpo, assim conseguindo impedir o referido CC de prestar socorro à malograda BB, tendo, imediatamente a seguir a ter imobilizado CC, e perante este, com a descrita faca, que movimentou, com força, de cima para baixo e inclinando-se sobre a BB, desferido-lhe um golpe profundo na face lateral do hemitórax direito, com trajecto penetrante no tecido celular subcutâneo da face lateral da porção médiodistal do hemitórax direito; músculo serrátil anterior direito; tecidos moles do 6º espaço intercostal direito; hemicúpula diafragmática direita; fígado; hemicúpula diafragmática direita; pleura parietal direita e porção torácica da artéria aorta, o que determinou directa e necessariamente a morte, quase imediata, de BB.
O arguido desferiu uma facada precisa, cirúrgica, que trespassou o corpo de BB da direita para a esquerda, tendo de seguida se erguido e desferido um pontapé na cabeça daquela. Após saiu do local/fugiu.
E é pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias em que a morte foi causada, neste caso uma autentica execução, cuja decisão foi prévia e friamente tomada, revelando o arguido uma especial vontade de matar e profundo desrespeito pela vida humana, tanto que levou a cabo o homicídio na presença de uma testemunha que coagiu para não interferir e, depois de ter trespassado com a dita faca o corpo da malograda BB, ainda lhe desferiu um pontapé na cabeça, acto de violência absolutamente gratuito e demonstrativo da sua vontade fria, imperturbável, firme e inabalável de matar.
Agiu com uma persistente resolução criminosa, denotando total desprezo pela vida humana numa atitude profundamente intolerável, evidenciando, assim, especial perversidade ou censurabilidade, pelo que temos por integrada a qualificativa da al. j), do n.º 2, do art. 132º, do CP.
Escolha e Medida da Pena.
Em consonância com o disposto no art. 71º do CP, interpretado à luz do art. 40º do mesmo diploma legal, a determinação da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido. Fixando-se o limite máximo daquela de acordo com a culpa; o limite mínimo, de acordo com as exigências de prevenção geral; e a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso concreto convenham.
Tudo isto sem prejuízo do respeito devido aos limites mínimos e máximos da pena aplicável em abstracto.
A determinação da natureza e medida da pena far-se-á, assim, em função da culpa do arguido, por forma a satisfazer as particulares exigências de prevenção especial, tendo em vista a recuperação daquele e apelando ao seu sentido de responsabilidade na coesão de todo o restante tecido social, sem deixar de atender à ideia de intimação e dissuasão ou de pura prevenção geral negativa e ainda sem perder de vista a prevenção geral positiva.
Diz o art. 70º, do CP que se "ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."
A moldura penal abstracta para o crime de violência doméstica é de prisão de dois a cinco anos.
A moldura penal abstracta para o crime de coacção agravada é de prisão de 1 a 5 anos.
Por fim, a moldura penal abstracta para o crime homicídio qualificado é de prisão de doze a vinte e cinco anos.
Importa, pois, ponderar, as exigências de prevenção geral que são elevadíssimas quer quanto ao crime de homicídio, que tutela o bem jurídico supremo - vida humana - quer quanto ao crime de violência doméstica; e elevadas são também relativamente ao crime de coacção, atento o bem jurídico protegido e violado.
Quanto ao crime de violência doméstica, importa assinalar a sua evolução legislativa de onde transparece uma reflexão sobre tais comportamentos e uma crescente percepção da repercussão social negativa dos mesmos. Trata-se de um tipo de criminalidade que assume um modo de execução específica, por ocorrer, em regra, no domicílio conjugal e na presença de menores, como aconteceu no presente caso, normalmente levado a cabo longe da observação alheia e no interior de um espaço fechado, o que confere um sentimento de impunidade, acrescendo a isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada de um casal e ainda a vergonha sentida pelas vitimas que muitas vezes, por isso, não denunciam o infractor.
Por outro lado, é grande e crescente o impacto na comunidade dos crimes que envolvem violência contra cônjuges em virtude da consciencialização comunitária de tais fenómenos e da ressonância fortemente negativa que adquiriram. Saliente-se que a criminalidade em causa, nomeadamente o crime de homicídio, lesivo do bem mais essencial, é geradora de forte alarme social e repúdio geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, sendo, pois, muito elevadas as exigências de reafirmação da norma violada.
As exigências de prevenção geral, não apenas negativa, de intimidação, mas sobretudo positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação das normas ocorrida, fazem-se sentir, principalmente no quadro actual da sociedade, com fortíssima intensidade, uma vez que tal criminalidade tem vindo a causar grande perplexidade quanto à sua difusão e forte alarme social, assistindo a sociedade incrédula a tais tipos de situações, em que por um qualquer motivo, se atenta contra a vida humana.
No que diz respeito à prevenção especial (negativa e positiva ou de socialização), mas também com relevância por via da culpa, há a considerar: - os antecedentes criminais que já conta condenações por crimes contra as pessoas, evidenciando o arguido dificuldade de adesão no cumprimento das medidas executadas na comunidade, sendo que relativamente à prática dos crimes que culminaram em anteriores condenações o arguido assume uma postura desculpabilizante, de minimização da sua gravidade ou mesmo de desvalor; no campo da conjugalidade, o arguido evidencia uma vivência conflituosa, cujo modo de funcionamento revela a existência de comportamentos impulsivos e de mecanismos de controlo sobre o cônjuge; todo o percurso de vida do arguido, incluindo as habilitações literárias, as condições sociais, familiares e económicas, etc, designadamente as existentes na data da prática dos factos, a actual situação do arguido, privado da liberdade á ordem dos presentes autos, beneficiando de apoio médico especializado por forma a aceitar a reclusão; o apoio familiar de que beneficia; o comportamento do arguido em audiência que não obstante ter verbalizado arrependimento e ter chorado, de facto, não revelou a efectiva capacidade de reconhecimento do mal cometido, nem demonstrou um verdadeiro juízo critico quanto ao seu comportamento, chamando sempre à colação a culpa da própria vitima, minimizando a sua conduta, atribuindo a responsabilidade das suas acções ao comportamento dos outros e a circunstâncias externas, desresponsabilizando-se pelas mesmas, centrando-se na responsabilização nos outros, sobretudo da vítima.
A grave ilicitude dos factos quanto ao crime de violência doméstica, considerando os factos concretos que a integram, não sendo de olvidar o prolongado lapso de tempo pelo qual perdurou o relacionamento abusivo do casal; o grau de ilicitude dos factos quanto ao crime de coacção agravada e o elevadíssimo grau de ilicitude dos factos quanto ao crime de homicídio qualificado, tendo em conta o descrito modo da sua execução e os motivos que levaram o arguido a agir.
Cumpre destacar ainda o aumento da censurabilidade da conduta assumida pelo arguido, que claramente matou a sua mulher com total frieza de ânimo e mediante uma resolução inabalável, executando-a, à frente de uma testemunha, a que acresce que aquela era mãe da sua filha menor de idade.
É muito grave e elevadíssimo o grau de violação dos deveres impostos ao arguido, denotando-se uma absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor da vida, da dignidade e liberdade da pessoa humana.
O arguido agiu com a modalidade mais intensa de dolo, que se mostra directo, pelo que, sendo a forma mais gravosa de dolo, representa maior desvalor, o que se verifica relativamente a todos os ilícitos.
As graves consequências do comportamento do arguido sofridas pela sua filha DD e as provadas consequências da conduta do arguido na pessoa de CC.
Milita a favor do arguido o facto de se ter ido entregar na esquadra ..., pelas 11h00 do dia 22.02.2023.
Assim, ponderadas todas as circunstâncias que influem na determinação da medida da pena – art. 71º –, afigura-se razoável e equilibrado aplicar ao arguido as seguintes penas parcelares:
- Pela prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do CP, a pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- Pela prática do crime de coacção agravado, p. e p. pelos arts. 154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do CP, a pena de 2 (dois) anos de prisão;
- Pela prática do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art. 131º e 132º, n.º 2, als. a) e j), do CP, a pena de 21 (vinte e um) anos de prisão.
Estabelece o art. 77º, do CP que:
“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.”
A pena conjunta através da qual se pune o concurso de crimes, segundo o texto do n.º 2, do art.º 77º, do CP, tem a sua moldura abstracta definida entre a pena mais elevada das penas parcelares e a soma de todas as penas em concurso, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa, o que equivale por dizer que no caso vertente a respectiva moldura, varia entre 21 (vinte e um) anos e tendo imperativamente como limite máximo 25 (vinte cinco) anos de prisão.
Segundo preceitua o supra citado n.º 1 do art. 77.º do CP, na medida da pena única são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que deverá ter-se em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente.
Assim, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.
No que concerne à personalidade do agente importa avaliar se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência, (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade.
In casu, a imagem global dos crimes levados a cabo pelo arguido permite concluir que o conjunto dos factos cometidos é reconduzível a uma tendência criminosa, a radicar na personalidade demonstrada pelo arguido nos concretos actos cometidos e diversos tipos de crime e cujas consequências atingiram o patamar mais grave, por violação do bem supremo – vida.
Para além de ter causado a morte da sua mulher, de forma calculista, fria, trespassando o seu corpo com uma única facada, agiu contra a mãe da sua filha, coagiu quem foi em socorro da vítima, sendo nefastas as consequências sofridas pela testemunha CC e muito graves as consequências sofridas pela menor DD, como resulta da factualidade provada.
Impõe-se também ponderar que, no momento em que o arguido assassinou a sua mulher e coagiu a testemunha CC, encontrava-se o mesmo sujeito às medidas de coacção descritas em 30) da factualidade provada, o que é revelador de uma personalidade avessa ao cumprimento do judicialmente decretado e às normas sociais.
Destarte, atendendo aos factos apurados, à elevadissima ilicitude e culpa decorrentes dos mesmos, e à personalidade do arguido supra-referida e documentada também nas condutas concretamente empreendidas, e todas as acima circunstâncias que militam em favor e desfavor do arguido, o tribunal julga por justo e equilibrado condenar aquele na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.
No caso, não são aplicáveis as sanções acessórias prevenidas nos nºs 4 a 6 do art. 152º, do CP, por a malograda BB ter falecida e não terem resultado provados os crimes de violência doméstica imputados ao arguido e que tinham por vitima a menor DD.
A Lei é aplicável aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
O arguido, desde logo, por ter mais de 30 anos de idade à data da prática dos factos, não se encontra abrangido pelo perdão de penas e amnistia de infracções previstos na Lei nº 38-A/2023 de 02.08 – art. 2º, n.º 1 -.
Estabelece o art. 16º, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, que:
“1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
2 - Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
3 - Os bens pertencentes à vítima que sejam apreendidos em processo penal devem ser de imediato examinados e restituídos, salvo quando assumam relevância probatória ou sejam suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado.”
O art. 67-A do CPP, estabelece que:
“1 - Considera-se:
a) 'Vítima':
i) A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime;
ii) Os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte;
iii) A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por acção ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;
b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;
c) 'Familiares', o cônjuge da vítima ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os seus parentes em linha reta, os irmãos e as pessoas economicamente dependentes da vítima;
d) 'Criança ou jovem', uma pessoa singular com idade inferior a 18 anos.
2 - Para os efeitos previstos na subalínea ii) da alínea a) do n.º 1 integram o conceito de vítima, pela ordem e prevalência seguinte, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e os ascendentes, na medida estrita em que tenham sofrido um dano com a morte, com exceção do autor dos factos que provocaram a morte.
3 - As vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente
violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.
4 - Assistem à vítima os direitos de informação, de assistência, de proteção e de participação ativa no processo penal, previstos neste Código e no Estatuto da Vítima.
5 - A vítima tem direito a colaborar com as autoridades policiais ou judiciárias competentes, prestando informações e facultando provas que se revelem necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.”
Nos termos do art. 67.º-A, n.º 3 do Código de Processo Penal, as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1, do citado artigo.
Ora, nos termos do disposto no artigo 1.º, al. j), do Código de Processo Penal considera-se 'Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos, o que se aplica ao crime de coacção agravada; al. l) 'Criminalidade especialmente violenta' as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos, o que se aplica ao crime de homicídio qualificado.
No presente caso, o arguido e a malograda vítima tiveram uma filha em comum, a DD, nascida a ../../2012, sendo que o exercício das responsabilidades parentais da menor está atribuído a EE e mulher FF, como resulta da certidão de 2.10.2023, referência 37018722.
Ora a menor DD é vítima nos termos do art. 67º-A, n.º 1, als. a-i) e a-iii), al. b) e n.º 3, do CPP, bem como o é o ofendido CC, este relativamente ao crime de coacção agravada.
Por seu turno, dispõe o art. 82.º-A do Código de Processo Penal que:
“1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.
3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”
Percorrida a factualidade provada descortina-se, desde logo, ter a menor DD e o ofendido CC, sofrido danos não patrimoniais, como consequência directa e necessária, a primeira, da conduta homicida do arguido e o segundo em resultado do crime de coacção agravada de que foi vitima, como resulta da factualidade vertida em 56) a 59) e 60), respectivamente.
Na fixação da indemnização, devem ser atendidos os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – Art. 496º, nº 1 do Código Civil.
Em relação aos danos não patrimoniais, o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com a equidade (art. 496.º, n.º 4, do Código Civil) (cfr. Revista da Faculdade de Direito e de Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, n.º 10 (2017), págs. 135-147). A equidade funciona como único recurso, “ainda que não descurando as circunstâncias que a lei manda considerar, a saber: o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (por exemplo, a natureza e a intensidade e da lesão infligida)” (cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Janeiro de 2019, no processo n.º 4378/16.6T8VCT.G1.S1., ambos in http://www.dgsi.pt.).
Encontrando-se, pois, preenchidos os requisitos supra enunciados, sopesadas as consequências das condutas protagonizadas pelo arguido, ao seu contexto e às condições de vida daquele, pois que o quantitativo da indemnização tem aqui de ser determinado segundo o prudente arbítrio do julgador, atendendo ainda à gravidade da infracção, aos danos morais por ela causado, à situação económica e à condição social do(a) ofendido(a) e do infractor, somos a ter por justa e adequada, num juízo de equidade, a fixação de uma compensação no valor global de € 50.000,00 relativamente à menor DD, e em €2.000 relativamente ao ofendido CC.
O art.º 2034.º do C.C. indica os actos (ilícitos) que geram incapacidade sucessória, por motivo de indignidade, entre os quais se conta a condenação por crime de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão (cfr. al. a).
A indignidade aqui prevista constituiu causa especial de incapacidade sucessória, de raiz puramente subjectiva, traduzida numa atitude de repúdio da lei pelos factos graves cometidos por alguém contra o autor da herança, seu cônjuge ou familiares mais próximos (cfr. LIMA, Pires de e VARELA, Antunes, in Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, p. 37).
O art.º 2036.º do CC regula a acção destinada a obter a declaração de indignidade e o prazo para a sua propositura. Em conformidade com o aditamento pela Lei n.º 82/2014, de 30 de Dezembro do art.º 69.º-A ao C.P., prevê o n.º 3 daquele art.º 2036.º, na redacção introduzida pela mesma lei que, caso a indignidade não seja declarada na sentença penal, a condenação de alguém como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, é obrigatoriamente comunicada ao Ministério Público, para os efeitos previstos no n.º 2 do mesmo normativo, isto é, para o mesmo intentar a acção destinada a obter a declaração de indignidade.
Por seu turno, regula o art.º 2037.º, do C.C. os efeitos da declaração de indignidade, dispondo que “declarada a indignidade, a devolução da sucessão ao indigno é havida como inexistente, sendo este considerado, para todos os efeitos, possuidor de má fé dos respetivos bens”, sendo que, “na sucessão legal, a incapacidade do indigno não prejudica o direito de representação dos seus descendentes”.
A indignidade torna a devolução sucessória inexistente, retroagindo os seus efeitos até ao momento da vocação. A indignidade afecta o chamamento (a vocação sucessória) até à sua raiz.
O chamamento dos herdeiros e legatários dá-se com a abertura da sucessão, que ocorreu no momento da morte da malograda vítima (cfr. arts. 2031.º e 2032.º do C.C.).
Pressuposto necessário do chamamento à sucessão, por lei ou por vontade do autor da sucessão, é a capacidade sucessória, ou seja, a capacidade de gozo (activa) de adquirir o direito de suceder mortis causa a outrem (cfr. art.º 2033.º, do C.C.).
A expressão “pode” constante do art.º 69.º-A, do C.P., para além de tornar claro que não se trata de uma consequência automática da aplicação da pena principal (cfr. art.º 30.º, n.º 4, da C.R.P.), remete para os pressupostos da indignidade do direito civil, ficando salvaguardo que a indignidade só será declarada se para tanto se dispuser de factos bastantes e, caso se entenda não a declarar, deixa-se aberta a via da acção civil para o mesmo efeito.
Ora, na verdade, nas situações extremas previstas no art.º 2034.º, al. a), do C.C., é de esperar que resulte já do processo criminal todo o acervo factual necessário ao preenchimento da hipótese que faz desencadear a consequência da indignidade sucessória, tornando desnecessário um posterior impulso processual autónomo tendente à declaração de indignidade, em acção cível, com o inerente desdobramento de custos, podendo implicar demoras e fazer revisitar acontecimentos dolorosos e violentos, com um rebate emocional previsivelmente intenso.
No caso em apreço, resulta da matéria de facto provada que a conduta voluntária e dolosa do arguido que foi causa idónea da morte de BB, seu cônjuge, é manifestamente motivo de indignidade, que pode, desde já, ser declarada nesta sede, nos termos das disposições acima referidas, e que conduz à incapacidade sucessória do referido arguido para suceder à malograda vitima, tornando o chamamento sucessório do arguido inexistente, desde o seu início.
No que se refere às amostras dos vestígios, produtos biológicos ou peças anatómicas que ainda não tenham sido destruídas, poderão sê-lo após trânsito em julgado do presente acórdão (cfr. art.º 25.º do regime jurídico das perícias médico-legais e forenses).
Decisão.
Pelo exposto, decide este Tribunal Colectivo:
Condenar AA pela prática, em autoria material, na pessoa de BB, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do CP, na pena parcelar de 4 (quatro) anos de prisão.
Condenar AA pela prática, em autoria material, de um crime de coacção agravado na pessoa de CC, p. e p. pelos arts. 154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do CP, na pena parcelar de 2 (dois) anos de prisão;
Condenar AA pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado na pessoa de BB, p. e p. pelos art. 131º e 132º, n.º 2, als. a) e j), do CP, na pena parcelar de 21 (vinte e um) anos de prisão.
Em cúmulo jurídico condenar AA na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.
Desde logo o arguido não beneficia da Lei nº 38-A/2023 de 02.08, por força do seu art. 2º, n.º 1 (à contrário).
Absolver AA dos demais crimes imputados.
Declarar AA indigno para suceder à herança aberta por morte de BB, nos termos do disposto nos arts. 69.º-A, do C.P., 2034.º, al. a), e 2037.º, do C.C.
Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4UC.
Ao abrigo do disposto nos arts. 67º-A e 82º-A do CPP e 16º da Lei 130/2015, de 4-9, condenar AA a pagar ao à menor DD, devidamente representada por EE e mulher FF a compensação, oficiosamente arbitrada, no montante de € 50.000,00.
Ao abrigo do disposto nos arts. 67º-A e 82º-A do CPP e 16º da Lei 130/2015, de 4-9, condenar AA a pagar ao ofendido CC a compensação, oficiosamente arbitrada, no montante de € 2.000,00.
(…) »
Fim de transcrição.
São os seguintes os vícios que o arguido aponta ao acórdão condenatório:
A - Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – art. º410 CPP/; da utilização de Prova Nula/violação do princípio do contraditório;
B - Erro de julgamento com impugnação alargada da matéria de facto no que se reporta à factualidade assente sob os n. ºs 3 a 29;
C - Da violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dúbio pro reo”; violação dos artigos 127. º, 128 .º1, 129 n. º1, 134 n.º1 b), todos do C.P.Penal;
D - Erro de julgamento na matéria de Direito - o concurso aparente dos crimes de violência doméstica e do crime de homicídio;
E- Erro quanto à pena concretamente aplicada na dosimetria das penas parcelares e do cúmulo jurídico daí decorrente; violação dos art. º 71 e 77.º do C. Penal.
II.3. Apreciação do recurso
II.3.1.
A - Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – art. º410 CPP. Da utilização de Prova Nula/violação do princípio do contraditório;
Defende o recorrente que o tribunal a quo ao valorar as declarações da falecida vítima do modo como o fez, em detrimento das declarações prestadas pelo arguido, assim como recorrendo ao uso de prova indirecta, com violação do principio do contraditório, o juiz a quo violou o principio do In Dubio pro Reo e o da presunção da inocência; entende por isso que estamos perante o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto uma vez que esta decisão assenta em Prova Nula, insuficiência essa que acarreta a impossibilidade do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivo do tipo legal do crime de violência doméstica.
Vejamos.
Segundo o recorrente a nulidade da prova resulta da circunstância da leitura, em audiência de julgamento, do depoimento prestado pela falecida vítima BB, (e que configura, no entender do recorrente, um depoimento indirecto) não ter sido acompanhada do necessário contraditório, com o crivo da imediação e da oralidade, sendo flagrante assim a violação assentida pelo Tribunal a quo, pelo disposto nos artigos 128.º n.º1, 129.º n.º1 e 134.º nº. 1 al. b), todos do Código de Processo Penal.
A este propósito, e assim se arredando a razão do recorrente, retira-se do teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/04/2024 (relatado por Jorge Jacob no processo 1505/17.0PBCBR.C1 in www.dgsi.pt) que:“ (…), a recorrente socorre-se da arguição da nulidade da sentença com fundamento na utilização de prova proibida, mas sem razão. Se é certo que o art. 355º, nº 1, estipula não valerem em julgamento (…) nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, logo o nº 2 do mesmo artigo exceptua (…) as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas nos termos dos artigos seguintes, relevando no caso de que agora cuidamos o disposto no nº 4 do art. 356º, que dispõe que é permitida a reprodução ou leitura de declarações prestadas perante a autoridade judiciária se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento.
A garantia de legalidade na utilização da prova referida neste último normativo exige que ela seja submetida ao contraditório. Esse contraditório, nos casos de impossibilidade de comparecimento por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apuramento do paradeiro, não tiver sido possível a notificação para comparecimento, é assegurado através da leitura das declarações em audiência, que poderão assim ser questionadas pelo arguido, tal como toda a demais prova produzida, tendo a solução normativa vertida no art. 356º acautelado as garantias de defesa do arguido relativamente a cada uma das leituras permitidas em função da sua natureza e das garantias processuais com que os actos foram praticados. Assim o reconheceu o Tribunal Constitucional, ao considerar que (…) o princípio rector de todas as regras sobre produção de prova na audiência de julgamento consta do artigo 355º, nº 1, do Código de Processo Penal, segundo o qual "não valem em julgamento nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tivessem sido produzidas ou examinadas em audiência". Por influxo deste princípio, como aliás resulta do nº 2 daquele dispositivo, a prova constante de actos processuais praticados anteriormente muito embora esteja à disposição do tribunal, não pode por este ser utilizada para efeitos de decisão se os respectivos autos não forem lidos em audiência. A leitura dos autos e declarações autorizada pelo artigo 356º representa uma emanação da oralidade e publicidade da audiência, traduzindo-se porém em excepção ao princípio da imediação da prova, excepção justificada pela impossibilidade ou grande dificuldade da sua produção directa ou por outras razões pertinentes.
Mas, nas situações que, a título taxativo, são previstas naquele preceito houve o evidente propósito de acautelar as garantias de defesa do arguido, nomeadamente o princípio do contraditório estabelecendo-se um regime diferenciado em função, não só da natureza dos actos processuais, como também da autoridade judiciária ou de polícia criminal perante quem foram praticados. Com efeito, destinguem-se ali, sucessivamente: (1) os actos processados com observância das formalidades estabelecidas para a audiência [artigos 356º, nº 1, alínea a) e 318º, 319º e 320º]; (2) autos de instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas [artigo 356º, nº 1, alínea b)]; (3) declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas prestadas perante o juiz quando destinadas a memória futura ou obtidas mediante precatórias legalmente permitidas [artigo 356º, nº 2, alíneas a) e c)]; (4) declarações anteriormente prestadas perante o juiz na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não se recorda de certos factos ou quando houver entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas de outro modo [artigo 356º, nº 3]; (5) declarações prestadas perante o juiz ou o Ministério Público se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoura [artigo 356º, nº 4]; (6) declarações do assistente, das partes civis e das testemunhas prestadas perante o juiz e perante o Ministério Público ou órgãos de polícia criminal se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura [artigo 356º, nºs 2, alínea b) e 5].
A diferenciação de tratamento estabelecida para a leitura em audiência dos diversos actos ali previstos radica na sua particular natureza e conteúdo mas também, e é esse um ponto que aqui importa sublinhar, nas maiores ou menores garantias processuais com que os mesmos foram praticados (com as formalidades estabelecidas para a audiência, levadas a cabo perante o juiz, perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal .
Por outro lado, não resulta nulidade da referência a depoimentos que mencionaram o que ouviram dizer à vítima, entretanto falecida. Não se trata de depoimento indirecto, como alega a recorrente, mas de depoimento directo (as afirmações da vítima foram ouvidas pelas testemunhas que se lhes referiram e é esse, tão-só, nessa parte, o alcance do respectivo depoimento), que foi submetido ao contraditório.(…)”
Adere-se, na íntegra, à argumentação e aos fundamentos expressos no douto acórdão ora mencionado pelo que a única conclusão possível é a de que o acórdão recorrido não padece de nulidade por utilização de prova proibida, assim como não padece de inconstitucionalidade por violação dos art.s 20º e 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Ainda, nesta sede, entende o recorrente que a dita prova nula acarreta o erro-vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Ora, tal vicio previsto no art.º410 n.º2 a ) do C.P.P. tem de resultar claro do texto da decisão, sem recurso a outros elementos e só ocorre quando os factos provados são, em si mesmos, insuficientes para proferir decisão de direito.
A questão que se coloca é a de saber se os factos dados por provados e que ressaltam expressamente do texto da decisão recorrida são suficientes para a imputação do crime de violência doméstica ao ora recorrente.
O tribunal deu como provado que
Tal como consta da motivação constante da decisão condenatória, apurou-se que:
(…) 3. Após o início da coabitação, o arguido, por via dos ciúmes que sentia, adoptou comportamentos de controle sobre a BB, o que acontecia com uma regularidade inicial de duas vezes por mês e, posteriormente, com uma maior regularidade, pelo menos, de duas vezes por semana.
4. Assim, quando a ofendida, em 2005, começou a exercer actividade profissional, o arguido passou a controlar-lhe o horário laboral; demonstrava desagrado quando a ofendida pretendia conviver/sair com terceiros, como tomar café com uma vizinha ou com uma colega de trabalho, questionando-a se não tinha o que fazer em casa; vistoriava a carteira que BB usava, para aceder ao seu telemóvel e fiscalizar/controlar o seu conteúdo, achando-se no direito de o fazer, tanto que questionado pela mesma, respondia «vou ver o teu telemóvel»; censurava o modo de vestir de BB visando vedar a possibilidade de aquela usar roupa decotada, dizendo: «Tu não vais sair com isso. Isso não tem jeito nenhum». BB chegou a ir trocar de roupa para não se incomodar mais.
5. Concomitantemente, o arguido entendia ser ele o «chefe de família» e, portanto, ser a ele que competia, exclusivamente, tomar decisões pelos dois, devendo a ofendida acatar o que o mesmo determinasse e sempre que a BB tomava alguma iniciativa ou manifestava opinião discordante, o arguido, instava-a a calar-se e apodava-a de «puta», «vaca», «cabra» e «filha da puta”.
6. O arguido nunca se inibiu de destratar verbalmente a ofendida BB com tal tipo de impropérios, na residência do casal e fora dela (à porta do emprego da ofendida no escritório em ..., ... e na residência da sua entidade patronal em ...), algumas vezes na presença do filho do arguido, dirigindo-lhe recorrentemente àquela dizendo-lhe: «Cala-te. Isso não tem jeito nenhum. Puta. Vaca. Filha da puta», o que acontecia quando o arguido implicava com os horários de chegada a casa da vitima, quando esta falava do pagamento das despesas de casa ou quando ingeria álcool em excesso (cerveja), factos que davam lugar a discussões entre o casal.
7. A 4 de Novembro de 2006, na habitação comum, o arguido agrediu a ofendida BB com socos, tendo-lhe ainda tentado apertar o pescoço. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida sofreu hematoma molar esquerdo e hematoma occipital, bem como dores, tendo recorrido à urgência do Centro Hospitalar ..., onde deu entrada pelas 22h18m e onde foi observada por cirurgia, tendo tido alta pelas 23h55m.
8. Na noite de 7 de Novembro de 2007 o arguido agrediu a ofendida com um muro na cara, sem, contudo, causar sequelas físicas.
9. Ao início da tarde de 6 de Janeiro de 2016, no estabelecimento do «Clube ...», sito na Rua ..., em ..., ..., porque a ofendida questionou o arguido se este já tinha contactado o fornecedor de café, o arguido exaltou-se, dirigiu-se à mesma e, sem mais, desferiu-lhe um murro na face. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida sofreu dores e as seguintes lesões: na face: equimose arroxeada ténue imediatamente superior à metade esquerda do lábio superior com 1 cm de diâmetro, e ligeiro edema subjacente; duas áreas equimóticas arroxeadas, uma na face interna do lábio superior à esquerda com 1,5cm de diâmetro e outra na face interna do lábio inferior à direita com 1cm de diâmetro; tais lesões demandaram para a respectiva cura 5 (cinco) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral.
10. Em Março de 2017 o arguido começou a explorar o estabelecimento denominado «Café ...», sito em ....
11. Com o avançar do mau relacionamento entre o casal, a ofendida passou a pernoitar, com a filha menor, DD, nas instalações do dito «Café ...». No entanto, esta mudança teve a sua principal causa no facto de o arguido ter deixado de pagar o consumo de água e electricidade da residência comum do casal, então, sita em ..., ..., provocando, deste modo, o corte do respectivo fornecimento.
12. Então, BB decidiu ir residir com os seus pais, na Rua .../..., em ..., ..., o que fez a 01.08.2017, levando a menor DD.
13. O arguido continuou a privar com a sua filha DD, com o consentimento da ofendida, e após desentendimentos a propósito da entrega da DD à mãe, a 16 de Outubro de 2017, o arguido deslocou-se, pela 01h00, à então morada da ofendida, pretendendo - ainda que contra a vontade desta - chegar à fala com a mesma e aceder a um telemóvel que a mesma tinha na sua posse.
14. Para o efeito, o mesmo tocou e ligou para o telemóvel da BB, mas também para o telefone fixo instalado na referida habitação, tudo de forma insistente, perturbando a tranquilidade/repouso da ofendida.
15. Quando a GNR chegou, ou seja, pelas 02h50, o arguido ainda se encontrava no local.
16. Também à época, o arguido, de forma não apurada acedeu ao perfil da ofendida na rede social Facebook, e ali escreveu:
«Um Sogro que chama cornudo ao genro o a filha e p…ta ou vaca
Ganhe vergonha na cara Sr GG e você dona II
Contribui para o divórcio da própria filha», colocando uma fotografia daqueles, pais da ofendida;
«esta visto que não queres falar com a tua filha»; «Ganha vergonha nunca te proibi de ver.s a tua filha dizes q não tens carro mas tens caminetas… BB»;
«Infelizmente nem a tua filha vens ver Interessa te e os passeios».
17. O casal voltou a viver junto no final de Outubro/ principio do Novembro de 2017, altura em que o arguido manteve um comportamento mais calmo.
18. No entanto no decurso de 2018, o arguido, na residência do casal e fora dela, várias vezes por semana, dirigiu-se à ofendida dizendo-lhe: «Cala-te. Isso não tem jeito nenhum. Puta. Vaca. Cabra. Filha da puta», o que acontecia quando implicava com os horários de chegada a casa da vitima, quando esta última falava do pagamento das despesas de casa ou quando ingeria álcool em excesso (cerveja), o que dava lugar sempre a discussões.
19. E sempre que a ofendida manifestava intenção de cessar com a relação, o arguido declarava-lhe - em tom sério, convincente e intimidatório «mato-te», «não me importo de ir preso» e «não ficas com a filha», isto para além de lhe propalar intenções de, uma vez mais, a agredir/«bato-te».
20. Desde Julho de 2022 o casal deixou de dormir no mesmo quarto.
21. Cerca das 22:30 horas, do dia 7 de Setembro de 2022, no interior da residência comum - sita na Rua ..., em ... - o arguido instou a menor DD a ir dormir para o seu quarto, tendo a ofendida retorquido que a filha ia ficar ali consigo (no quarto do casal), ao que o arguido reagiu aos gritos e, com uma sapatada, partiu o candeeiro da mesinha de cabeceira.
22. Na madrugada de 14 de Setembro de 2022, a propósito de uma discussão, sobre o facto de pelas 15:00 horas do dia anterior, o arguido ter ido recolher a filha menor no Centro de Estudo, foi solicitada a presença da Polícia de Segurança Pública na residência comum do casal, a quem o arguido se queixou que a ofendida não levava o lixo para a rua há já três dias, que não lhe lavava a roupa, nem fazia a comida para ele.
23. Nesse mês, o arguido efectuou uma série de chamadas telefónicas à ofendida e, pelo menos, no dia 23.09.2022 deslocou-se ao local de trabalho da ofendida, apelidando-a de «puta», causando naquela receio/medo.
24. No dia 16 de Setembro de 2022, a ofendida contactou com o arguido no sentido se inteirar se o mesmo estaria com a filha menor (uma vez que esta não se encontrava no Centro de Estudo).
25. No dia 17 de Setembro de 2022, pelas 00:25 horas, a Polícia de Segurança Pública foi, uma vez mais, chamada à citada residência.
26. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, instado, o arguido, pelos elementos policiais a recolher e levar para casa a DD (que se encontrava no interior da viatura daquele), o arguido saiu do local, com a menor.
27. A partir de 26.09.2022, o arguido deixou de pernoitar na referida habitação, tendo levado consigo a filha menor, impedindo a ofendida de a contactar pessoalmente e afirmando que a mesma não tinha que saber do respectivo paradeiro.
28. A menor DD assistia às discussões do casal, quando as mesmas decorriam em casa, ouvindo o que era dito, o que, por vezes a levava a telefonar ao seu meio irmão, JJ, filho do arguido, que logo se prontificava para a ir buscar para dar um passeio, o que fazia.
29. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de controlar, subjugar e menorizar a ofendida BB, sentindo-se superior à mesma; de molestar a ofendida no seu corpo e saúde; de aterrorizar a ofendida, causando-lhe medo pela sua integridade física e vida, afectando-a na sua capacidade de reacção e locomoção; bem sabendo que violava o direito de confiança da mesma no estabelecimento da relação de intimidade (e com filha comum) de que ele se absteria daquele tipo de condutas, agindo, amiúde, no interior da residência comum e na presença da sua filha menor, DD, a coberto da reserva de intimidade que tal locus proporcionava, e num espaço que deveria servir de conforto e de segurança
para ofendida BB e para a menor DD. Mais sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei. (…)”
E perante tal factualidade o tribunal a quo realizou adequadamente o seu enquadramento jurídico, nomeadamente, salientando que:
“Do crime de violência doméstica.
Estabelece o art. 152º, do C.P., que:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.”
Como se diz no Ac. do TRP de 29-02-2012 (in http://www.dgsi.pt/jtrp.), “Neste ilícito tutela-se uma vertente específica da individualidade física ou psíquica, mais precisamente aquela dimensão intransigente da dignidade humana que cada um tem o direito de preservar e de ver acautelado, de quem se situa, no âmbito das relações familiares ou análogas ou então de coabitação referenciadas no tipo legal, numa posição de vulnerabilidade.
Daí que a tutela penal se situe no núcleo irredutível da dignidade humana, sabido que o contexto familiar, os relacionamentos entre casais e a coabitação geram relações de dominação e de subalternidade decorrentes de uma posição de superioridade de um dos parceiros, designadamente ao nível físico, em relação ao outro parceiro mais débil, em relação ao qual se exerce certa violência individual.
É esta posição de vulnerabilidade de certas condições individuais que, perante manifestações de prepotência física ou psíquica, pode redundar na “coisificação” de um ser humano, o que significa a eliminação ou limitação insuportável da respectiva dignidade humana, quando esta tem uma consagração constitucional [art. 1.º, 24.º, n.º 1, 25.º, da C. Rep.] e é uma referência inabalável dos direitos humanos [5.º da DUDH; 3.º, n.º 1 da CEDH; 7.º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do PIDCP; 1.º, 3.º, n.º 1, 4.º da CDFUE].
Tudo isto resultante de uma nova consciência da gravidade que tais comportamentos violentos, muitos deles ocorridos “intra-muros”, têm na ruptura do relacionamento em sociedade e nas disfunções pessoais que os mesmos podem provocar e que pode até conduzir à mutilação ou eliminação do parceiro mais vulnerável.
Trata-se, por isso, de “uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.
Assim, o que se pretende criminalmente proibir são aqueles maus-tratos conducentes à violação ostensiva da saúde física ou psíquica das pessoas que integram aquelas relações familiares ou análogas ou então de coabitação, podendo ainda abarcar a afectação da sua privacidade, seja ao nível da sua liberdade pessoal em geral ou da sua autodeterminação sexual em particular.
Nesta conformidade, podemos assentar e partindo do bem jurídico aqui tutelado que os maus tratos proibidos pelo crime de violência doméstica têm sempre subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, de modo a eliminar ou a limitar claramente a sua condição humana, reduzindo-a praticamente à categoria de coisa.” – Cfr. Ac. TRC de 18-05-2022, processo 924/19.1PBLRA.C1, in http://www.dgsi.pt/jtrc.
Estamos perante um crime específico pois pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação com o sujeito passivo daqueles comportamentos.
As condutas típicas podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas corporais simples) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, injúrias, ameaças mesmo que não configuradoras, em si, do crime de ameaça).
O tipo de crime pressupõe uma reiteração das condutas que integram o tipo objectivo e que são susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem, em si mesmas, outros crimes: ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria, difamação.
De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime as condutas que integram o tipo-de-ilícito não são individualmente consideradas, enquanto, eventualmente, integradoras de um tipo de crime, para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus tratos sobre, nomeadamente o cônjuge ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com o agente coabite.
Ou seja, entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria e difamação (que o podem integrar) estabelece-se uma relação de concurso aparente, só se aplicando a pena estabelecida pelo artigo 152.º, e deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os crimes que o podem integrar.
A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime.
O tipo legal inclui na descrição da acção uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é designado por realização repetida do tipo. (Cfr., designadamente, HANS-HEINRICH, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., pp. 998-999, e Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, pp. 546-547).
Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se expressa no artigo 19.º, n.º 3, do C.P.P., mas que são um só crime; não há pluralidade de crimes, mas pluralidade no modo de execução do crime.
A execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único.
No entanto, pode não existir reiteração como prevê o tipo de ilícito, pelo que a incriminação também ocorrerá quando “a gravidade intrínseca das condutas agressivas, mesmo que praticadas por uma só vez se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura dos maus tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana ...” (veja-se neste sentido Ac. da TRP de 31.01.01 e 3.07.02, in www.dgsi.pt.)
No que concerne ao elemento subjectivo do crime em apreço, estamos perante um crime doloso - art. 14º do C.Penal.
O dolo, como conhecimento e vontade de realização do tipo, é expressão de uma atitude contrária ou indiferente ao direito penal. É composto por três elementos: o elemento intelectual - conhecimento da ilicitude do facto -, o elemento volitivo - vontade de realização do tipo -, e o elemento emocional - atitude pessoal contrária ou indiferente à violação do bem jurídico protegido.
O dolo do agente, assim entendido tem de abarcar todas as circunstâncias relativas à sua acção - dolo genérico.
Face ao supra exposto e atenta da factualidade provada em 1) a 29), somos a afirmar ter o arguido, com o seu comportamento, preenchido todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo, incorrendo, assim, na prática, na pessoa de BB de um único crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do CP, já que os factos ocorreram na presença de menor e no domicílio comum do casal.(…)”
Na medida em que o tipo objetivo do crime de violência doméstica tem por referência (nas circunstâncias do caso) a inflição de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge, incluindo-se neles as condutas que se substanciem em violência ou agressividade física, psicológica e que o elemento subjetivo é composto pelo dolo genérico, id est (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual), não se exigindo nenhum elemento subjetivo específico, em linha com o que exige a efetiva tutela do bem jurídico protegido, não vislumbramos qualquer deficiência no enquadramento destes elementos realizada pelo tribunal a quo. Constata-se antes que o texto da decisão do tribunal recorrido não padece de qualquer insuficiência na medida em que os referidos factos dados como provados são claramente suficientes para a integração de todos os elementos do tipo, quer os objectivos, quer o subjectivo, pelo que, neste segmento, é não provido o recurso.
O artigo 412º, n.º 3 do CPP dispõe que “Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
E, o seu n.º 4 estabelece que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Refira-se, «a priori», que a impugnação da matéria de facto alicerçada na alegada incorrecta apreciação da prova produzida em julgamento pelo tribunal a quo não é identificável ou coincidente com a discordância com a apreciação da prova realizada pelo julgador no quadro do princípio da livre apreciação da prova vertido no artigo 127º do CPP. Tal princípio de processo penal vem afirmar, por um lado, que o julgador não está amarrado a critérios legais pré-determinados no que toca ao valor a atribuir à prova, não deixando, porém, de indicar limites que obstam a que aquela apreciação da prova mais não seja do que um exercício discricionário ou arbitrário. Limites esse que assentam em
em critérios objectivos a atender pelo julgador, sendo este o braço material e visível do ius puniendi do Estado, e logo, cingido ao dever de prossecução da verdade material. É a obediência a este principio basilar do processo penal que garante que a valoração da prova é realizada segundo a convicção do tribunal, a qual tem, necessariamente, que ser objectivável porque só deste modo será possível garantir a sua transparência e, consequentemente, permitir a adesão da comunidade ao já aludido ius puniendi do Estado, poder este que apenas poderá garantir a sua eficácia quando legitimado pela comunidade.
Isto dito, a convicção judiciária no que toca à da verdade dos factos tem que assentar, nomeadamente, em regras técnicas, científicas ou resultantes da experiência comum, e revelar-se, com base nestas mesmas regras, uma convicção que afasta toda a dúvida razoável (cfr. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, págs. 198-207). E é igualmente por se atender ao primado deste principio da livre apreciação da prova plasmado no art. º127 do C.P.P. que a jurisprudência tem vindo a entender que a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso, quando a mesma resultar da violação daquelas regras, afrontando ostensivamente as regras de experiência comum ou o princípio in dubio pro reo, ou assentar em provas ilegais ou proibidas, ou firmada em sentido contrário àquele que a força probatória plena de certos meios de prova impõe[1].
Vejamos em que consiste a impugnação da matéria de facto prevista no citado artigo 412º, n.º 3 do CPP. No acórdão do TRL de 29.03.2011, relatado por Jorge Gonçalves (acessível in www.dgsi.pt) refere-se que “na apreciação que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do C.P.Penal. A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso de matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se o permitirem [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412º.”
Numa tentativa de explicitar o que traduz uma imposição no acerto da factualidade encontramos várias decisões jurisprudenciais, a saber:
- no acórdão do STJ de 15.12.2005, relatado por Simas Santos refere-se que “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstrem esses erros” (cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 09.03.2006, relatado pelo mesmo relator, ambos acessíveis in www.dgsi.pt). [com sublinhado da nossa autoria].
Na perspectiva do recorrente o Tribunal a quo não poderia ter dado como provados os fatos 3 a 29 do Acórdão condenatório, uma vez que estes assentam nas declarações prestada pela própria vítima em 28.09.2022, as quais não foram objeto de contraditório por parte do arguido, donde resulta que o juiz “a quo” fez uma errada interpretação da prova que lhe foi oferecida e violou, designadamente, o Princípio da Livre Apreciação da Prova (artigo 127º do C. P. P.) e o Princípio “in dubio pro reo”. Desenvolvendo tal tese vem o arguido sustentar que o tribunal preferiu valorar o depoimento da vítima e dos órgãos de policia criminal em detrimento do depoimento do depoimento do arguido e das testemunhas por este apresentadas, sendo que, caso tivesse optado por atender a estes últimos depoimentos seria inviável considerar provada qualquer matéria de facto que preenchesse os elementos objectivos e subjectivo do tipo legal do crime de violência doméstica.
Ora, da argumentação do recorrente resulta claro que o mesmo visou apenas impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo, pretendendo substituir essa convicção pela sua, assente esta na sua própria interpretação pessoal da prova produzida. Nesta sede chamamos à colação alguma jurisprudência, a qual maioritária, e que repudia tal tipo de argumentação em sede recursiva; é o caso dos seguintes arestos:
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004 de 24.03.2004, DR, II S, de 02.06.2004: “…a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”;
- Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 08/02/2023 in www.dgsi.pt: «I - Não é de admitir uma impugnação ampla da matéria de facto quando o que se com ela pretende é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que o recorrente entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida».
Concomitantemente, verifica-se que o recorrente não cumpriu minimamente os ónus de impugnação acima referidos, o que não permite que se proceda à apreciação da pretensão recursiva nesta parte. Revertendo a nossa atenção para o campo da impugnação alargada da matéria de facto cumpre dizer que, nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito, sendo que, de acordo com o artigo 431.ºdo mesmo diploma legal, “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou
c) Se tiver havido renovação da prova.”
Por outro lado, dispõe o artigo 412.º, n.º 3 do C.P.P. que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.
E, no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Cabe ainda referir que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, detectando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso (Ac. STJ de 16.06.2005).
Assim, deve concluir-se que o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente – Ac. do STJ de 10.01.2007 (www.dgsi).
O nosso Código de Processo Penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova segundo o qual o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e do «in dubio pro reo».
O princípio «in dubio pro reo», emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32.º, n.º 2 Constituição), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Postas estas considerações, cabe concluir que assim e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida, impondo-se uma decisão diversa.
Antes de mais, haverá de se considerar, desde logo, que o recorrente não especifica na sua peça recursiva, como lhe era imposto pelo artigo 412.º, n.º 3, do CPP, os pontos de facto que considera incorretamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida quanto a tais factos, por referência às concretas passagens das gravações dos respectivos depoimentos e declarações, tudo nos termos do art. 412º, nºs 3 e 4 do C. P. Penal. O recorrente não cumpre com tais deveres de particularização dado que não descreve ou enumera, por referência à peça recorrida, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, assim como não indica nem transcreve as concretas passagens dos depoimentos a que faz alusão e em que assenta a sua impugnação.
Ora, tais omissões impedem o Tribunal ad quem de apreciar a decisão proferida sobre a matéria de facto, razão pela qual, ao abrigo do preceituado no art. 420 do C.P.P. se determina a rejeição do recurso, neste segmento.
Ainda a este propósito, chama-se à colação o teor do Acórdão da Relação de Guimarães de 6/02/2006, relatado por Ricardo Silva (in www.dgsi), segundo o qual “Como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004 (() De 10 de Março de 2004, publicado no Diário da República, II Série, n.º 91, de 17 de Abril de 2004.), destacando as contra-alegações do Exm.º PGA, naquele Tribunal, «as menções a que aludem as alíneas a), b) e c) do n.º 3 e o n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal não traduzem um ónus de natureza puramente secundária ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto». O recorrente buscou uma reapreciação da prova, sem especificação das provas concretas que impõem decisão diversa, o que não se compadece com o regime legal de recurso em matéria de facto traçado no artigo 412.º do CPP. A possibilidade de formular convite ao recorrente para correcção das deficiências apontadas não tem, no caso, cabimento. Está em causa uma deficiência substancial da própria motivação que necessariamente se reflecte em deficiência substancial das conclusões. A motivação não expressa os motivos da impugnação através da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Estando-se perante deficiências relativas não apenas à formulação das conclusões, mas substanciais da própria motivação, os princípios constitucionais do acesso ao direito e do direito ao recurso em matéria penal – este último, aliás, enfocado na figura do arguido e já não na do assistente – não implicam que ao recorrente seja facultada oportunidade para aperfeiçoar em termos substanciais a motivação do recurso quanto à matéria de facto. Tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.(…)”
Concluindo-se pela rejeição do recurso no que concerne à impugnação alargada nos termos acima evidenciados, é necessário, ainda assim, apurar se no campo da «revista alargada», se verificam alguns dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, ainda que não invocados pelo recorrente, os quais têm de resultar da leitura do texto da decisão recorrida e que são do conhecimento oficioso.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada foi já acima apreciado pelo que, quanto a tal matéria, para aí nos remetemos, não deixando de novamente mencionar que, no caso dos autos, lendo o texto da decisão recorrida não vislumbramos que faltem factos para a decisão tomada na 1ª instância. Dessa leitura resulta que o Tribunal a quo deu como provados e não provados todos os factos relevantes para a decisão justa da causa. Os factos encontram-se devidamente descritos, como provados ou não provados, quer na parte relativa aos comportamentos descritos suscetíveis de integrar os tipos de ilícito, quer na parte relativa à determinação da medida das penas, parcelares e pena única.
Passemos ao vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Da leitura da decisão recorrida, não vemos que exista qualquer incompatibilidade entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Finalmente, vejamos o erro notório na apreciação da prova. Percorrendo os factos provados e não provados e lendo a motivação da decisão de facto na sua integralidade e análise crítica da prova que se fez não vemos em que ponto o Tribunal recorrido tenha dado por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Isto dito e feito, salientamos novamente que o facto de o recorrente discordar da apreciação da prova alcançada pelo Tribunal recorrido, não inquina a decisão recorrida no já referenciado vício do erro notório na apreciação da prova, vício esse que, de todo, não detectamos na decisão.
Não obstante o já acima evidenciado na abordagem das questões anteriores, cumpre sublinhar que no quadro da formação da convicção ganha relevo o princípio da livre apreciação da prova – art. º127 do C.P.P.
No quadro de tal princípio basilar veio Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, págs. 233 e 234) salientar que só os princípios da imediação e da oralidade “… permitem … avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações pelos participantes processuais”.
Sublinhando a prevalência da apreciação realizada pelo julgador em primeira instância quis o legislador realçar que tal juízo apenas pode ser afastado perante “…concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” - artigo 412.º, n.º 3, al. b) do CPP. Assim, e para respeitarmos estes princípios, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso. É o que resulta do teor do acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002, relatado por Santos Cabral (in C.J., ano XXVII, Tomo II, página 44) segundo o qual "quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum".
Como se retira da motivação do Acórdão recorrido e acima transcrito, o tribunal a quo narrou de forma lógica, objectiva e adequada as razões pelas quais decidiu conferir credibilidade aos depoimentos da vítima e das demais testemunhas (OPC) face ao depoimento do arguido e demais prova testemunhal. Certo é que nada impede, pois, o tribunal de credibilizar determinado depoimento em detrimento de outros, inexistindo também qualquer norma ou critério legal, com parâmetros pré-estabelecidos, que permitam considerar que certos e determinados depoimentos, consoante o sujeito que os presta ou mediante as circunstâncias em que são prestados, sejam credibilizados em detrimento de outros. Neste sentido encontramos o teor do acórdão do TRC de 18.02.2009[2], “Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. E não será a circunstância, normal nas lides judiciais de se contraporem, pela prova pessoal (declarações e testemunhos), versões distintas, a impor que o julgador seja conduzido, irremediavelmente, a uma situação de dúvida insuperável. A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados, não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos”.
Nos termos já anteriormente sublinhado, para que o tribunal de recurso conclua pela verificação de erro de julgamento em sede de matéria de facto é necessário que as provas invocadas pela recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
Ora, não é o caso.
O recorrente não evidencia variáveis que contrariem as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência na apreciação da prova por parte do julgador. O que o recorrente apresenta, como já vimos, é a sua convicção, subjectiva, relativamente à apreciação daqueles meios de prova que, naturalmente, não constitui argumento impugnativo válido.
Por todo o exposto, não vislumbramos, pois, qualquer erro de julgamento na apreciação da prova produzida.
Nestes termos, a decisão do tribunal a quo é inatacável por ter sido proferida de acordo com a sua livre convicção nos termos do artigo 127º do CPP e em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis, não tendo violado qualquer regra da experiência ou da ciência, pelo que, mantêm-se integralmente os factos dados como provados no acórdão recorrido.
Improcede, no segmento recursivo que considerou violado o princípio da livre apreciação da prova, o presente recurso.
O princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção de inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), constitui, pois, um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Com efeito, o princípio in dubio pro reo configura-se, basicamente, como uma regra da decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos -, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Enquanto expressão, ao nível da apreciação da prova, do princípio político-jurídico da presunção de inocência, traduz-se na imposição de que um non liquet, na questão da prova, tem que ser sempre valorado a favor do arguido. “No que se traduz que apenas pode haver condenação se se tiver alcandorado a verdade com um grau de certeza, para além de qualquer dúvida razoável, que, naturalmente, fica aquém da noção de qualquer sombra de dúvida” (neste sentido, o acórdão do TRP de 28.10.2015, relatado por Ernesto Nascimento, acessível in www.dgsi.pt). Como igualmente se refere no referido acórdão do TRP, a verificação deste vício “pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador. A simples existência de versões díspares e até contraditórias sobre os factos relevantes não implica que se aplique, sem mais, o princípio in dubio pro reo”.
O recorrente alega que o princípio in dubio pro reo impunha que o tribunal tivesse concluído pela sua absolvição.
Analisada a sentença recorrida concluímos que o tribunal a quo não enunciou qualquer dúvida relativamente à verificação da factualidade dada como provada, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem se evidencia qualquer possibilidade de que a prova legitimamente conduzisse o julgador a uma dúvida razoável e insuperável quanto à sua verificação.
Não se mostra, pois, violado o princípio in dubio pro reo.
Improcede igualmente, nesta parte, o recurso.
Alega o recorrente que em momento algum do acórdão recorrido se vislumbra ou se identifica qualquer menção quanto ao facto do arguido ser condenado por crimes que se apresentam em concurso aparente, ou em concurso efetivo, real ou outro e que a ausência desse escrutínio acarreta a nulidade da sentença.
Ora, cumpre então saber se a alegada ausência de escrutínio efectivamente se verifica, assim como se a mesma resulta na nulidade invocada.
Reza o art.º379 n.º 1 do C.P.Penal o seguinte:
“1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.
As nulidades previstas nas indicadas alíneas b) e c) afectam de modo grave interesses irrenunciáveis das partes, neste caso, do arguido.
No caso da alínea c) o interesse irrenunciável prende-se com a com a circunstância do tribunal recorrido ter sido omisso na abordagem de questão suscitada nos autos ou, pelo contrário, ter extravasado o objecto do processo, conhecendo de questão da qual não podia tomar conhecimento.
O pedido recorrente tem subjacente a ideia de que a decisão recorrida não se pronunciou sobre matéria relativamente à qual se deveria ter pronunciado, questão esta de Direito.
Refere-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 05/02/2019 (relatado por Vieira Lamin no Processo 10/08.0TELSB -E.L1-5 (in www.dgsi.pt) que “Questões, para efeito de verificação de uma omissão de pronúncia, são as questões de fundo, como impressivamente resulta da al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, ao declarar a nulidade da sentença quando o tribunal "...deixe de se pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia...", sendo questões de fundo as que integram matéria decisória, os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio e não meros argumentos ou razões.”
Relido o Acórdão recorrido verificamos que “a páginas tantas” do mesmo consta o seguinte:
«(…) A pena conjunta através da qual se pune o concurso de crimes, segundo o texto do n.º 2, do art.º 77º, do CP, tem a sua moldura abstracta definida entre a pena mais elevada das penas parcelares e a soma de todas as penas em concurso, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa, o que equivale por dizer que no caso vertente a respectiva moldura, varia entre 21 (vinte e um) anos e tendo imperativamente como limite máximo 25 (vinte cinco) anos de prisão. (…)” (sublinhado pela relatora).
Ora, o aludido art. º77 do C.Penal tem a seguinte epígrafe – “Punição do concurso de crimes e do crime continuado”. Logo, tendo o juiz a quo recorrido a tal preceito legal, subsumindo o enquadramento jurídico de cada um dos crimes nos termos em que o fez e, após o mesmo, enquadrando-os no preceituado neste último preceito legal, o mesmo tomou a opção clara e ineludível de considerar que os crimes de violência doméstica, crime de homicídio e o crime de coacção configuravam uma situação de concurso efectivo, não tendo deixado, por isso, de tomar posição quanto a tal questão de direito.
Falece por isso a alegação do recorrente de que se verifica uma ausência de escrutínio, isto é, de apuramento, na consideração e aplicação do instituto jurídico do concurso de crimes. Pelo contrário, é notória a opção do julgador o qual, sem margem para dúvidas, considerou existente tal concurso e, consequentemente, determinou as respectivas penas parcelares.
Consequentemente, improcede o recurso neste segmento uma vez que não se verifica a omissão invocada.
Segundo o recorrente “…existe, in casu, uma situação de concurso aparente de crimes, entre o crime de violência doméstica e o crime de homicídio (ainda que qualificado) em que o arguido/recorrente acabou por ser condenado, o que, desemboca no caso de consunção deste último crime perante o primeiro crime.(…)”.
O critério legal relativo ao concurso de crimes definido no artigo 30.º do Código Penal aponta para a consideração dos tipos legais violados, ou seja, da unidade ou pluralidade dos bens jurídicos.
«O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico[3].
A este propósito, adoptamos a abordagem da ilustre Professora e autora Maria Paula Ribeiro de Faria, a qual, na sua obra “Formas Especiais do Crime”[4], trata a questão do concurso de crimes, e que, na parte que importa para o caso em apreço, passamos a transcrever:
“Para Eduardo Correia, «o número de infracções determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. Pluralidade de crimes significa pluralidade de valores jurídicos negados. Se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico criminal, e estamos, portanto, perante uma única infracção»[5] (…)
No entanto, a par desta valoração que se refere aos bens jurídicos tutelados pelo tipo…coloca ainda Eduardo Correia uma outra valoração, ou exigência,: para afirmar a pluralidade criminosa é necessário que se deixe afirmar em relação ao agente mais do que um juízo de censura referida a uma pluralidade de processos resolutivos. (…) Temos assim de fazer acrescentar à pluralidade de bens jurídicos violados uma pluralidade de processos volitivos merecedores de distintos juízos de censura que fundamentalmente significam o reconhecimento de que pode existir um desfasamento entre a realidade formal do preenchimento do tipo e da afectação exterior dos bens jurídicos e a verdade material de um processo de actuação que apenas traduz um sentido típico e que apenas permite identificar um crime.»
Entende o recorrente que o tribunal a quo andou mal ao considerar a existência de um concurso efectivo entre o crime de violência doméstica e o crime de homicídio atenta a redacção do n. º1 do artigo 152 do Código Penal, segundo o qual:
“(…) 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns(…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.(…)” |
Não assiste razão ao recorrente e vejamos porquê.
“Existe concurso aparente de normas sempre que as condutas praticadas correspondem abstractamente a várias fattispeies sancionatórias sem que se possa efectivamente falar de crimes autónomos.” - (obra citadas de M.Paula R. de Faria).
Isto é, no concurso aparente todos os elementos das normas incriminadoras estão preenchidos, pelo que elas concorrem efectivamente entre si, embora só uma delas seja aplicável.
Para distinguir o concurso aparente do efectivo a nossa doutrina e jurisprudência, as mais das vezes, recorre ao critério pluralista que se desdobra nos critérios da especialidade, da subsidiariedade e da consunção.
Subsumindo-nos ao caso concreto, a questão passa por verificar se perante a factualidade dada como provada podemos afirmar a existência de uma relação de consunção entre o crime de homicídio e do crime de violência doméstica.
Conforme o defende Eduardo Correia “a constatação de uma pluralidade de processos volitivos merecedores de distintos juízos de censura que fundamentalmente significam o reconhecimento de que pode existir um desfasamento entre a realidade formal do preenchimento do tipo e da afectação exterior dos bens jurídicos e a verdade material de um processo de actuação que apenas traduz um sentido típico e que apenas permite identificar um crime”.
Na medida em que a relação de consunção se verifica sempre que a realização de um crime comporta a realização de um outro cujo desvalor normativo é consumido pelo primeiro, comportando este efeitos penais mais gravosos, o que assenta na verificação de um juízo de valor comparativo entre tipos legais autónomos, compatíveis com numa narrativa factual dinâmica, temos como certo que, no caso em apreço, não estamos estamos perante uma relação de concurso aparente entre o crime de homicídio e o crime de violência doméstica.
E neste sentido encontramos uma multiplicidade de acórdãos das instâncias superiores, sendo clara a posição da Jurisprudência no que a esta questão concerne. É o caso dos acórdãos, aliás, já citados em sede de Parecer, que aqui, novamente, chamamos à colação:
- Acórdão do T.R.C. - Tribunal da Relação de Coimbra de 17/03/2022 in www.dgsi.pt:
«…II. Para aferir da existência ou não de concurso aparente de crimes em relação às condutas levadas a cabo pelo arguido em causa nos autos tipificadas como crimes de violência doméstica e de homicídio qualificado, na forma tentada, o que há a ponderar, são essas concretas condutas.
III. Perante elas há que dizer que o objectivo do arguido perante os factos ocorridos no dia 18 de Janeiro de 2021 era o de matar a vítima como está expresso no ponto 92. do elenco dos factos provados constantes do acórdão recorrido, enquanto que em relação às demais condutas que o arguido levou a cabo em relação à mesma vítima, algumas delas anteriores à referida data e outra posterior, o seu propósito foi o de a maltratar física e psiquicamente a mesma, atingindo a tranquilidade, a honra e a dignidade pessoal desta, como deflui do ponto 90. do mesmo elenco dos factos provados.
IV. Tratam-se, pois, inequivocamente, de condutas diferenciadas, atacando bens jurídicos com uma inescapável pluralidade de sentidos de ilicitude, ou seja, pluralidade de infracções diferencialmente valoradas para efeito da sua punição.
V. Ao nível do bem jurídico a actuação do recorrente ocorrida no dia 18 de Janeiro de 2021 (que integra o crime de homicídio qualificado na forma tentada), atenta contra a vida da vítima CP, enquanto que as demais condutas perpetradas pelo recorrente, ocorridas antes e despois da referida data (que integram o crime de violência doméstica) violam não apenas a saúde, seja ela física, psíquica e mental, mas, antes a integridade pessoal, ligado à defesa da dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões, da vítima, sua mulher.
VI. Resulta, assim, estarmos perante uma pluralidade de processos resolutivos, com violação de bens jurídicos diferentes. Razão pela qual devem ser autonomizados.
VII. Isto é, impõe-se concluirmos não existir um sentido autónomo de ilicitude em relação à globalidade da sua conduta à qual possa corresponder, citando Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, pág. 989-990, uma “predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados” caso em que se estaria perante uma situação de concurso aparente de crimes.
VIII. Mas antes, que, perante o quadro factual assente, se verifica que o crime de homicídio qualificado na forma tentada, que tutela um bem jurídico distinto e resulta de uma diferente resolução criminosa, ganha autonomia e está numa relação de concurso efectivo, e não apenas aparente, com o crime de violência doméstica, pelo que, verificando-se uma pluralidade de processos resolutivos, com violação de bens jurídicos diferentes, tais condutas criminosas devem ser autonomizadas.
IX. Por isso, destacando-se os actos que materializam a tentativa de homicídio daqueles que integram a prática do crime de violência doméstica, descortinando-se diferentes sentidos de ilicitude, com pluralidade de bens jurídicos afectados e pluralidade de resoluções criminosas, há concurso efectivo entre os crimes de homicídio na forma tentada e de violência doméstica.
X. Pelo que, o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, cometidos pelo recorrente assumem autonomia, encontrando-se tais crimes numa relação de concurso real efectivo»;
- Acórdão do T.R.C. - Tribunal da Relação de Coimbra de 12/04/2023 in www.dgsi.pt:
«(…) 3. Se a conduta típica integrar vários actos dos quais apenas um se subsume a crime mais gravemente punido, existe uma relação de concurso efectivo de crimes, a ser punido nos termos do artigo 77º do CP, entre o crime de violação e o crime de violência doméstica, não apenas porque constituem crimes dolosos puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, mas ainda porque os factos relativos a cada um dos crimes são dotados de unidade de sentido social diferenciado e foram autonomizados, como tal, na sentença.(…)”
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – T.R.C. de 16/02/2022 in www.dgsi.pt:
«I - Na redação dada ao artigo 152º do C. Penal pela Lei 59/2007 de 04.09, consolidada pela Lei nº19/2013 de 21.02 e pela Lei 44/2918 de 09.08, o crime de violência doméstica abrange no conceito de “maus tratos físicos ou psíquicos” ou “ofensas sexuais” quaisquer ofensas à integridade física ou psíquica suscetíveis de constituir, se autonomamente consideradas, crimes puníveis com pena prisão de limite superior até 5 anos - ocorridas entre as pessoas previstas no tipo, no âmbito e por causa, precisamente, das relações aí previstas, independentemente de haver entre elas quaisquer assimetrias de poder, imparidades ou dependências.
(…)
IV - Existe uma relação concurso efetivo de crimes, a ser punido nos termos do art. 77º do C. Penal, entre o crime de violação e o crime de violência doméstica, não apenas porque constituem crimes dolosos puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, mas ainda porque, no caso dos autos, os factos relativos a cada um dos crimes são dotados de unidade de sentido social diferenciada e foram autonomizados, como tal, na acusação e na sentença»;
- Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 21/10/2020 in www.dgsi.pt:
«I. É, entendimento dominante, que o factor que serve de base para a distinção entre um concurso aparente de normas e um concurso real é o bem jurídico protegido por cada norma, sendo que, haveria uma relação de consunção sempre que o bem jurídico de uma das normas fosse alvo de protecção pela outra.
II. No caso em apreço, um dos crimes imputados ao arguido é o crime de violência doméstica, que revela uma construção jurídica complexa, na medida em que o bem jurídico tutelado é multifacetado, incorporando várias modalidades de protecção da vítima pois visa proteger a integridade e saúde, quer física, quer psíquica da vítima, a par de proteger a sua dignidade e integridade moral como ser humano.
III. Por isso, na tutela da violência doméstica integram-se outras tutelas que também estão previstas no código penal enquanto tutelas de bens jurídicos isolados, como ocorre no crime de ofensa à integridade física, no crime de ameaça, nos crimes sexuais etc.
IV. No plano dos princípios, todos aqueles crimes podem fazer parte do leque de comportamentos de que o agente se socorre para infligir maus-tratos à vítima, no contexto familiar, clássico da violência doméstica.
V. Assim, o crime de violência doméstica visa, acima de tudo, acautelar situações de vivência conjugal e/ou familiar que, pela sua continuidade no tempo, interacção próxima entre agente e vítima, assente muitas vezes em situações de grande intimidade física, ocorridas num contexto de reserva de vida privada, longe dos olhares das pessoas, e assente numa especial vulnerabilidade da vítima, fruto da sua dependência emocional e/ou económica no agressor, produza comportamentos violentos, reiterados e de difícil destrinça em termos de momentos concretos, levando a que os comportamentos do agressor possam ser agrupados numa “única” actuação criminógena que acaba por pôr em causa todo o suporte psíquico e físico da vítima.
VI. Mas, se o crime de violência doméstica visa acautelar o que podemos chamar de um bem jurídico complexo ou multifacetado, podendo nele ser integrado uma série de comportamentos que, isoladamente, também são alvos de tutela penal, há que compreender quando é que essa tutela global, ínsita no crime de violência doméstica, abrange de forma adequada todo o comportamento criminal do agente, numa tutela eficaz da vítima e quando há que punir, autonomamente, outros comportamentos do agente embora eventualmente perpetrados no mesmo contexto.
VII. Aqui reside o busílis da questão pois que, quando estão em causa crimes que aparentam maior gravidade em termos punitivos, a moldura penal prevista para o crime de violência doméstica não se afigura uma protecção adequada da vítima, nem prossegue os fins das penas.
VIII. É certo que, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 152º do CP, vem prevista uma cláusula de salvaguarda através da qual o legislador determinou que a punição do crime de violência doméstica é de 1 a 5 anos de prisão “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Ou conforme anota PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, “o crime de violência doméstica está numa relação de concurso aparente (subsidiariedade expressa) com os crimes de ofensas corporais graves, contra a liberdade pessoal e contra a liberdade e autodeterminação sexual que sejam puníveis com pena mais grave do que prisão de 5 anos. Isto é, a punição destes crimes afasta a da violência doméstica”.[1]
IX. Mas, nesta situação o problema mantém-se porquanto, e embora se passa a aplicar ao agente a moldura penal mais elevada dos crimes que isoladamente possa ter perpetrado, o mesmo continua a ser punido por um único crime, passando o crime de violação, por exemplo, a absorver o crime de violência doméstica o que retira por completo a tutela deste crime que, como vimos, merece um enquadramento próprio.
X. Na prática absorver o crime de violação no crime de violência doméstica ou absorver o crime de violência doméstica no crime de violação, nunca permitirá a efectiva tutela de todos os bens jurídicos visados pelas respectivas incriminações penais.
XI. Tem sido jurisprudência constante do STJ[2] o entendimento de que o crime de violação, quando concretamente delimitado, e o crime de violação doméstica estão em situação de concurso efectivo.
XII. Ora, no caso em apreço, dúvidas não podem restar que os factos que permitem integrar a prática pelo arguido de um crime de violação separam-se, de forma até muito clara, dos restantes factos que dão origem à verificação do crime de violência doméstica.
XI. Estamos, assim, claramente perante dois crimes autónomos, quer em termos de resolução criminal, quer em termos de significado e sentido sociais de ilicitude, pelo que ao arguido deve ser imputada, a par da pratica de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do CP, um crime de violação p. e p. pelo art.º 164º nº 1 al. a) do Código Penal, em concurso real ou efectivo de crimes». ;
- Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 23/03/2023 in www.dgsi.pt:
«1–Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se diz no artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal, mas que constituem um único crime, ou seja, a execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime. A soma dos eventos parcelares constituirá um único crime. O crime de violência doméstica enquadra-se neste tipo de crimes.
2–Nas situações em que a um facto isolado corresponde uma pena superior à que corresponde à previsão do n.º 1 do 152.º do CPenal, existe concurso efectivo de crimes. O que vale para a situação em que concorre com a violência doméstica um ou mais crimes de violação, igualmente puníveis com pena superior à prevista para o crime de violência doméstica. (…)”
Tendo em mente o claro sentido da corrente jurisprudencial acima mencionada e transcrita, não olvidando que o bem jurídico protegido no tipo legal do crime de homicídio é o bem supremo – a vida -, e que no tipo legal do crime da violência doméstica o bem jurídico, complexo, visa a protecção da saúde, física, psíquica e mental, assim como a integridade pessoal, da dignidade da pessoa humana, certo é que, no caso em análise, nos encontramos perante uma pluralidade de processos resolutivos, claramente distinguíveis, inclusive, pelo momento temporal em que ocorrem, com violação de bens jurídicos diferentes. Razão pela qual dúvidas não se colocam quanto à sua necessária autonomização.
Bem andou o tribunal recorrido ao considerar a presença de um concurso efectivo entre o crime de homicídio e o crime de violência doméstica, razão pela qual, também neste segmento, se considera como não provido o presente recurso.
Alega o recorrente que o Tribunal a quo violou os artigos 40.º, 71.º e 77.º todos do Código Penal, pois a pena de prisão de 23 (vinte e três) anos em que o arguido foi condenado é excessiva e desajustada face quer à medida da culpa, quer às necessidades preventivas que o caso reclama. Segundo este o tribunal desconsiderou ou não valorou corretamente os seguintes aspectos:
- as declarações prestadas pelo assistente;
- a postura assumida pelo arguido após o cometimento dos crimes e em julgamento;
- a crispação mútua do casal; a ausência de crimes relevantes no certificado do registo criminal;
- a idade do recorrente;
- as condições pessoais e profissionais do arguido;
- o teor dos relatórios periciais junto aos autos;
Importa salientar que, também em sede de apreciação da fixação da medida concreta das penas, como é salientado no Acórdão do S.T.J de 06/04/2022[6], «… o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena, e que a sindicabilidade da medida concreta da pena, em recurso, abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respetivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”(…)»
Aferindo agora das penas concretas em que foi o arguido condenado nestes autos suportamo-nos nas considerações do juiz a quo, o qual salientou, e bem, que:
“(…) Escolha e Medida da Pena.
Em consonância com o disposto no art. 71º do CP, interpretado à luz do art. 40º do mesmo diploma legal, a determinação da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido. Fixando-se o limite máximo daquela de acordo com a culpa; o limite mínimo, de acordo com as exigências de prevenção geral; e a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso concreto convenham.
Tudo isto sem prejuízo do respeito devido aos limites mínimos e máximos da pena aplicável em abstracto.
A determinação da natureza e medida da pena far-se-á, assim, em função da culpa do arguido, por forma a satisfazer as particulares exigências de prevenção especial, tendo em vista a recuperação daquele e apelando ao seu sentido de responsabilidade na coesão de todo o restante tecido social, sem deixar de atender à ideia de intimação e dissuasão ou de pura prevenção geral negativa e ainda sem perder de vista a prevenção geral positiva.
Diz o art. 70º, do CP que se "ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."
A moldura penal abstracta para o crime de violência doméstica é de prisão de dois a cinco anos.
A moldura penal abstracta para o crime de coacção agravada é de prisão de 1 a 5 anos.
Por fim, a moldura penal abstracta para o crime homicídio qualificado é de prisão de doze a vinte e cinco anos.
Importa, pois, ponderar, as exigências de prevenção geral que são elevadíssimas quer quanto ao crime de homicídio, que tutela o bem jurídico supremo - vida humana - quer quanto ao crime de violência doméstica; e elevadas são também relativamente ao crime de coacção, atento o bem jurídico protegido e violado.
Quanto ao crime de violência doméstica, importa assinalar a sua evolução legislativa de onde transparece uma reflexão sobre tais comportamentos e uma crescente percepção da repercussão social negativa dos mesmos. Trata-se de um tipo de criminalidade que assume um modo de execução específica, por ocorrer, em regra, no domicílio conjugal e na presença de menores, como aconteceu no presente caso, normalmente levado a cabo longe da observação alheia e no interior de um espaço fechado, o que confere um sentimento de impunidade, acrescendo a isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada de um casal e ainda a vergonha sentida pelas vitimas que muitas vezes, por isso, não denunciam o infractor.
Por outro lado, é grande e crescente o impacto na comunidade dos crimes que envolvem violência contra cônjuges em virtude da consciencialização comunitária de tais fenómenos e da ressonância fortemente negativa que adquiriram. Saliente-se que a criminalidade em causa, nomeadamente o crime de homicídio, lesivo do bem mais essencial, é geradora de forte alarme social e repúdio geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, sendo, pois, muito elevadas as exigências de reafirmação da norma violada.
As exigências de prevenção geral, não apenas negativa, de intimidação, mas sobretudo positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação das normas ocorrida, fazem-se sentir, principalmente no quadro actual da sociedade, com fortíssima intensidade, uma vez que tal criminalidade tem vindo a causar grande perplexidade quanto à sua difusão e forte alarme social, assistindo a sociedade incrédula a tais tipos de situações, em que por um qualquer motivo, se atenta contra a vida humana.
No que diz respeito à prevenção especial (negativa e positiva ou de socialização), mas também com relevância por via da culpa, há a considerar: - os antecedentes criminais que já conta condenações por crimes contra as pessoas, evidenciando o arguido dificuldade de adesão no cumprimento das medidas executadas na comunidade, sendo que relativamente à prática dos crimes que culminaram em anteriores condenações o arguido assume uma postura desculpabilizante, de minimização da sua gravidade ou mesmo de desvalor; no campo da conjugalidade, o arguido evidencia uma vivência conflituosa, cujo modo de funcionamento revela a existência de comportamentos impulsivos e de mecanismos de controlo sobre o cônjuge; todo o percurso de vida do arguido, incluindo as habilitações literárias, as condições sociais, familiares e económicas, etc, designadamente as existentes na data da prática dos factos, a actual situação do arguido, privado da liberdade á ordem dos presentes autos, beneficiando de apoio médico especializado por forma a aceitar a reclusão; o apoio familiar de que beneficia; o comportamento do arguido em audiência que não obstante ter verbalizado arrependimento e ter chorado, de facto, não revelou a efectiva capacidade de reconhecimento do mal cometido, nem demonstrou um verdadeiro juízo critico quanto ao seu comportamento, chamando sempre à colação a culpa da própria vitima, minimizando a sua conduta, atribuindo a responsabilidade das suas acções ao comportamento dos outros e a circunstâncias externas, desresponsabilizando-se pelas mesmas, centrando-se na responsabilização nos outros, sobretudo da vítima.
A grave ilicitude dos factos quanto ao crime de violência doméstica, considerando os factos concretos que a integram, não sendo de olvidar o prolongado lapso de tempo pelo qual perdurou o relacionamento abusivo do casal; o grau de ilicitude dos factos quanto ao crime de coacção agravada e o elevadíssimo grau de ilicitude dos factos quanto ao crime de homicídio qualificado, tendo em conta o descrito modo da sua execução e os motivos que levaram o arguido a agir.
Cumpre destacar ainda o aumento da censurabilidade da conduta assumida pelo arguido, que claramente matou a sua mulher com total frieza de ânimo e mediante uma resolução inabalável, executando-a, à frente de uma testemunha, a que acresce que aquela era mãe da sua filha menor de idade.
É muito grave e elevadíssimo o grau de violação dos deveres impostos ao arguido, denotando-se uma absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor da vida, da dignidade e liberdade da pessoa humana.
O arguido agiu com a modalidade mais intensa de dolo, que se mostra directo, pelo que, sendo a forma mais gravosa de dolo, representa maior desvalor, o que se verifica relativamente a todos os ilícitos.
As graves consequências do comportamento do arguido sofridas pela sua filha DD e as provadas consequências da conduta do arguido na pessoa de CC.
Milita a favor do arguido o facto de se ter ido entregar na esquadra ..., pelas 11h00 do dia 22.02.2023.
Assim, ponderadas todas as circunstâncias que influem na determinação da medida da pena – art. 71º –, afigura-se razoável e equilibrado aplicar ao arguido as seguintes penas parcelares:
- Pela prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do CP, a pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- Pela prática do crime de coacção agravado, p. e p. pelos arts. 154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do CP, a pena de 2 (dois) anos de prisão;
- Pela prática do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art. 131º e 132º, n.º 2, als. a) e j), do CP, a pena de 21 (vinte e um) anos de prisão.
Estabelece o art. 77º, do CP que:
“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.”
A pena conjunta através da qual se pune o concurso de crimes, segundo o texto do n.º 2, do art.º 77º, do CP, tem a sua moldura abstracta definida entre a pena mais elevada das penas parcelares e a soma de todas as penas em concurso, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa, o que equivale por dizer que no caso vertente a respectiva moldura, varia entre 21 (vinte e um) anos e tendo imperativamente como limite máximo 25 (vinte cinco) anos de prisão.
Segundo preceitua o supra citado n.º 1 do art. 77.º do CP, na medida da pena única são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que deverá ter-se em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente.
Assim, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.
No que concerne à personalidade do agente importa avaliar se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência, (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade.
In casu, a imagem global dos crimes levados a cabo pelo arguido permite concluir que o conjunto dos factos cometidos é reconduzível a uma tendência criminosa, a radicar na personalidade demonstrada pelo arguido nos concretos actos cometidos e diversos tipos de crime e cujas consequências atingiram o patamar mais grave, por violação do bem supremo – vida.
Para além de ter causado a morte da sua mulher, de forma calculista, fria, trespassando o seu corpo com uma única facada, agiu contra a mãe da sua filha, coagiu quem foi em socorro da vítima, sendo nefastas as consequências sofridas pela testemunha CC e muito graves as consequências sofridas pela menor DD, como resulta da factualidade provada.
Impõe-se também ponderar que, no momento em que o arguido assassinou a sua mulher e coagiu a testemunha CC, encontrava-se o mesmo sujeito às medidas de coacção descritas em 30) da factualidade provada, o que é revelador de uma personalidade avessa ao cumprimento do judicialmente decretado e às normas sociais.
Destarte, atendendo aos factos apurados, à elevadissima ilicitude e culpa decorrentes dos mesmos, e à personalidade do arguido supra-referida e documentada também nas condutas concretamente empreendidas, e todas as acima circunstâncias que militam em favor e desfavor do arguido, o tribunal julga por justo e equilibrado condenar aquele na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.(…)”
Pugna o recorrente pela redução das penas parcelares e da pena única sugerindo que, em caso de confirmação da condenação do arguido pelos crimes condenados, o tribunal opte por uma pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, a pena de 1(um) ano de prisão pela prática do crime de coação agravada, a pena de 16(dezasseis) anos de prisão pela prática do crime de Homicídio Qualificado e por uma pena única de nunca superior a 19 (dezanove) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Importa chamar à colação os critérios que presidem à determinação da medida das penas, vertidos nos artigos 40.°, 70.° e 71.°, do Código Penal, dos quais se extrai que as finalidades das penas são a protecção dos bens jurídicos violados, por um lado, e, por outro, a reintegração do agente na sociedade, sendo a culpa o fundamento para a concretização da pena, que, em caso algum, pode ultrapassar a medida daquela.
De acordo com o disposto no artigo 71.°, do Código Penal, a medida da pena terá por base e será proporcional à medida da culpa concreta do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes, a prevenção especial, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do crime, as consequências do mesmo, a intensidade do dolo, as condições pessoais do arguido, os sentimentos que demonstrou na prática do acto criminoso, a personalidade por ele evidenciada, e as circunstâncias anteriores e posteriores aos factos.
Assim, e no quadro dos crimes que lhe são imputados, bem andou o juiz a quo ao salientar, o grau acentuado da ilicitude dos factos praticados face à violação do valor absoluto que é a vida humana, violação concretizada de modo violento, a violação da dignidade pessoal com a violação dos bens jurídicos defendidos pelo tipo legal da violência doméstica e aos quais já acima aludimos, à violação do bem maior - a liberdade de acção.
Salienta-se ainda o facto do arguido ter agido com dolo directo, o que se reflete no grau de culpa, esta acentuada, mercê, também, do período de tempo durante o qual foi praticada a violência doméstica assim como das específicas circunstâncias que rodearam o crime de homicídio. Bem andou o Juiz a quo quando realizou o apuramento e valoração dos danos emocionais causados à vítima CC, assim como os reflexos na filha menor do casal. Corretamente considerada foi, também, a tendência criminosa radicada na personalidade demonstrada pelo arguido nos concretos actos cometidos.
As necessidades de prevenção geral foram corretamente ponderadas e valoradas dada a natureza dos crimes praticados e a insegurança que os mesmos provocam na comunidade. Também as exigências de prevenção especial foram devidamente enquadradas, quer face aos antecedentes criminais do arguido, quer face à registada dificuldade do mesmo em aderir a medidas estaduais de foro punitivo, sendo também de relevar a violação da medida de coacção cautelar aplicada nestes mesmos autos. Circunstâncias estas reveladoras da personalidade do arguido, esta evidenciada também através da sua postura desculpabilizante e de vitimização, nitidamente avessa ao pendor punitivo e garantistico do Estado de Direito.
Remetendo-nos para o teor do acórdão recorrido resta concluir que o Juiz “a quo” valorou todos os elementos relevantes para a determinação das penas parcelares assim como da pena única.
Porém, é entendimento deste tribunal ad quem que as penas parcelares aplicadas no quadro dos crimes de violência doméstica e do crime de homicídio poderão ter ultrapassados os limites aconselhados pelo Princípio da Proporcionalidade.
A este propósito chamamos à colação o entendimento de Maria da Conceição Gil no seu estudo intitulado “O princípio da Proporcionalidade como elemento integrante do regime dos Direitos Fundamentais: o caso da pena de prisão.”[7]. Refere esta autora que “(…) importa relembrar o valor da dignidade da pessoa humana como fundamento axiológico último dos direitos fundamentais, proceder a uma breve exposição dos limites que daí decorrem e que se encontram explanados no regime de restrição destes direitos, e recordar o direito penal e, em particular, dentro dele, a pena de prisão, como caso especialmente gravoso de interferência, relembrando, ademais, os limites que, a ela, especificamente se impõem. (…)
Fundamento axiológico último de todos os direitos, e, em particular, dos direitos fundamentais17, a dignidade humana torna-se também limite da ação do Estado
(…)
O direito penal, enquanto “conjunto das normas jurídicas que ligam a certos comportamentos humanos, os crimes, determinadas consequências jurídicas privativas deste ramo de direito”, é um ramo que se encontra numa relação paradoxal com os bens jurídicos, uma vez que, surgindo como direito de proteção dos mesmos, neles encontrando o seu fundamento e legitimação, vem simultaneamente assegurar a sua proteção através de instrumentos sancionatórios que representam limitações fortíssimas de direitos fundamentais(igualmente bens jurídicos), e, como tal, neles encontrando também o seu limite(…)Dentro, ainda, desses, o P. da Proporcionalidade adquire um papel particularmente importante. Consagrado como limite à restrição de quaisquer direitos fundamentais (art. 18º, nºs 2 e 3 da CRP), dele vêm decorrer, no plano do direito penal, dois dos mais importantes princípios que regem este ramo: além do já referido princípio da dignidade e da subsidiariedade ou fragmentariedade penal, o princípio da necessidade e da subsidiariedade das penas, segundo o qual, consistindo em privações ou sacrifícios de determinados direitos, só serão, elas próprias, constitucionalmente admissíveis, quando também se afigurem necessárias, adequadas e proporcionadas à proteção do direito ou interesse constitucionalmente protegido pela incriminação. … Dentro, ainda, desses, o P. da Proporcionalidade adquire um papel particularmente importante. Consagrado como limite à restrição de quaisquer direitos fundamentais (art. 18º, nºs 2 e 3 da CRP)49, dele vêm decorrer, no plano do direito penal, dois dos mais importantes princípios que regem este ramo: além do já referido princípio da dignidade e da subsidiariedade ou fragmentariedade penal, o princípio da necessidade e da subsidiariedade das penas, segundo o qual, consistindo em privações ou sacrifícios de determinados direitos, só serão, elas próprias, constitucionalmente admissíveis, quando também se afigurem necessárias, adequadas e proporcionadas à proteção do direito ou interesse constitucionalmente protegido pela incriminação. No fundo, exige-se a adequação, necessidade e proporcionalidade não só da tipificação de crimes, como também da tipificação das penas (e respetiva execução).
(…)
O P. da proporcionalidade assenta na ideia de geral de que, perante a restrição de um direito, as “normas não devem exceder, ir além, do que é adequado e necessário para atingir um fim, nem ser desproporcionadas aos efeitos que se pretende atingir”. Encontra previsão expressa e afloramentos frequentes na CRP em diversos artigos, como seja, além do já mencionado art.18º, nº2, os arts. 19º, nºs 4 e 8, 28, nº2, 30º, nº5, 65º, nº4, 168, nºs 2 e 3, 189º, nº5, 266º, nº2, 267º, nº3, 270º, 272º, nº2 e 282º, nº4.
(…)
Da repartição que se deve, sobretudo, ao trabalho desenvolvido pela jurisprudência e doutrina alemãs, o P. da Proporcionalidade é atualmente compreendido através de três dimensões, subprincípios, segmentos ou vertentes: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade ou princípio da justa medida. Eis, agora, em síntese, o conteúdo de cada uma delas. Uma vez atribuído um fim à norma, e pressuposta a legitimidade do mesmo, a adequação traduz-se na aptidão, idoneidade ou capacidade intrínseca do meio – a norma com os respetivos efeitos jurídicos – a aproximar o fim visado pelo legislador: a produção ou desencadeamento de efeitos materiais positivos de satisfação de certos bens, interesses ou valores. O juízo de adequação implica, assim, uma análise empírica sobre os efeitos produzidos pela norma, para depois contrapor esses efeitos aos fins por ela visados.
(…)
Verificada a adequação do meio, segue-se – do ponto de vista lógico – a verificação da necessidade do mesmo. A necessidade do meio implica que de entre os meios que poderiam ser escolhidos em abstrato, seja selecionado o meio que melhor satisfaz em concreto, porque com menos custos e/ou mais benefícios, a realização do fim. De forma sumária, “o meio necessário é o menos interferente entre os meios disponíveis que tenham intensidade de satisfação pelo menos igual”. O meio necessário, será, assim, o meio indispensável. Se o juízo de adequação requer uma análise empírica, a dimensão da necessidade requer uma apreciação em termos relativos, isto é, por comparação com outros meios alternativos adequados a atingir o mesmo fim. Assim, em primeiro lugar, impõe saber-se se existem outros meios adequados a prosseguir a finalidade elegida pelo legislador, com a mesma intensidade por ele pretendida; se sim, então, em segundo lugar, há-de selecionar-se, de entre esses meios alternativos, o menos interferente. A proporcionalidade equivale, por fim, a uma ponderação, da qual há-de resultar uma proporcionalidade ou uma não desproporcionalidade. É uma dimensão que suscita grande controvérsia doutrinal, e requer, por isso, algum aprofundamento, a que se dedicará mais à frente. Pode, porém, ficar dito que, na perspetiva adotada, a medida se diz proporcional, strictu sensu, se os seus efeitos positivos tiverem importância superior aos negativos . Finalizando, nas palavras de Jorge Miranda, se não se respeitar o primeiro dos subprincípios haverá arbítrio; se não se verificarem os outros dois, haverá excesso(…)”
Assim, tudo ponderado, sopesando todas as vertentes do princípio da proporcionalidade e fazendo jus ao mesmo, decide-se alterar o quantum das penas parcelares aplicadas ao crime de violência doméstica e ao crime de homicídio qualificado, e consequentemente o quantum da pena única, da seguinte forma:
- Condenar AA pela prática, em autoria material, na pessoa de BB, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do CP, na pena parcelar de 3 (três) anos de prisão.
- Condenar AA pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado na pessoa de BB, p. e p. pelos art. 131º e 132º, n.º 2, als. a) e j), do CP, na pena parcelar de 18 (dezoito) anos de prisão.
- Manter a na pena parcelar de 2 (dois) anos de prisão no que toca ao crime de coacção agravado na pessoa de CC, p. e p. pelos arts. 154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do CP,
Em cúmulo jurídico condenar AA na pena única de 20 (vinte) anos de prisão.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam as Juízes na 1ª Secção Criminal da Relação do Porto em:
a) Rejeitar o recurso no que concerne à impugnação da matéria de facto por força do preceituado no art.º420 e 417, n. º6, b) do C.P.Penal.
b) alterar as penas parcelares e a respectiva pena única nos seguintes moldes:
- Condenar AA pela prática, em autoria material, na pessoa de BB, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do CP, na pena parcelar de 3 (três) anos de prisão.
- Condenar AA pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado na pessoa de BB, p. e p. pelos art. 131º e 132º, n.º 2, als. a) e j), do CP, na pena parcelar de 18 (dezoito) anos de prisão.
- Manter a na pena parcelar de 2 (dois) anos de prisão no que toca ao crime de coacção agravado na pessoa de CC, p. e p. pelos arts. 154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do CP,
- Em cúmulo jurídico condenar AA na pena única de 20 (vinte) anos de prisão.
c) Confirmar, no mais, a decisão recorrida;
d) Sem custas.
Comunique, de imediato, à primeira instância.
Porto, 06-12-2024
Elaborado e revisto nos termos legais - 94. º n. º2 do C.P.P.
Relatora - Maria Ângela Reguengo da Luz
1.ª adjunta - Paula Cristina Guerreiro
2.ª adjunta - Lígia Trovão
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[1] acórdão do TRP de 17.09.2003, relatado por Fernando Monterroso (disponível in www.dgsi.pt) “O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no artigo 127º do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, ed. 1974, pág. 204).
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal” (…) – Anotado, Vol. IV, págs. 566 e ss.” .
[2] relatado por Jorge Gonçalves e acessível in www.dgsi.pt;
[3] Acórdão do STJ de 04-12-2008 (Proc. n.º 06P4079);
[4] “Formas Especiais do Crime, 1.ª edição, Universidade Católica Editora Porto, página 374 e ss;
[5] Neste sentido, Figueiredo Dias, Cavaleiro Ferreira e Germano Marques da Silva nas suas Lições e Faria Costa em Jornadas de Direito Criminal.
[6] Proc. 192/19.5JAPDL.S1, relatado pela ilustre juíza conselheira Helena Fazenda;
[7] In Estudo Geral da Universidade de Coimbra; estudogeral.uc.pt/handlle/106316/90344)