RECURSO
FALTA DE CONCLUSÕES
GRAVAÇÃO DA PROVA
INDISPONIBILIDADE DAS GRAVAÇÕES: CONSEQUÊNCIAS
INTERRUPÇÃO E SUSPENSÃO DO PRAZO PARA RECORRER
Sumário

I. A ausência de disponibilização das gravações áudio da audiência de julgamento não se encontra cominada com a nulidade, pelo que, a existir algum vício processual, o mesmo apenas integrará uma irregularidade subsumível à previsão do art.º 123º do Código de Processo Penal.
II. O tribunal de recurso apenas reaprecia questões já decididas na primeira instância e não questões novas, não apreciadas na decisão recorrida, ressalvadas as nulidades ou outros vícios de conhecimento oficioso.
III. A falta de disponibilização das gravações e eventual nulidade decorrente da sua inutilização não foram apreciadas na sentença recorrida.
Não se tratando de questões apreciadas na sentença recorrida, as mesmas extravasam o objecto do presente recurso, pelo que se impõe nesta parte rejeitar o recurso do arguido, por inadmissibilidade legal, nos termos dos art.ºs 420º, n.º 1, alínea b), e 414º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
IV. Quando pretenda impugnar a matéria de facto, o recorrente terá de indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, não bastando que se reporte à totalidade de um ou vários depoimentos ou declarações, na medida em que são essas passagens que deverão ser ouvidas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo de outras que se entendam por relevantes.
V. O direito ao recurso constitucionalmente consagrado pressupõe, quando se pretenda impugnar a matéria de facto, a disponibilização das gravações da audiência de julgamento.
VI. A omissão do cumprimento atempado pela secretaria da disponibilização das gravações da audiência nos termos prescritos no citado art.º 101º/4 do Código de Processo Penal apenas é susceptível de contender com o prazo de interposição de recurso, mas não com os ónus que recaem sobre o recorrente previstos no art.º 412º/ 3 e 4 do mesmo Código.
VII. A indisponibilidade (temporária, diga-se) das gravações não isenta o recorrente do cumprimento dos ónus ali estabelecidos, apenas justificando eventualmente a suspensão do prazo em curso até que aquelas sejam disponibilizadas
(sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam em conferência as Juízas da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação

I. RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida em 12-04-2024, depositada nessa mesma data, nestes autos de processo comum com intervenção de tribunal singular com o n.º 292/21.1PAPTS, vindo do Juízo de Competência Genérica de Ponta do Sol, comarca da Madeira, veio o arguido
AA, filho de BB e de CC, de nacionalidade Portuguesa, nascido a ........1986, titular do cartão de cidadão n.º ..., e residência sita em ...,
interpor recurso de tal decisão, na qual foi decidido o seguinte, nos termos que constam do respectivo dispositivo (transcrição parcial):
- condenar AA, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p.p. pelo art.º 292º nº1 e 69º, nº1 al. a) do C. Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 7,00.
- condenar o arguido, nos termos do art.º 69º do C. Penal, na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 4 (quatro) meses e 15 (quinze) dias.
(…)
(fim de transcrição)
*
As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da extraídas da motivação do recurso que em seguida se transcrevem:

Volvidos mais de seis meses, não foram, até hoje, último dia de prazo de recurso, disponibilizadas as gravações das audiências em que foram ouvidas as testemunhas, 09/06/2023 e 10/07/2023, sendo que o presente recurso visa a consideração e a reapreciação pelo Tribunal ad quem da prova ora produzida e supostamente gravada em Audiência de Julgamento.

Sendo este o último dia da apresentação do presente recurso, impõe-se a apresentação do mesmo, ainda que com as limitações inerentes à ausência da efectiva disponibilização das gravações em causa (em particular no que concerne ao cumprimento dos requisitos do recurso da matéria de facto que vise a reapreciação de prova gravada).

Se, por algum motivo, designadamente informático, tais gravações tenham mesmo sido inutilizadas, é invocada a nulidade daí decorrente, posto que, sem as mesmas, não poderá o Tribunal da Relação de Lisboa considerá-las, como se impõe e se requer.

Dito isto, o Arguido entende que, ao contrário do considerado pelo Tribunal a quo, não deve ser dado como provado que o mesmo estava a conduzir.

A testemunha DD, ouvida em Audiência de Julgamento de 09/06/2023, cujo depoimento se mostra gravado no CITIUS, afirmou designadamente o seguinte:
- que não se lembrava se ia a conduzir;
- que não se lembrava quem fez a abordagem ao Arguido;
- que o carro onde ela própria seguia ia à velocidade 20/25 Km/hora;
- que ela e o colega iam ambos com máscara colocada;
- que ambos sentiram vindo do exterior, um forte cheiro a álcool;
- que assim sucedeu quando estavam a passar ao lado do carro do Arguido.

Esse depoimento, como se vê, em relação a aspectos fundamentais, designadamente quem ia a conduzir e quem fez a abordagem ao Arguido, mostra-se perfeitamente omisso — omissão essa de memória de aspectos relevantes que o Tribunal a quo não valorou.

E menos ainda valorou o Tribunal a quo aquilo que, na tentativa de justificar a sequência de acontecimentos, foi afirmado pela referida testemunha, e é objectiva e fisicamente impossível de acontecer, a saber, na versão da dita testemunha, que seguindo num carro pelo menos a 20km, de máscara posta na cara, ao passar por outro veículo sentiu um forte cheiro a álcool vindo do exterior.

Já o depoimento da testemunha EE, o mesmo quase que só se limitou a remeter para o Auto de Notícia e para o depoimento da referida outra testemunha, DD.

No respectivo depoimento, prestado no dia 09/06/2023, e também no dia 10/07/2023, em ambos os casos gravados no CITIUS, foi designadamente pelo mesmo afirmado:
- que não se lembrava bem do sucedido;
- que foi a colega quem elaborou o Auto;
- que não se lembrava se estava de máscara;
10º
A falta de memória da testemunha em causa foi reiterada ao longo do respectivo depoimento, com recurso a expressões tais como "isso também não me recordo", bem como "já não me lembro muito bem".
11º
Como resulta do respectivo depoimento esta segunda testemunha foi, na verdade, sempre muito avessa à resposta cabal às perguntas que lhe eram colocadas, pretendendo simplesmente remeter para o que constava do Auto ou do depoimento da dita testemunha DD.
12º
Por sua vez pela testemunha FF, ouvida a 10/07/2023, 09/06/2023, e cujo depoimento se mostra gravado no CITIUS, o mesmo afirmou:
- que estava presente;
- que o carro não andou;
- que tinha ficado combinado entre todos que quem ia levar o carro era a testemunha GG, que ainda não estava no carro.
13º
A testemunha GG, ouvida a 10/07/2023, cujo depoimento se mostra gravado no CITIUS, confirmou:
- que estava presente;
- que não tinha ingerido bebidas alcoólicas;
- que por isso estava combinado que seria ele a conduzir.
14º
Pela testemunha HH, ouvida a 10/07/2023, cujo
depoimento se mostra gravado no CITIUS, foi confirmado:
- que estiveram no bar em causa;
- que quando saiu do mesmo viu a abordagem ao carro do Arguido — parado.
15º
Pela testemunha II, ouvida a 10/07/2023, cujo
depoimento se mostra gravado no CITIUS, foi confirmado:
- que estava presente;
- que o automóvel não foi ligado.
16º
Já a testemunha HH, ouvida a 10/07/2023, cujo
depoimento se mostra gravado no CITIUS, foi confirmado:
- que estava presente, mas saindo um pouco depois do bar, se deparou já com o Arguido a ser abordado;
- afirmou desconhecer onde o carro estava estacionado e se havia andado ou não.
17º
Na avaliação de tal prova, o Tribunal a quo valorou significativamente que o entendeu ser algumas contradições no depoimento de tais testemunhas, ao contrário das manifestas contradições do depoimento dos dois agentes da PSP em que se fundamentou.
18º
O Tribunal a quo não teve, nessa avaliação, objectivamente, o mesmo grau de exigência, como se evidencia da respectiva consideração quanto ao depoimento da testemunha HH (que agora é agente, também da PSP), quanto ao qual refere:
"(...) temos um agente da PSP que acompanhava o grupo e que referiu não se recordar de factos que, em nosso entender, não podia olvidar ou desconhecer, tanto mais que como agente da PSP normal seria que atentasse na verificação de todos os factos relevantes para uma autuação (...)"
19º
Mas se assim o exige dessa testemunha, que não estava de serviço, nem autuou, impunha-se que o fizesse também, e não o fez, quanto às duas testemunhas, Agentes da PSP autuantes.
20º
Existem, no confronto das versões em causa, determinados elementos que, salvo melhor entendimento, deviam ter sido valorados pelo Tribunal a quo, e não o foram, em particular:
- a manifesta impossibilidade - física - de um dos aspectos concretos narrados pela testemunha DD, como justificação para a sequência de acontecimentos por si narrada;
- a confirmação, pelo relato de todos os presentes, sem qualquer controvérsia, de que, tendo estando juntos no bar, e saindo uns primeiro e outros depois, nenhum deles teve qualquer dúvida onde estava o carro do Arguido e que o mesmo estava parado.
21º
Aliás, não faria sentido nenhum o Arguido arrancar com o carro quando ainda estava a aguardar a chegada de um deles.
22º
Sendo assim, impunha-se a consideração de uma dúvida necessária sobre o desenrolar dos acontecimentos, não podendo ser dado como provado que o mesmo estava a conduzir, e, como tal, impondo-se a absolvição do Arguido à luz do princípio do in dubio pro réu.
Pois só assim decidindo se fará Justiça!
(fim de transcrição)
*
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
a) O tribunal apreciou livremente as provas e formou prudente convicção sobre a falta de verosimilhança e credibilidade do que lhe foi transmitido pelo arguido; convicção que fundamentou no que lhe transmitiram as regras da experiência comum e a restante prova, quer a documental constante dos autos, quer a produzida em audiência;
b) A decisão do tribunal a quo, nos termos e com os fundamentos que foi tomada, em nada contende com os direitos de defesa do arguido ou com o princípio do «in dubio pro reo», já que a sentença não exprime dúvidas a respeito do que se apurou.
c) A decisão sob recurso foi, assim, a que se impunha.
Assim, deve a douta sentença sob recurso ser confirmada.
(fim de transcrição)
*
Neste Tribunal da Relação, pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer nos termos seguintes (transcrição parcial):
(…) Nas Conclusões, vem o Arguido/Recorrente, impugnar a matéria de facto, e invocar a violação do princípio in dubio pro reo.
Em sede de questão prévia, invoca a falta de disponibilização das gravações obtidas em sede de audiência, pelo que não pôde utilizar as mesmas, neste recurso.
Iniciando o nosso parecer por esta questão, trazemos à colação o Ac. do TR de Guimarães, de 25 de fevereiro de 2021 (Procº nº 54843/19.6YIPRT.G1, in www.dgsi.pt
I- A omissão ou deficiência da gravação configura uma nulidade processual que a parte interessada terá de arguir autonomamente, sem prejuízo da iniciativa oficiosa do juiz durante a audiência, ao qual compete tomar as providências necessárias para que a lei seja cumprida (cfr. artigos 195º, 197º e 199º, n.º 2 do Código de Processo Civil).
II- Conforme decorre do artigo 155º n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil a gravação deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias após a realização do respetivo ato e as partes devem invocar no prazo de 10 dias a falta ou deficiência da gravação, a contar da disponibilização.
III- Decorrido o referido prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada e não sendo arguida a falta ou deficiência da gravação, o vicio decorrente da mesma fica sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade processual ser arguida no prazo de interposição de recurso e apenas nas próprias alegações de recurso.
Do exposto, podemos concluir que o Arguido/Recorrente não devia ter aguardado pelo decurso total do prazo de recurso para a final, invocar a falta das referidas gravações, mas antes, em 10 dias, arguir a nulidade da falta das mesmas ou a sua deficiência.
Não o tendo feito, não é possível fazê-lo apenas no prazo do recurso, juntamente com as alegações.
Quanto à impugnação da matéria de facto e da preterição do princípio “in dúbio pro reo”
Como se vê do Ac. TRL de 18/07/2013, “III – (…) Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o art.º 412º n.º 3 do Código de Processo Penal (…)”.
O regime legal estabelecido em matéria de recursos penais prevê que, para que possa ter lugar o reexame da prova, o Recorrente cumpra o formalismo correspondente, designadamente o do n.º 3 do art.º 412º do C.P.P., devendo as conclusões conter a menção aos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a), as provas que impõem decisão diversa da recorrida (alínea b) e as que devem ser renovadas (alínea c), com referência aos suportes técnicos (nº4).
A questão que se suscita, desde logo, no caso “sub judice” é, assim, a de saber se, tendo o ora Recorrente entendimento não coincidente com o adoptado pelo Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto que seria de considerar provada, deverá ser convidado a aperfeiçoar as conclusões da motivação do recurso, já que é inegável o incumprimento da disciplina prevista no mencionado preceito legal, por delas não constarem os acima mencionados elementos.
Porém, verifica-se que padece também de idêntica omissão o texto da motivação do recurso.
A consequência da falta de indicação, no texto da motivação, dos eventuais erros cometidos pelo Tribunal a quo, com expressa discriminação das provas que os demonstram e com referência discriminada aos segmentos dos registos magnéticos das declarações produzidas em audiência, é a não apreciação dessa matéria pelo Tribunal superior, ou seja, o não conhecimento de eventuais erros que hajam sido cometidos, conforme jurisprudência constante e uniforme do S.T.J.
Assim e acolhendo a posição expressa no ACSTJ de 05.06.08 (P.08P1884, Rel.: - Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt), subscrevemos o entendimento de não ser caso de convidar o Recorrente a corrigir as respectivas conclusões, não se conhecendo nesta parte do recurso.
Não tendo o Recorrente apontado quaisquer factos concludentes que permitam contraditar a apreciação efectuada pelo Tribunal, nem especificado as concretas provas que na sua óptica imporiam decisão diversa, como determina o art.º 412º n.º 3 al. b), do C. de Processo Penal, a matéria de facto ficou assente.
Sempre se dirá, porém, que manifestamente, o Recorrente pretende é pôr em causa a convicção do Tribunal a quo através da sua própria interpretação da prova produzida, pois que não há provas que imponham decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal a quo.
Ora, a impugnação da decisão em matéria de facto “terá de assentar na violação dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria a inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” - cfr. o ACTC n.º 198/04, publicado no DR, II Série, de 2/06/2004.
Como se vê do acórdão do TRL proferido em 18/07/2013 no Proc. 1/05.2FLSB.L1-3, acessível em www.dgsi.pt:
“(…) IV – Quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores a quo. Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum. (…)”
A convicção do Tribunal só pode ser posta em causa em função das regras de experiência comum, ou seja, quando, pelo raciocínio lógico, da razão e do pensamento, baseado naquelas regras, se chega à conclusão de que a convicção do julgador está eivada de erro (erro de julgamento), que suscita dúvidas razoáveis que põem em causa a decisão – cfr., neste sentido, o Ac. Relação de Coimbra, de 25/11/2009, no Pº 157/08.2GHCTB.C1, acessível em www.dgsi.pt.
Não é o caso, posto que o Tribunal a quo explica com clareza e sem ambiguidades, num raciocínio claro e de acordo com as regras da experiência comum, as razões da credibilidade das declarações em que se fundou, cumprindo correcta e integralmente o requisito “exame crítico” exigido por lei. Ao invés do que pretende o Recorrente, não ocorreu qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
Como se vê do Ac do STJ de 18/04/2012, no Pº 138/10.6GBTNV, relatado pelo Cons. Souto Moura, “a violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou em estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados”.
Dúvida esta em que manifestamente o Tribunal a quo não se encontrou.
A nosso ver, a decisão recorrida mostra-se bem fundamentada, de forma lógica e conforme às regras da experiência comum, sendo fruto de uma apreciação cuidada da prova, tendo feito correcta qualificação jurídica e aplicado pena justa e adequada, não merecendo qualquer censura.
Em nossa opinião a pena aplicada corresponde a uma correcta valoração da prova produzida, com ponderação de todos os factores que no caso concreto impunha considerar para determinar a medida da pena, servindo ajustadamente as suas finalidades. A pena aplicada ao Recorrente não é desproporcionada nem ultrapassa a medida da culpa, e respeita os interesses preventivos gerais e especiais, mostrando-se justa e razoável, não tendo sido violada qualquer norma legal.
Pelo exposto, emite-se parecer no sentido de que o recurso do Arguido não merece provimento, sendo de confirmar a sentença recorrida.
(fim de transcrição)
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que: a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Daí o entendimento pacífico de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art.º 410º do mesmo Código.
Em conformidade, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente e a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes (sem prejuízo de ficar prejudicada a apreciação de alguma(s) em função do que se venha a decidir sobre outras):
- questão prévia suscitada na resposta ao recurso pelo Ministério Público;
- da falta de disponibilização das gravações das audiências em que foram ouvidas as testemunhas;
- da nulidade decorrente da eventual inutilização das gravações;
- da impugnação da matéria de facto/erro de julgamento;
- da violação do princípio in dubio pro reo;
- procedendo a impugnação da decisão da matéria de facto, se o recorrente deverá ser absolvido da prática do crime pelo qual foi condenado.
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2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. Na decisão recorrida, foram julgados provados e não provados os seguintes factos (transcrição):
1- No dia 30 de maio de 2021, pelas 23:28 horas, o arguido AA conduziu na via pública, em concreto na ..., o veículo ligeiro de passageiros de marca Renault, modelo R, de matrícula ..-UF-.. com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 2,08 g/l correspondente à taxa de álcool no sangue de 2,39 g/l registada, deduzido o valor do erro máximo admissível.
2- O arguido AA ingeriu voluntariamente bebidas alcoólicas, em momento anterior ao do exercício da condução.
3- O arguido AA sabia que a quantidade de álcool que ingerira era suscetível de lhe provocar uma TAS superior a 1,2 g/l e, não obstante isso, não se absteve de conduzir, como podia e devia.
4- O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, em desrespeito por proibição legal, bem sabendo que a sua conduta era proibida e tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
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Mais se provou:
- O arguido não apresenta qualquer condenação judicial averbada ao seu certificado de registo criminal.
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Das condições pessoais de vida do arguido
- O arguido é auxiliar técnico de saúde, na Clínica de Radioterapia …, em …, auferindo € 700,00 mensais;
- Vive só, em casa própria;
- Tem uma filha com 8 anos de idade;
- Paga, 530 euros de prestação bancária relativa a empréstimo para aquisição de casa própria e 230 € para aquisição de viatura própria;
- Tem o 9º ano de escolaridade.
(…)
(fim de transcrição)
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2.2. Na decisão recorrida, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada pela forma seguinte (transcrição):
A formação da convicção do Tribunal acerca da decisão sobre a matéria de facto, baseou- se na análise crítica e global do conjunto da prova produzida e examinada em audiência, perspectivada esta, no essencial, à luz das regras experiência e da livre apreciação, conforme resulta do art.º 127º, do Código de Processo Penal.
Assim, e concretizando, para dar como provados os factos atinentes à conduta delituosa do arguido, circunstâncias em que ocorreu e suas consequências, baseou-se o tribunal, no Auto de notícia de fls. 2, no Relatório pericial de fls. 8, no Talão de resultado de teste de álcool de fls. 3, na Análise para quantificação de taxa de álcool no sangue de fls. 6, na Guia de Entrega de fls. 7, no Aditamento n.º 1, junto a fls. 9 e, ainda, nos depoimentos dos agentes da PSP DD, Agente Principal da Polícia de Segurança Pública, e EE, Agente Principal da Polícia de Segurança Pública, ambos a exercer funções na Esquadra da Polícia de Segurança Pública da …, que o abordaram e que relataram ao Tribunal como tal abordagem foi realizada, realçando, ainda, quando questionados pelo Tribunal, a má vontade do arguido em colaborar com os agentes da autoridade por causa do estatuto que detinha como jogador de futebol.
Vejamos. É certo que o arguido negou que tenha conduzido a viatura automóvel e que, nessa sequência, tenha sido abordado para fazer o teste de pesquisa de alcoolemia no sangue. É certo, ainda, que algumas das testemunhas por si indicadas, e que com ele se encontravam nessa noite, garantiram que o arguido não chegou a conduzir. Temos, pois, no que a esta matéria respeita, duas versões diametralmente opostas. Quando assim é, o tribunal deverá apreciar qual a que, segundo as regras da experiência comum, merece mais credibilidade. E não temos a menor dúvida de que é a versão da acusação. Com efeito, não só os agentes da PSP não tinham qualquer motivo para “perseguir” criminalmente o arguido (nem tal foi de alguma forma alegado pelo arguido), como a versão do arguido não se mostra credível. Na realidade, o arguido refere que esteve com um grupo de amigos a ingerir bebidas alcoólicas e que, no final, na hora de irem embora, a ideia seria a viatura ser conduzida pelo amigo que em melhor estado se encontrava, a testemunha GG. Apesar disso, incompreensivelmente, o arguido sentou-se ao volante e aquele sentou-se no lugar do passageiro... Para explicar tal facto, adiantou que estava a tirar o carregador do telemóvel do porta luvas. Porém, mesmo essa operação, a ser verdade, seria mais fácil de executar se o arguido se sentasse no lugar que, a final, lhe estaria destinado: o lugar do passageiro. De resto, a testemunha GG apresentou um depoimento confuso e contraditório em relação às declarações do arguido, já que afirmou que quando o arguido foi abordado, a testemunha encontrava-se no assento de trás do veículo, embora admita que era ele que iria conduzir a viatura... Referiu que o veículo estava desligado, mas depois admitiu que neste momento era difícil ter a certeza sobre tal facto. Também a testemunha FF afirmou que estiveram a ingerir bebidas alcoólicas e que seguia apeado atrás com o HH quando viu a viatura policial passar e um agente bater no vidro do automóvel do Tito. Supostamente o GG é que iria conduzir, pois estava em melhores condições. A testemunha II referiu que já no interior do bar haviam discutido quem levaria o carro e estava decidido que seria o GG. Quando chegaram à viatura o arguido sentou-se ao volante e o depoente sentou-se ao lado. O automóvel não foi ligado e nem chegaram a por o cinto de segurança. Ao contrário do que fora afirmado pelo próprio, esta testemunha referiu que o GG ainda estava no exterior da viatura e deixou-se ficar para trás. Inclusivamente, a PSP abordou-os antes da chegada daquele. Finalmente, a testemunha HH, agente da PSP que fez estágio na Esquadra ..., e que era antigo colega de equipa do arguido, afirmou que saíram todos e foram a um bar. Na altura de irem embora, deixou-se ficar para trás, pois foi ao wc. Quando saiu e subiu a via pública deparou-se com o AA a ser abordado por agentes da PSP. Mais afirmou que tinha conhecimento que a viatura do arguido estava estacionada nas redondezas, mas que não sabe exactamente onde. Mais referiu que a viatura da PSP estava junto da do arguido e que desconhece se o arguido já a tinha posto em marcha, ou não. Afirmou, ainda, que viu o arguido a falar com a agente da PSP, que lhe pedia para realizar o teste de pesquisa de alcoolemia e dava erro. Porém, não se recorda do teor da conversa mantida entre ambos, embora admita que o arguido estava exaltado e revelava surpresa por ser abordado pela PSP. Questionado se haviam discutido quem levaria o automóvel em face da ingestão de bebidas alcoólicas, respondeu não se recordar se isso foi tema de conversa.
Em suma, feita a análise de toda a prova testemunhal, temos um arguido que nega a prática do crime e que dá uma versão algo incongruente; temos algumas testemunhas que de forma confusa e contraditória confirmam que o arguido não chegou a conduzir; temos um agente da PSP que acompanhava o grupo e que referiu não se recordar de factos que, em nosso entender, não podia olvidar ou desconhecer, tanto mais que como agente da PSP normal seria que atentasse na verificação de todos os factos relevantes para uma autuação; e temos dois agentes da PSP, com vasta experiência profissional e sem qualquer motivo para pretenderem prejudicar o arguido com uma versão falsa. Tudo conjugado fez o tribunal concluir pela versão da acusação.
No que se refere à ausência de antecedentes criminais do arguido a que se aludiu supra, baseou o tribunal o seu convencimento na análise do seu Certificado de Registo Criminal, juntos aos autos, e as circunstâncias da sua vida pessoal, alicerçaram-se nas suas declarações.
(fim de transcrição)
*
III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.1. Questões Prévias
3.1.1. Na sua resposta ao recurso, invocou o Ministério Público, como questão prévia, que:
- No presente recurso, se se descontar o que é transcrição do texto da sentença, da lei e de jurisprudência, ver-se-á que o recorrente usou 29 parágrafos para expor as suas razões; e usou 20 para extrair “conclusões”.
- O que se passa, não sofre dúvida: o recorrente, sob a epígrafe “Conclusões”, repetiu o que foi a sua motivação.
- A regra referida não quer “conclusões na aparência, mas conclusões reais.
- O recorrente não obedeceu ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Em consequência, o recurso deveria ser rejeitado. Como, porém, tal efeito não deve ser decretado sem prévio convite ao recorrente para corrigir o vício (Ac. TC 320/02 — DR de 7/10/2002), haverá a dirigir-lhe tal convite, antes de se entrar na apreciação do mérito do que alegou.
Cumpre apreciar.
Dispõe o art.º 412º/1 do Código de Processo Penal que:
Motivação do recurso e conclusões
1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
(…)
Resulta de tal normativo legal que, nas conclusões do recurso, deverá o recorrente resumir as razões do pedido, ou seja, as conclusões deverão consubstanciar uma síntese ou condensação da motivação que as antecede.
Assim, no ensinamento do Prof. Alberto dos Reis, “...não valem como conclusões arrazoados longos e confusos, em que se não descriminam com facilidade as questões postas e os fundamentos invocados”, devendo estas traduzir-se em proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação (in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 361, e pág. 359).
Consequentemente, as conclusões deverão ser claras, concisas e precisas, na medida em que são as questões sumariadas nas conclusões que, ao delimitarem o objecto do recurso, serão alvo de decisão (in Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-06-2019, proferido no processo n.º 314/17.0GAPTL.G1, disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais infra citados).
Como se elucida no Ac. da Relação de Évora de 15-01-2008, proferido no processo n.º 2694/07-1: É jurisprudência pacífica que “as conclusões hão-de constituir uma enunciação resumida, explícita e inteligível das questões equacionadas pelo recorrente, visando facilitar a realização do contraditório e balizar a decisão; em suma, pretende-se que sejam uma súmula das razões da discordância da decisão impugnada”. A motivação tem a finalidade de permitir ao recorrente explicar e desenvolver os fundamentos da discordância relativamente à decisão impugnada e os que conduzem à solução que pretende ver consagrada. Nas conclusões, procede-se a uma explicitação sumária do que se expôs nas motivações, concretiza-se um enunciado sucinto daquela exposição. Dessa forma o recorrente colabora na formulação das questões controvertidas e delimitação objectiva do âmbito do recurso e acautela o seu próprio direito na realização da justiça, para além de tal conduta permitir o exercício do contraditório. É uma exigência da lei processual que tal ocorra dessa forma, inclusive sob pena de rejeição do recurso. Essas exigências resultam de forma clara do disposto no art.º 412.º do CPP, quer o recurso verse sobre matéria de direito, quer verse sobre matéria de facto.
Neste sentido, entre outros, também no Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 23-01-2018, proferido no processo n.º 74/16.2GBLGS.E1 se decidiu que: as conclusões devem ser um resumo explícito e claro da fundamentação das questões suscitadas pelo recorrente, indicando nelas com clareza e precisão as razões de facto e de direito porque se pede o provimento do recurso. A razão de ser desta exigência legal prende-se com o permitir ao Tribunal de recurso uma rápida e fácil percepção das questões a resolver, devidamente demarcadas entre si. Sendo, assim, de reter, que as conclusões são de extraordinária importância, exigindo-se muito cuidado na sua elaboração, devendo ser concisas, precisas e claras, já que são as questões nelas sumariadas que serão objecto de decisão. O mesmo é dizer que são as conclusões que definem o objecto do recurso e bem assim os poderes de cognição do Tribunal de recurso.
Nestes termos, para que se considere cumprido o ónus de formular conclusões, não basta que o recorrente, sob a epígrafe “Conclusões”, repita o já anteriormente por si alegado em sede de motivação, sendo pois imprescindível ao cumprimento de tal ónus processual que as conclusões cumpram o objectivo que está na base da sua imposição legal, ou seja, mostra-se necessário que as mesmas traduzam efectivamente um resumo, uma síntese, do que anteriormente se explanou.
Consequentemente, se o recorrente se limita a reproduzir nas conclusões o que alegou na motivação, não existem conclusões: não há conclusões quando estas não consubstanciam um enunciado sucinto e a síntese conclusiva da motivação, na medida em que, por definição, pressupõem a proposição final de uma argumentação e o seu resultado lógico.
Neste sentido se decidiu no citado Ac. da Relação de Guimarães de 11-06-2019: A repetição integral da motivação do recurso nas conclusões, equivale à falta destas, constituindo motivo de rejeição do recurso.
No mesmo sentido, pronunciou-se a Relação de Lisboa na decisão de 21-02-2013, proferida no processo n.º 14217/02.0TDLSB-AM.L1-9: A repetição nas conclusões do que é dito na motivação, traduz-se em falta de conclusões, pois é igual a nada, repetir o que se disse antes na motivação, equivalendo a falta de conclusões à falta de motivação; Não havendo indicação concisa dos fundamentos explanados e desenvolvidos nas alegações, não há conclusões, pelo que, em conformidade, deve o recurso ser rejeitado.
No caso concreto, analisadas as vinte e duas conclusões formuladas pelo recorrente e a motivação de recurso que as antecede, não obstante não sejam um exemplo de concisão, as mesmas não deixam de se assumir como uma síntese, ainda que algo alargada, do que anteriormente se expôs na motivação de recurso.
A noção de síntese constitui sempre uma noção imbuída de alguma subjectividade e em parte dependente da natureza das questões colocadas ao tribunal de recurso.
No caso em apreço, o certo é que as conclusões não constituem uma reprodução ipsis verbis do conteúdo da motivação de recurso, pelo que se entende que foi cumprido de forma satisfatória e suficiente o ónus de formular conclusões.
Nestes termos, conclui-se pela desnecessidade de proceder ao seu aperfeiçoamento nos termos pugnados pelo Ministério Público na resposta ao recurso, improcedendo a questão prévia suscitada.
*
3.1.2. Da rejeição do recurso quanto à falta de disponibilização das gravações e eventual nulidade decorrente da sua inutilização - conclusões 1ª, 2ª e 3ª
A respeito desta questão, invoca o recorrente na motivação de recurso, essencialmente o seguinte:
- mantendo o Arguido a respectiva discordância em relação ao decidido pelo Tribunal a quo, verifica-se que, até hoje, último dia de prazo de recurso, continuam por disponibilizar as gravações das audiências em que foram ouvidas as testemunhas, 09/06/2023 e 10/07/2023 — cfr. doc. junto.
- Assim, mantém-se e reitera-se, para todos os efeitos, e de forma reforçada, considerando os meses já decorridos, o exposto no requerimento de recurso de 26/10/2023.
- Ou seja, o presente recurso visa a consideração e a reapreciação pelo Tribunal ad quem da prova oral produzida e supostamente gravada em Audiência de Julgamento.
- Volvidos mais de seis meses, continuam a não estar disponíveis as gravações das referidas audiências de julgamento.
- Assim sucederá, de acordo com o informado, por algum problema informático.
- Mas, sendo este o último dia da apresentação do presente recurso, impõe-se a apresentação do mesmo, ainda que com as limitações inerentes à ausência da efectiva disponibilização das gravações em causa (em particular no que concerne ao cumprimento dos requisitos do recurso da matéria de facto que vise a reapreciação de prova gravada).
A propósito das gravações, o art.º 101º/4 do Código de Processo Penal preceitua que:
4 - Sempre que for utilizado registo áudio ou audiovisual não há lugar a transcrição e o funcionário, sem prejuízo do disposto relativamente ao segredo de justiça, entrega, no prazo máximo de 48 horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem como, em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribunal superior.
Por outro lado, no que concerne aos vícios processuais, determina o art.º 118º do Código de Processo Penal que:
Princípio da legalidade
1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.
(…)
Estabelece-se em tal normativo o numerus clausus das nulidades em processo penal e dos seus fundamentos, relegando-se para a figura da mera irregularidade todas as violações processuais que não se encontrem expressamente cominadas com a nulidade (v. sobre esta questão, o Ac. do STJ de 16-02-2022, proferido no processo nº 333/14.9TELSB.L1-A.S1 disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais infra citados; e ainda Maia Gonçalves, CPP Anotado, 17ª ed., pág. 327, nota 4; Vinício Ribeiro, CPP - Notas e Comentários, 3ª ed., pág. 59).
Ora, a ausência de disponibilização das gravações áudio da audiência de julgamento não se encontra cominada com a nulidade, pelo que, a existir algum vício processual, o mesmo apenas integrará uma irregularidade subsumível à previsão do art.º 123º do Código de Processo Penal.
Dispõe tal normativo que:
Irregularidades
1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado
No caso concreto, no requerimento de interposição de recurso, o ora recorrente arguiu a irregularidade em causa perante o tribunal recorrido, nos termos seguintes:
Mais argúi, para todos os efeitos, o que se segue:
1 — A 28/02/2024 foi proferida douta Decisão Sumária pelo Tribunal da Relação de Lisboa a "declarar a nulidade insanável do despacho de 15/09/2023 que dispensou a leitura pública da sentença e, em conformidade, anulam-se os termos processuais subsequentes, determinando-se a sua repetição, devendo o tribunal a quo designar data para leitura da sentença com observância do princípio da publicidade" e "em consequência, julgar prejudicado o conhecimento do recurso interposto pelo arguido";
2 — A montante do assim decidido, havia o Arguido interposto Recurso a 26/10/2023, sob a referência CITIUS 46943394, em cujo requerimento expunha o que se segue:
"1 — O presente recurso visa a consideração e a reapreciação pelo Tribunal ad quem da prova produzida em Audiência de Julgamento;
2 — Para o efeito, estando a correr o prazo para a respectiva apresentação, através do respectivo escritório, o mandatário do Arguido entrou em contacto com a Secretaria desse Tribunal, com vista à obtenção da gravação das sessões de julgamento realizadas, tendo sido informado de que a mesma iria ser disponibilizada via CITIUS, não sendo como tal necessário o envio ou entrega da mesma;
3 — O mandatário do Arguido ficou, nessa sequência, a aguardar essa disponibilização;
4 — Não tendo a mesma ocorrido, no início da manhã de hoje (26/10/2023), através do respectivo escritório, o mandatário do Arguido entrou de novo em contacto com esse Tribunal, tendo sido informado de que, se a disponibilização ainda não havia ocorrido via CITIUS, deveria ser por algum problema informático;
5 — Sendo este o último dia da apresentação do presente recurso, mediante o pagamento da multa devida, impõe-se a apresentação do mesmo, ainda que com as limitações inerentes à ausência da efectiva disponibilização das gravações em causa;
6 — Em qualquer caso, se por algum motivo, designadamente informático, tais gravações tenham sido inutilizadas, desde já se invoca a nulidade daí decorrente, posto que, sem as mesmas, não poderá o Tribunal da Relação de Lisboa considerá-las, como se impõe."
3 — A Sentença veio a ser proferida, na sequência do assim processado, nos mesmos termos de antes, mas agora com pleno cumprimento da douta Decisão Sumária acima referida, em 12/04/2024;
4— Ora, mantendo o Arguido a respectiva discordância em relação ao decidido pelo Tribunal a quo, verifica-se que, até hoje, último dia de prazo de recurso, continuam por disponibilizar as gravações das audiências em que foram ouvidas as testemunhas, 09/06/2023 e 10/07/2023 — cfr. doc. junto;
5 —Assim, mantém-se e reitera-se, para todos os efeitos, e de forma reforçada, considerando os meses já decorridos, o exposto no requerimento de recurso de 26/10/2023,
6 — Ou seja, o presente recurso visa a consideração e a reapreciação pelo Tribunal ad quem da prova oral produzida e supostamente gravada em Audiência de Julgamento;
7 — Volvidos mais de seis meses, continuam a não estar disponíveis as gravações das referidas audiências de julgamento;
8 — Assim sucederá, de acordo com o informado, por algum problema informático;
9 — Mas, sendo este o último dia da apresentação do presente recurso, impõe-se a apresentação do mesmo, ainda que com as limitações inerentes à ausência da efectiva disponibilização das gravações em causa (em particular no que concerne ao cumprimento dos requisitos do recurso da matéria de facto que vise a reapreciação de prova gravada);
10 — E se, por algum motivo, designadamente informático, tais gravações tenham mesmo sido inutilizadas, desde já se invoca a nulidade daí decorrente, posto que, sem as mesmas, não poderá o Tribunal da Relação de Lisboa considerá-las, como se impõe.
Junta: Alegação de recurso e um documento.
- Em face de tal alegação, em 2-06-2024 foi proferido o despacho de admissão do presente recurso (ref.ª citius 55429528), conforme em seguida se transcreve:
ADMISSÃO DE RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 414.º, nº1, do Código de Processo
Penal:
- por ser tempestivo,
- ter sido interposto por quem tem legitimidade,
- ser legalmente admissível e,
- ter sido motivado, (cfr. artigos 399º, 400º, n.º 1, a contrario sensu,
401.º, n.º 1, 411.º e 412.º, todos do Código de Processo Penal),
admito o recurso interposto pelo arguido, da sentença condenatória proferida nestes autos, para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o qual sobe:
- nos próprios autos,
- de imediato e,
- com efeito suspensivo, nos termos dos artigos 391º ex vi 391º,
G), 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, al. a), 408.º, n.º 1, al. a) e 427.º, todos do Código de Processo Penal.
*
Notifique os demais sujeitos processuais, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 411.º, nº 6 e 413.º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal.
Mantendo o Arguido discordância em relação ao decidido por este Tribunal e alegando que continuam por disponibilizar as gravações das audiências em que foram ouvidas as testemunhas, em 09/06/2023 e 10/07/2023, no termo do prazo de resposta, dada a divisão de serviço na acumulação, conclua os autos à minha Ilustre Colega que presidiu ao julgamento, informando a secção se se encontram ou não, disponíveis no citius aquelas gravações.
- pela secção se processos foi exarada a seguinte informação em 18-06-2024: com a informação a Vª. Exª., em cumprimento do último parágrafo do despacho que antecede, que consultada a aplicação habilus Média Studio, não consta que as gravações se encontrem presentemente com acesso externo, pelo que nesta data foram feitos os procedimentos adequados para que as gravações fiquem disponíveis.
- por despacho de 21-06-2024 (ref.ª citius 55522258), foi .ordenada a notificação do recorrente de tal informação, o que foi cumprido em 26-06-2024;
- o ora recorrente nada requereu ou arguiu na sequência de tal notificação daquela informação.
Ou seja, as gravações foram disponibilizadas em 18-06-2024, pelo que a irregularidade em causa se encontra desde então sanada.
Por outro lado, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 13/2014 de 23 de Setembro (com publicação no Diário da República n.º 183/2014, Série I de 2014-09-23, páginas 5042 – 5050), foi fixada jurisprudência nos seguintes termos:
«A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada»
Nenhuma nulidade nesse sentido foi arguida pelo aqui recorrente nos dez dias seguintes à disponibilização das gravações perante o tribunal a quo.
E não se trata, pois, de nulidade de conhecimento oficioso.
Ora, como é sabido, o tribunal de recurso apenas reaprecia questões já decididas na primeira instância e não questões novas, não apreciadas na decisão recorrida, ressalvadas as nulidades ou outros vícios de conhecimento oficioso.
É indubitável que as questões em análise não foram apreciadas na sentença recorrida.
Não se tratando de questões apreciadas na sentença recorrida, as mesmas extravasam o objecto do presente recurso.
Neste sentido, se pronuncia de forma uniforme e sedimentada a jurisprudência dos tribunais superiores.
Como se elucida de forma cristalina no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-05-2023, proferido no Processo n.º 96/20.9PHOER.L1.S1 (Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA), em www.dgsi.pt, assim como os demais infra citados: é entendimento unânime que os mesmos consubstanciam verdadeiros “remédios jurídicos”, no sentido em que o seu único objetivo é apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso. Como tal, em consequência, não se destinam os recursos a conhecer questões novas, que não tenham sido anteriormente apreciadas pelo tribunal recorrido. Nesta medida, o recurso permite a reapreciação (e não apreciação ex novo) de decisões de uma instância inferior, ou seja, numa «fórmula impressiva, no recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas que tenham já sido objecto de decisão anterior pelo tribunal a quo e que um interessado pretende ver reapreciadas».
No mesmo sentido, pronunciou-se, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2021, proferido no Processo n.º 797/14.0TAPTM.E2.S1 (Relator: NUNO GONÇALVES): No nosso sistema, o objeto do recurso ordinário é a sindicância da decisão impugnada, constituindo um remédio processual que permite a reapreciação, por um tribunal superior das questões que a decisão recorrida apreciou ou deveria ter conhecido e decidido. No julgamento do recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas, que tenham sido objeto de decisão anterior pelo tribunal recorrido (v. ainda Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-06-2006, no Processo n.º 06P650 [Relator: HENRIQUES GASPAR]).
E citando António Abrantes Geraldes, «[os] recursos ordinários destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, objectivo que se reflecte na delimitação das pretensões que lhe podem ser dirigidas e no leque de competências susceptíveis de serem assumidas. Na fase de recurso, as partes e o tribunal superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objecto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do tribunal superior está circunscrita a questões que já tenham sido submetidas ao tribunal de categoria inferior, sem prejuízo da possibilidade de suscitar ou de apreciar questões de conhecimento oficioso» - in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014 – 2.ª Edição, Almedina, pág. 92/93.
Em consequência, vedado está a este tribunal de recurso conhecer das questões ora em análise por se tratar de questões que extravasam o objecto permitido do recurso, necessariamente limitado às questões apreciadas e decididas na decisão de que se recorre (v. Acórdão do STJ por último citado).
Consequentemente, impõe-se nesta parte (falta de disponibilização das gravações e eventual nulidade decorrente da sua inutilização - conclusões 1ª, 2ª e 3ª), rejeitar o recurso do arguido, por inadmissibilidade legal, nos termos dos art.ºs 420º, n.º 1, alínea b), e 414º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, o que se decide.
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3.1.3. Da rejeição do recurso quanto ao erro de julgamento/impugnação da matéria de facto
Como resulta das conclusões apresentadas pelo recorrente e respectiva motivação, o mesmo invoca o erro de julgamento.
Como é sabido, no âmbito do processo penal, a impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição do vício previsto no art.º 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, norma que prevê o reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art.º 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo Código.
No primeiro caso, a divergência consubstancia a invocação de um vício da decisão, sendo este recurso considerado como sendo ainda recurso da matéria de direito; no segundo caso, o recorrente vale-se de provas produzidas em audiência, que deverá especificar.
Assim, nos termos do n.º 3 do citado art.º 412º, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, o recorrente terá de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da proferida na decisão recorrida e/ou as que deviam ser renovadas.
Por outro lado, por força do disposto no n.º 4 do mesmo dispositivo legal, essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Na hipótese de ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08/03/2012 (Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 3/2012 publicado no D.R. n.º 77/2012, Série I, de 2012-04-18), visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas.
Consequentemente, para que seja cumprido o ónus processual que impende sobre o recorrente em conformidade com tal normativo legal, é manifesto que não basta impugnar a matéria de facto com base em erro de julgamento de uma forma genérica e apontar o sentido que deve ser dado à prova (v. o Acórdão da Relação de Coimbra de 8-02-2017, proferido no processo n.º 370/15.6JALRA.C1, disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais infra citados).
De igual modo, quando pretenda impugnar a matéria de facto, não poderá o recorrente limitar-se a formular conclusões sobre qual deveria ter sido o sentido da decisão recorrida no que respeita a determinadas questões, designadamente no que toca ao preenchimento dos elementos típicos objectivos ou subjectivos do crime, concluindo, v.g., que os mesmos não se verificam face à prova que foi produzida.
Como consta do Acórdão do STJ de 25-03-2010, proferido no processo n.º 427/08.OTBSTB.E1.S1: A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas. (...)
Como o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros.
Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação (...) (in Ac. da Relação de Coimbra de 5-01-2011, proferido no processo n.º 888/04.6TAVIS.C1).
Assim, quando pretenda impugnar a matéria de facto, o recorrente terá de indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, não bastando que se reporte à totalidade de um ou vários depoimentos ou declarações, na medida em que são essas passagens que deverão ser ouvidas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo de outras que se entendam por relevantes (v. Ac. da Relação de Lisboa de 16-11-2021, proferido no processo n.º 1229/17.8PAALM.L1-5).
Por outro lado, como se evidencia ainda em tal Acórdão: Importa não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado.
O incumprimento das formalidades exigidas no citado art.º 412º/3 e 4, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto pela via ampla, inviabilizando a sua reapreciação pelo tribunal de recurso.
Ora, analisadas as conclusões e motivação do recurso, mostra-se ausente, quer da motivação, quer das suas conclusões, a especificação do ponto ou pontos da matéria de facto que consideram incorrectamente julgados nos termos exigidos no citado art.º 412º, assim como a necessária individualização das concretas provas, por referência a cada um dos factos impugnados, que imporiam, no entender do recorrente, decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo.
É que como decorre do exposto, não basta indicar de forma genérica determinados meios probatórios, sem que se indique, em simultâneo, a que facto ou factos, tal meio de prova conduzirá de forma impositiva a uma decisão diferente.
A indicação especificada exigida no citado normativo é exigente, impondo ao recorrente que relacione determinado(s) meio(s) de prova com um determinado facto que pretende impugnar.
É, deste modo, imprescindível que o recorrente especifique quais as provas produzidas que impõem decisão diversa quanto a cada um dos factos, ou conjunto de factos conexos entre si, sob pena de rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto.
Além disso, necessário é ainda que indique, no seu entender, em que sentido deverá ser a decisão em relação a cada um dos factos que pretenda impugnar.
Não poderá pretender o recorrente que seja o tribunal de recurso, face a uma impugnação não especificada, a perscrutar qual ou quais serão os concretos pontos de facto que pretenderá impugnar e quais aqueles relativamente aos quais cada um dos meios de prova que refere na motivação, no seu entendimento, impõe decisão diferente da proferida na decisão recorrida.
Assim, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-10-2002, proferido no Processo n.º 2124/02 (Relator: Simas Santos) se decidiu que: (…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.). Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes.
Como se elucida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-10-2017, proferido no Processo n.º 403/16.9GASEI.C1 (Relator: Vasques Osório): O tribunal decide, ressalvados os casos de prova tarifada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção [o que, não raras vezes, é ignorado pelos recorrentes], sendo por isso necessário que as provas especificadas, na observância do referido ónus, imponham decisão diversa da recorrida, recaindo a demonstração desta imposição também sobre o recorrente que, para tanto, deve relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 1135). (destacados nossos)
No mesmo sentido, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-04-2021, proferido no Processo n.º 522/18.7PBELV.E1 (Relator: Paulo Ferreira da Cunha): O ónus que recai sobre o recorrente é de uma impugnação especificada, impugnatória de factos concretos, fazendo em cada ponto referência aos meios de prova que considere relevantes. A lei é exigente quanto ao modo de impugnação do recurso em matéria de facto, de harmonia com o disposto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, sendo que a modificabilidade da decisão da 1.ª instância apenas ocorre nos termos apontados no art.º 431º do CPP, entre os quais a impugnação da matéria de facto nos termos do art.º 412.º, n.º 3, do mesmo diploma. Na impugnação da matéria fáctica não basta mera referência ou indicação genérica dos pontos de facto e das provas dissonantes, mas deve especificar-se os concretos pontos de facto e as concretas provas que impõem decisão diversa. (…) Torna-se necessário a indicação expressa dos concretos pontos de facto e das concretas provas que para esses concretos pontos de facto, impõem solução diversa. (destacados nossos)
Igualmente no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-10-2010, no Processo n.º 70/07.0JBLSB.L1.S1 (Relator: Pires da Graça): Torna-se necessário a indicação expressa dos concretos pontos de facto e das concretas provas que para esses concretos pontos de facto, impõem solução diversa. (destacados nossos)
Ainda no mesmo sentido se pronunciou o Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 06-10-2021, no Processo n.º 619/19.6PDAMD.L1-3 (Relatora: Cristina Almeida e Sousa): o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado. (destacados nossos)
Em síntese, em relação a cada um dos pontos de facto que pretenda impugnar, deverá o recorrente indicar o preciso meio de prova que impõe decisão distinta da proferida, esclarecer os fundamentos para tal imposição, e indicar qual é, na sua perspectiva, o sentido da decisão correcta.
Ora, o recorrente absteve-se em absoluto de dar cumprimento a tais injunções legais, nunca fazendo a concreta relação dos depoimentos que indica com qualquer dos pontos da decisão da matéria de facto provada, os quais igualmente não especifica, nem tão pouco indica qual o sentido que no seu entendimento deveria revestir a decisão.
Na verdade, o recorrente alega na sua motivação, em síntese, que:
- Tal como o referido Tribunal a quo, digladiam-se duas versões diferentes, uma no sentido que o Arguido conduziu, outra no sentido de que o mesmo não conduziu, e que, pelo contrário, tinha sido combinado, entre o Arguido e os companheiros, que quem iria conduzir era a testemunha GG.
- No confronto entre uma e outra das versões em causa, o Tribunal deu como comprovada a da acusação, fundamentando-se para tal no depoimento dos Srs. Agentes da PSP, DD e EE.
- Teve ainda em consideração o respectivo entendimento de que os mesmos nada teriam por querer prejudicar o Arguido.
- Finalmente, teve ainda em consideração o que reportou serem determinadas contradições das testemunhas arroladas pelo Arguido.
- Em nenhum destes aspectos, salvo o devido respeito e melhor entendimento, assiste razão ao Tribunal;
- o Tribunal a quo valorou significativamente que o entendeu ser algumas contradições no depoimento de tais testemunhas, ao contrário das manifestas contradições do depoimento dos dois agentes da PSP em que se fundamentou.
- O Tribunal a quo não teve, nessa avaliação, objectivamente, o mesmo grau de exigência, como se evidencia da respectiva consideração quanto ao depoimento da testemunha HH (que agora é agente, também da PSP);
- Existem, no confronto das versões em causa, determinados elementos que, salvo melhor entendimento, deviam ter sido valorados pelo Tribunal a quo, e não o foram, em particular:
- a manifesta impossibilidade — física - de um dos aspectos concretos narrados pela testemunha DD, como justificação para a sequência de acontecimentos por si narrada, como acima referido;
- a confirmação, pelo relato de todos os presentes, sem qualquer controvérsia, de que, tendo estando juntos no bar, e saindo uns primeiro e outros depois, nenhum deles teve qualquer dúvida onde estava o carro do Arguido e que o mesmo estava parado.
Contudo, em momento algum da motivação explicita e individualiza o recorrente qual ou quais os factos impugnados e a sua correlação em concreto com os meios de prova que refere.
Não se mostra, assim, cumprido o ónus de especificação exigido.
Por outro lado, a motivação exarada na decisão recorrida evidencia de forma clara e cristalina a valoração e apreciação que levou a cabo o tribunal a quo, na conjugação de todos os meios de prova a que se reporta, para alcançar a conclusão a que chegou.
No fundo, o recorrente insurge-se contra a valoração que o tribunal a quo fez do conjunto dos meios de prova, pretendendo sobrepor uma outra convicção (a sua), distinta sobre ela.
Dispõe o art.º 127º do Código de Processo Penal, que: salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
É indubitável que livre apreciação da prova não significa apreciação arbitrária dos meios de prova, nem se confunde com a impressão que estes geram no espírito do julgador, pressupondo o respeito pelos critérios da experiência comum e da lógica do homem médio (v. Maia Gonçalves, CPP Anotado, 17ª ed., pág. 354).
Consequentemente, existirá violação do princípio da livre apreciação da prova se, na apreciação da prova e nas ilações extraídas, o julgador não respeitar os princípios em que se consubstancia o direito probatório e as regras da experiência comum, da lógica e de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório (in Ac. Relação de Évora de 13-07-2021, proferido no processo n.º 149/19.9PBSTR.E1).
Como se decidiu no Ac. da mesma Relação de Évora de 6-06-2006, proferido no processo n.º 384/06-1: As provas são apreciadas pelo julgador de acordo com as regras da experiência comum e a sua livre convicção – não uma convicção puramente subjectiva, baseada em imprecisões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas de uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras da lógica, da razão e das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, de tal modo que, sendo uma convicção pessoal, há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável.
Daí a exigência da motivação na sentença quanto ao sentido da decisão sobre a matéria de facto, a qual terá de consubstanciar o percurso lógico- dedutivo e o raciocínio desenvolvido pelo julgador para concluir como concluiu, impondo o dever de fundamentação no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido (in Ac. do STJ de 23-02-2011, proferido no processo n.º 241/08.2GAMTR.P1.S2).
Da análise da fundamentação da matéria de facto constante da decisão sob escrutínio, não se descortina qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova, sendo que o percurso lógico-dedutivo empreendido pelo tribunal a quo mostra-se explicitado de forma clara e esclarecedora e é consentâneo com as regras da experiência.
É certo que, como questão prévia, na motivação de recurso invocou o recorrente que: sendo este o último dia da apresentação do presente recurso, impõe-se a apresentação do mesmo, ainda que com as limitações inerentes à ausência da efectiva disponibilização das gravações em causa (em particular no que concerne ao cumprimento dos requisitos do recurso da matéria de facto que vise a reapreciação de prova gravada).
Ou seja, o próprio recorrente reconhece o incumprimento dos ónus estatuídos no citado normativo a observar quando se pretenda impugnar a matéria de facto.
Parece o recorrente pretender justificar tal omissão com a ausência de disponibilização das gravações da audiência.
Sucede que o recorrente, sabendo que o prazo para interposição de recurso é de trinta dias, optou por nada requerer atempadamente no sentido de lhe serem disponibilizadas as gravações em tempo útil e suficiente para que elaborasse a peça recursiva nos termos exigidos no mesmo normativo legal.
Nem tão pouco requereu ou arguiu o que quer que fosse depois da disponibilização das gravações em causa.
Ora, tendo o ora recorrente solicitado no anterior requerimento de interposição de recurso relativamente à sentença anteriormente proferida, nos mesmos termos ora invocados, a disponibilização das gravações e não tendo estas sido então disponibilizadas, mal de compreende que, pretendendo interpor novo recurso com impugnação da matéria de facto quanto à sentença posteriormente publicada, tenha aguardado pelo termo do prazo de recurso para novamente invocar a falta de disponibilização das gravações.
É certo que nos termos do art.º 157º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.º 4º do Código de Processo Penal:
6 - Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.
E como se consignou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para Fixação de Jurisprudência n.º 13/2014 de 23 de Setembro, atrás citado:
O direito ao recurso implica que o interessado seja posto em condições de optar esclarecidamente por conformar-se com a decisão ou impugná-la.
Quando pretenda impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto e as provas tenham sido gravadas, o acesso aos respectivos suportes de gravação é essencial para um "consciente e eficiente exercício desse direito". O interessado necessita de dispor de cópias das provas gravadas, pois, mesmo tendo assistido à sua produção será temerário confiar na memória ou em apontamentos pessoais e seguramente não pode prescindir delas para cumprir os ónus impostos pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º
Nos termos do artigo 101.º, n.º 3, para prover a essa necessidade, sempre que tenha havido gravação audiovisual ou magnetofónica, o funcionário entrega, no prazo de 48 horas, uma cópia da mesmo ao sujeito processual que o requeira e forneça o suporte técnico adequado para a reprodução.
Por isso, como se reconheceu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 326/2012, num regular funcionamento das coisas, quando careça de tais elementos, o interessado terá, no máximo, o prazo afectado em 48 horas, «este encurtamento do prazo útil - supondo, o que não é necessariamente certo, que a indisponibilidade temporária dos elementos pretendidos equivalha à inutilização desse tempo para assegurar o recurso - não o reduz a ponto de afectar a exigência constitucional de que o processo assegure todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (artigo 32.º, n.º 1, da CRP)». Aí se adverte de que «é por referência a este significado constitucional, de um processo penal orientado para a defesa em que ao arguido não sejam colocados entraves a que possa defender a sua posição e contrariar a acusação e atacar a sentença condenatória, em matéria de direito e de facto, que há-de ser perspectivado o problema das repercussões das diligências necessárias a obter a reprodução dos registos de prova no prazo de recurso. O que a garantia constitucional exige é que o arguido não seja posto, em termos de disponibilidade de elementos, de tempo e de circunstâncias em que tais elementos lhe são fornecidos, em situação que lhe não permita uma opção esclarecida e eficaz quanto ao âmbito da impugnação da decisão condenatória (ou à defesa da decisão absolutória). Não decorre dela a incolumidade dos prazos fixados pela lei ordinária. O que o arguido não pode é ficar privado de obter os elementos que entenda necessários, permanecer na incerteza acerca do momento em que lhe são fornecidos ou a disponibilização destes consumir prazo substancial do prazo de modo a que deixe de ser idóneo para uma opção e preparação reflectida da motivação de recurso». (destacado nosso)
É incontestável que o direito ao recurso constitucionalmente consagrado pressupõe, quando se pretenda impugnar a matéria de facto, a disponibilização das gravações da audiência de julgamento.
Porém, a omissão do cumprimento atempado pela secretaria da disponibilização das gravações da audiência nos termos prescritos no citado art.º 101º/4 do Código de Processo Penal apenas é susceptível de contender com o prazo de interposição de recurso, mas não com os ónus que recaem sobre o recorrente previstos no art.º 412º/ 3 e 4 do mesmo Código.
Ou seja, a circunstância de ocorrer a indisponibilidade (temporária, diga-se) das gravações não isenta o recorrente do cumprimento dos ónus ali estabelecidos, apenas justificando eventualmente a suspensão do prazo em curso até que aquelas sejam disponibilizadas.
Neste sentido, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 31-01-2012, proferido no Processo n.º 549/10.7TASTB-A.E3 (Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO): (…) só no caso de requerida e não cumprida, no prazo da lei (48 horas), a entrega de cópia dos suportes de gravação, cujo suporte técnico haja sido fornecido ao tribunal, poderia perspectivar-se, dentro das soluções já partilhadas pela nossa jurisprudência, acima referidas, o dies a quo do cômputo do prazo para a apresentação da motivação do recurso ou a suspensão do prazo de recurso, pois não faria sentido que os atrasos verificados nessa entrega por razões não imputáveis ao requerente, penalizassem quem delas precisa para objectivar a motivação de recurso.
De qualquer modo, a disponibilização das gravações em data posterior à interposição do presente recurso acaba por se reconduzir a uma circunstância em absoluto inócua no caso em apreço: é que, como atrás se referiu, o incumprimento dos ónus estatuídos no art.º 412º citado é em concreto total e absoluto, não tendo sequer o recorrente especificado os pontos de facto que pretende impugnar, pelo que, ainda que o mesmo tivesse indicado os concretos trechos dos depoimentos que no seu entender imporiam decisão diversa, com menção dos minutos da gravação correspondentes, sempre a impugnação da matéria de facto deveria em concreto ser julgada inadmissível e rejeitada.
Por outro lado, perante a omissão apontada, não se mostram verificados os pressupostos do art.º 417º/3 do Código de Processo Penal que justificam a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões nos termos aí previstos, uma vez que tal omissão se verifica, quer nas conclusões, quer na motivação.
Consequentemente, impõe-se a rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, o que se decide.
*
3.2. Da violação do princípio in dubio pro reo
Invocou ainda o recorrente a violação do princípio in dubio pro reo, concluindo sinteticamente nos termos seguintes: impunha-se a consideração de uma dúvida necessária sobre o desenrolar dos acontecimentos, não podendo ser dado como provado que o mesmo estava a conduzir, e, como tal, impondo-se a absolvição do Arguido à luz do princípio do in dubio pro réu.
Porém, o princípio do in dubio pro reo só poderá ser invocado quando, depois de analisada toda a prova produzida no seu conjunto, de harmonia com a lógica e a normalidade do acontecer, o julgador permanecer num estado de dúvida insanável quanto à realidade ou não do facto sujeito a prova.
O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa (in Acórdão do STJ de 12-03-2009, proferido no processo n.º 07P1769).
Como lapidarmente se esclarece no Ac. do STJ de 5-07-2007, proferido no processo n.º 07P2279: o princípio in dubio pro reo (…) é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
No caso concreto, como resulta do conteúdo da fundamentação constante da decisão recorrida atrás transcrita, é inequívoco que nenhuma dúvida subsistiu no espírito da M.ma Juíza a quo ao julgar como provados os factos com base nos quais fundamentou a condenação do recorrente.
A violação do princípio in dubio pro reo só se verificaria caso se concluísse ter existido erro na valoração da prova, de forma a que ao condenar o recorrente com base na prova e na sua valoração, o tribunal a quo teria contrariado as regras da lógica e da experiência comum, na medida em que deveria ter permanecido num estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do recorrente.
No entanto, como resulta claro da fundamentação da decisão da matéria de facto exarada na decisão recorrida, o tribunal recorrido decidiu de acordo com a sua livre convicção, de forma objectivamente fundada e sustentada nos concretos meios probatórios que apreciou e valorou, pelo que se mostra afastada a hipótese de que deveria ter permanecido num estado de dúvida razoável, fundada e insanável em termos de valoração da prova, em relação aos factos que deu como provados.
É inequívoco que nenhuma dúvida subsistiu no espírito da M.ma Juíza que decidiu em primeira instância.
Aliás, isso mesmo vem exarado de forma expressa na motivação da decisão recorrida, quando aí se consignou que:
É certo que o arguido negou que tenha conduzido a viatura automóvel e que, nessa sequência, tenha sido abordado para fazer o teste de pesquisa de alcoolemia no sangue. É certo, ainda, que algumas das testemunhas por si indicadas, e que com ele se encontravam nessa noite, garantiram que o arguido não chegou a conduzir. Temos, pois, no que a esta matéria respeita, duas versões diametralmente opostas. Quando assim é, o tribunal deverá apreciar qual a que, segundo as regras da experiência comum, merece mais credibilidade. E não temos a menor dúvida de que é a versão da acusação.
Assim, nenhuma violação do princípio in dubio pro reo ocorreu nos termos invocados no recurso.
Improcede assim neste segmento o recurso.
*
Consequentemente, e tendo sido rejeitado o recurso quanto ao erro de julgamento invocado, encontra-se definitivamente fixada a matéria de facto provada.
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3.3. Se o recorrente deverá ser absolvido da prática do crime pelo qual foi condenado
Conclui o arguido que se impõe a sua absolvição.
Porém, perante a factualidade provada acima transcrita, a qual se considerou definitivamente fixada nos termos atrás expostos, impõe-se concluir que não assiste razão ao recorrente.
Com efeito, a pretensão nesta parte formulada pelo recorrente, assentava na impugnação da matéria de facto provada e no apelo ao princípio in dubio pro reo.
Ora, perante a rejeição do recurso quanto àquela impugnação e a sua improcedência quanto à violação daquele princípio, é manifesto que os factos provados integram os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime pelo qual o recorrente foi condenado, o que, aliás, o mesmo não questiona no presente recurso.
Em conformidade, sem necessidade de outros considerandos, porque desnecessários, improcede também neste segmento o recurso interposto.
Em suma, e não tendo sido colocadas outras questões a este tribunal de recurso, o recurso improcede na sua totalidade.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo do recorrente, fixando-se em três U.C.s a taxa de justiça (art.º 513º/1 do Código de Processo Penal, art.º 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa).
Notifique.

Lisboa, 21 de Novembro de 2024
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Elaborado e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º n.º 2 do C. P. Penal)
Paula Cristina Bizarro
Rosa Maria Cardoso Saraiva
Maria de Fátima R. Marques Bessa