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HOMICÍDIO
MOTIVO TORPE OU FÚTIL
PRISÃO PREVENTIVA
PERIGO DE FUGA
Sumário
I. A motivação do agente, para tentar matar o ofendido é a de este ter dado a sua localização e informação de estar a trabalhar, à ex-companheira, que abandonou com o seu filho em França, e a quem não quer pagar a pensão de alimentos. Ora esta é uma razão que não constitui motivo para a prática do crime de homicídio (ainda que nenhuma seja), esta motivação do arguido é imoral, vergonhosa, desprezível, é torpe, já que os filhos não pediram para nascer e a separação não faz extinguir as obrigações perante eles, de garantir a sua sobrevivência e subsistência, pelo que, revela especial censurabilidade o comportamento revelado pelo arguido subsumível ao homicídio qualificado, tentado, nºs 1, 2 al e) 132º, 22º, e 23º todos do Código Penal. II. No que respeita ao perigo de fuga, ainda que se exija que o mesmo seja concreto e fundado em elementos de facto, que indiciem uma probabilidade razoável de o arguido em liberdade se ausentar para parte incerta, no país ou no estrangeiro, com o propósito de se eximir à ação da justiça penal, - não bastando a dedução de tal perigo apenas da gravidade da pena ou de o arguido ser cidadão estrangeiro, - ainda assim não são exigidos atos de execução da concreta fuga estando em causa um juízo de prognose, pelo que , não é necessário que o arguido tenha já executado factos tendentes a furtar-se à ação da justiça, executando atos próprios das fuga. III. O apuramento do perigo de fuga haverá de ser tomado em conta a gravidade das sanções criminais e civis previsíveis para os crimes imputados ao arguido, e outros fatores relativos à sua personalidade e caráter, desde logo a previsibilidade da capacidade de aquele, concreto cidadão manter, ou não, uma conduta que não colida com a eventual necessidade de lhe ser aplicada, em momento ulterior, pena ou medida de coação privativa dessa liberdade. IV. Assim, resulta que o perigo de fuga, concreto, é sempre o resultado da avaliação de uma realidade hipotética, configurável a partir das manifestações e/ou dados de facto que se puderam colher, relativos à personalidade do arguido, a que acrescem dados do senso comum, sobre qual o comportamento esperado de uma pessoa com aquelas precisas características, colocada naquela precisa situação. Trata-se de um juízo de valor que se deve buscar no senso comum, sem sobrevalorizar os perigos, mas também sem os ignorar ou desvalorizar. Sumário da responsabilidade da relatora
Texto Integral
Acordam, em conferência e por unanimidade, os juízes desembargadores subscritores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1. Por despacho proferido na sequência do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, realizado em 27.06.2024, foi aplicada ao arguido AA, ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, 192.º,193.º, 195º, 196º, 202,º e 204,º n,º 1, al. a) b) e c), todos do Código de Processo Penal, (daqui em diante C.P.P.) para além TIR a medida de coação de Prisão Preventiva.
2. Inconformado com tal decisão o arguido AA, interpôs recurso pugnando pela revogação, do aludido despacho, motivadamente, e formulando as seguintes conclusões que se [transcrevem]
1. O presente recurso tem por objeto a decisão de aplicação de medida de coação mais gravosa, de prisão preventiva, aplicada ao arguido AA no dia 27.06.20224.
2. Tal decisão é suportada em factos que no entender do tribunal consubstanciam a prática do crime de homicídio qualificado, com o que não se poderá concordar.
3. O tribunal a quo não fez uma avaliação individual e partindo do caso concreto dos pressupostos de aplicação da medida de coação, uma vez que não saiu da teoria do papel e acabou por encontrar uma solução jurídica formal, mas injusta para o caso concreto, isto porque
4. Não se poderão dar como fortemente indiciados os factos descritos na decisão do Tribunal sob os nº 19 e 20, uma vez que estes estão em contradição com a restante prova e até com a mecânica dos próprios factos,
5. O facto 19 por dispor que o arguido atuou de forma traiçoeira e que não deu possibilidade de defesa à vítima, com o que não se pode concordar (pelas razões expostas e que não se transcreverão para as conclusões).
6. E o facto 20 por dispor que o motivo era irrisório face à vida humana e com isso tentar atribuir os efeitos previstos no art.º 132º, do Código Penal, qualificando a (alegada) tentativa de homicídio, no entanto sem fazer as devidas considerações sobre o motivo em causa, bastando-se com alegações genéricas — que, aliás, tornariam todos os homicídios qualificados-.
7. No entanto, também não se poderá considerar que existam fortes indícios da prática do crime de homicídio na forma tentada, isto porque
8. O local onde foi disferido o golpe (glúteo) não poderá ser considerado uma parte onde se encontram órgãos vitais do corpo humano;
9. As circunstâncias dos factos terão de ser tidas em conta, uma vez que os factos não são isolados da sua própria história e indicam, até, uma intenção de defesa por parte do arguido das intenções de BB (vejam-se as declarações da vítima) que confessadamente ameaçou que matava o arguido.
10. O meio que foi utilizado seria diferente caso a intenção do arguido fosse provocar a morte;
11. A jurisprudência, relevante, tende a considerar tentativas de homicídio factos muito mais graves, onde realmente chega a haver um perigo para a vida, o que não foi o caso;
12. A conduta pós-facto do arguido foi cooperante e colaborante, calma, e ficou no local. Talvez esta tenha sido a primeira tentativa de homicídio no país onde a vítima foge e o homicida fica à espera das autoridades;
13. E não se tente dizer que os intentos do arguido só não foram conseguidos porque foi impedido pelos presentes, uma vez que tal afirmação vai fortemente contra as regras da experiência comum e desafia todas as regras da lógica, uma vez que se o arguido realmente quisesse produzir o resultado morte, o primeiro golpe — que na visão do tribunal foi sem oposição e de surpresa-, teria sido no pescoço, no dorso ou no peito.
14. Para além de não se encontrarem fortemente indiciados factos que levem à qualificação jurídica proposta, a medida de prisão preventiva não é necessária, adequada e proporcional.
Isto porque,
15. Na avaliação da necessidade e adequação da medida de coação não poderá ser invocada qualquer razão respeitante à culpa do arguido, assim como às finalidades de punição ou proteção do ofendido, o que o Tribunal faz.
16. Não se verifica o perigo de fuga, nem o tribunal faz uma caracterização de tal perigo com factos consubstanciáveis a tal perigo, uma vez que se basta com alegações genéricas sobre o arguido ser brasileiro e por isso não ter ligações à comunidade; Não há nenhuma evidencia ou indícios, concretos, de que o arguido pretendesse encetar fuga — aliás, teve mais do que tempo de o fazer, uma vez que os factos são bastante longínquos em relação à data da prisão preventiva.
17. Não basta um alarme social que não se traduza num perigo concreto proveniente da conduta ou da personalidade do arguido para que se considere o perigo de perturbação da ordem pública, não podendo, o momento processual presente, servir finalidades de prevenção geral nem de satisfação de pretensões punitivas das sociedades.
18. Aliás, arrisca-se dizer que poderá, até, parecer ridículo ao cidadão médio que o arguido esteja preso por tentativa de homicídio por ter dado "uma facada no rabo" de outra pessoa — uma vez que o cidadão médio não entenderá como é que uma pessoa para tentar matar outra lhe dá uma facada em tal sítio.
19. Não consta, também, nenhum indicador que permita concluir pelo perigo da continuação da atividade criminosa uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais e esta(va) inserido na sociedade. Tal perigo também ficaria claramente mitigado pela OPH-VE.
20. Também não se poderá dizer, com acurácia jurídica, que foi o perigo de perturbação de inquérito que presidiu à aplicação desta medida de coação, uma vez que a prova do processo está indiciariamente prestada e fixada, cabendo, agora o seu contraditório. Não seria possível o arguido influenciar as testemunhas a alterar o seu depoimento sem que o tribunal se apercebesse. No mais não resulta concretamente demonstrado que esse perigo exista através de factos que indiciem a atuação do arguido com esse objetivo, e que não seja possível evitar essa perturbação por outros meios.
21. A aplicação da medida de prisão preventiva também não respeita a proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que estamos perante um crime de tentativa de homicídio meramente formal — a vida da vítima nem sequer esteve concretamente em perigo.
22. E, portanto, deverá a medida de coação de prisão preventiva ser revogada por ser inadmissível.
Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, revogada a medida de coação de prisão preventiva, substituindo-se por outra.
Fazendo-se, assim, a acostumada e necessária Justiça
3. O Ministério Público apresentou Resposta, pugnando pela manutenção do despacho colocado em crise, uma vez que tendo presente os princípios da adequação, proporcionalidade e suficiência que presidem à aplicação das medidas de coação, o Tribunal “a quo” decidiu bem em aplicar a prisão preventiva ao recorrente. [não formulou conclusões]
4. Foi o recurso admitido, fixando-se a sua subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo, mais se determinando o cumprimento do disposto no n.º 5 do artigo 414º do C.P.P..
5. Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto foi lavrado Parecer, aderindo à argumentação explanada em 1ª instância pelo Ministério Público, merecendo o despacho recorrido confirmação.
6. Cumprido o disposto no artigo 417º, do Código de Processo Penal, o recorrente não respondeu.
7. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
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II - Fundamentação:
1. Para definir o âmbito do recurso, a doutrina (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V). e a jurisprudência (como de forma uniforme têm decidido todos os tribunais superiores portugueses, nos acórdãos, entre muitos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1. S1.) são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal superior perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à sua apreciação, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de conhecimento de eventual questão de conhecimento oficioso – que sintetizam as conclusões do recorrente:
- não se mostram indiciados os factos constantes do despacho de imputação não estando por isso correta a qualificação jurídica dos factos, que não deveria ir além de um crime de ofensa à integridade física, simples, previsto no artigo 143º, do Código Penal.
- revela-se excessiva a aplicação ao recorrente da medida de coação de prisão preventiva a qual deve ser revogada e substituída por outra.
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2. Motivos da detenção - factos imputados (despacho de apresentação)
1. No dia 27.04.2024, cerca das 13h30, o arguido dirigiu-se à rua …, mais propriamente ao café ….
2. Ali chegado, entrou no mencionado estabelecimento, local onde já se encontrava o ofendido BB e iniciou uma discussão com este.
3. Discussão mantida junto às casas de banho e motivada por alegadamente o ofendido BB ter enviado fotografias para a ex-namorada do arguido.
4. Aquando da discussão, o arguido, que mantinha a mão direita atrás das costas, dando a entender que tinha um objecto cortante, dirigiu ao ofendido a expressão: “Dou-te uma facada”.
5. A dado momento o arguido agarrou o ofendido, colocou o braço esquerdo, envolvendo com aquele o pescoço do ofendido, com traqueia daquele na dobra do cotovelo, e manteve a cabeça daquele junto da sua cintura.
6. Altercação que continuou no exterior do café, e que só foi acalmando devido à intervenção de CC.
7. Sem que que nada fizesse prever, o arguido AA voltou a entrar no café, dirigiu-se à cozinha e muniu-se de uma faca com pelo menos 14 cm lâmina.
8. No exterior, permaneceu o ofendido BB, que se encontrava posicionado de frente para o estabelecimento e com CC à sua frente.
9. O arguido AA, saiu do café, contornou CC, empunhando a faca na sua mão direita, levantou o braço e com a força do corpo, espetou-a na nádega esquerda do ofendido.
10. Retirou a faca do corpo do ofendido, continuou com aquela na sua mão direita, levantou o braço e baixou-o munido com a faca apontada em direcção ao tronco e pescoço do ofendido, não o atingindo porque foi impedido por CC.
11. Continuou com faca na sua mão direita, levantou o braço e num movimento de vai/vem, direcionou-a, por um número de vezes não concretamente apurado, em direcção ao tronco e ao pescoço do ofendido, tentando-o atingir naquelas zonas.
12. Como não logrou os seus intentos, em virtude de ter sido afastado, passou a faca para a mão esquerda e procedeu do mesmo modo.
13. Enquanto procedia do modo supra descrito proferia a seguinte expressão: “Eu te mato”, “Eu te mato”.
14. No dia 09.06.2024, cerca das 03h00/04h00, o arguido dirigiu-se às festividades “…” que estavam a decorrer no lugar do ….
15. Aí chegado, com uma navalha na mão direita e com o braço esticado ao longo do seu corpo, abordou o ofendido DD, que momentos antes tinha mantido uma discussão com outro festivaleiro, e dirigiu-lhe a seguinte expressão “Vou acabar com a tua raça”.
16. No dia 27.06.2024, pelas 10h25 o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de marca Citroen, marca Saxo.
17. Naquela viatura detinha, debaixo do forro do assento do condutor, os seguintes objectos:
➢ Uma barra de ferro, semelhante a um vulgo pé de cabra com 55 cm de comprimento;
➢ Uma faca com a inscrição Mustad, com 22 cm de comprimento total e 10 cm de lâmina.
18. No dia supramencionado, detinha, no bolso direito das calças uma navalha com 19,5 cm de comprimento total e 9 cm de lâmina.
19. Ao desferir um golpe no corpo de BB com o instrumento cortante, ao tentar atingir aquele no tronco e no pescoço daquele, o arguido quis e previu a possibilidade de lhe tirar a vida, uma vez que a zona do corpo que o arguido pretendia atingir tem órgãos vitais e que usando o referido instrumento para a perfurar, podia causar lesões suscetíveis de determinar a morte daquele, conformando-se com esse resultado, só não logrando com o seu objectivo por razões que lhe foram alheias.
20. O arguido actuou sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina, usando um instrumento que dissimulara e cujas capacidades letais e de impossibilidade de defesa para a vítima bem conhecia.
21. O arguido sabia que a discussão mantida com o ofendido a respeito a um alegado envio de mensagens era um motivo irrisório e insignificante face à vida daquele, e que jamais poderiam justificar a sua ação.
22. O arguido conhecia bem as características do objeto que usou para golpear o ofendido, tendo-se dirigido à cozinha do estabelecimento com o propósito para o ir buscar.
23. O arguido bem sabia que as palavras que dirigiu DD, querendo fazer crer a este que lhe havia de provocar lesões à integridade física, ou mesmo tirar-lhe a vida, agindo com a intenção de lhe provocar medo e inquietação, o que, de facto conseguiu, motivando a que aquela ficasse com receio da concretização do anunciado pelo arguido.
24. O arguido, quis e sabia que não podia deter consigo a faca e navalha identificadas em 17, no circunstancialismo de espaço, modo, tempo e lugar descritos no mesmo ponto, nem tinha quaisquer motivos para a deter e bem sabia que a mesma era passível de ser utilizada como instrumento de agressão contra a vontade de qualquer pessoa com quem viesse a entrar em litígio.
25. Bem conhecia o arguido as características cortantes e perfurantes do mencionado objecto e que os mesmos poderiam atingir terceiros colocando assim em risco a integridade física destes.
26. O arguido, quis e sabia que não podia deter consigo uma barra de ferro, no circunstancialismo de espaço, modo, tempo e lugar, descritos, nem tinha quaisquer motivos para a deter e bem sabia que a mesma era passível de ser utilizada como instrumento de agressão contra a vontade de qualquer pessoa com quem viesse a entrar em litígio.
27. O arguido agiu livre, deliberada e com a perfeita consciência de que detinha a mencionada barra, de que o mesmo apresentava as características acima indicadas, de que não tinha qualquer justificação para ter o mesmo na sua posse, que não fosse poder usá-lo como instrumento de agressão e/ou defesa, construída exclusivamente com o fim de ser utilizada como arma de agressão.
28. O arguido actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.
Pelo exposto,
O arguido AA encontra-se fortemente indiciado do cometimento do seguinte crime:
➢ 1 (um) crime homicídio qualificado sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e) e i), do Código Penal;
➢ 1 (um) crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos nos termos dos artigos 153.º, n. º1 e 2, 155.º, n. º1, alínea a), por referência aos artigos 131.º todos do Código Penal;
➢ 3 (três) crimes de detenção de arma proibida, p.p. nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, aliena m); 3.º, n.º 2, aliena ab) e alínea g) e 86.º, n.º 1, alínea d) do Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (RJAM).
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4 – Elementos do processo que indiciam os factos imputados:
Prova indiciária, a dos autos, nomeadamente: Documental
1. Auto de notícia, fls. 8; 2. Auto de apreensão, fls. 11; 3. Reportagem fotográfica, fls. 24; 4. Auto de revista, fls. 91; 5. Auto de busca e apreensão, fls. 92; 6. Reportagem fotográfica, fls. 97.
Testemunhal
1.EE, fls. 28 e 72;
2. FF, fls. 33;
3. CC, fls. 36 e 74;
4.GG, fls. 40;
5. BB, fls. 43;
6. HH, fls.48;
7. II, fls. 62;
8. DD, fls. 66;
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De seguida, pelo Mm.º Juiz foi perguntado ao Arguido se pretendia prestar declarações tendo este na presença da sua ilustre defensora, dito pretender prestar declarações sobre a matéria dos autos, nos termos do disposto no art.º 141.º, n.º 7 e n.º 8 do C.P.P., (correspondentemente aplicável o disposto no artigo 101.º do C.P.P.) e art.º 364.º do C.P.P., encontram-se gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Juízo, com início às 16 horas e 29 minutos e termo às 16 horas e 46 minutos.
Aquando da audição do arguido, o Mm. º Juiz ouviu o mesmo quanto às suas condições socioeconómicas.
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Durante o interrogatório do arguido, o Mm. º Juiz concedeu a palavra à Digna Procuradora da República e ao ilustre defensor oficioso do arguido, nos termos do n.º 6, do art.º 141.º do C.P.P..
*
Após, o Mm.º Juiz ordenou que o arguido fosse retirado da sala de audiências e logo concedeu a palavra à Digna Procuradora da República, encontrando-se a sua promoção gravada, nos termos do disposto no artigo 364.º do C.P.P., através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Juízo, com início às 16 horas e 47 minutos e termo às 16 horas e 51 minutos, passando a constar:
“Aplicação de prisão preventiva”.
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De seguida, o Mm. º Juiz concedeu a palavra à ilustre defensora oficiosa do arguido, encontrando-se as suas alegações gravadas, nos termos do disposto no artigo 364.º do C.P.P., através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Juízo, com início às 16 horas e 51 minutos e termo às 16 horas e 53 minutos, ficando a constar:
“A nosso ver a medida julga-se suficiente a pulseira eletrónica, com autorização para a deslocação entre casa e trabalho”.
Despacho
I. Prazo para apresentação perante JIC e validação da detenção
O artigo 28.º, n.º 1, da CRP impõe que a detenção seja apreciada por um Juiz no prazo máximo de 48 horas. Cumprindo proceder à apreciação e validação judiciária da detenção, retira-se dos elementos constantes dos autos que a mesma é legal, por ter sido respeitado o prazo máximo previsto na Lei e por ter tido por escopo a apresentação a Juiz para interrogatório e aplicação de medida de coação, nos termos do preceituado nos artigos 254.º, n.º 1, alínea a), 257.º, n.º 1 alínea b) c), 258.º e 141.º, n.º 1, todos do Código Processo Penal.
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Validações
1. Buscas Domiciliárias
Nada a determinar.
2. Apreensões
Nada a determinar dado que as mesmas já foram validadas pelo Ministério Público, nos termos do artigo 178.º, n.º 6 do Código Processo Penal.
3. Validação da constituição de arguido
Nada a determinar porquanto o Ministério Público já procedeu à validação, nos termos do artigo 58.º, n.º 4 do Código Processo Penal.
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II. Fundamentação
Dão-se como indiciados os seguintes factos resultantes dos autos bem como da prova produzida em sede de primeiro interrogatório:
1. No dia 27.04.2024, cerca das 13h30, o suspeito dirigiu-se à rua …, mais propriamente ao café ….
2. Ali chegado, entrou no mencionado estabelecimento, local onde já se encontrava o ofendido BB e iniciou uma discussão com este. Discussão mantida junto às casas de banho.
3. Discussão motivada por alegadamente o ofendido BB ter enviado fotografias para a ex-namorada do suspeito.
4. Aquando da discussão, o suspeito, que mantinha a mão direita atrás das costas, dando a entender que tinha um objecto cortante, dirigiu ao ofendido a expressão: “Dou-te uma facada”.
5. A dado momento o arguido agarrou o ofendido, colocou o braço esquerdo, envolvendo com aquele o pescoço do ofendido, com traqueia daquele na dobra do cotovelo, e manteve a cabeça daquele junto da sua cintura.
6. Altercação que continuou no exterior do café, e que só foi acalmando devido à intervenção de CC.
7. Sem que que nada fizesse prever, o suspeito AA voltou a entrar no café, dirigiu-se à cozinha e muniu-se de uma faca com pelo menos 14 cm lâmina.
8. No exterior, permaneceu o ofendido BB, que se encontrava posicionado de frente para o estabelecimento e com CC à sua frente.
9. O suspeito AA, saiu do café, contornou CC, empunhando a faca na sua mão direita, levantou o braço e com a força do corpo, espetou-a na nádega esquerda do ofendido.
10. Retirou a faca do corpo do ofendido, continuou com aquela na sua mão direita, levantou o braço e baixou-o munido com a faca apontando-a em direcção ao tronco e pescoço do ofendido, não o atingindo porque foi impedido por CC.
11. Continuou com faca na sua mão direita, levantou o braço e num movimento de vai/vem, direcionou-a, por um número de vezes não concretamente apurado, em direcção ao tronco e ao pescoço do ofendido, tentando-o atingir naquelas zonas.
12. Como não logrou os seus intentos, em virtude de ter sido afastado, passou a faca para a mão esquerda e procedeu do mesmo modo.
13. Enquanto procedia do modo supra descrito proferia a seguinte expressão: “Eu te mato”, “Eu te mato”.
14. No dia 09.06.2024, cerca das 03h00/04h00, o suspeito dirigiu-se às festividades “…” que estavam a decorrer no lugar do ….
15. Aí chegado, com uma navalha na mão direita e com o braço esticado ao longo do seu corpo, abordou o ofendido DD, que momentos antes tinha mantido uma discussão com outro festivaleiro, e dirigiu-lhe a seguinte expressão “Vou acabar com a tua raça”.
16. No dia 27.06.2024, pelas 10h25 o arguido conduzia o veículo ligeiro de passeiros de marca Citroen, marca Saxo, sendo que, naquela viatura detinha, debaixo do forro do assento do condutor, os seguintes objetos: a. Uma barra de ferro, semelhante a um vulgo pé de cabra com 55 cm de comprimento;
b. Uma faca com a inscrição Mustad, com 22 cm de comprimento total e 10 cm de lâmina
17. No dia supramencionado, detinha, no bolso direito das calças uma navalha com 19,5 cm de comprimento total e 9 cm de lâmina.
18. Ao desferir um golpe no corpo de BB com o instrumento cortante, ao tentar atingir aquele no tronco e no pescoço daquele, o arguido quis e previu a possibilidade de lhe tirar a vida, uma vez que a zona do corpo que o arguido pretendia atingir tem órgãos vitais e que usando o referido instrumento para a perfurar, podia causar lesões suscetíveis de determinar a morte daquele, conformando-se com esse resultado, só não logrando com o seu objectivo por razões que lhe foram alheias.
19. O arguido actuou sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina, usando um instrumento que dissimulara e cujas capacidades letais e de impossibilidade de defesa para a vítima bem conhecia.
20. O arguido sabia que a discussão mantida com o ofendido a respeito a um alegado envio de mensagens era um motivo irrisório e insignificante face à vida daquele, e que jamais poderiam justificar a sua ação.
21. O arguido conhecia bem as características do objeto que usou para golpear o ofendido, tendo-se dirigido à cozinha do estabelecimento com o propósito para o ir buscar.
22. O arguido bem sabia que as palavras que dirigiu DD, querendo fazer crer a este que lhe havia de provocar lesões à integridade física, ou mesmo tirar-lhe a vida, agindo com a intenção de lhe provocar medo e inquietação, o que, de facto conseguiu, motivando a que aquela ficasse com receio da concretização do anunciado pelo arguido.
23. O arguido, quis e sabia que não podia deter consigo a faca e navalha acima identificadas, no circunstancialismo de espaço, modo, tempo e lugar descritos no mesmo ponto, nem tinha quaisquer motivos para a deter e bem sabia que a mesma era passível de ser utilizada como instrumento de agressão contra a vontade de qualquer pessoa com quem viesse a entrar em litígio.
24. Bem conhecia o arguido as características cortantes e perfurantes do mencionado objeto e que os mesmos poderiam atingir terceiros colocando assim em risco a integridade física destes.
25. O arguido, quis e sabia que não podia deter consigo uma barra de ferro, no circunstancialismo de espaço, modo, tempo e lugar, descritos, nem tinha quaisquer motivos para a deter e bem sabia que a mesma era passível de ser utilizada como instrumento de agressão contra a vontade de qualquer pessoa com quem viesse a entrar em litígio.
26. O arguido agiu livre, deliberada e com a perfeita consciência de que detinha a mencionada barra, de que o mesmo apresentava as características acima indicadas, de que não tinha qualquer justificação para ter o mesmo na sua posse, que não fosse poder usá-lo como instrumento de agressão e/ou defesa, construída exclusivamente com o fim de ser utilizada como arma de agressão.
27. O arguido atuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.
Mais se apurou que:
28. Não constam averbamentos no certificado de registo criminal do arguido.
29. O arguido tem a nacionalidade brasileira e está na Ilha do … há cerca de 8 meses.
30. O arguido trabalha na gare portuária de …, no transporte de bagagens, tendo um contrato de trabalho a termo com a duração de 6 meses.
31. O arguido tem uma namorada e vive em casa arrendada, pagando 200 euros por mês.
32. O arguido tem uma filha na …, um filho no … e a restante família do arguido encontra-se no ….
33. O arguido não tem empréstimos a seu encargo.
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III. Elementos do processo que indiciam os factos
Tais factos encontram-se sustentados nos seguintes meios de prova:
1) Documental - Auto de notícia, fls. 8; - Auto de apreensão, fls. 11; - Reportagem fotográfica, fls. 24. - Auto de revista, fls. 91; - Auto de busca e apreensão, fls. 92; - Reportagem fotográfica, fls. 97.
2) Testemunhal
- EE, fls. 28 e 72;
- FF, fls. 33;
- CC, fls. 36 e 74;
- GG, fls. 40;
- BB, fls. 43;
- HH, fls.48;
- II, fls. 62;
- DD, fls. 66;
3) Certificado de registo criminal de fls. 70.
4) Os factos relativos à profissão, residência e estado civil e demais condições sociais do arguido resultou das declarações prestadas pelo mesmo em sede de interrogatório judicial.
IV. Apreciação crítica de factos controversos/Motivação
Importa ter presente que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, nos termos do artigo 127.º do Código Processo Penal.
O arguido, após consultar os autos nos termos do artigo 89.º do Código Processo Penal, decidiu prestar declarações, estando bem ciente da prova que se encontrava coligada nos autos.
O arguido, em suma, disse que à altura dos factos estava a trabalhar na Pousadinha …, quando o ofendido BB chegou ao local e estes encetaram uma conversa, por causa de fotografias enviadas pelo BB para a ex-companheira do arguido e que nessas circunstâncias o ofendido BB terá dado uma chapada na cara do arguido e terá afirmado que ia buscar um revólver.
E por esse motivo, foi à cozinha buscar a faca, porque tinha medo, e dirigiu-se para a rua, mas que foi o ofendido quem veio na sua direção e que o mesmo se tentou apenas defender, tendo apenas dado a facada na nádega e após cessou a sua conduta.
Além disso, quanto aos factos relativos à ameaça, refere que nunca proferiu a expressão acima indicada e que foi o ofendido DD quem discutiu com um amigo do arguido, GG, e que este deu uma bofetada ao último.
Por fim, disse que as armas estavam no seu carro de trabalho e que se destinavam ao trabalho, referindo ainda que faz biscates a cortar a erva.
Das declarações do arguido decorreu, em suma, que o mesmo é uma vítima das circunstâncias e que os outros é que o provocaram.
Ora, as declarações do arguido desafiam as máximas da experiência e são em tudo contrariadas pelos meios de prova carreados para os autos, nos termos que infra será assinalado, pelo que as mesmas não merecem qualquer credibilidade por parte do Tribunal.
De facto, no que tange quanto aos factos relativos à tentativa de homicídio, a prova carreada aponta no sentido de uma versão fáctica completamente distinta da narrada pelo arguido, sendo que as declarações da vítima saem corroborada pelos demais meios de prova.
De todo o modo, ainda que se admitisse a versão narrada pelo arguido, a verdade é que da mesma não resulta que efetivamente o ofendido BB estivesse munido de uma arma e, de todo o modo, se o arguido estava com medo, o comportamento mais natural seria o de encetar fuga ou procurar auxílio, recordando-se que tais factos ocorreram a escassos 40 metros da esquadra de polícia de ….
De facto, desafia as máximas da experiência comum que alguém com medo vá buscar uma faca e vá para o sítio onde sabe de antemão que está a pessoa que lhe causa esse medo.
No que diz respeito aos factos relativos à ameaça, os mesmos são contrariados pelas testemunhas II e DD, nos termos infra explicados.
Por fim, no que diz respeito aos factos relativos às armas, recorde-se que o arguido trabalha na gare portuária, no transporte de bagagens, pelo que não se vislumbra qualquer utilidade das mesmas para a sua profissão.
Acresce-se que, as mesmas não estavam no seu local de trabalho e que se encontravam no interior da viatura de forma dissimulada pelo que, nenhuma credibilidade merece a versão apresentada pelo arguido.
E iguais considerando são válidos ainda que se admita que aquando da detenção o arguido se encontrava de folga e que ia fazer um biscate de cortar a relva, dado que as aludidas armas não são idóneas a tal fito, ao que se acresce que, seguramente a entidade patronal o muniu do equipamento adequado para tal efeito.
Em face do exposto, a versão do arguido não merece qualquer credibilidade por parte deste Tribunal.
Não obstante, analisados os autos, considera-se que a prova carreada para os autos pelo Ministério Público permite a conclusão no sentido da forte indiciação dos factos.
De facto, temos as declarações da vítima BB, as quais saem corroboradas pelos demais elementos probatórios constantes nos autos, dos quais ressalta, desde logo, pelo auto de apreensão que documenta a apreensão da faca usada na prática do crime e a reportagem fotográfica de fls. 24 que documentam a existência de sangue no local bem como o sítio onde foi encontrada a faca e ainda pela demais prova testemunhal.
A vítima, em suma, esclareceu que se deu uma discussão na casa de banho, sendo que o arguido o acusava de estar a mandar fotografias suas à sua ex-companheira, ao que ameaçou a vítima de que lhe dava uma facada enquanto mantinha a sua mão atrás das costas dando a entender de que se encontrava na posse de uma faca.
Acrescentou que posteriormente, já no exterior, e enquanto falava com CC, quando o arguido surgiu pelas costas do aludido CC e lhe espetou com uma faca na sua nádega esquerda, sendo que, após tal ato o arguido retirou a faca do corpo da vítima e que lhe tentou novamente atingir, só não logrando os seus intentos porque a vítima se esquivou.
Foram ainda ouvidas as testemunhas FF e GG, agentes da PSP, os quais confirmaram o teor do auto de notícia e descreveram as diligências encetadas, relativamente aos factos relativos à tentativa de homicídio, tendo apurado que foi o arguido quem praticou os factos e ainda descreveram que o arguido se apresentava calmo e sereno, pese embora o que havia acabado de acontecer.
Além disso foram ouvidas as testemunhas EE e CC, responsáveis pelo estabelecimento comercial onde ocorreram os factos, os quais narraram as circunstâncias referentes à tentativa de homicídio, sendo que se encontravam no local em apreço e presenciariam toda a discussão e o desfecho da mesma, sendo que a EE referiu que o arguido apenas não logrou os seus intentos pelo facto de vítima se ter esquivado e pela intervenção das testemunhas HH, JJ e KK bem como que o arguido tentou atingir o tronco da vítima BB.
A testemunha CC referiu ainda que em momento anterior o arguido teria feito um “mata leão” à vítima BB, que o arguido tentou atingir o pescoço e o tronco da vítima BB e que ia trocando as mãos em que tinha a faca para tentar lograr os seus intentos, que encetou diligências para parar a agressão, que antes de se munir com a faca o arguido disse “queres ver o propósito de que vim aqui fazer” e que após os factos, o arguido estava sentado numa cadeira no exterior do café, “calmo e sereno, demonstrando um estado de espírito de quem sabia o que tinha feito”.
A testemunha HH referiu que o arguido veio em direção à vítima BB e mencionou que o matava enquanto empunhava a faca e que o atingiu no rabo e que o tentou mais vezes, mas que o ofendido se esquivou.
Já no que concerne nos factos relativos à ameaça qualificada, foram ouvidas as testemunhas II e DD, as quais narram os factos indiciados nos pontos 13 e 14, descrevendo que o arguido detinha na sua posse uma navalha enquanto dizia à vítima DD que iria acabar com a raça dele, sendo que a vítima DD estranhou a situação por não conhecer o arguido de lado nenhum.
Já no que tange quanto aos factos relativos à detenção de arma proibida, teve-se em consideração o Auto de revista, fls. 91, o Auto de busca e apreensão, fls. 92 e a Reportagem fotográfica, fls. 97, os quais documentam de forma clara a detenção por parte do arguido, no dia 27.06.2024, das armas descritas nos factos.
Os factos relativos às condições sociais e económicas decorreram das declarações do arguido.
Quanto aos antecedentes criminais, teve-se em consideração os certificados de registo criminal juntos aos autos.
Em suma, em face dos considerandos acima expendidos bem como da análise global da prova, temos que os factos se encontram fortemente indiciados.
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V. Qualificação jurídica
Mostra-se, assim, fortemente indiciada a prática pelo arguido AA, em autoria material e na forma consumada dos seguintes crimes:
- 1 (um) crime homicídio qualificado sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e) e i), do Código Penal;
- 1 (um) crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos nos termos dos artigos 153.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n. º1, alínea a), por referência aos artigos 131.º todos do Código Penal.
- 3 (três) crimes de detenção de arma proibida, p.p. nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, aliena m); 3.º, n. º2, aliena ab) e alínea g) e 86.º, n.º 1, alínea d) do Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro (RJAM).
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Nos presentes autos não se vislumbra a existência de qualquer causa que, porventura, possa isentar o arguido de responsabilidade ou que demonstre a extinção do procedimento criminal (artigo 192.º, n.º 6 do C.P.P.).
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VI. Apreciação da existência de necessidades de natureza cautelar
O recurso às medidas de coação, no âmbito do direito processual penal, obedece aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade em decorrência do princípio constitucional da presunção da inocência (cf. artigoº 32º, n.º 2 da CRP).
Daí que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função das exigências processuais de natureza cautelar – cf. Art.º 191º, n.º 1 do C.P.P..
Por outra banda, nos termos do artigo 193º do C.P.P., as medidas de coação devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
A que acrescem, cumulativamente, os requisitos enunciados nas alíneas do artigo 204.º do C.P.P., os quais devem ser verificados através de factualidade concreta resultante dos autos.
Importa, pois, fazer uma breve enunciação e explanação dos mencionados perigos constantes nas alíneas do artigo 204.º do Código Processo Penal.
A situação de fuga implica uma atualidade desta no momento da aplicação da medida de coação. Já o perigo de fuga exige um perigo concreto fundado em elementos de facto que indiciem uma probabilidade razoável de o arguido em liberdade se ausentar para parte incerta, no país ou no estrangeiro, com o propósito de se eximir à ação penal, não bastando, pois, a mera dedução desse perigo somente da gravidade da pena ou do facto de o arguido ser cidadão estrangeiro.
O perigo de fuga deve tomar em conta a gravidade das sanções criminais e civis previsíveis para os crimes imputados ao arguido e outros fatores relacionados com o caráter do arguido, a sua casa, a sua ocupação, as suas posses, os seus laços familiares e os laços que tem como o país onde é investigado.
O perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo subtrai-se em factos que indiciem o propósito do arguido de prejudicar a investigação, isto é, de prejudicar a aquisição, conservação ou veracidade da prova, perturbando-se, assim, o decurso do inquérito ou da instrução (em sentido amplo) do processo. Este perigo, mais intenso nas fases de inquérito ou instrução, carece de demonstração mediante factos concretos que indiciem a atuação previsível do arguido com esse objetivo, analisando-se a sua capacidade efetiva (um risco sério e atual) para perturbar a investigação e especialmente a recolha ou preservação da prova.
Relativamente ao perigo de continuação da atividade criminosa, este há de resultar de um juízo de plausibilidade de reiteração criminosa (um juízo de prognose de perigosidade social), apoiado na natureza e circunstâncias do crime imputado ao arguido ou na sua personalidade, e reporta-se apenas à atividade criminosa indiciada no processo, consubstanciada na prática de crimes análogos ou da mesma natureza.
Em conformidade o perigo de continuação da atividade criminosa verifica-se sempre que existam factos ou circunstâncias, que não sejam simplesmente conjeturais, donde resulte que em face da personalidade do arguidos e circunstâncias dos factos seja formulado um juízo de prognose que aponta com forte probabilidade para a prática de factos crime.
No que concerne ao perigo de perturbação grave da ordem e a tranquilidade públicas, não é suficiente o genérico e abstrato «alarme social», nem invocar de que certo tipo de crimes pode em abstrato causar a agitação pública. Assim, torna-se necessário que o arguido, em concreto, crie perigo e perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
No caso dos autos, verificam-se os perigos de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito, de perturbação de ordem e tranquilidade públicas e o perigo de fuga.
Quanto ao perigo de fuga, o arguido encontra-se há pouco tempo (8 meses) na ilha do … e não tem qualquer vínculo familiar na aludida Ilha, sendo que, a sua situação laboral é relativamente precária, tendo o mesmo apenas um contrato de trabalho a termo com a duração de 6 meses, ao que se acresce que o arguido não possui bens que o prendam na Ilha do …, o que facilitaria a desvinculação a este território em caso de fuga.
Ora, viajar para fora da Ilha do …, seja por via de transportes públicos, seja através de transporte particular, é relativamente acessível, sendo que, a mera apreensão dos documentos de identificação indispensáveis para a circulação do arguido além-fronteiras, não é isenta de alternativas ilícitas, as quais poderão frustrar o bloqueio que se pretende assegurar por forma a viabilizar a investigação e a resposta penal que o caso impõe.
De facto, os crimes indiciariamente imputados ao arguido são graves, pelo que, aliando tal circunstância às demais acima referidas, antevê-se o sério receio de, perante a perspetiva de cumprimento de uma pena de prisão, o arguido se tentar eximir à ação da justiça, ausentando-se para parte incerta (cf. artigo 204.º, al. a) do C.P.P.).
Quanto ao perigo de perturbação de ordem e tranquilidade públicas, importa ter presente que se mostra fortemente indiciada a prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, o que nos transporta imediatamente para uma muito elevada moldura penal, que pode atingir os 16 anos e 8 meses de prisão.
O crime de homicídio, escusado seria dizê-lo, provoca na comunidade um inigualável sentimento de receio, alarme e, concomitantemente, de repulsa, tornando-se, por conseguinte, absolutamente essencial que a sociedade sinta que determinados comportamentos sofrem o adequado tratamento, sobretudo quando praticados por causa de problemas e discussões absolutamente fúteis, no caso iniciadas por causa de fotografias enviadas à ex-namorada, mantendo-se assim a confiança geral no ordenamento jurídico.
Com efeito, vem-se assistindo a um crescente número de crimes de “sangue”, o que provoca na sociedade um inquietante sentimento de insegurança, sobretudo quando os ilícitos são praticados com recurso à violência e/ou ameaças sobre as pessoas, com recurso a armas.
Ademais, o concurso efetivo dos ilícitos extravasa a gravidade singular de cada um e despoleta uma alarmante preocupação.
Na verdade, a violência do golpe desferido pelo arguido com recurso a uma faca com uma lâmina de 14 cm, com que o mesmo previamente se muniu, conjugada com o comportamento posterior de completa indiferença pela vida da vítima (persistindo na sua conduta, a qual apenas não logrou por foi impedido por terceiros), evidencia inquietantes traços de uma personalidade violenta e impulsiva, os quais, fazem fundadamente temer pela perturbação grave da ordem e a tranquilidade públicas (cf. artigo 204.º, n.º 1, al. c) do C.P.P.).
Mais, urge integrar os factos indiciados na comunidade onde terão sido praticados, na Ilha do …, comummente associada a um local calmo, pacato, com uma população reduzida e onde toda a população se conhece, sem grandes exceções.
Ademais, considerando a elevada probabilidade de continuação da atividade criminosa, a comunidade, com elevada probabilidade, continuará a sentir-se inquieta e insegura perante a presença do arguido.
Acresce-se que, as vítimas de tais crimes se sentem, por certo, inseguras e perturbadas com a liberdade do arguido e com a possibilidade de o mesmo pôr termo à conduta que iniciou e que apenas não logrou concluir por motivos alheios à sua vontade.
Pelo que, a factualidade até agora colidida na investigação instala um sentimento de insegurança neste território.
Quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa, importa ter presente que o facto de o arguido se ter munido em momento anterior de uma faca com uma lâmina de 14 cm e de só não ter logrado o seu intento, pese embora os seus expressivos intentos, pelo facto de ter sido impedido por terceiros.
De facto, não pode deixar de impressionar é a facilidade e a frieza de ânimo com que o arguido atuou, exibindo um total desprezo pela vida humana, demonstrando, por conseguinte, um comportamento notoriamente violento, merecedor de veemente censura e que carece, bem se vê, de medidas suficientemente fortes que impeçam o mesmo de prosseguir os seus intentos.
A personalidade manifestamente violenta do arguido, demonstrada nos factos em apreço, faz antever um sério perigo de o arguido atentar contra a vida de outras pessoas, com quem porventura mantenha alguma discussão.
Ademais, o arguido, já após a prática do crime de homicídio na forma tentada, em vez de esfriar os seus ânimos e refletir sobre o que fez, encetou novas condutas, volvidos sensivelmente dois meses, mormente, ameaçando uma outra vítima munido novamente de uma arma (navalha), o que nos reconduz à conclusão que não estamos perante uma situação isolada, mas antes perante uma clara tendência criminosa que apenas cessará com a intervenção do Tribunal.
E a tal acresce-se que, já em momento posterior à ameaça, o arguido, aquando da detenção, fazia-se acompanhar de um pequeno arsenal de armas, o que é demonstrativo de uma personalidade extremamente violenta que não hesitará, à mínima ocasião, de voltar a praticar factos tais como os que agora lhe são imputados.
Ademais, das declarações do arguido decorreu, em suma, que o mesmo é uma vítima das circunstâncias e que os outros é que o provocaram, o que é demonstrativo de uma qualquer falta de arrependimento ou de reflexão sobre as condutas que encetou, o que apenas permite perspetivar que arguido poderá reiterar nas suas condutas criminosas.
Em suma, atentas as circunstâncias em que o crime foi praticado e a personalidade deveras desvaliosa do arguido, tudo aponta para a possibilidade de existir um risco sério de o arguido reiterar na conduta criminosa.
Por fim, quanto ao perigo de perturbação do inquérito, verifica-se ainda perigo para a aquisição e conservação da prova, já que em face da personalidade violenta adotada pelo arguido na prática dos factos, existe sério risco de o mesmo vir a condicionar a versão de algumas testemunhas dos presentes autos, sobretudo dos dois ofendidos.
Na verdade, é de facto de recear, face à personalidade temerária do arguido que este procure condicionar os depoimentos da vítima e das testemunhas, através da intimidação, como ademais, já resulta espelhado dos autos, que o arguido tem um amplo à vontade em intimidar pessoas, em face da imputação do crime de ameaça.
E o que se disse, em nada fica prejudicado pelo facto de as testemunhas já terem sido ouvidas, na medida em que, importa conservar a prova, entretanto já produzida e obstar a que as testemunhas, condicionadas para tal, venham a alterar o seu depoimento em julgamento.
Verificando-se, em concreto, estes perigos, importa então aplicar ao arguido a medida ou medidas que, conjuntamente, sejam as necessárias e adequadas a remover esses mesmos perigos e, simultaneamente, sejam proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
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VII. Escolha da MC/ Juízo concreto da necessidade e adequação das medidas de coação (artigos 193.º, n.º 1 a 3, 204.º, 194.º, n.º 6 al. d), do C.P.P.)
À aplicação de uma medida de coação devem presidir os critérios da necessidade, proporcionalidade e subsidiariedade, a que alude o artigo 193.º do C.P.P., sendo que este normativo nada mais é do que uma manifestação das exigências constitucionais que se encontram nos artigos 18.º, 27.º, n.º 3 e 28.º da Constituição da República Portuguesa.
Se é certo que a aplicação de uma medida de coação acarreta sacríficos à pessoa do arguido, não é menos verdade que no outro lado da balança encontram-se as necessidades atinentes à realização da justiça.
Cumpre então indagar, em face dos referidos princípios e das necessidades cautelares identificadas, qual a medida(s) de coação que deve(m) ser aplicada(s) para além do já prestado TIR.
No âmbito dos presentes autos, mostra-se fortemente indiciada a prática por parte do arguido de um crime de homicídio na forma tentada e de um crime de ameaça agravada
Por outro lado, importa ter presentes a gravidade dos factos indiciados bem como os perigos que se fazem sentir nos presentes autos, os quais reivindicam exigências cautelares acentuadas
Numa sociedade cada vez mais global, dificilmente os cidadãos em geral compreenderão e aceitarão – e, por isso, dificilmente será compatível com a preservação da ordem e tranquilidade públicas, enfim, com a paz social – que atenta a natureza, gravidade, circunstâncias dos crimes e personalidade demonstrada pelo arguido ao praticar os mesmos (nas circunstâncias conhecidas em que o praticou), este não fosse sujeito à medida de coação detentiva.
O tribunal tem presente que, nos termos do n.º 3 do artigo 193.º do Código de Processo Penal, quando couber ao caso medida de coação privativa da liberdade, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
O arguido, já se disse, exibiu um comportamento que merece veemente censura, sendo que as exigências acima mencionadas não se compaginam com a aplicação da vulgarmente denominada “prisão domiciliária”.
De facto, a obrigação de permanência na habitação é importante para sinalizar quando ocorre a saída não autorizada da residência, mas já se revela ineficaz para lhe fazer face já que só uma barreira física intransponível se mostra adequada nesse sentido.
Quanto ao perigo de perturbação do inquérito, esta medida de OPH-VE é insuficiente já que permite, nos termos suprarreferidos, juntamente com terceiros, possa congeminar e levar a cabo o condicionamento da própria versão das vítimas, sobretudo tendo em conta o tipo de violência levado a cabo nos autos.
Ademais, a obrigação de permanência na habitação não é suficiente para afastar o perigo de continuação da atividade criminosa, dado que, nada nos garante que o arguido, movido por sentimentos de perseguição, ódio e vingança, não se ausente da sua residência e não termine o que projetou na sua cabeça, existindo necessidade de transmitir segurança à população em geral e de suster este tipo de criminalidade, dissuadindo tais comportamentos antissociais.
Por fim, as exigências cautelares do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, não podem ser satisfeitas com tal medida, já que a comunidade sente, em face da gravidade dos factos e modo da sua execução, que a mesma não satisfaz os seus sentimentos de pacificação e de segurança, em especial, quando considerado a séria probabilidade de reiteração da conduta criminosa e a insegurança causada nas vítimas.
De facto, nem a sociedade nem as vítimas ficariam apaziguadas no seu sentimento de segurança, ante a elevada possibilidade de o arguido permanecer na sua habitação e sair da mesma e continuar a praticar novas condutas criminosas.
Em suma, só a medida de prisão preventiva, apesar de subsidiária, permite satisfazer as referidas medidas cautelares, sendo necessária e proporcional à gravidade dos crimes imputados e à sanção que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido em julgamento, que com forte probabilidade é a de prisão efetiva.
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VIII. Decisão
Por tudo e em face do exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 192º, 193º, 195º, 204º, a), b) e c) e 202.º, todos do Código de Processo Penal, determina-se que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coação:
- Obrigações decorrentes do TIR já prestado nos autos.
- Prisão preventiva.
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Passe mandados de condução a estabelecimento prisional.
Notifique, dando cumprimento ao disposto no artigo 194.º n.º 10 do C.P.P..
Comunique ao Tribunal de Execução de Penas.
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3. APRECIANDO
Para aferir o mérito do recurso, importa atentar no teor dos factos e dos crimes que foram declarados fortemente indiciados.
O despacho de aplicação de uma medida de coação, – à exceção de termo de identidade e residência - sendo um despacho judicial decisório, tem de ser sempre fundamentado, em cumprimento do disposto no artigo 97.º nº 5 do Código de Processo Penal, com o conteúdo específico exigido nas várias alíneas do nº 6 do artigo 194º do mesmo texto legal. Esta obrigatoriedade de fundamentação dos atos decisórios constitui, aliás, uma garantia judiciária de relevância constitucional (artigo 205º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
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O recurso foi interposto do despacho judicial de 27.06. 2024, que, após primeiro interrogatório judicial de arguido detido, aplicou ao recorrente, sob promoção do Ministério Público, a medida de coação de prisão preventivo, pelo que, o recurso de tal decisão, estará por natureza e definição, circunscrito à prova que foi carreada para os autos até ao momento da sua prolação.
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Cotejado o despacho recorrido neste se aplicou ao recorrente, a medida de coação de prisão preventiva, ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 192º, 193º, 195º, 204º, a), b) e c) e 202.º, todos do Código de Processo Penal, por se revelaram fortemente indiciados a prática pelo recorrente AA, em autoria material e na forma consumada dos seguintes crimes:
- 1 (um) crime homicídio qualificado sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e) e i), do Código Penal;
- 1 (um) crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos nos termos dos artigos 153.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n. º1, alínea a), por referência aos artigos 131.º todos do Código Penal.
- 3 (três) crimes de detenção de arma proibida, p.p. nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, aliena m); 3.º, n.º 2, aliena ab) e alínea g) e 86.º, n.º 1, alínea d) do Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro (RJAM).
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O recorrente insurge-se contra a indiciação apurada pelo Juiz de Instrução em face da valoração, por este feita, da prova existente no processo até ao primeiro interrogatório judicial, na sequência do que, discorda da qualificação jurídica dos factos, alegando que, na correta valoração dos factos, - que não indica quais deviam ter sido, - o despacho não deveria ir além, da indiciação do arguido, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensas à integridade física simples, prevista e punida pelo artigo 143º, do Código Penal.
Em face da argumentação apresentada, e depois de nos termos inteirado de toda a prova, que esteve na base do despacho recorrido, temos que assinalar que:
- primeiro e antes de mais as testemunhas que sustentam os fortes indícios dos crimes imputados ao arguido, ora são ofendidos ora testemunhas, presenciais dos factos, que têm capacidade para depor, foram advertidas dos seus direitos e deveres bem assim como foram sindicadas as relações com o arguido e com a vítima, que, de algum modo, fossem adequadas a influenciar o desfecho da causa, (cf. art.º 131º a 132º e 134º, todos do C.P.P.).
Ora, no que a este último aspeto respeita, cumpre assinalar, que ao contrário do que o recorrente sugere, enquanto o arguido era já conhecido, cliente e companheiro da empregada dos donos do café …, testemunhas presenciais dos factos, o ofendido foi a segunda vez que ali se deslocou, como cliente, não se evidenciando que haja por parte das testemunhas, qualquer manifestação de desfavor do arguido, por ser um cidadão estrangeiro, brasileiro, em detrimento de um cidadão local, toxicodependente, como o arguido não deixa de assinalar.
Por isso, não se evidencia por parte das testemunhas, qualquer interesse em prejudicar o arguido, pelo contrário, mostrando-se infirmada a argumentação do recorrente.
Segundo, o despacho recorrido levou em consideração o local dos factos, a situação da vítima e o motivo que esteve na origem do desaguisado, cuja crítica por parte do arguido se apresenta a desproposito, até porque, ele próprio o indica e que não se revela controvertido.
De facto, o conteúdo das fotografias e das mensagens não suscitam qualquer dúvida, o próprio arguido as esclarece. São fotografias do arguido a trabalhar na ilha do ….
E a explicação para abordagem do arguido ao ofendido, BB, radica na alegada circunstância de o ofendido ter dado notícias à ex-companheira do arguido, que ficou com uma filha dele em França, a respeito da localização dele e de como estava a trabalhar, depois de o arguido os ter abandonado, querendo aquela demandá-lo por dividas de alimentos à menor, a que o arguido se quer furtar.
O arguido age com a convicção de que o ofendido, a quem a ex-companheira dele pediu amizade, é a pessoa que o fotografa a trabalhar e dá informação a respeito da sua localização, e por isso o interpela para tirar satisfações, não se satisfazendo com a negação do ofendido de não ser quem está a veicular a informação.
A interpelação foi iniciada pelo arguido, bem assim como as ameaças dentro do café, e que gerou resposta, levando a agressões, reciprocas, mas onde o arguido leva a melhor fazendo ao ofendido um “mata-leão” “não apresentando o ofendido boas cores” quando chegaram para desapartar, - evidenciando-se, assim, naquele momento, que o arguido não tinha qualquer faca na mão- e que determinou a separação de ambos, por testemunhas e o encaminhamento dos contendores para o exterior do estabelecimento comercial.
A altercação continuou, no exterior do café, onde houve troca de acusações e onde o dono do café, tentou a via do dialogo com o ofendido e as pessoas que o acompanhavam que tinha pela sua frente, enquanto o arguido ficou pelas suas costas, mais próximo do estabelecimento, visando assim acalmar a situação e por isso, todos, ficaram em desatenção ao arguido.
Ora, é enquanto a via do diálogo está em curso que, sem que nada o fizesse, o arguido aproveita a desatenção sobre a sua pessoa e vai buscar uma faca à cozinha do café. O arguido, munido de uma faca, vem por trás do dono do café, (que dialogava com o ofendido e seus acompanhantes, para que mantivessem a calma) a quem passa, apressado, e dirige, ao corpo do ofendido, movimentos bruscos, com a faca, com o sentido de o atingir, no pescoço e tronco, o que repetiu por várias vezes, chegando-o a atingi-lo, numa nádega, ficando o sangue no chão.
O dono do café interveio chamando o arguido á razão, pois a intenção do arguido era de o matar, o ofendido, o que o arguido vociferava e só depois de parar é que o ofendido e acompanhantes se ausentaram num automóvel.
Ora, toda a concretização factual revela-se corretamente surpreendida na indiciação dos factos assentes, resultando de mediana clareza, que quem se comporta com a intensidade, a movimentação descrita nos factos 9 a 20, a violência, surpreendidas, anunciado uma intencionalidade de morte, e fazendo uso de um instrumento letal - uma faca de cozinha com pelo menos 14 cm de lâmina- dirigida a zonas vitais do corpo do ofendido, pescoço e tronco, e que ainda assim atingiu numa nádega, do ofendido, age com a intenção de matar, ainda que não tenha logrado alcançar tal resultado, por se ter visto impedido na execução do seu desiderato, o que quis.
Tais factos, não estão contraditados por outros, na medida em que por um lado, o conteúdo das mensagens, nunca foi controvertido, por um lado o arguido agiu de forma traiçoeira.
De facto, não preside à atuação do arguido uma intenção de ofensa à integridade física, não sendo de avaliar o resultado para assumir a intenção, pois esta foi vocalizada pelo arguido e expressa nos gestos dirigidos a zonas vitais do corpo do ofendido, não sendo qualquer demonstração de que não tinha medo dele, nem de defesa, inexistindo moderação. Foi aos grito de “eu te mato” que o arguido atuou, desferindo os golpes na direção do pescoço e tronco do ofendido, adequados a produzir o resultado morte, atenta a letalidade da faca empunhada, e a movimentação realizada, que não logrou atingir, por se ter visto impedido, logrando apenas atingir o ofendido numa nádega, indícios adequados a de preencher o crime de homicídio, tentado, p. e p. pelo artigo 131º, 22º, e 23º todos do Código Penal.
A motivação do agente, para tentar matar o ofendido é a de este ter dado a sua localização e informação de estar a trabalhar, à ex-companheira, que abandonou com a sua filha, em França, e a quem não quer pagar a pensão de alimentos. Ora esta é uma razão que não constitui motivo para a prática do crime de homicídio (ainda que nenhuma seja), a motivação do arguido é imoral, vergonhosa, desprezível, é torpe, os filhos não pediram para vir ao mundo, continuam a ser nossos, bem como as obrigações perante eles, de garantir a sua sobrevivência e subsistência, pelo que, revela especial censurabilidade o comportamento revelado pelo arguido subsumível ao homicídio qualificado, tentado, nºs 1, 2 al e) 132º, 22º, e 23º todos do Código Penal.
Por sua vez a forma de atuação do arguido que se indicia, de ter aproveitado um momento em que o dono do café acalmava a situação, falava com o ofendido e seus acompanhantes chamando-os à razão, (até por estarem em superioridade numérica, depois de alertados para as agressões no interior do café, que se localizaram junto das casas de banho) e o arguido aproveitando não ter a atenção para si dirigida, foi à cozinha munir-se de uma faca de 14 cm de lâmina, e de forma traiçoeira, -pois surge por trás do dono do café com a faca, sem que nada naquele momento o fizesse prever, - dirige vários golpes com a faca, em direção do tronco e pescoço da vítima, vociferando querê-lo matar e a quem chega a atingir com golpe numa nádega, não logrando atingir o seu desiderato, de lhe tirar a vida por motivos alheios à sua vontade, como se revela vertido na indiciação,
Assim, o arguido, sem que fosse esperado aproveitando a tentativa de pacificação da situação, pelo dono do café, e desprezando a circunstância de o ofendido até estar acompanhado, e sem que ninguém naquela altura estivesse à espera, foi munir-se da faca e veio pela costas do dono do café, que o encobria, tentar matar a vítima, o que é revelador de particular intensidade criminosa, censurabilidade e perversidade, pelo que o comportamento indiciariamente revelado pelo arguido, é subsumível ao homicídio qualificado, nºs 1, 2 al i) 22º, e 23º todos do Código Penal.
O meio usado pelo arguido é adequado, atentas as suas caraterísticas para causar a morte.
O arguido ficou no local, por ser ali que a companheira, à data, trabalhava tendo até pedido que a dispensassem para ambos dali se ausentarem, revelando grande frieza e presença de espirito para a narrativa que logo ali arquitetou, quando foi abordado pela policia, pois já não estava no local a vítima.
A versão do arguido a respeito da totalidade dos factos que estão indiciados foi apreciada criticamente pelo Tribunal “a quo”, sem reparo em relação à factualidade imputada.
Em face do exposto, não merecem reparo nem a indiciação, particularmente os mencionados factos 19 e 20, nem a qualificação jurídica dos factos, com base nos indícios que sustentaram o despacho recorrido, não merecendo acolhimento a argumentação do recorrente.
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3.2. Ainda assim, sustenta o recorrente que, a medida de coação imposta, de prisão preventiva, não respeita os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
Enquanto medida restritiva de direitos, liberdades e garantias do cidadão, qualquer medida de coação terá de ter consagração legal, obedecendo ao princípio da legalidade ou da tipicidade (artigos 18º, nºs 2 e 3, 27º e 28º, da Constituição da República Portuguesa, (daqui em diante C.R.P) 61º, nº 3, e 191º, nº1, do Código de Processo Penal, daqui em diante C.P.P).
A aplicação das medidas de coação está subordinada à verificação de exigências processuais de natureza cautelar, no processo, fundamento de legitimação da restrição daqueles direitos, liberdades e garantias (vide artigos 27º, nº1, e 18º, nº2, da CRP e 191º, nº1, primeira parte, e 193º, nº1, primeira parte, do C.P.P.) – nisto consiste o princípio da necessidade, (indispensabilidade da medida ou subsidiariedade) manifestação do principio da proporcionalidade que determina que seja selecionada a medida de coação, menos restritiva dos direitos liberdades e garantias, se com ela se alcançam os fins visados, pelo que, as medidas estão escalonadas num grau crescente de gravidade, segundo o grau de restrição de direitos liberdades e garantias, vide art.º 196 a 202, do C.P.P..
Ao mesmo passo impõe-se que tais exigências cautelares resultem da concreta verificação dos perigos previsto no artigo 204º, do Código de Processo Penal, as quais têm que ser entendidas, pelo aplicador, em função das finalidades do processo penal, as quais sejam: a realização da justiça, o bom andamento do processo, o efeito útil da decisão, a descoberta da verdade material e o restabelecimento da paz jurídica comunitária, mas não tendo qualquer outra finalidade de natureza substitutiva, retributiva, preventiva ou protetiva. A não ser assim, não se revelaria compreensível, para a comunidade, poder um cidadão, possivelmente inocente, sofrer tal restrição nos seus direitos e liberdades (emanação do princípio da presunção da inocência artigo 32º, da C.R.P).
O princípio da presunção de inocência reflete-se, contudo, na ponderação da medida de coação na estrita medida em que a limitação ou privação da liberdade do arguido está vinculada à exigência de que só lhe sejam aplicadas aquelas medidas que, em concreto, se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente
A medida de coação a aplicar, em concreto, terá de ser adequada (idónea) às referidas exigências processuais de natureza cautelar – princípio da adequação, para atingir os fins visados, e que mais não é, do que, uma manifestação do princípio da proporcionalidade em sentido amplo (cf. artigos 193º, nº 2, 201º, nº 1, e 202º, nº 1, do C.P.P.).
Por fim, o princípio da proporcionalidade, em sentido restrito, ou de proibição de excesso, com autonomia dogmática e consagração legal expressa, no art.º 193º, nº 1, parte final, do C.P.P., estabelece a regra de proporcionalidade da medida de coação à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (princípio que em relação à prisão preventiva, tem matriz constitucional expressa no artigo 27º, nº 3, alínea b), da C.R.P).
Ora, é com fundamento no citado princípio, que o legislador ordinário condicionou a aplicação das medidas de coação mais restritivas dos direitos e liberdades do cidadão à existência de fortes indícios da prática de crime doloso (vide artigos 200º, 201º e 202º do C.P.P.) e da gravidade da pena aplicável ao crime (artigo 195º do C.P.P.).
Por fim, as medidas de coação mais gravosas (a obrigação de permanência na habitação e a prisão preventiva) só podem ser aplicadas quando as restantes se revelem, concretamente, inadequadas ou insuficientes – esta regra representa o princípio da subsidiariedade das medidas coativas privativas da liberdade (cf. artigo 28º, nº2, da Constituição da República Portuguesa e artigos 193º, nº 2, 201º, nº 1, e 202º, nº 2, do Código de Processo Penal). A subsidiariedade da prisão preventiva encontra-se, ainda, duplamente exigente, uma vez que na hipótese de aplicação de uma medida de coação privativa da liberdade deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação – artigo 193º, nº3, do C.P.P..
Revisitando a situação que nos ocupa, e em face da confirmação da indiciação e da qualificação jurídica dos factos, verificamos estar o arguido indiciado por crime que admite a aplicação de medida de coação privativa da liberdade, desde logo por crime de homicídio qualificado, tentado, previsto e punido pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, al. e) e i) 22º, 23º, 73º, todos do Código Penal punir a conduta com pena de prisão, de 2 anos 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses, pelo que, será de averiguar se, em concreto, se verificam alguns dos perigos, de natureza cautelar, a que alude o artigo 204º, nas suas alíneas a) a c) do C.P.P.
Resulta do artigo 204º, do Código Processo Penal, a necessidade de ocorrência de, pelo menos, uma das circunstâncias previstas neste preceito legal, para que a medida de coação, no caso em apreço, da prisão preventiva, possa ser imposta. Não são, pois, cumulativos os requisitos previstos no preceito.
No caso, o despacho recorrido fundamentou a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, no perigo de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito, de perturbação de ordem e tranquilidade públicas e perigo de fuga.
No que respeita à alínea a) do artigo 204º, do C.P.P. a norma em apreço não prevê, apenas, situação de fuga, o que implica atualidade da fuga, no momento da aplicação da medida de coação, -aqui o arguido já anteriormente se furtou à ação da justiça e veio a ser detido, - como ainda no perigo de tal fuga, que sendo uma intenção de fuga, está guardada no intimo do arguido, sendo os preparativos da mesma secretos, para ter sucesso.
Isto é dizer que, no que respeita ao perigo de fuga, ainda que se exija que o mesmo seja concreto e fundado em elementos de facto, que indiciem uma probabilidade, razoável, de o arguido em liberdade se ausentar para parte incerta, no país ou no estrangeiro, com o propósito de se eximir à ação da justiça penal, - não bastando a dedução de tal perigo apenas da gravidade da pena ou de o arguido ser cidadão estrangeiro, - ainda assim, não são exigidos atos de execução da concreta fuga, estando em causa um juízo de prognose.
No apuramento do perigo de fuga haverá de ser tomado em conta a gravidade das sanções criminais e civis previsíveis para os crimes imputados ao arguido, e outros fatores relativos à sua personalidade e caráter, desde logo a previsibilidade da capacidade de aquele, concreto cidadão manter, ou não, uma conduta que não colida com a eventual necessidade de lhe ser aplicada, em momento ulterior, pena ou medida de coação privativa da liberdade.
Assim, resulta que o perigo de fuga, concreto, é sempre o resultado da avaliação de uma realidade hipotética, configurável a partir das manifestações e/ou dados de facto, que se puderam colher, relativos à personalidade do arguido, a que acrescem dados do senso comum, sobre qual o comportamento esperado de uma pessoa com aquelas precisas características, colocada naquela precisa situação. Trata-se de um juízo de valor que se deve buscar no senso comum, sem sobrevalorizar os perigos, mas também sem os ignorar ou desvalorizar.
O perigo «deve ser real e iminente, não meramente hipotético, virtual ou longínquo, e resultar da ponderação de fatores vários, como sejam “toda a factualidade conhecida no processo e a sua gravidade”, bem como quaisquer outros, como “a idade, saúde, situação económica, profissional e civil do arguido, bem como a sua inserção no contexto social e familiar (Cf. Frederico Isasca, em «A Prisão Preventiva», Jornadas de Direito Processo Penal e Direitos Fundamentais, pág. 109, Almedina).
Revisitando a concreta situação, o arguido está indiciado pela prática, entre outros, de um crime de homicídio qualificado na forma tentada punido com pena de prisão de 2 anos 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses, abandonou a sua filha, com a ex-companheira em França, não querendo ser localizado para não pagar pensão de alimentos, à própria filha, (motivo da quezília é a sua localização) tem outra família no Brasil, e como se assinala da decisão recorrida “o arguido encontra-se há pouco tempo (8 meses) na ilha do … e não tem qualquer vínculo familiar na aludida Ilha, sendo que, a sua situação laboral é relativamente precária, tendo o mesmo apenas um contrato de trabalho, a termo, com a duração de 6 meses, ao que se acresce que o arguido não possui bens que o prendam na Ilha do …, o que facilitaria a desvinculação a este território em caso de fuga. Ora, viajar para fora da Ilha do …, seja por via de transportes públicos, seja através de transporte particular, é relativamente acessível, sendo que, a mera apreensão dos documentos de identificação indispensáveis para a circulação do arguido além-fronteiras,(…), as quais poderão frustrar o bloqueio que se pretende assegurar por forma a viabilizar a investigação e a resposta penal que o caso impõe. De facto, os crimes indiciariamente imputados ao arguido são graves, pelo que, aliando tal circunstância às demais acima referidas, antevê-se o sério receio de, perante a perspetiva de cumprimento de uma pena de prisão, o arguido se tentar eximir à ação da justiça, ausentando-se para parte incerta (cf. artigo 204.º, al. a) do C.P.P.).
Em suma, se o arguido se ausentou de França, por causa de dividas relativas a pensão de alimentos a uma filha e não quer ser localizado, não desfruta de enraizamento social forte, na ilha do …, a sua ocupação laboral é precária, não se lhe conhece qualquer vínculo “forte e estável” de outra ordem à comunidade, a que acresce a sua mais do que demonstrada impulsividade e violenta personalidade, revela-se fortemente indiciada e evidente a sua predisposição para uma “mudança radical de lugar de vida”. De facto, em face da indiciação e qualificação jurídica dos factos, que foram comunicados ao arguido, resulta de mediana clareza que, atenta a personalidade revelada pelo arguido, que este se abandonou a filha com a ex-companheira em França, para não pagar pensão de alimentos, com muita mais facilidade se furtará à ação da justiça, perante a forte possibilidade de vir a cumprir uma pena de prisão, não sendo despicienda a sua condição de emigrante, bem assim como de se reputar como uma vítima das circunstâncias e que os outros é que o provocam, motivos que são móbeis mais do que suficientes para motivar um intenso desejo de fuga, de regresso a França ou até para o Brasil, segundo os critérios da normalidade e do senso comum e que não se compadecem com a obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica ou com a aplicação de uma qualquer outra medida de coação à qual facilmente de furtaria. Esta última medida exige que haja uma relação mínima de confiança no seu cumprimento, revelada pela personalidade do agente, pois que ele, em bom rigor, está dependente da sua vontade.
Funda ainda a decisão recorrida no perigo de perturbação do inquérito, al. b) do artigo 204º, do C.P.P.
No que respeita ao perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova.
Este perigo de perturbação diz respeito às fontes probatórias que já se encontram nos autos ou que possam vir a ser obtidas e consiste no risco, sério e atual, de perturbação de testemunhas por parte do arguido.
Este evidencia-se em factos, que indiciem o propósito do arguido de prejudicar a investigação, isto é, de prejudicar a aquisição, conservação ou veracidade da prova, perturbando-se, assim, o decurso do inquérito ou da instrução (em sentido amplo) do processo.
Pela sua natureza este perigo, é mais intenso nas fases de inquérito ou instrução, e carece de demonstração mediante factos concretos, que indiciem a atuação previsível do arguido com esse objetivo, analisando-se a sua capacidade efetiva (um risco sério e atual) para perturbar a investigação e especialmente a recolha ou preservação da prova.
Ora, atentos os elementos carreados para os autos, até à data da prolação do despacho sob censura, e tendo decorrido dois meses, o arguido não tinha atuado na vertente de condicionar as testemunhas.
Todavia, a verdade é que, o arguido desconhecia as diligencia investigatórias em curso e a recolha da prova efetuada, não tendo, até à sua detenção, sentido o risco sério de aplicação de penas duras, já que só a partir de então passou a sentir, a eminência de tal risco. Por outro lado, quem faz, o que se indicia ter o arguido feito ao ofendido, - uma tentativa homicídio qualificado, só por o ofendido ter dado a sua localização, a trabalhar, à sua ex-companheira, por causa de dividas de alimentos, a uma filha, - não se coibirá, de abordar quem o acusa da prática daquele crime, para condicionar os seus depoimentos, risco que é mais do que previsível se o arguido não estiver preso, -sobretudo das testemunhas presenciais e ofendido, - pelo que, se afigura que o risco que se revela, em face da personalidade, violenta, do arguido, é no sentido de uma atuação perturbadora da prova em inquérito, que é necessariamente sério e carente de tutela efetiva.
Por seu turno a respeito do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, ( artigo 204º, nº 1 c) e como refere Vítor Sequinho dos Santos, Medidas de Coação, Revista do CEJ, 1º semestre de 2008, nº 9 Especial, pág. 131, “mesmo anteriormente à Lei nº 48/2007, o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devia ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reação que o mesmo pudesse gerar na comunidade”. A nova redação da al. c) do art.º 204º veio afastar qualquer possível dúvida sobre este aspeto, apontando claramente no sentido que já antes era correto. Ou seja, exige-se que “haja perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devido a um previsível comportamento futuro do arguido.”
Como se refere no Ac. do Tribunal de Relação de Évora de 23/11/2023, processo nº 96/20.9, GFELV- A.E1 “O perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas deverá sustentar-se em factos dos quais seja possível inferir que a permanência do arguido em liberdade é potencialmente geradora de tal perturbação e deverá reportar-se ao previsível comportamento do arguido no futuro imediato e não ao crime por ele indiciariamente cometido, nem à reação que possa gerar-se na comunidade”.
Este perigo tem por reporte para um juízo de probabilidade, séria, de que a não sujeição do arguido, a medidas de coação suficientes e adequadas para sustar a possibilidade de voltar a cometer crimes da mesma natureza, cause inquietude, séria, aos cidadãos, perspetivados enquanto titulares do direito à segurança, necessariamente tutelado pelo Estado por via dos Tribunais. Não se trata da antecipação dos efeitos de prevenção geral das penas, mas de prevenir o efeito de insegurança e descrédito no funcionamento da justiça, enquanto persistem indícios fortes da prática de um crime, normalmente violento ou com contornos socialmente especialmente intoleráveis. A própria norma refere que os parâmetros a analisar se reconduzem à natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido.
Ora, na situação que nos ocupa e não obstante a gravidade dos factos indiciados, não se evidencia a concreta possibilidade de o arguido vir a assumir comportamentos contra a ordem ou tranquilidade públicas.
No que respeita ao perigo de continuação da atividade criminosa, que há-de resultar de um juízo de plausibilidade de reiteração criminosa (juízo este de perigosidade social) apoiado na natureza e circunstâncias do crime imputado ao arguido e da sua personalidade, e reportando-se apenas à atividade criminosa indiciada no processo, consubstanciada na prática de crimes análogos ou da mesma natureza. Nos termos do artigo 204.º, alínea c), do C.P.P., este decorrerá da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, sendo certo que a medida de coação não se destina a acautelar a prática de qualquer crime, mas apenas a continuação da atividade criminosa que se mostra indiciada no processo, o que se verificará com a execução do mesmo ilícito e bem assim com outros análogos ou da mesma natureza.
O perigo de continuação de atividade criminosa verifica-se sempre que existam factos ou circunstâncias, que não sejam simplesmente conjeturais, donde resulte que em face da personalidade do arguido e das circunstâncias dos factos seja formulado um juízo de prognose que aponte com forte probabilidade para a prática de factos crime.
O perigo de continuação da atividade criminosa não se analisa apenas em relação à vítima do homicídio, qualificado, tentado, mas também em relação a outras vítimas que entrem em desaguisado com o arguido.
A este respeito assinalou-se na decisão recorrida que “importa ter presente que o facto de o arguido se ter munido em momento anterior de uma faca com uma lâmina de 14 cm e de só não ter logrado o seu intento, pese embora os seus expressivos intentos, pelo facto de ter sido impedido por terceiros. De facto, não pode deixar de impressionar é a facilidade e a frieza de ânimo com que o arguido atuou, exibindo um total desprezo pela vida humana, demonstrando, por conseguinte, um comportamento notoriamente violento, merecedor de veemente censura e que carece, bem se vê, de medidas suficientemente fortes que impeçam o mesmo de prosseguir os seus intentos. A personalidade manifestamente violenta do arguido, demonstrada nos factos em apreço, faz antever um sério perigo de o arguido atentar contra a vida de outras pessoas, com quem porventura mantenha alguma discussão. Ademais, o arguido, já após a prática do crime de homicídio na forma tentada, em vez de esfriar os seus ânimos e refletir sobre o que fez, encetou novas condutas, volvidos sensivelmente dois meses, mormente, ameaçando uma outra vítima munido novamente de uma arma (navalha), o que nos reconduz à conclusão que não estamos perante uma situação isolada, mas antes perante uma clara tendência criminosa que apenas cessará com a intervenção do Tribunal. E a tal acresce-se que, já em momento posterior à ameaça, o arguido, aquando da detenção, fazia-se acompanhar de um pequeno arsenal de armas, o que é demonstrativo de uma personalidade extremamente violenta que não hesitará, à mínima ocasião, de voltar a praticar factos tais como os que agora lhe são imputados. Ademais, das declarações do arguido decorreu, em suma, que o mesmo é uma vítima das circunstâncias e que os outros é que o provocaram, o que é demonstrativo de uma qualquer falta de arrependimento ou de reflexão sobre as condutas que encetou, o que apenas permite perspetivar que arguido poderá reiterar nas suas condutas criminosas. Em suma, atentas as circunstâncias em que o crime foi praticado e a personalidade deveras desvaliosa do arguido, tudo aponta para a possibilidade de existir um risco sério de o arguido reiterar na conduta criminosa”
Em face do que há que concluir que, perante a natureza e circunstâncias da conduta delituosa indiciada e a personalidade do arguido, não se pode fundadamente deixar de temer que este venha a prosseguir a sua atividade ilícita, não obstante tenha sido instaurado o presente processo e caso fique sujeito a uma medida não detentiva.
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3.3 Da substituição da prisão preventiva por obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (OPHVE) ou qualquer outra medida de coação.
Importa sublinhar, uma vez que se discute o decretamento da prisão preventiva, que rege nesta sede o princípio da subsidiariedade, ou seja, de acordo com o art.º 193.º, n.º 2: “… só pode [ ] ser aplicada[ ] quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação”).
A resposta à questão em causa determina que se proceda a um juízo de reponderação sobre o perigo (pericula libertatis) que, em concreto, justificou a decisão de aplicação da medida de prisão preventiva.
Na decisão recorrida afirmou-se o seguinte, quanto a esta questão “No âmbito dos presentes autos, mostra-se fortemente indiciada a prática por parte do arguido de um crime de homicídio na forma tentada (…).
Por outro lado, importa ter presentes a gravidade dos factos indiciados bem como os perigos que se fazem sentir nos presentes autos, os quais reivindicam exigências cautelares acentuadas.(…)
O tribunal tem presente que, nos termos do n.º 3 do artigo 193.º do Código de Processo Penal, quando couber ao caso medida de coação privativa da liberdade, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
O arguido, já se disse, exibiu um comportamento que merece veemente censura, sendo que as exigências acima mencionadas não se compaginam com a aplicação da vulgarmente denominada “prisão domiciliária”.
De facto, a obrigação de permanência na habitação é importante para sinalizar quando ocorre a saída não autorizada da residência, mas já se revela ineficaz para lhe fazer face já que só uma barreira física intransponível se mostra adequada nesse sentido.
Quanto ao perigo de perturbação do inquérito, esta medida de OPH-VE é insuficiente já que permite, nos termos suprarreferidos, juntamente com terceiros, possa congeminar e levar a cabo o condicionamento da própria versão das vítimas, sobretudo tendo em conta o tipo de violência levado a cabo nos autos.
Ademais, a obrigação de permanência na habitação não é suficiente para afastar o perigo de continuação da atividade criminosa, dado que, nada nos garante que o arguido, movido por sentimentos de perseguição, ódio e vingança, não se ausente da sua residência e não termine o que projetou na sua cabeça, existindo necessidade de transmitir segurança à população em geral e de suster este tipo de criminalidade, dissuadindo tais comportamentos antissociais. (…).
Em suma, só a medida de prisão preventiva, apesar de subsidiária, permite satisfazer as referidas medidas cautelares, sendo necessária e proporcional à gravidade dos crimes imputados e à sanção que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido em julgamento, que com forte probabilidade é a de prisão efetiva”.
A medida de coação de obrigação de permanência na habitação afigura-se insuficiente para fazer face ao perigo de fuga, que se identifica no caso, uma vez que a eficácia de tal medida depende sempre de alguma motivação psicológica contrária à fuga. Ora, havendo um propósito sério de fuga — e no caso dos autos, como dissemos, tal perigo é elevadíssimo — a medida de obrigação de permanência na habitação -OPH-, mesmo que fiscalizada à distância, poderia ser contornada sem dificuldades, assinaláveis, através de atuação física do arguido.
As razões invocadas na decisão recorrida para fundamentar o mencionado perigo são consistentes e válidas.
As preocupações de confinamento do arguido são, em função do afirmado, fortíssimas, mantendo-se as preocupações evidenciadas na decisão recorrida.
Em face do exposto, e revelando-se insubsistentes as razões invocadas pelo recorrente, os indícios fortes e os perigos que deixamos assinalados e que identificamos, existirem, a prisão preventiva, mantém-se a única medida de coação, adequada às exigências cautelares requeridas no caso e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
O recurso é, pois, improcedente.
3.4 Das custas:
Sendo negado provimento ao recurso do arguido impõe-se a condenação deste recorrente no pagamento das custas, nos termos previstos nos artigos 513º, 1, do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais.
A taxa de justiça é fixada em 3 (três) unidades de conta, nos termos da Tabela III anexa àquele Regulamento, tendo em conta o objeto e a extensão mediana do recurso.
IV- Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores subscritores da 9ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido recorrente AA, mantendo a decisão recorrida, nos sobreditos termos.
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) unidades de conta.
Comunique.
Lisboa 21 de novembro de 2024
Isabel Maria Trocado Monteio
Rosa Maria Cardoso Saraiva
Paula Cristina Bizarro