RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
MEIOS DE OBTENÇÃO DA PROVA
MARINHA
EMBARCAÇÃO
APREENSÃO
CRIME COMETIDO A BORDO DE NAVIO OU DE AERONAVE
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PRINCÍPIO DA UNIVERSALIDADE
MÉTODOS PROIBIDOS DE PROVA
NULIDADE INSANÁVEL
IRREGULARIDADE
AUTO DE NOTÍCIA
CADEIA DE CUSTÓDIA DE PROVA
Sumário


I - O art. 7.º, n.º 1, do CPP estabelece que “O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”, nisto consistindo o princípio da suficiência do processo penal, do qual decorre que o tribunal penal é competente para decidir todas as questões, penais e não penais, essenciais para conhecer da existência de um crime, dos seus agentes e da respetiva responsabilidade criminal.

II - A derrogação desta competência, como resulta da interpretação conjugada das várias normas do referido art. 7.º do CPP e é pacífico na doutrina e na jurisprudência, tem natureza excecional e só pode ter lugar relativamente a questões de natureza não penal essenciais àquele fim do processo penal, mediante apreciação casuística e discricionária do juiz da causa penal, salvo situações de “devolução obrigatória do conhecimento de questões prejudiciais”, como sucede no âmbito dos crimes fiscais e tributários, nos termos dos arts. 42.º, n.os 2 e 4, e 47.º, n.º 1, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 15-06, que não ocorre no caso em apreço, uma vez que o crime cuja existência constitui o objeto do processo é o de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º do DL n.º 15/93, de 22-02, cuja verificação e responsabilidade pelo seu cometimento do arguido recorrente e dos seus coautores não está essencialmente dependente do conhecimento de qualquer questão não penal e muito menos indispensável para esse efeito.

III - O princípio basilar da territorialidade que conforma a aplicação da lei penal estadual no espaço, em Portugal e na generalidade dos Estados soberanos, além do alargamento pelo designado “critério do Pavilhão”, relativamente a crimes cometidos a bordo de navios ou de aeronaves, pode sofrer modelações decorrentes de princípios acessórios ou complementares, designadamente, no que aqui releva, do “princípio da universalidade, da competência universal ou do direito universal”.

IV - Este princípio legitima a aplicação da lei penal portuguesa pelo tribunal português material e territorialmente competente no lugar onde se encontra o agente do crime, independentemente da geografia onde foi cometido e da sua nacionalidade ou da vítima, quando estejam em causa crimes lesivos de relevantes “bens jurídicos de carácter supranacional”, como tal generalizadamente reconhecidos e punidos pelas leis internas de cada país ou pelo direito convencional internacional e princípios gerais de direito internacional.

V - Não se trata de conferir a cada Estado o poder de perseguir e punir qualquer crime previsto na sua legislação interna, sob pena de surgimento de constantes diferendos e conflitos de soberania entre os vários Estados, mas de permitir essa perseguição e punição quando esteja em causa algum daqueles bens jurídicos e a provável impunidade da sua violação sem recurso a esse princípio da universalidade, da competência universal ou do direito universal, expressamente refletido no art. 5.º do CP português, em particular no seu n.º 2, conjugado com instrumentos de direito internacional relacionados a que Portugal se encontre vinculado.

VI - Entre vários exemplos de criminalidade internacional perigosa e violadora daqueles bens jurídicos, surge o do tráfico internacional de estupefacientes, cujo combate a nível mundial se mostra consagrado na Convenção das Nações Unidas de 1988, conjugada com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982 e, a nível bilateral, com o Tratado entre Portugal e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico de Droga por Mar, referenciados no transcrito trecho do acórdão recorrido.

VII - Deste modo, mesmo para aqueles que não reconhecem “a emergência de um costume internacional, seja geral ou regional, legitimador de exercício de jurisdição universal”, a verdade é que o ordenamento jurídico português dispõe de um complexo normativo disperso por diferentes diplomas legais, que, conjugados entre si e com aqueles instrumentos de direito internacional, permite concluir, como no acórdão recorrido, pela legitimidade e licitude da intervenção da Marinha e da Força Aérea e pela aplicação da lei penal portuguesa pelos tribunais portugueses ao caso em apreço, sem que nele se verifique qualquer invalidade da prova recolhida pela Polícia Marítima com o seu auxílio e intervenção coadjuvante.

VIII - Nem dessa intervenção da Força Aérea e da Marinha resultou qualquer violação ou simples ofensa das pertinentes normas constitucionais e legais, nomeadamente dos arts. 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º do CPP, uma vez que a mesma decorreu a coberto de pertinentes normas legais e convencionais aplicáveis ao caso em apreço, sem utilização de qualquer método proibido de prova, mas apenas dos meios coercivos e de segurança indispensáveis à concretização da intervenção obrigatória e necessária à cessação da situação de ilicitude criminal detetada em flagrante delito e à salvaguarda dos respetivos meios de prova e à incriminação dos seus agentes.

IX - Mesmo para aqueles que consideram o auto de notícia como documento autêntico ou autenticado, a respetiva força probatória restringe-se aos factos nele expressos sobre o que foi observado e que consubstanciam a denúncia de crime público ou semipúblico, se o ofendido também estiver presente e manifestar a vontade de procedimento criminal, a comunicar ao MP, mas sem relevo probatório quanto à efetiva prática do crime e quanto à culpabilidade do ou dos seus agentes, ficando, nessa parte, sujeito à livre apreciação do juiz, nos termos do art. 127.º do CPP.

X - Por outro lado, apesar de alguma controvérsia que ainda persiste a propósito das consequências da inobservância plena dos requisitos estabelecidos no art. 243.º do CPP e sem embargo da possibilidade da arguição e eventual declaração da respetiva falsidade, nos termos do art. 170.º do CPP, que aqui não se coloca, considerando estar apenas em causa a falta de assinatura dos elementos da Polícia Marítima que intervieram na abordagem, apresamento e reboque da embarcação para o porto de Faro, juntamente com os arguidos e haveres por eles detidos, tem-se por certo que aquela eventual inobservância não integra qualquer nulidade, mas antes uma mera irregularidade a arguir nos termos do art. 123.º, n.º 1, do CPP, sob pena de sanação, tendo em conta o princípio da legalidade estabelecido no art. 118.º do mesmo Código.

XI - No caso em apreço não ocorreu qualquer quebra da cadeia de custódia dos meios de prova recolhidos e valorados, tendo sido preservada a sua “identidade e autenticidade ab initio ad finem de todo o iter processualis”, pelo que a convicção do tribunal neles suportada se perfila insuscetível de censura, porque baseada na prova documental, pericial e pessoal constante dos autos e neles validamente recolhida, produzida e/ou reproduzida, examinada e valorada, com integral respeito pelos princípios constitucionais do due process and fair trial consagrados nos arts. 20.º e 32.º da CRP e sem evidência de qualquer desvio ou erro flagrante na sua apreciação, por ilógico ou contrário às disposições legais aplicáveis ou às regras da experiência comum e do normal acontecer.

XII - Os factos provados mostram-se bastantes para a condenação dos arguidos como coautores do crime de tráfico de estupefacientes que lhes vinha imputado, sem que o texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência, evidencie que ficaram por indagar factos necessários a essa imputação, assim afastando a verificação do aludido vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

XIII - Com efeito, sendo o crime em causa passível de cometimento mediante qualquer das múltiplas modalidades de ação típicas previstas no art. 21.º do DL n.º 15/93, de 22-01, a circunstância de os três deterem e transportarem na embarcação em que foram intercetados pelas autoridades policiais portuguesas, em ação conjunta e mediante acordo entre todos, forçoso é concluir que cada um deles dominava a situação de facto, pelo menos parcialmente, estando à sua disposição e na sua disponibilidade executar ou abortar o empreendimento em que se envolveram, que pressupunha o transporte e a posterior trasladação ou descarga, em pleno oceano ou em porto seguro, com conhecimento das caraterísticas do produto estupefaciente detido e transportado e do seu destino, sendo a intervenção de todos e de cada um deles indispensável à realização desse propósito, assim se preenchendo todos os requisitos de que depende a verificação da coautoria, sem prejuízo, naturalmente, da individualização da culpa, como pressuposto e inultrapassável limite da punição.

XIV - É que, como a jurisprudência constante e uniforme do STJ tem vindo a afirmar, a coautoria não exige outros requisitos que não os enunciados e considerados no acórdão recorrido, nomeadamente a existência de um plano prévio, conjunto e expresso e a exata definição dos contornos da comparticipação, assim como a sua igualização, antes admitindo que o acordo conjunto seja sucessivo e tácito e que a intervenção parcelar de cada um esteja no domínio do próprio e seja essencial à realização do propósito comum, como aqui sucedeu, considerando os factos provados.

XV - Considerando as finalidades das penas, em particular das elevadas exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, a pena de 6 anos de prisão aplicada ao arguido, é justa, adequada e fixada de harmonia com os princípios da necessidade e da proporcionalidade, sem ultrapassar a medida da sua culpa e, apesar de benévola, ainda sintonizada com a bitola do STJ para situações semelhantes.

XVI - Nenhuma inconstitucionalidade normativa é passível de conhecimento in casu, seja por indefinição da concreta norma, princípio ou parâmetro constitucional violado, seja porque, efetivamente, além de desnecessária, a questionada interpretação feita no acórdão recorrido do art. 4.º do referido Tratado Luso-Espanhol não ofende o estatuído no art. 5.º da CRP.

Texto Integral


Processo n.º 99/23.1JAFAR.S1.

(Recurso per saltum)

*

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

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I. Relatório

1. Por acórdão, de 27.06.2024, do Juízo Central Criminal de Faro (JCCFAR) – J 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, foi, entre outros, o arguido AA, nascido a ... de ... de 1979, de nacionalidade ..., com os demais sinais dos autos, condenado, nos termos do seguinte dispositivo, que se transcreve na parte que ora releva:

«III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide o tribunal:

a) Condenar os arguidos (…) e AA, pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa a esse diploma legal e Portaria n.º 94/96, de 26 de março, conjugado com o artigo 26.º do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão, cada um.

b) Declarar perdido a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 2 e 62.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 toda a cannabis apreendida.

c) Declarar perdidos a favor do Estado todos os objetos indicados no ponto 1 dos factos provados e a embarcação apreendida de acordo com o disposto no artigo 36.º, n.º 1 da Lei 15/93.

(…)».

2. Inconformado, interpôs o referido arguido, em 29.07.2024, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), apresentado as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição)

« Conclusões:

1. Por acórdão datado 27-06-2024 o tribunal “a quo” condenou o arguido pela prática, em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 com referência à Tabela I-C anexa a esse diploma legal e Portaria n.º 94/96 de 26 de março, conjugado com o artigo 26.º do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

2. O acórdão recorrido julgou improcedente a invocada incompetência dos tribunais portugueses e a inaplicabilidade da lei portuguesa, bem como a invalidade dos meios de prova obtidos através da intervenção da Polícia Marítima invocadas.

3. Salvo o devido respeito que é muito andou mal o tribunal “a quo” ao julgar improcedente a invocada incompetência dos tribunais portugueses e a inaplicabilidade da lei portuguesa, desde logo porquanto resulta dos presentes autos que os arguidos foram abordados na ZEE Espanhola e que os mesmos se dirigiam para Huelva – cfr. fls. 31, 39, 63 e 67 do acórdão recorrido.

4. Resultando assim dos presentes autos que o tribunal português é territorialmente incompetente.

5. As coordenadas onde os arguidos foram abordados e detidos situam-se fora do território nacional.

6. O produto estupefaciente não se destinava a Portugal.

7. E desconhece-se o país do pavilhão do barco.

8. Sucede que e resulta claramente dos presentes autos que Portugal não foi autorizado a tomar qualquer medida prevista no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988.

9. Aliás para a embarcação ser abordada teria que ter sido autorizado pelo Estado do Pavilhão do navio, dado que até ao momento da abordagem as autoridades portuguesas desconheciam qual o Estado do pavilhão do barco, o que in casu não se verificou.

10. Pois só após a abordagem é que as autoridades verificaram que a embarcação em que seguiam os arguidos não tinha pavilhão.

11. A decisão recorrida viola claramente as regras da cooperação judiciária e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.

12. Não estando assim o Estado Português legitimado para abordar a embarcação em apreço na ZEE Espanhola.

13. Muito pelo contrário, pois a marinha militar portuguesa entrou sem qualquer autorização na zona territorial espanhola, o que em nosso entender constitui um ato de guerra atendendo a que não foi solicitada qualquer autorização e não foi efetuada qualquer comunicação ao Reino de Espanha, considerando-se que a embarcação não tinha bandeira, estamos perante uma embarcação apátrida.

14. No que concerne a outras matérias como as penais, mormente o tráfico internacional de droga, o navio prevaricador fica sujeito às normas e jurisdição do Estado pavilhão, conforme estabelece o artigo 92.º da dita Convenção, pois para estes efeitos a ZEE é como se fosse alto mar, vigorando as regras internacionais a tal respeito, veja-se neste sentido o doutamente decidido no acórdão datado de 15-09-2014, proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real de Santo António – Círculo Judicial de Faro no âmbito do processo n.º 151/13.1JAFAR.

15. Não se verificando no presente caso concreto nenhum dos pressupostos para o exercício do direito de visita, pois estamos perante um navio estrangeiro (cujo o Estado do pavilhão do barco se desconhece) e o Estado Português não tem jurisdição sobre o mesmo.

16. Termos em que e por violação dos supra mencionados preceitos legais deverá ser declarada a incompetência internacional do tribunal português e a inaplicabilidade da lei portuguesa, consequentemente deverão ser declarados nulos todos os atos praticados pelo Estado Português, absolvendo-se o arguido ora Recorrente.

17. Sem prescindir, o arguido ora Recorrente não se conforma com a decisão de que ora se recorre em primeiro lugar porquanto resulta do auto de notícia de fls. 17-18 que no dia 20 de março de 2023, pelas 15:30 horas, iniciou-se uma operação sob a coordenação do Comandante ...da Polícia Marítima ..., CMG BB conjuntamente com o empenho de meios navais da Marinha Portuguesa, meio aéreo da força aérea portuguesa e meios náuticos da Autoridade Marítima Nacional, afetos à Polícia Marítima de forma a dissuadir atividades ilícitas por via marítima.

18. A utilização de quaisquer meios militares não autorizados em tempos de paz consubstancia a prática do crime de Movimento injustificado de forças militares previsto e punido pelo artigo 99.º do Código de Justiça Militar.

19. O que foi invocado pela defesa e não foi decidido pelo tribunal “a quo”.

20. Tendo sido utilizada força militar não autorizada pelo Comandante Supremo das Forças Armadas devemos considerar as provas recolhidas como provas nulas nos termos do artigo 126.º do Código de Processo Penal.

21. O acórdão recorrido viola assim o n.º 4 do artigo 126.º do Código de Processo Penal atento a que nos presente autos foram utilizados métodos proibidos de prova

22. Resulta assim que todos os autos de busca são nulos porquanto foram obtidos através de método proibidos de prova, pois foram obtidos mediante força militar não autorizada, coação e crime de guerra praticado contra civis.

23. Não pode nenhum facto quer perícias realizadas, quer quaisquer actos praticados não podem ser aproveitados pois resultam de métodos proibidos de prova.

24. Assim e de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada deverá ser de imediato declarada a nulidade dos presentes autos e consequentemente deverão os arguidos serem libertados de imediato.

25. Termos em que e face ao supra exposto deverá o acórdão recorrido ser revogado e consequentemente deverá o arguido ora Recorrente ser absolvido.

26. Sem prescindir, no que respeita à nulidade do auto de notícia por o mesmo ter sido elaborado por quem não presenciou os factos o tribunal “a quo” decidiu que não se verifica a invocada nulidade, nem qualquer irregularidade.

27. Tendo considerado que pese embora quem assine o auto de notícia não tenha presenciado o avistamento, a abordagem e as medidas cautelares adotadas, quem o assina é a pessoa que no Centro de Operações recebe as informações do meio aéreo no local, comunica aos superiores hierárquicos, no caso ao Comandante BB, deste recebe as ordens que transmite aos meios náuticos que se encontram no local e que, para esses efeitos está em permanente contacto com todos os meios aéreos e náuticos, recebendo e transmitindo informações em direto, de acordo com o disposto no artigo 19.º n.º1 da Lei n.º 34/2006, de 28 de julho.

28. O que em nosso entender viola o disposto no artigo 169.º do Código de Processo Penal, atento a que o tribunal “a quo” considerou provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado apesar da autenticidade do documento ter sido posta em causa.

29. O que faz com que estejamos perante uma nulidade que é insuprível nos termos do disposto no artigo 118.º do Código de Processo Penal, que especifica que não é possível através do artigo 119.º Código de Processo Penal validar esta prova porque quem lá não esteve não foi quem efetivamente fez a detenção.

30. Termos em que e por violação do disposto no artigo 169.º do Código de Processo Penal deverá o acórdão de que ora se recorre ser revogada e consequentemente deverá ser declarada a nulidade insanável do auto de notícia e consequentemente deverá ser declarada a nulidade dos presentes autos.

31. Ainda sem prescindir, Os arguidos invocaram a quebra da cadeia da custódia de prova uma vez que quem elaborou os autos de notícia e de apreensão não foram as entidades que estiveram no mar.

32. O tribunal “a quo” para além de ter decidido que o nosso código de processo penal, ao contrário do código de processo penal brasileiro não prever nem regular a chamada cadeia de prova, decidiu que o órgão de polícia criminal que coordenava a operação, adotou, nos termos dos artigos 178.º, n.º 4 e 5 e 249.ºdo Código de Processo Penal as providências cautelares necessárias e urgentes para a assegurar os meios de prova, sendo que, de acordo com o despacho de fls. 74 as mesmas foram validadas no prazo legal. É evidente que só depois de entregue o barco à Polícia Judiciária é que se procedeu, legalmente, à detenção dos arguidos e apreensão dos objetos relativos à prática do crime.

33. E conclui o acórdão recorrido que não houve quebra da cadeia de custódia de prova, e, por conseguinte, que as apreensões (fls. 20, 21, 28 e 34), o teste rápido (fls. 19) e guias de depósito de objetos (fls. 49 a 52) padeçam de qualquer nulidade prevista no artigo 119.º do Código de Processo Penal e que o exame pericial de fls. 519/520 padeça de qualquer falsidade.

34. Salvo o devido respeito, que é muito, andou mal o tribunal “a quo” em primeiro lugar porquanto e pese embora o nosso código de processo penal não preveja, nem regule a chamada cadeia de prova a verdade é que não nos podemos olvidar que o conceito existe e que é aplicado no âmbito do direito comparado.

35. Aliás, a cadeia de custódia de prova tem uma grande importância no processo penal porque são estes procedimentos que evitam que o juiz venha a ter qualquer tipo de dúvida sobre a origem da prova e sobre a sua autenticidade.

36. A validade de determinada prova depende da conservação da cadeia de custódia que, caso seja interrompida, pode causar a inadmissibilidade do seu uso e o comprometimento de todo o processo penal.

37. Por outro lado, a manutenção da cadeia de custódia depende dos procedimentos usados para a recolha, análise e preservação da prova.

38. Sendo incompreensível como é que nos presentes autos não há qualquer documento que ateste a entrega do produto estupefaciente apreendido pela Polícia Marítima à Polícia Judiciária.

39. Não tendo assim a cadeia de custódia de preservação da prova sido observada.

40. Termos em que deverá o acórdão de que ora se recorre ser revogado por violação do disposto no artigo 249.º n.º 2 alínea a) do Código de Processo Penal e por violação do artigo 32º, n.º 8 da nossa Constituição e face ao supra exposto deverá ser declarada a nulidade insanável dos presentes autos por quebra da cadeia da custódia de prova.

41. Caso assim não se entenda, o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que dos factos provados o tribunal “a quo” não consegue identificar de que forma os arguidos gizaram entre si um plano e com que propósito.

42. Ademais os arguidos não praticaram todos os mesmos factos em co-autoria.

43. Pelo que neste caso e de acordo com a nossa jurisprudência dominante não podemos ter o arguido ora Recorrente condenado como co-autor, pois não estão preenchidos os pressupostos do estatuído no artigo 26.º do Código Penal, devendo o acórdão recorrido ser revogado por violação do supra mencionado preceito legal.

44. O acórdão recorrido viola ainda o artigo 13.º da Constituição e o princípio da igualdade e da proporcionalidade na escolha da medida da pena aplicada ao arguido ora Recorrente comparativamente à nossa jurisprudência dominante.

45. Veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 18-12-2023, proferido no âmbito do processo n.º 304/20.6JAFAR.E1, que decidiu no âmbito de crime de tráfico de estupefaciente – transporte de canábis – condenar os arguidos a 5 (anos) de prisão suspensa por igual período.

46. Sem prescindir do que supra se referiu e defendeu temos in casu que o arguido ora recorrente foi condenado na pena de 6 anos de prisão.

47. Não tendo o tribunal “a quo” ponderado o grau de ilicitude, a quantidade e qualidade do produto estupefaciente, a forma de execução dos factos, a intervenção do arguido como mero transportador, pessoa em situação de dificuldades económicas.

48. A favor do arguido deveria ter sido valorado o facto de não se ter feito qualquer prova quanto ao seu domínio na escolha dos meios utilizados para efetuar o transporte, nem no acondicionamento do estupefaciente.

49. O que viola as mais elementares regras do direito e os princípios orientadores da teoria dos fins das penas.

50. No caso dos autos, as medidas das penas aplicadas são manifestamente elevadas.

51. O tribunal “a quo” deveria ter sido equacionado o artigo 40.º e 70.º ambos do Código Penal sobre os fins das penas, a não aplicação daquele dispositivo legal provoca um erro de determinação da pena aplicável in casu.

52. Termos em que e sem prescindir deve ser revogado o douto acórdão devendo ser proferido novo acórdão que tenha como base a aplicação da teoria dos fins das penas existente no nosso sistema penal, devendo o arguido ser condenado numa pena educacional e ressocializadora, próxima dos mínimos legais.

53. O arguido ora Recorrente não se conforma com o acórdão de que ora se recorre e entende que a interpretação dada pelo tribunal “a quo” ao artigo 4.º, n.º 2 no sentido de que no exercício do direito de representação a que se refere o n.º 1, os navios ou aeronaves oficiais poderão perseguir, parar e abordar o navio, verificar os documentos, interrogar as pessoas que se encontrem a bordo e, se existirem fundadas suspeitas de infracção, inspeccionar o navio e, se constatada, proceder à apreensão da droga, à detenção das pessoas presumivelmente infractoras e à condução do navio para o porto mais próximo ou mais adequado à sua imobilização, até à sua eventual devolução é inconstitucional por violação do artigo 5.º da nossa Constituição.

54. Motivos pelos quais e face ao supra exposto invoca-se desde já a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo tribunal “a quo” ao artigo 4.º do Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico ilícito de Droga no Mar, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 9/2000, de 28/01 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 2/2000, de 28/01 para efeito de eventual e futuro recurso para o Tribunal Constitucional.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá V. Exa. dar provimento ao presente recurso, e em consequência revogar o acórdão recorrido, absolvendo-se o arguido, ora Recorrente ou caso assim não se entenda, o que apenas de admite por mera cautela de patrocínio, condenando-se o arguido ora Recorrente numa pena próxima dos mínimos legais, assim se fazendo JUSTIÇA!

- As presentes alegações de recurso deverão ser instruídas com todos os recursos apresentados em acta e retidos, os quais a subida apenas foi ordenada a final e bem assim como a gravação áudio das sessões de audiência de discussão e julgamento.

E.D.

A Advogada164F

(…)».

3. Antes do recurso da decisão final, o arguido, juntamente com os outros dois coarguidos, aqui não recorrentes, havia interposto dois recursos interlocutórios admitidos: o primeiro, em 21.03.2024 (REFª: ...45), do despacho do juiz presidente do JCCFAR – J 3, de 19-02-2024, que indeferiu a realização de diligências por eles requeridas; o segundo, em 18.04.2024. na ata da sessão da audiência de julgamento realizada nesse dia (Referência: ...94), do despacho judicial também aí consignado que, entre o mais, indeferiu o pedido de suspensão do processo por eles requerida, ambos retidos para subirem conjuntamente com aquele que viesse a ser interposto da decisão que pusesse termo ao processo.

No presente recurso, o recorrente limitou a renovação do interesse no conhecimento dos recursos interpostos em ata, requerendo a junção das pertinentes peças processuais e respetivas gravações áudio, pelo que, em conformidade com o disposto no artigo 412º, n.º 5, do CPP, apenas será objeto de conhecimento o segundo dos mencionados recursos interlocutórios, cujas conclusões da respetiva motivação foram as seguintes:

«Conclusões:

1º- Os arguidos vieram invocar a existência de causa prejudicial, tendo para isso interposto processo no Tribunal Administrativo e Fiscal de ..., que corre termos sobre o número 377/204.2GELLE, unidade orgânica ... Tribunal Administrativo e Fiscal de ...;

2º- No âmbito do tal processo pretendem ver esclarecido as atribuições da Marinha Portuguesa e a violação, ou abuso de funções por parte da Marinha Portuguesa, no âmbito da atuação da operação portas fechadas, nomeadamente, no dia 20 de março de 2023;

3º- O Tribunal decidiu no sentido de que se trata de uma incompetência já alegada em sede de 1º interrogatório, também, instrução e contestação;

4º- Sucede que efetivamente, esta situação não foi alegada, nem julgada, nem decidida em nenhuma das situações, tratando-se não da invocação da incompetência do Tribunal, mas das atribuições da Marinha Portuguesa, e se houve ou não uma violação no âmbito das suas atribuições;

5º- Consideramos que essa verificação é só da competência do Tribunal Administrativo, não competindo ao Tribunal Penal poder suprir nos termos do artigo 7º, perante o princípio da suficiência do processo penal;

6º- A verdade é que se encontra a ser debatido tanto na jurisprudência como na doutrina se se forma, ou não se forma caso julgado extra processo penal;

7º- No caso concreto, considera-se que se trata de uma causa prejudicial, e que forma caso julgado, porquanto, poderá determinar uma nulidade total de um ato praticado não podendo ser utilizada nenhuma consequência proveniente desse mesmo ato;

8º- Estatui Joaquim Malafaia que é caso da ocorrência da possibilidade de efetivamente haver alguma vinculação de processo administrativo para o processo penal, vejamos em paralelismo o que sucede no direito fiscal havendo absolvição no âmbito do processo executivo fiscal, não pode decorrer processo fiscal, e no caso concreto, parece-nos ser de aplicar quase por analogia essa situação;

9º- Com a douta decisão viola-se os princípios da defesa dos arguidos, nomeadamente, aqueles que são estatuídos no artigo 61 do Código de Processo Penal, artigo 30º nº1 e nº5 da Constituição, e o principio da proibição da autoincriminação, uma vez que, prosseguem os autos e os arguidos serão forçados a tomar uma decisão a qual prejudicará futuramente a sua defesa, quer de uma forma quer de outra.

Deve assim o presente recurso ter os efeitos suspensivos conforme se referiu e determinar a nulidade do douto despacho e determinar a suspensão do processo penal até à decisão do processo administrativo, com o que se fará justiça.».

4. Este recurso interlocutório foi admitido por despacho de 18.04.2024 (na ata com a Referência ...94), para subir nos próprios autos, com o que fosse interposto da decisão que pusesse termo ao processo e efeito não suspensivo (meramente devolutivo).

5. Por sua vez, por despacho de 4.08.2024 (Referência ...84), o recurso do acórdão condenatório foi admitido para subir ao STJ, imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

6. O Ministério Público (MP) apresentou fundamentadas e desenvolvidas respostas aos recursos do arguido, em 30.04.2024, quanto ao recurso interlocutório, e em 5.09.2024, quanto ao recurso do acórdão recorrido, identificando e rebatendo todas as questões neles suscitadas, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção integral do despacho e acórdão recorridos.

7. Neste Tribunal, o MP, em 19.09.2024, emitiu fundamentado parecer circunscrito ao recurso do acórdão condenatório, acompanhando e sufragando a resposta do MP junto do tribunal recorrido e rebatendo as questões de inconstitucionalidade nele suscitadas pelo recorrente e a sua pretensão redutora da pena em que foi condenado.

8. Observado o contraditório, o arguido não respondeu ao parecer do MP.

9. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso

1. Considerando a motivação e conclusões dos recursos, as quais, como é pacífico, delimitam o respetivo objeto1, as questões nele colocadas cingem-se:

1 . 1. Recurso interlocutório

a) à violação dos princípios da defesa dos arguidos, nomeadamente, aqueles estatuídos no artigo 61º do CPP e no artigo 30º, nºs 1 e 5, (terá querido dizer 32º?) da CRP e o princípio da proibição da autoincriminação, uma vez que, prosseguem os autos e os arguidos serão forçados a tomar uma decisão a qual prejudicará futuramente a sua defesa, quer de uma forma quer de outra [recurso interlocutório de 18.04.2024. interposto na ata da sessão da audiência de julgamento realizada nesse dia (Referência: ...94) do despacho judicial também aí consignado que, entre o mais, indeferiu o pedido de suspensão do processo por ele requerida];

1. 2. Recurso do acórdão condenatório

b) à incompetência dos tribunais portugueses e inaplicabilidade da lei penal portuguesa e consequente nulidade dos atos processuais praticados [conclusões 2ª e 3ª a 16ª];

c) à nulidade das provas recolhidas por utilização de métodos de obtenção de prova proibidos, em violação do disposto no artigo 126º, n.º 4, do CPP [conclusões 2ª e 17ª a 25ª];

d) à nulidade insanável do auto de notícia, elaborado por quem não presenciou os factos, em violação do artigo 169º do CPP [conclusões 26ª a 30ª];

e) à quebra da cadeia de custódia dos meios de prova e sua consequente nulidade, nos termos dos artigos 249º, n.º 2, do CPP e 32º, n.º 8, da CRP [conclusões 31ª a 40ª];

f) à modalidade de comparticipação do recorrente nos factos pelos quais foi condenado, como coautor, em violação do artigo 26º do CP [conclusões 41ª a 43ª];

g) à medida da pena de prisão aplicada [conclusões 44ª a 52ª];

h) à inconstitucionalidade do artigo 4º, n.º 2, do Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico Ilícito de Droga no Mar [conclusões 53ª e 54ª].

III. Fundamentação

1. Na parte que aqui releva, é do seguinte teor o acórdão recorrido (transcrição):

«(…)I – FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos provados:

1. No dia 20 de março de 2023, pelas 23 horas e 15 minutos, na posição das coordenadas de Latitude 36º 00’N e Longitude 007º 12’W, a cerca de 70 milhas náuticas a Sul da Foz do Rio Guadiana, na embarcação semirrígida, com 11,9 metros de comprimento, de cor preta, indocumentada, sem bandeira, sem identificação e qualquer inscrição visível, e com três motores “Yamaha V6”, de alta cilindrada, com 300 HP de potência, os arguidos CC, DD e AA detinham e transportavam 79 fardos que continham:

- 3960 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 383130.000 gramas, com um grau de pureza de 23,2% de THC, correspondente a 1777723 doses;

- 1980 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 189305,000 gramas, com um grau de pureza de 33,4% de THC, correspondente a 1264557 doses;

- 2310 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 218896,000 gramas, com um grau de pureza de 35.9 % de THC, correspondente a 1571673 doses;

- 2970 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 285332.000 gramas, com um grau de pureza de 28,2% de THC, correspondente a 1609272 doses;

- 1650 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 157654.000 gramas, com um grau de pureza de 36.3 % de THC, correspondente a 1144568 doses;

- 990 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 95940.000 gramas, com um grau de pureza de 23,9% de THC, correspondente a 458593 doses;

- 1980 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 193954.000 gramas, com um grau de pureza de 28,0% de THC, correspondente a 1086142 doses;

- 1980 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 188703.000 gramas, com um grau de pureza de 35,8 % de THC, correspondente a 1351113 doses;

- 1320 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 126720.000 gramas, com um grau de pureza de 32,9% de THC, correspondente a 833817 doses;

- 1800 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 170591.000 gramas, com um grau de pureza de 32,0% de THC, correspondente a 1091782 doses;

-990 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 96840.000 gramas, com um grau de pureza de 28,6% de THC, correspondente a 553924 doses;

- 1320 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 129707.000 gramas, com um grau de pureza de 28,5% de THC, correspondente a 739329 doses;

- 600 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 57877.000 gramas, com um grau de pureza de 33,5% de THC, correspondente a 387775 doses;

- 1200 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 117733.000 gramas, com um grau de pureza de 34,2% de THC, correspondente a 805293 doses;

- 660 placas de canábis (resina) com o peso líquido de 63678.000 gramas, com um grau de pureza de 10,9% de THC, correspondente a 138818 doses;

- um (1) telefone satélite, da marca lridium, com o IMEI ...10, e respetiva bateria, que continha inserido o cartão SIM, da marca lridium, número ...91.

- um (1) telefone satélite, da marca lridium, com o IMEI ...90, e respetiva bateria, que continha inserido o cartão SIM, da marca lridium, número ...17.

- um (1) localizador GPS, da marca Saved by Spot, modelo GEN4, cor preta e laranja, sem número de série, e

- um (1) aparelho GPS, da marca Garmin, modelo GPS Map276Cx, cor cinzento, e respetivo cabo de carregamento, que continha inserido um cartão de memória microSD. da marca Transcend, com 8GB de capacidade,

2. O arguido CC trazia consigo:

- sete (7) notas de valor facial de 50 (cinquenta) euros, perfazendo um total de 350,00€ (trezentos e cinquenta euros).

- um (1) telemóvel smartphone, da marca Apple, modelo lphone SE, de cor rosa e branca, com capa de proteção preta, com um cartão nano SIM inserido, da operadora móvel Vodafone, com a inscrição ...80, com indicação do IMEI ...82;

- um (1) telemóvel smartphone, da marca Apple, modelo lphone 7, de cor dourada e branca, com capa de proteção vermelha, com um cartão nano SIM inserido, da operadora móvel Yoigo, com a inscrição ...31, e

- um (1) cartão nano SIM da operadora móvel Vodafone, com a inscrição ..64.

3. O arguido DD trazia ainda consigo:

- um (1) telemóvel da marca Samsung, modelo Galaxy A51, de cor azul, numero de telemóvel desconhecido, com IMEI...98 e IMEI...97, com cartão da operadora MÁSMOV L;

- um (1) telemóvel da marca Apple, modelo IPHONE 8, IMEI ...32, de cor preta, com cartão da operadora Vodafone, numero de telemóvel ...69, PIN ...50, com desbloqueio por PIN ...12.

4. E o arguido AA tinha na sua posse:

- um (1) telemóvel smartphone, da marca LG, modelo Q7, de cor lilás, com o IMEI ...00, com um cartão nano SIM inserido, da operadora móvel Vodafone, com a inscrição ...06, e

- um (1) telemóvel smartphone, da marca Samsung, modelo A51 5G, de cor preta, com o IMEI ...02, com um cartão nano SIM inserido, da operadora móvel Vodafone, com a inscrição ...56.

5. Os arguidos usaram e destinavam telefones satélite e o localizador de GPS que se encontravam na embarcação para navegar no mar e estabelecer contactos telefónicos durante a operação de transporte.

6. Os arguidos CC, DD e AA previram e quiseram agir da forma descrita.

7. Atuaram os arguidos de comum acordo e em conjugação de esforços e vontades, com o conhecimento de que detinham e transportavam a dita quantidade de canábis, substância cuja natureza, características, composição e efeitos conheciam, e que a mesma se destinava a ser introduzida no mercado de tráfico de estupefacientes, bem sabendo que a detenção e transporte desse produto estupefaciente (canábis) lhes era vedada por lei, uma vez que não estavam autorizados para o efeito.

8. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Das condições pessoais e antecedentes criminais dos arguidos

(…)

33. Em período anterior aos factos em apreço AA, de 45 anos de idade, residia sozinho em casa arrendada de tipologia T1, em ..., embora num contacto próximo com os familiares de origem, residentes em Marrocos, os quais apoiavam economicamente.

34. Natural de ..., de uma localidade próxima de ..., AA descreve um percurso de desenvolvimento normativamente integrado no agregado de origem constituído pelo próprio, pais e sete irmãos.

35. Pese embora o ambiente familiar fosse afetivo e isento de conflituosidade o mesmo encontrava-se associado a condicionalismos económicos.

36. Após a sua autonomização do agregado de origem, pelos 17 anos de idade, o arguido alterou a residência para Espanha, onde passou a beneficiar do adequado enquadramento social e laboral.

37. AA refere ter concluído o 9º ano de escolaridade, altura em que passou a integrar o mercado de trabalho.

38. Em Espanha tem vindo a integrar o setor da construção civil, desenvolvendo a sua atividade profissional quer por conta própria quer por conta de outrem, enquadramentos que vivenciava por altura dos alegados factos em apreço.

39. Em termos económicos o arguido movimenta-se num quadro de satisfação as suas necessidades, auferindo um vencimento na ordem dos 60,00€/dia de trabalho.

40. Deste valor 300,00€/mês eram canalizados para ao pagamento da renda do apartamento bem como um valor não determinado, uma vez que variável, para apoiar economicamente a família de origem.

41. A 21/03/2023 deu entrada no Estabelecimento Prisional de ... para cumprimento da medida de coação aplicada no presente processo, enquadramento que mantém na atualidade.

42. AA evidenciou um adequado entendimento relativamente ao atual contacto com o sistema de justiça, pioneiro no seu percurso de vida, denotando uma postura colaborante.

43. A atual situação acarretou-lhe repercussões familiares, dado a impossibilidade de os ajudar economicamente, bem como pessoais, uma vez que que se encontrava laboral e socialmente enquadrado.

44. Em meio prisional o arguido tem mantido uma conduta ajustada ao normativo disciplinar vigente, não apresentando qualquer sanção e frequenta o curso de Português para Estrangeiros.

45. Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais.

*

2. Factos Não Provados

Não se provou:

1. Que os arguidos usaram e destinavam os telemóveis que traziam consigo para navegar no mar e estabelecer contactos telefónicos durante a operação de transporte.

2. Que o dinheiro que o arguido CC trazia na sua posse se destinava a ser utilizado para adquirir combustível e alimentação durante o transporte e regressar ao país de origem

(…)».

2. Tratando-se de recurso interposto de acórdão condenatório em pena de prisão superior a cinco anos, proferido por tribunal coletivo e restrito à matéria de direito, é inquestionável a competência do STJ para o respetivo conhecimento, bem como daquele interlocutório que com ele subiu, nos termos dos artigos 434º e 432º, n.ºs 1, als. c) e d), e 2, do CPP, por referência ao artigo 412º, n.º 5, do mesmo diploma legal, conforme acertadamente decidiu o juiz titular do JCCFAR – J 3, ao admitir o recurso para o STJ, conforme, aliás, interposto pelo arguido.

Avancemos, pois, para a apreciação das questões antes enunciadas e que delimitam o seu objeto.

2. 1. Recurso interlocutório

2. 1. 1. violação dos princípios da defesa dos arguidos, nomeadamente, aqueles estatuídos no artigo 61º do CPP e no artigo 30º, nºs 1 e 5, (terá querido dizer 32º?) da CRP e o princípio da proibição da autoincriminação

Na primeira sessão da audiência de julgamento, realizada no dia 18 de abril de 2024, o recorrente requereu a suspensão do processo sob alegação de que havia instaurado ação no foro administrativo e fiscal em vista da apreciação da legalidade da intervenção/atuação da Marinha portuguesa no âmbito do combate ao tráfico de droga no mar, por entender que a questão não podia ser convenientemente apreciada e decidida neste processo, constituindo relativamente ao respetivo objeto questão prejudicial, por entroncar com a validade da atuação das autoridades portuguesas e com a validade do procedimento de abordagem, detenção dos arguidos e apreensão do barco e do produto estupefaciente e demais objetos e valores por eles detidos e/ou transportados, sob pena de violação das suas garantias de defesa, nomeadamente daquelas estatuídas nos artigos 61º do CPP e 30º, n.ºs 1 e 5, da CRP2 e do princípio da proibição da autoincriminação.

O tribunal indeferiu tal pretensão por despacho exarado na própria ata dessa sessão (Referência: ...94), decisão de que o arguido interpôs recurso imediato, que motivou e concluiu, nos termos constantes dessa mesma ata.

O despacho do presidente do JCCFAR que indeferiu aquela pretensão, após deliberação do coletivo, foi o seguinte:

«Vêm os arguidos requerer a suspensão da audiência de julgamento nos termos do artigo 7.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, segundo o qual quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar outra qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida a questão no tribunal competente.

A questão da incompetência deste Tribunal, bem como a questão da nulidade da intervenção da Polícia Marítima e da Marinha Portuguesa já foi suscitada em diversas fases do processo, inclusivamente nas contestações apresentadas e já foi determinado, por despacho, que tal questão será conhecida pelo Tribunal Coletivo aquando da prolação de decisão. Ainda assim, o Tribunal dirá o seguinte, a questão que é suscitada ao tribunal diz respeito à competência da intervenção da Marinha Portuguesa, à competência do Ministério Público para a legitimidade, para a prossecução penal, e essa competência é matéria que é do conhecimento do Tribunal, que terá de se pronunciar sobre ela, que está definida em normas legais a que o Tribunal tem necessariamente acesso e sobre as quais pode analisar e debruçar-se sobre elas.

Para além disso, a questão que parece suscitar-se também no requerimento inicial agora apresentado diz respeito à invalidade dos meios de prova que estão no processo, invalidade essa, a invalidade de todos os meios probatórios ou a validade probatória de todas as peças processuais cabe ao tribunal também determinar.

Não se trata, não podemos confundir a questão de competência com uma questão prejudicial. Esta não é uma questão prejudicial e independentemente do que venha a decidir o Tribunal Administrativo, de acordo com o disposto no artigo 7.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o tribunal não está vinculado a suspender o processo, pode fazê-lo, e entendendo que neste caso os arguidos se encontram presos preventivamente desde março de 2023 o tribunal entende que tratando-se de um processo de natureza urgente, não há fundamento para o fazer nem o deveria fazer.

Quanto à questão prévia da nulidade do auto de notícia, pois tal como as outras nulidades já invocadas em sede de contestação, e que já foram também invocadas em sede de instrução e inclusivamente em sede de recurso do despacho que aplicou a medida de coação preventiva, o tribunal irá pronunciar-se em sede de acórdão, como aliás já decidiu no despacho anterior.

E posto isto, o Tribunal indefere a suspensão do processo nos termos requeridos e determina que se dê início à audiência de julgamento».

*

Perante o teor do transcrito despacho, afigura-se ser o mesmo insuscetível de qualquer crítica.

Efetivamente, como estabelece o artigo 7º, n.º 1, do CPP “O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”, nisto consistindo o princípio da suficiência do processo penal, do qual decorre que o tribunal penal é competente para decidir todas as questões, penais e não penais, essenciais para conhecer da existência de um crime, dos seus agentes e da respetiva responsabilidade criminal.

A derrogação desta competência, como resulta da interpretação conjugada das várias normas do referido artigo 7º do CPP e é pacífico na doutrina e na jurisprudência, tem natureza excecional e só pode ter lugar relativamente a questões de natureza não penal essenciais àquele fim do processo penal, mediante apreciação casuística e discricionária do juiz da causa penal, salvo situações de “devolução obrigatória do conhecimento de questões prejudiciais”, como sucede no âmbito dos crimes fiscais e tributários, nos termos dos artigos 42, n.ºs 2 e 4, e 47º, n.º 1, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 15.06.

Esta exceção, aliás, reflete e densifica aquela essencialidade ao prescrever que o processo penal tributário se suspende até ao trânsito em julgado das sentenças proferidas ou a proferir nos processo de impugnação judicial ou de oposição à execução que estiverem a correr, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, “em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, não relevando, por conseguinte, nos termos pretendidos pelo recorrente, tanto mais que, face à sua natureza excecional, sempre seria insuscetível de aplicação analógica, por força do disposto no artigo 11º do Código Civil.

Neste sentido podem ver-se Henriques Gaspar e Pedro Garcia Marques e Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo 7º no “Código de Processo Penal Comentado”, de António Henriques Gaspar e outros, 3ª Edição Revista, Almedina, 2021, e no “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, org. [de] Paulo Pinto de Albuquerque, 5ª edição atualizada, UCP Editora, 2023, respetivamente, com vasta resenha doutrinal e jurisprudencial, que aqui se acompanham de perto.

No caso em apreço, o crime cuja existência constitui o objeto do processo é o de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.02, cuja verificação e responsabilidade pelo seu cometimento do arguido recorrente e dos seus coautores não está essencialmente dependente do conhecimento de qualquer questão não penal e muito menos indispensável para esse efeito.

Na verdade, considerando os termos em que o recorrente colocou a questão, o que ele discute é a validade dos meios de obtenção de prova e, em consequência, dos meios de prova através deles recolhidos, por considerar, entre o mais, ilícita a participação e colaboração da marinha portuguesa na abordagem ao barco onde seguiam os arguidos, na detenção destes e na apreensão do barco e demais bens, objetos e valores por eles detidos e nele transportados.

Ou seja, com essa eventual ilicitude, a par de outras questões suscitadas a propósito, o que se pretende discutir é se a prova recolhida é válida e passível de valoração em julgamento ou, ao invés, se se trata de prova absolutamente proibida ou de valoração proibida, nos termos dos artigos 126º do CPP e 32º, n.º 8, da CRP, cujo conhecimento incumbe necessariamente ao tribunal penal, por interferir com a definição do substrato fático indispensável à verificação ou não do crime de tráfico pelo qual os arguidos vinham acusados e pronunciados e sua eventual responsabilidade e condenação, conforme decorre dos artigos 365º a 379º do CPP e 202º a 205º da CRP, o que o acórdão recorrido, de resto, cumpriu.

Acresce que o procedimento decorreu sem qualquer violação das garantias de defesa do recorrente e coarguidos, com respeito pelo seu direito de participação e intervenção informadas, exercício pleno do contraditório e do direito ao recurso, sempre assistido por defensor e sem preclusão de quaisquer outros direitos previstos nos artigos 61º do CPP e garantias de defesa estabelecidas no artigo 32º da CRP, que, aliás, não identifica nem fundamenta, nomeadamente quanto à violação do princípio da proibição de autoincriminação, cuja convocação neste contexto nem sequer se alcança, salvo se se entender, como parece querer o recorrente sustentar à revelia da lei, não ser admissível o uso da força necessária para interromper uma atividade criminosa.

Ora, tal entendimento não colhe apoio em qualquer norma do ordenamento jurídico-constitucional português, do qual, ao contrário, resulta ser legítimo, lícito e obrigatório o respetivo uso pelas autoridades públicas, com respeito pelos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, como foi o caso, para fazer cessar as atividades criminosas de que tenham conhecimento, por força do princípio da legalidade que enforma o direito e o processo penal e, no que aqui importa, com expressão nos artigos 29º e ss. da CRP, e 55º, 241º e ss., 248º e ss. e 254º e ss. do CPP.

Em face do exposto, forçoso é concluir pelo acerto do despacho impugnado ao indeferir o pedido de suspensão do processo formulado pelo recorrente, por não se verificarem, no caso, os respetivos pressupostos.

Improcede, pois, esta primeira questão.

*

2. 2. Recurso do acórdão condenatório

*

2. 2. 1. incompetência dos tribunais portugueses e inaplicabilidade da lei penal portuguesa e consequente nulidade dos atos processuais praticados

Nas conclusões 2ª e 3ª a 16ª da motivação do recurso interposto pelo arguido do acórdão condenatório, suscita-se a questão da incompetência dos tribunais portugueses e a inaplicabilidade da lei penal portuguesa ao caso sub judice e da consequente nulidade do procedimento que nele culminou.

Os argumentos convocados pelo recorrente são, em síntese, os seguintes:

- a abordagem ao barco onde os arguidos se faziam transportar e a sua detenção e apreensões tiveram lugar fora do território nacional, porque concretizadas na Zono Económica Exclusiva (ZEE) espanhola;

- o produto estupefaciente apreendido não se destinava a Portugal;

- desconhece-se o país do pavilhão do barco e, consequentemente, o respetivo Estado não concedeu autorização prévia de intervenção às autoridades portuguesas, pelo que Portugal não podia tomar qualquer medida prevista no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988;

- tão pouco a Marinha Portuguesa podia, como fez, invadir a ZEE espanhola sem prévia autorização do/ou comunicação ao Reino de Espanha, sob pena de cometimento de um ato de guerra;

- a embarcação apreendida é apátrida, por não ter pavilhão/bandeira e a ZEE, para efeitos penais no âmbito do tráfico de droga, é considerada alto mar, pelo que estava sujeita à jurisdição do país do pavilhão, nos termos do artigo 92º da referida Convenção;

- não se mostram preenchidos os pressupostos estabelecidos nas pertinentes normas convencionais para o exercício pelo Estado Português do direito de visita à embarcação apreendida, sendo nulos todos os atos por ele praticados neste processo.

A questão foi objeto de apreciação no acórdão recorrido, que a considerou insubsistente, nos seguintes termos:

«(…) Antes de mais, cumpre apreciar a questão da incompetência da intervenção das autoridades policiais portuguesas e dos Tribunais Portugueses para o julgamento dos arguidos, suscitada pelos arguidos.

Nos autos resultou provado que no dia 20 de março de 2023, pelas 23 horas e 15 minutos, na posição das coordenadas de Latitude 36º 00’N e Longitude 007º 12’W, a cerca de 70 milhas náuticas a Sul da Foz do Rio Guadiana, na embarcação semirrígida, com 11,9 metros de comprimento, de cor preta, indocumentada, sem bandeira, sem identificação e qualquer inscrição visível, e com três motores “Yamaha V6”, de alta cilindrada, com 300 HP de potência, os arguidos CC, DD e AA detinham e transportavam 79 fardos que continham 25710 placas de canábis (resina), com o peso total aproximado de duas toneladas e meia de canábis (2 476 060 gramas).

De acordo com o disposto nos artigos 3.º, 33.º, 55.º e 57.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) Portugal e Espanha reclamaram como largura do seu Mar Territorial 12 milhas náuticas, da sua Zona Contígua 24 milhas náuticas e da sua Zona Económica Exclusiva 200 milhas náuticas, sendo que os dois países empregam sistemas de linhas base retas ao longo ou em parte da costa.

A zona económica exclusiva de Portugal é a 3.ª maior da União Europeia, de tal ordem que 11 % da ZEE da União Europeia pertence a Portugal. Com 1.727,408 km2 de área, a ZEE portuguesa é a 5.ª maior da Europa e 20.ª maior do mundo, podendo a sua representação gráfica ser visualizada em https://bit.ly/ZEE_Portugal, verificando-se que essa zona é distribuída ao longo da costa portuguesa e não se estende na proporção de 200 milhas para sul/sudoeste, onde a embarcação foi localizada.

A zona económica exclusiva de Espanha estende-se desde a base da costa até 200 milhas náuticas (370,4 km) mar adentro e está quase inteiramente dividida em três regiões compactas: a região Cantábrica e Atlântica, o Mediterrâneo juntamente com a região do Golfo de Cádiz e a área dependente das Ilhas Canárias. Existe uma quarta região muito menor que corresponde a Melilla.

Considerando a representação gráfica constante do auto de fls. 56 a 58, do mapa junto pela defesa em sede de instrução a fls. 536, bem como as coordenadas que constam do auto de notícia de fls. 3 e 4 e do relatório de fls. 61 e 67 (a 56 milhas de Cádis), em conjugação com a representação gráfica das ZEE portuguesas e espanhola juntas em audiência (certidão do processo 90/23.8... JAFAR.) não restam dúvidas a este Tribunal que a abordagem à embarcação foi efetuada na ZEE espanhola.

Assistindo inteira razão aos arguidos quanto à localização da embarcação no momento da abordagem, cremos que não lhes assiste razão quanto à consequência que daí extraem.

Nos termos do disposto no artigo 17º da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 29/91, de 06/09, e ratificada por Decreto do Presidente da República n.º 45/91, de 06/09, com a epígrafe de "Tráfico ilícito por mar”:

«1 - As Partes cooperam o mais amplamente possível para eliminar o tráfico ilícito por mar, em conformidade com o direito internacional do mar.

2- A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio com o seu pavilhão, ou sem qualquer pavilhão ou matrícula, é utilizado para o tráfico ilícito, pode solicitar auxílio às outras Partes a fim de pôr termo a essa utilização. As Partes assim solicitadas prestam essa assistência no limite dos meios de que dispõem.

3- A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio no uso da liberdade de navegação de acordo com o direito internacional e que arvore o pavilhão ou tenha matricula de uma outra Parte é utilizado para o tráfico ilícito, pode notificar desse facto o Estado do pavilhão e solicitar a confirmação da matrícula; se esta for confirmada, pode solicitar ao Estado do pavilhão autorização para adotar as medidas adequadas em relação a esse navio.

4- De acordo com o n.º 3 ou com os tratados em vigor entre as Partes ou com qualquer outro acordo ou protocolo por elas celebrado, o Estado do pavilhão pode autorizar o Estado requerente a, inter alia:

a) Ter acesso ao navio:

b) Inspecionar o navio:

c) Se se descobrirem provas de envolvimento no tráfico ilícito, adotar medidas adequadas em relação ao navio, às pessoas e à carga que se encontrem a bordo. (…)

9- As Partes devem considerar a possibilidade de celebrar acordos ou protocolos bilaterais ou regionais com vista a dar aplicação às disposições do presente artigo ou a reforçar a sua eficácia.

10- As medidas adotadas nos termos do n.º 4 do presente artigo só são aplicáveis por navios de guerra ou aeronaves militares ou quaisquer outros navios ou aeronaves devidamente assinalados e identificáveis como navios ou aeronaves ao serviço de um governo e autorizados para esse fím. (…)»

Ao abrigo deste mecanismo internacional foi celebrado o Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico ilícito de Droga no Mar, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 9/2000, de 28/01 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 2/2000, de 28/01 em que as partes contratantes se obrigam a prestar-se mutuamente a mais ampla cooperação possível com vista à eliminação do tráfico ilícito por mar de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, em conformidade com o direito internacional do mar.

Dispõe o artigo 4.º do referido tratado, com a epígrafe “Direitos das Partes” que:

“1 — No caso de suspeita fundada da prática de alguma das infrações referidas no artigo 1.º, cada Parte reconhece à outra um direito de representação que legitima a intervenção dos seus navios de guerra ou aeronaves militares ou outros navios ou aeronaves com sinais exteriores bem visíveis ou identificáveis de que estão ao serviço do Estado e devidamente habilitados para o efeito sobre os navios do outro Estado que se encontrem a operar fora das suas águas territoriais.

2 — No exercício do direito de representação a que se refere o n.º 1, os navios ou aeronaves oficiais poderão perseguir, parar e abordar o navio, verificar os documentos, interrogar as pessoas que se encontrem a bordo e, se existirem fundadas suspeitas de infracção, inspeccionar o navio e, se constatada, proceder à apreensão da droga, à detenção das pessoas presumivelmente infractoras e à condução do navio para o porto mais próximo ou mais adequado à sua imobilização, até à sua eventual devolução. (…)

Dispõe o artigo 5.º, com a epígrafe “Intervenção” que:

“1 — Sempre que existirem fundadas suspeitas de que um navio se está a dedicar ao tráfico ilícito, comunicar-se-á esse facto ao Estado do pavilhão, o qual responderá, no mais breve prazo possível, que não deverá, em princípio, exceder as quatro horas seguintes à receção do pedido, transmitindo as informações de que dispuser a respeito desse navio.

2 — Se essas informações confirmarem as suspeitas do Estado interveniente, poder-se-á efetuar uma intervenção a bordo, praticando-se os atos previstos no artigo 4.º. Se a intervenção não for iminente, comunicar-se-á a intenção de a iniciar à autoridade competente do Estado do pavilhão, a qual responderá, na medida do possível, num prazo máximo de quatro horas seguintes à receção do pedido, autorizando-a ou recusando-a.

3 — Se, porém, em função das circunstâncias, não for possível obter essa autorização prévia em tempo útil, poder-se-ão praticar os atos previstos no artigo 4.º após o que o comandante do navio ou da aeronave oficial comunicará imediatamente a sua atuação à autoridade competente do Estado do pavilhão. (…)

Por fim, dispõe o artigo 8.º, com a epígrafe “Autoridades competentes” que:

“1- Sem prejuízo das atribuições genéricas dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros de ambas as Partes, as comunicações previstas no presente Tratado decorrem, em regra, entre Ministérios da Justiça.

2- Em caso de especial urgência, as autoridades competentes do Estado de intervenção podem dirigir-se diretamente ao Ministério da Justiça do Estado do pavilhão ou às autoridades competentes indicadas por este Ministério.

3- As Partes designam, por troca de notas, oficiais de ligação e as autoridades competentes para os fins do presente Tratado».

Por conseguinte, a Força Aérea Portuguesa, que se encontrava numa operação conjunta com a Marinha e a Polícia Marítima no sentido da repressão do tráfico de estupefacientes por mar, avistou uma embarcação suspeita (face aos fardos que transportava) a navegar a cerca de 50 milhas náuticas de Cádis e suscitou a intervenção da Marinha e da Polícia Marítimas Portuguesas, intervenção essa legitimada pelos referidos normativos legais, sendo que no momento da interceção a embarcação se encontrava a cerca de 56 milhas náuticas de Cádis, local que corresponde à Zona Económica Exclusiva Espanhola, como efetivamente, desde o início afirmaram os arguidos.

A ZEE surge na Convenção do Direito do Mar como um espaço marítimo no qual se aplica um regime específico (cfr. art. 55.º).

A ZEE surge no seguimento dos esforços desenvolvidos desde o final da Segunda Grande Guerra, no sentido da extensão da autoridade dos Estados sobre vastos espaços marítimos junto às suas costas. Este movimento fundou-se na consciencialização das novas potencialidades e dos novos riscos resultantes, quer do progresso tecnológico — designadamente a possibilidade do aproveitamento económico dos recursos naturais do leito e do subsolo do mar e o perigo da exaustão dos recursos vivos —, quer do aumento do número das potências marítimas, em resultado da descolonização.

Historicamente, a ZEE representa um compromisso entre Estados costeiros, desejosos de assumir o controlo da conservação e do aproveitamento dos recursos naturais junto às suas costas, e outros Estados, principalmente interessados em ver assegurados uma ampla liberdade de navegação.

Nos planos político-económico e político-jurídico, é um conceito que condensa a repartição dos benefícios resultantes da utilização do mar numa determinada faixa. A premência dos interesses subjacentes à discussão do conceito de ZEE na CNUDM III determinou que numerosos Estados costeiros reivindicassem ZEE's com base apenas nos consensos mínimos verificados no seio daquela Conferência, contribuindo, desse modo, para a formação de uma nova regra consuetudinária: a permissão de estabelecer uma ZEE adjacente ao mar territorial, com uma largura máxima de 200 milhas, em que seja reservado ao Estado costeiro o aproveitamento económico do mar, respetivo leito e subsolo e a camada aérea sobrejacente, exceto enquanto via de comunicação. Muitos outros Estados reagiram às limitações que o estabelecimento destas ZEE's implicou para os seus interesses e no sentido de assegurar uma posição negocial forte, alargando as suas ZEEP's.

A CDM (adotada pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar III) já depois da criação de várias ZEE's prevê a ZEE como um espaço marítimo adjacente ao mar territorial do Estado costeiro, submetido a um regime específico tendente a estabelecer uma relação equilibrada entre os poderes do Estado costeiro e os dos outros Estados no mesmo espaço.

A ZEE, nos termos da CDM, abrange o mar, o respetivo leito e o seu subsolo e a camada aérea sobrejacente numa faixa adjacente ao mar territorial que não se estenderá além de 200 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial.

Os poderes do Estado costeiro na sua ZEE analisam-se fundamentalmente em direitos de soberania para fins de exploração e aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais e no que se refere a outras atividades com vista à exploração e aproveitamento da zona para fins económicos e em jurisdição referente à colocação e utilização de ilhas artificiais, instalações e estruturas, à investigação científica marinha e à proteção e preservação do meio marinho. O alcance sistemático desta distinção parece residir na amplitude dos poderes reconhecidos ao Estado costeiro: no caso dos direitos de soberania, este goza de uma competência exclusiva e sem mais restrições do que aquelas expressamente previstas; no tocante à jurisdição, verifica-se a remissão para regimes especiais em que a competência do Estado costeiro só existe nos precisos termos em que esteja prevista.

A estrutura dos poderes do Estado costeiro no âmbito das suas jurisdições funcionais indicia uma ideia de complementaridade entre estas e os direitos soberanos: o aproveitamento económico da ZEE pelo Estado costeiro deve ser apoiado pela necessária informação e por uma efetiva capacidade de defesa. Os outros Estados gozam na ZEE de um Estado costeiro das liberdades de navegação e sobrevoo e de colocação de cabos e duetos submarinos, bem como de outros usos do mar internacionalmente lícitos relacionados com estas liberdades, i.e., podem exercer todas as atividades ligadas às comunicações internacionais. O regime específico da ZEE procura assegurar uma repartição das utilidades do mar nessa zona — enquanto reservatório de riquezas, deve aproveitar principalmente ao Estado costeiro; enquanto via de comunicação, mantém-se aberto a todos os Estados — prevendo um sistema de distribuição de competências estruturado na base de «direitos de soberania» e de «liberdades» e coordenado a partir de regras de boa conduta (consideração recíproca dos direitos e deveres de outros Estados) e de regimes especiais respeitantes a certos atividades (i. e. os casos de jurisdição referidos no art. 56/1 b da CDM). Por isso, diversamente do que acontece no mar territorial em que o direito aplicável a cada caso depende do próprio espaço (jurisdição territorial) ou da nacionalidade das pessoas (jurisdição pessoal), respetivamente, na ZEE o facto determinante da competência dos Estados é a atividade concretamente desenvolvida (jurisdição funcional).

Os poderes atribuídos aos Estados costeiros e aos outros Estados no espaço marítimo correspondente à ZEE cobrem todos os aspetos do seu aproveitamento económico designadamente enquanto reservatório de riquezas e vias de comunicação.

Quanto às utilizações com outros fins, nomeadamente militares ou outros igualmente não previstos, há que integrar o regime específico da ZEE recorrendo à equidade e considerando a importância dos interesses em causa para as partes e para o conjunto de comunidade internacional.

No que respeita aos deveres do Estado costeiro correlativos dos novos poderes, há que distinguir as obrigações gerais de respeitar as liberdades dos outros Estados, de deveres especiais em matéria de acesso aos recursos, uma vez que as primeiras, ao contrário das segundas, encontram perfeita correspondência nos modelos consuetudinários. Com efeito, no domínio da definição das condições de acesso de embarcações estrangeiras para pescar na sua ZEE, a prática dos Estados costeiros, sem deixar de reconhecer obrigações de carácter geral referentes à conservação dos recursos vivos do mar e à respetiva utilização ótima, tem-se orientado pelos respetivos interesses nacionais não se sentindo vinculada por quaisquer regras especiais relativas a determinado tipo de Estado.

A ZEE é, do ponto de vista dogmático, um espaço marítimo de jurisdição funcional, essencialmente distinto do mar territorial e do alto mar, subordinada a um regime jurídico que representa o quadro de acomodação de várias utilizações do mar ordenado à repartição dos respetivos benefícios entre o Estado costeiro e os outros Estados. Os poderes e deveres de cada Estado na ZEE, embora estruturalmente idênticos àqueles que são exercidos no mar territorial ou no alto mar, conexionam-se com determinadas atividades que têm de coexistir no mesmo espaço, e em resultado dessa necessidade de acomodação recíproca, ficam sujeitos a uma particular forma de compressão.

Neste sentido, A Zona Económica Exclusiva: um novo conceito no direito internacional do mar, Pedro Machete, artigo publicado e acessível através do seguinte link https://journals.ucp.pt/index.php/direitoejustica/article/download/10758/10401.

A repressão do tráfico de droga por mar obedece a dois regimes bem distintos no direito do mar, cujos pressupostos gerais são estabelecidos pela CNUDM, na sua vocação de “Constituição dos Oceanos”. Em primeiro lugar, há o regime aplicável nas águas territoriais, sobressaindo, quanto ao mar territorial, o disposto no artigo 27.º da CNUDM.

Dentro das águas territoriais, a jurisdição do Estado do pavilhão cede, dando-se prevalência à jurisdição do Estado costeiro. Em segundo lugar, para lá do limite exterior do mar territorial, o regime que governa é o do alto mar, constante dos artigos 108.º e 110.º da CNUDM, onde impera a jurisdição do Estado do pavilhão.

Ultrapassada a fronteira do mar territorial, em matéria de tráfico de droga a bordo de embarcações estrangeiras o conceito de zona económica exclusiva não tem qualquer expressão. Por força do n.º 2 do artigo 108.º da CNUDM, toda a área da ZEE é governada pelo regime dos crimes internacionais praticados no alto mar, aspeto que concorre para a afirmação comum de que na área da ZEE é aplicável um regime de natureza híbrida, que tanto favorece a jurisdição do Estado costeiro (disposições da ZEE), como a jurisdição do Estado do pavilhão (disposições do alto mar), consoante a matéria de que se trate, por exemplo, respetivamente, aproveitamento económico de recursos ou repressão de crimes marítimos. Assim, para efeitos de repressão do tráfico de droga a bordo de embarcações estrangeiras o alto mar começa ultrapassado o limite exterior do mar territorial, facto que convoca a aplicação em exclusivo das regras de jurisdição extraterritorial.

Nos termos do artigo 108.º da CNUDM, todos os Estados devem cooperar para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas praticado por navios no alto mar com violação das convenções internacionais.

Por outro lado, o artigo 110.º da mesma convenção dispõe que o direito de visita de verificação do pavilhão da embarcação estrangeira pode ser exercido em relação a um navio em relação ao qual exista motivo razoável para suspeitar que o “navio não tem nacionalidade”. O conceito de navio sem nacionalidade materializa-se numa de três situações: a) o navio não arvora qualquer pavilhão nem tem qualquer registo, ou o que reclama é inválido; b) o navio exibe sinais exteriores de possuir nacionalidade (pavilhão), mas questionado o Estado em causa, a nacionalidade é refutada; c) nos termos do n.º 2 do artigo 29.º da CNUDM, o navio navega sob a bandeira de dois ou mais Estados, utilizando-as segundo as suas conveniências.

Sem prejuízo da notificação aos Estados da nacionalidade dos suspeitos detidos, a interpretação comum é a de que um navio sem nacionalidade pode ser apresado por qualquer Estado e não goza de proteção de ninguém. Ou seja, qualquer Estado pode estender a sua jurisdição a um navio sem nacionalidade, mas esta intenção deve estar desejavelmente expressa no direito interno ou, se não, pelo menos assimilada a prática das autoridades com poderes de ação no mar e dos tribunais. No caso do tráfico de droga, o exercício da jurisdição sobre navios sem nacionalidade está facilitado pela Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, assinada em Viena em 1988 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 21/91, de 6 de setembro) e a prática seguida pelos Estados.

A importância desta convenção está patenteada no facto de congregar 191 partes, entre elas a União Europeia, ou seja, quase todos os Estados do Mundo. Esta convenção desenvolve o princípio da cooperação estabelecido no artigo 108.º, n.º 1 da CNUDM e tem o importante efeito de atenuar as consequências negativas da omissão do tráfico de droga no artigo 110.º da CNUDM, relativamente ao direito de visita em alto mar, bem como da exclusividade de jurisdição do Estado da bandeira. A este respeito são fundamentais o artigo 17.º sobre o tráfico ilícito por mar e o artigo 4.º sobre o âmbito da jurisdição penal.

Note-se que o artigo 17.º só tem relevo no alto mar, atendendo a que no mar territorial prevalece o regime do artigo 27.º da CNUDM que, no n.º 1, al. d) atribui a jurisdição ao Estado costeiro.

Decorre do artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas (Resolução da Assembleia da República n.º 21/91, de 6 de setembro), que as partes cooperam o mais amplamente possível para eliminar o tráfico ilícito por mar, em conformidade com o direito internacional do mar; que a parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio com o seu pavilhão, ou sem qualquer pavilhão ou matrícula, é utilizado para o tráfico ilícito, pode solicitar o auxílio às outras partes para pôr fim a essa utilização; que de acordo com os tratados em vigor ou acordo ou protocolo celebrado entre as partes, o Estado do Pavilhão pode autorizar o Estado requerente a ter acesso ao navio, inspecionar o navio e se se descobrirem provas de envolvimento no tráfico ilícito, a adotar medidas adequadas em relação ao navio, às pessoas e à carga que se encontra a bordo.

Por via deste preceito ultrapassa-se a ideia de jurisdição exclusiva do Estado do pavilhão, permitindo-se sob certas condições, a sua representação a bordo por outros Estados e uma eventual renúncia ao exercício da jurisdição penal (n.º 3, 4 e 6), focando-se sobretudo em fixar um procedimento que viabiliza o exercício da “jurisdição de polícia” – poderes de fiscalização (reconhecimento, abordagem e visita) – por outros Estados em representação do Estado do pavilhão e, subtilmente, deixa também aberta a possibilidade de, estando dois Estados (o interveniente e o do pavilhão) habilitados pelo direito interno ao exercício subsequente da ação penal, o Estado do pavilhão renunciar à sua jurisdição contenciosa (competência judicativa) preferencial (n.º 4 e 6). O que é confirmado pelo artigo 4.º, n.º 1, b), ii) da mesma Convenção.

Relevante, para o caso concreto, é que o n.º 2 do artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas equipara os navios sem qualquer pavilhão aos navios que arvoram bandeira, encorajando os Estados a estenderem a sua jurisdição às embarcações sem nacionalidade.

Em Portugal não encontramos um quadro legal ou regulamentar que aplique internamente o disposto no artigo 17.º da referida convenção, todavia a Lei n.º 34/2006, de 28 de julho determina a extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado Português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar. Este pode ser exercido quando, relativamente a navios estrangeiros, o Estado Português “tiver jurisdição em conformidade com o direito internacional (artigo 18.º, al.b). Em conjunto com o artigo 3.º da mesma lei, que remete para uma interpretação conforme com o disposto na CNUDM, este acervo normativo confere jurisdição às autoridades portuguesas para visitarem embarcações sem nacionalidade e embarcações estrangeiras envolvidas no tráfico de droga, neste último caso, mediante autorização do Estado do Pavilhão nos termos que forem fixados por via bilateral ou multilateral. Os artigos 19.º e 20.º da Lei n.º 34/2006 regulam, depois, o procedimento da visita a bordo e o apresamento do navio, no demais aplicando-se as normas constantes do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01 e o regime geral do processo penal (artigo 51.º do Dec. Lei 15/93).

No que toca ao exercício da jurisdição penal em matéria de tráfico de droga, as opções do legislador português estão expressas nos artigos 48.º e 49.º do Decreto Lei n.º 15/93,de 22.01. Do artigo 48.º resulta a aplicação subsidiária do disposto no artigo 4.º (jurisdição territorial) e no artigo 5.º (jurisdição extraterritorial) do Código Penal.

Com efeito, nos termos do n.º 2 do artigo 5.º do Código Penal, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional que o Estado Português se tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional.

E, nos termos do artigo 49.º, al. b) do Decreto-Lei 15/93, de 22.01 a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional quando praticados a bordo de navio contra o qual Portugal tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988.

Em suma, está facilitado o exercício da jurisdição penal em relação a cidadãos estrangeiros no caso de embarcações sem nacionalidade, mesmo que intercetadas em alto mar (cujas regras são aplicáveis à ZEE) devido ao facto de o n.º 2 do artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988 as equiparar às embarcações que arvoram o pavilhão do Estado que faz a abordagem, visita e pratica os atos de autoridade a bordo.

Parece poder estender-se a jurisdição territorial àquele tipo de embarcações, no nosso caso constante da alínea b) do artigo 4.º do Código Penal, ou considerar-se que o agente se encontra em Portugal para os efeitos da alínea a) do artigo 49.º do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01. A interpretação é confortada pelo facto de os artigos 18.º a 20.º da Lei n.º 34/2006 atribuírem indiretamente, mandato às autoridades portuguesas para procederem à visita de embarcações sem nacionalidade e praticarem os atos necessários subsequentes.

Neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de abril de 2020 e de 26 de outubro de 2021 (ambos no proc.18/20.7 JELSB e disponíveis em texto integral no site www.dgsi.pt) e Marta Chantal Ribeiro “A repressão do tráfico de droga a bordo de embarcações estrangeiras no alto mar: subsídios para a interpretação do dever de resposta sem demora do Estado do pavilhão à luz do direito internacional”, RMP, 176, outubro a dezembro 2023.

Por fim, e no que respeita ao caso concreto para além de todos os normativos legais citados, a intervenção das autoridades portuguesas encontrava-se igualmente legitimada pelo Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico ilícito de Droga no Mar, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 9/2000, de 28/01 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 2/2000, de 28/01, sendo que decorre de fls. 47 e 48 dos autos que, logo no dia 21 de março de 2023, pelas 14h32 e 14h46 foi comunicada a detenção dos arguidos às autoridades espanholas e marroquinas, que mantiveram a colaboração com o Estado Português como decorre de fls. 214 a 219, sem nunca terem colocado em causa o procedimento das autoridades portuguesas ou reclamado a sua jurisdição policial e contenciosa.

Pelo exposto, improcede a invocada incompetência dos tribunais portugueses e a inaplicabilidade da lei portuguesa, bem como a invalidade dos meios de prova obtidos através da intervenção da Polícia Marítima invocadas».

*

A exaustiva fundamentação, com respaldo nas pertinentes normas legais e convencionais e doutrina e jurisprudência citadas, merece o nosso acolhimento e dispensaria quaisquer outras considerações no sentido da improcedência das questões suscitadas pelo recorrente neste segmento do seu recurso.

Ainda assim, de forma breve e em seu reforço, aditam-se as seguintes considerações.

Como lembram Jorge de Figueiredo Dias, no 9.º Capítulo, sobre “o âmbito de validade espacial da lei penal”, em Direito Penal, Parte Geral, Tomo 1, Questões Fundamentais a Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2004 e Manuel António Lopes Rocha, em “Aplicação da Lei Criminal no Tempo e no Espaço”, pp. 85 a 151, em Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Fase I, CEJ, Lisboa, Abril de 1983, na esteira de Jescheck, o princípio basilar da territorialidade que conforma a aplicação da lei penal estadual no espaço, em Portugal e na generalidade dos Estados soberanos, além do alargamento pelo designado “critério do Pavilhão”, relativamente a crimes cometidos a bordo de navios ou de aeronaves, pode sofrer modelações decorrentes de princípios acessórios ou complementares, designadamente, no que aqui releva, do “princípio da universalidade, da competência universal ou do direito universal”.

Este princípio, nas palavras de ambos os mencionados autores, legitima a aplicação da lei penal portuguesa pelo tribunal português material e territorialmente competente no lugar onde se encontra o agente do crime, independentemente da geografia onde foi cometido e da sua nacionalidade ou da vítima, quando estejam em causa crimes lesivos de relevantes “bens jurídicos de carácter supranacional”, como tal generalizadamente reconhecidos e punidos pelas leis internas de cada país ou pelo direito convencional internacional e princípios gerais de direito internacional.

Não se trata de conferir a cada Estado o poder de perseguir e punir qualquer crime previsto na sua legislação interna, sob pena de surgimento de constantes diferendos e conflitos de soberania entre os vários Estados, mas de permitir essa perseguição e punição quando esteja em causa algum daqueles bens jurídicos e a provável impunidade da sua violação sem recurso a esse princípio da universalidade, da competência universal ou do direito universal, expressamente refletido no artigo 5º do CP português,, em particular no seu n.º 2, conjugado com instrumentos de direito internacional relacionados a que Portugal se encontre vinculado.

Entre vários exemplos de criminalidade internacional perigosa e violadora daqueles bens jurídicos, surge o do tráfico internacional de estupefacientes, cujo combate a nível mundial se mostra consagrado na Convenção das Nações Unidas de 1988, conjugada com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982 e, a nível bilateral, com o Tratado entre Portugal e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico de Droga por Mar, referenciados no transcrito trecho do acórdão recorrido.

Deste modo, mesmo para aqueles que não reconhecem “a emergência de um costume internacional, seja geral ou regional, legitimador de exercício de jurisdição universal”, como conclui Marta Chantal Ribeiro, no artigo publicado na RMP, n.º 176, também citado naquele trecho, a verdade é que o ordenamento jurídico português dispõe de um complexo normativo disperso por diferentes diplomas legais, que, conjugados entre si e com aqueles instrumentos de direito internacional, permite concluir, como no acórdão recorrido, pela legitimidade e licitude da intervenção da Marinha e da Força Aérea e pela aplicação da lei penal portuguesa pelos tribunais portugueses ao caso em apreço, como referem os autores antes citados, em sintonia com o que também sustenta Henriques Gaspar, em anotação aos artigos 6º e 22º do CPP, in ob. e loc. cit.

Desde logo, os artigos 48º e 49º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, cuja razão determinante levada ao respetivo preâmbulo, foi assumidamente a referida Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, oportunamente assinada por Portugal e aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 29/91, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 45/91, publicados no Diário da República, de 6 de setembro de 1991, que, remetem precisamente para os artigos 4º a 6º do CP, de que também se extrai a possibilidade de aplicação da lei penal portuguesa a crimes cometidos fora do território nacional e sem qualquer conexão pessoal a Portugal, como decorre da previsão do artigo 5º, n.º 2.

Depois, a Lei n.º 34/2006, de 28 de Julho, que “determina a extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado Português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar”, cujas disposições, nos termos do seu artigo 3º, (…) são interpretadas em conformidade com os princípios e normas do direito internacional, designadamente os previstos na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10 de Dezembro de 1982

E que, nos artigos 13º e 14º, estabelece, respetivamente, que “Os poderes a exercer pelo Estado Português no mar compreendem, sem prejuízo do estabelecido em legislação especial, aqueles que estejam consagrados:

a) Em normas e princípios do direito internacional que vinculam o Estado Português;

b) Nas disposições da presente lei” e que “O exercício da autoridade do Estado Português nas zonas marítimas sob a sua soberania ou jurisdição e no alto mar, nos termos definidos nos artigos seguintes e em legislação própria, compete às entidades, aos serviços e organismos que exercem o poder de autoridade marítima no quadro do Sistema de Autoridade Marítima, à Marinha e à Força Aérea, no âmbito das respectivas competências”.

Disciplinando, nos artigos 16º a 20º, as “actividades de fiscalização e exercício do direito de visita (…) sobre todos os navios, embarcações ou outros dispositivos flutuantes, nacionais ou estrangeiros, à excepção daqueles que gozem de imunidade”, que podem culminar no apresamento do navio e seu reboque/trânsito para porto português, ficando à ordem da entidade competente, com levantamento de auto de notícia da ocorrência.

Os Decretos-Lei n.ºs 43/2002, de 2 de Março, que cria o sistema da autoridade marítima, e 44/2002, de 02 de Março, que “estabelece, no âmbito do sistema da autoridade marítima, as atribuições, a estrutura e a organização da autoridade marítima nacional e cria a Direcção-Geral da Autoridade Marítima” e que, no artigo 15º, define a Polícia Marítima como “ (…) uma força policial armada e uniformizada, dotada de competência especializada nas áreas e matérias legalmente atribuídas ao SAM e à AMN, composta por militares da Armada e agentes militarizados”, cujo pessoal se rege por estatuto próprio, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 248/95, de 21.09, na redação atual conferida pelo Decreto-Lei n.º 235/2012, de 31.10, em cujo artigo 2º se definem as respetivas competências e se lhe confere o estatuto de Órgão de Polícia Criminal para efeitos de aplicação da legislação processual penal, conforme desenvolvidamente refere Rui Cardoso, em “Órgãos de Polícia Criminal – o que são, os que são e os que não são”, na RMP, Ano 41, n.º 161, pp. 171 e ss., em particular, pp. 202 a 206.

Por fim, o Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico Ilícito de Droga no Mar, Instrumento Bilateral concluído em 2.03.1998, em Lisboa, cuja vigência se iniciou em 21.01.2001, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 9/2000, de 28/01; ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 2/2000, de 28/01, publicados no Diário da República I-A, n.º 23, de 28.01.2000, pormenorizadamente analisado no acórdão recorrido e sobre cujos termos pode ver-se o Parecer da Procuradoria-Geral da República, relatado por Garcia Marques, acessível em https://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/, em sintonia com aquela decisão quanto aos pontos em discussão neste caso, relevando igualmente para compreensão do seu do âmbito de aplicação, por si e em conjugação com as diversas Convenções das Nações Unidas sobre o direito do Mar e contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988.

Este importante Tratado, no entanto, como resulta do próprio acórdão recorrido e da motivação e conclusões do recurso em apreço, afigura-se irrelevante na análise e decisão das questões em apreciação nesta sede, considerando o que em ambos se concluiu quanto à equivalência da Zona Económica Exclusiva ao alto mar para efeitos de poderes de fiscalização, incluindo o direito de visita, de investigação e judicantes das autoridades portuguesas e de aplicação da nossa lei penal, substantiva e processual, regulados pelos diversos pertinentes diplomas legais e convencionais anteriormente referidos em termos concludentes no sentido da aplicação da lei penal portuguesa pelos tribunais portugueses e da legitimidade e licitude da intervenção da Marinha e da Força Aérea e consequente validade da prova recolhida pela Polícia Marítima com o seu auxílio e intervenção coadjuvante.

De tudo resulta inequívoco também não poder sequer equacionar-se o cometimento de qualquer crime de guerra pelo Chefe do Estado Maior da Armada ou qualquer outro elemento da autoridade marítima nacional, nomeadamente dos p. e p. pelos artigos 99º e 100º do Código de Justiça Militar (CJM), aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15.11, por não se mostrarem preenchidos os respetivos elementos típicos, objetivos e subjetivos.

Improcedem, assim, as questões suscitadas pelo recorrente neste segmento.

*

2. 2. 2. nulidade das provas recolhidas por utilização de métodos de obtenção de prova proibidos, em violação do disposto no artigo 126º, n.º 4, do CPP

Nas conclusões 2ª e 17ª a 25ª, o recorrente suscita a questão da nulidade das provas recolhidas em consequência da utilização de métodos proibidos de prova, que, na sua ótica, consistiriam na utilização de forças militares sem autorização do Comandante Supremo das Forças Armadas, que, ademais, integrariam mesmo a prática de um crime estritamente militar, nomeadamente o previsto e punível pelo artigo 99º do CJM.

Daí e considerando a teoria “dos frutos da árvore envenenada” nenhum dos meios de prova através deles obtidos poderá ser aproveitado ou valorado pelo tribunal para formar a sua convicção e fixar a matéria de facto, nos termos do artigo 126º, n.º 4, do CPP.

Também esta questão foi expressa e desenvolvidamente considerada e apreciada na fundamentação jurídica do acórdão recorrido, aí se concluindo pela não ocorrência in casu de qualquer utilização de métodos proibidos de prova, dada a legitimidade e licitude da intervenção da Marinha e da Força Aérea, a qual, por conseguinte, não consubstancia a prática de qualquer ilícito criminal, nomeadamente do crime p. e p. pelo artigo 99º do CJM, conforme exposto no ponto anterior, cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais.

Tanto bastaria, mais uma vez, para concluir, como o tribunal recorrido, pela improcedência da questão.

Mas, assumindo o risco de repetição argumentativa, vejamos o que sobre ela se consignou no acórdão sob escrutínio a pp. 16 a 24 (transcrição parcial):

«(…) Em termos gerais, os arguidos invocam a nulidade de todos os meios de prova constantes dos autos na medida em que os mesmos decorrem da utilização de métodos proibidos de prova nos termos do artigo 126.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, porquanto a intervenção da marinha portuguesa foi ilegítima, constituindo inclusive, um ilícito penal.

Dos autos decorre que no âmbito de uma operação conjunta levada a cabo pela Força Aérea, Marinha e Polícia Marítima com vista a dissuadir a presença de embarcações em atividades ilícitas relacionadas com narcotráfico foram detetadas pela Força Aérea Portuguesa duas embarcações a cerca de 67 milhas náuticas a sul do Rio Guadiana, nas coordenadas de Latitude 36º .03’N e Longitude 7º .11’W (conforme mapa de fls. 56) tendo uma delas vindo a ser abordada a cerca de 70 milhas náuticas a Sul da Foz do Rio Guadiana, nas coordenadas de Latitude 36º .00’N e Longitude 7º .12’W (conforme fotografias aéreas e mapa de fls. 57 e 58). E que, grosso modo, corresponde ao indicado pelo arguido CC a fls. 536. Assumindo, como decorre da defesa dos arguidos, que a abordagem tenha sido feita na ZEE espanhola, haverá então que aferir da legitimidade da intervenção da Marinha Portuguesa.

Nos termos do disposto no artigo 17º da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (…), com a epígrafe de "Tráfico ilícito por mar”:

(…)

Ao abrigo deste mecanismo internacional foi celebrado o Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico ilícito de Droga no Mar, (…) em que as partes contratantes se obrigam a prestar-se mutuamente a mais ampla cooperação possível com vista à eliminação do tráfico ilícito por mar de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, em conformidade com o direito internacional do mar.

Dispõe o artigo 4.º do referido tratado, com a epígrafe “Direitos das Partes” que:

(…)

Por conseguinte, a Força Aérea Portuguesa, que se encontrava numa operação conjunta com a Marinha e a Polícia Marítima no sentido da repressão do tráfico de estupefacientes por mar, avistou uma embarcação suspeita (face aos fardos que transportava) e suscitou a intervenção da Marinha e da Polícia Marítimas Portuguesas.

Com efeito, ao contrário do alegado pelos arguidos, a Marinha Portuguesa não atuou sozinha. A Polícia Marítima, que é um órgão de polícia criminal (nos termos do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 248/95 de 21 de Setembro, o Estatuto do Pessoal da Polícia Marítima (EPPM), os agentes da Polícia Marítima são órgãos de polícia criminal para efeitos de aplicação da legislação processual penal, sendo os inspetores, subinspetores e chefes autoridades de polícia criminal, assim como os órgãos de comando da PM, como tal definidos e que cumprimento das suas competências de polícia, fiscalizam o cumprimento da lei nas áreas de jurisdição do SAM (Sistema da Autoridade Marítima), preservam a regularidade das atividades marítimas, e garantem a segurança e os direitos dos cidadãos) juntamente com uma embarcação com fuzileiros, adotou as medidas cautelares de polícia admissíveis e comunicou à Polícia Judiciária (órgão de polícia criminal competente por via do artigo 7.º, n.º 3, al. i) da Lei 49/2008, de 27.8), que por sua vez deslocou os seus agentes ao Porto de Faro, onde pelas 13h40 do dia 21 de março (fls. 53 a 60), foi feita a detenção em flagrante delito (após a confirmação do teste rápido fls.119) e que, de imediato comunicou ao Ministério Público – Diap de Faro (fls. 45 e artigo 264.º, n.º 2 do CPP), às autoridades espanholas (fls. 47) e às autoridades marroquinas (fls.48), dada a nacionalidade dos detidos.

Não tendo a embarcação em causa pavilhão algum, a intervenção da Marinha Portuguesa não tinha que ter prévia autorização de quaisquer entidades, designadamente espanholas, sendo certo que, conforme consagrado no artigo 14º, da Lei nº 34/2006, de 28/07, (…)

Dispõe ainda o artigo 18.º, al. b) da mencionada lei que (…), determinando o artigo 20.º do mesmo diploma que (…).

Assim, a intervenção da Marinha, em conjugação com a Polícia Marítima e com a Força Aérea encontra-se legitimada pelas normas definidas no Decreto Lei n.º 43/2002, de 2 de março (que define a organização e atribuições do sistema da autoridade marítima e cria a autoridade marítima nacional), na Lei n.º 34/2006, de 28 de julho (que determina a extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado Português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar) e no Decreto Regulamentar n.º 86/2007, de 12 de dezembro (que articula a ação das autoridades de polícia e demais entidades competentes no âmbito dos espaços marítimos sob soberania e jurisdição nacional).

Isto porque os artigos 88.º a 115.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar se aplicam à zona económica exclusiva (artigo 58.º, n.º 2 da mesma convenção).

Donde, se à ZEE se aplicam as regras referentes ao alto mar, o direito de visita exercido pela Marinha e pela Polícia Marítima Portuguesa encontra acolhimento no artigo 110.º, n.º 1, al. d) da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e 4.º, n.º 1 e 2 do Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico ilícito de Droga no Mar, supra mencionado.

Em suma, toda a abordagem feita pelos oficiais da Marinha, e pela Polícia Marítima, no âmbito dos referidos acordos internacionais, com reporte para as autoridades dos países envolvidos, têm correspondência com o conteúdo das normas relativas ao direito de visita, a que se reporta a Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar, aos deveres a que Portugal está adstrito relativamente à Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e bem assim ao Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico ilícito de Droga no Mar.

Dispõe o artigo 126.º do Código de Processo Penal que:

“1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.

2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:

a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;

b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;

c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;

d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;

e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.

3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.

4 - Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo”.

Os arguidos invocam o n.º 4 do artigo 126.º do Código de Processo Penal porquanto no seu entender foi utilizada “a força de armamento pesado militar, embarcações militares, metralhadoras fixas e portáteis, canhões e utilização de abalroamento de embarcações em alto mar com a colocação em risco da população civil”, o que consubstancia um crime de movimento injustificado de forças militares previsto no artigo 99.º do Código de Justiça Militar e um crime contra a humanidade previsto e punido pelo artigo 9.º, alínea h) da Lei n.º 31/2004, de 22 de julho e determina a nulidade de todos os meios de prova decorrente da utilização de métodos proibidos de prova nos termos do artigo 126.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.

Ora, salvo melhor entendimento, dos autos nada decorre que tenham sido utilizadas metralhadoras fixas e portáteis, canhões, qualquer outro armamento pesado militar, que qualquer embarcação tenha sido abalroada ou que a população civil tenha sido colocada em risco. Salvo melhor entendimento, dos autos nada decorre que as provas constantes dos autos foram obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas, ou por qualquer um dos meios previstos no n.º 2 e 3 do artigo 126.º do Código de Processo Penal. Nem mesmo os arguidos o referiram porquanto não prestaram declarações em audiência de julgamento, sendo que quando em sede de instrução o arguido CC prestou declarações nada referiu quanto a tal situação. Mais, do auto de exame à embarcação de fls.292 a 295 decorre que a mesma tinha os flutuadores de estibordo e proa rasgados, o que em audiência foi explicado pela testemunha EE. Nada nos autos indicia a prática de qualquer ilícito penal praticado pela Marinha, pelo Força Aérea ou pela Polícia Marítima.

Por conseguinte, não se verifica a nulidade invocada referente à intervenção da Marinha Portuguesa, considerando-se, em consequência, que todos os meios de prova constantes dos autos são válidos, não tendo sido obtidos através de métodos proibidos.».

*

Portanto, nenhuma violação ou simples ofensa das pertinentes normas constitucionais e legais, nomeadamente dos artigos 32º, n.º 8, da CRP e 126º do CPP, resultou da intervenção da Força Aérea e da Marinha, uma vez que a mesma decorreu a coberto de pertinentes normas legais e convencionais aplicáveis ao caso em apreço, sem utilização de qualquer método proibido de prova, mas apenas dos meios coercivos e de segurança indispensáveis à concretização da intervenção obrigatória e necessária à cessação da situação de ilicitude criminal detetada em flagrante delito e à salvaguarda dos respetivos meios de prova e à incriminação dos seus agentes.

Termos em que também esta questão improcede.

*

2. 2. 3. nulidade insanável do auto de notícia, elaborado por quem não presenciou os factos, em violação do artigo 169º do CPP

Nas conclusões 26ª a 30ª, suscita o recorrente a questão da nulidade insanável do auto de notícia, por não ter sido assinado por quem esteve no momento e local da sua detenção e do apresamento da embarcação em que seguia com os dois coarguidos não recorrentes, em violação do artigo 169º do CPP.

Dessa alegação resulta uma evidente confusão entre o valor probatório que se pode atribuir ao auto de notícia, se considerado documento autêntico ou autenticado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 363º, n.º 2, e 369º do Código Civil e 99º e 169º do CPP, e os requisitos a que o mesmo deve obedecer, nos termos do artigo 243º do mesmo diploma legal, e consequências decorrentes da sua eventual inobservância, como assinalam Inês Ferreira Leite, Helena Bolina e Paulo Pinto de Albuquerque e Henriques Gaspar e Maia Costa em anotação àqueles preceitos do CPP, respetivamente no Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e no Código de Processo Penal Comentado acima citados, com interessante resenha jurisprudencial e doutrinal.

Contudo, mesmo para aqueles que consideram o auto de notícia como documento autêntico ou autenticado, a respetiva força probatória restringe-se aos factos nele expressos sobre o que foi observado e que consubstanciam a denúncia de crime público ou semipúblico, se o ofendido também estiver presente e manifestar a vontade de procedimento criminal, a comunicar ao Ministério Público, mas sem relevo probatório quanto à efetiva prática do crime e quanto à culpabilidade do ou dos seus agentes, ficando, nessa parte, sujeito à livre apreciação do juiz, nos termos do artigo 127º do CPP.

Por outro lado, apesar de alguma controvérsia que ainda persiste a propósito das consequências da inobservância plena dos requisitos estabelecidos no artigo 243º do CPP e sem embargo da possibilidade da arguição e eventual declaração da respetiva falsidade, nos termos do artigo 170º do CPP, que aqui não se coloca, considerando estar apenas em causa a falta de assinatura dos elementos da Polícia Marítima que intervieram na abordagem, apresamento e reboque da embarcação para o porto de Faro, juntamente com os arguidos e haveres por eles detidos, tem-se por certo que aquela eventual inobservância não integra qualquer nulidade, mas antes uma mera irregularidade a arguir nos termos do artigo 123º, n.º 1, do CPP, sob pena de sanação, tendo em conta o princípio da legalidade estabelecido no artigo 118º do mesmo Código.

Considerando o exposto e visto que o acórdão recorrido também apreciou e decidiu esta questão, a pp. 25 a 29, vejamos o que nele se consignou a propósito:

«Invocam ainda a nulidade do auto de notícia de fls. 3 e 4 por não ter sido assinado por quem presenciou os factos e a irregularidade do depoimento da testemunha FF por se tratar de um depoimento indireto nos termos do artigo 129.º do Código de Processo Penal.

Analisemos a primeira questão.

Dispõe o artigo 243.º do Código de Processo Penal que:

“1 - Sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia, onde se mencionem:

a) Os factos que constituem o crime;

b) O dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido;

e

c) Tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos.

2 - O auto de notícia é assinado pela entidade que o levantou e pela que o mandou levantar.

3 - O auto de notícia é obrigatoriamente remetido ao Ministério Público no mais curto prazo, que não pode exceder 10 dias, e vale como denúncia.

4 - Nos casos de conexão, nos termos dos artigos 24.º e seguintes, pode levantar-se um único auto de notícia”.

O auto de notícia de fls. 3/4 é assinado pelo ... Comandante ... da Polícia Marítima ..., o subinspetor FF. Inquirido este como testemunha pelo mesmo foi referido que fez parte da equipa que estava no Centro de Operações, em terra, mas em comunicação permanente, via rádio e via satélite com a aeronave da Força Aérea e com os meios náuticos da marinha e da polícia marítima que se encontravam no local porquanto lhe competia a coordenação da operação, estando submetido às ordens do Comandante BB. A testemunha referiu que as coordenadas vertidas no auto são transmitidas pelo meio aéreo e são registadas nos monitores do Centro de Operações, tal como a rota das embarcações para que saibam onde se encontram os barcos.

Ora, salvo melhor entendimento, o auto é levantado pelo órgão de polícia criminal – Polícia Marítima – que presencia o crime, em colaboração com outras entidades como previsto no Decreto Lei n.º 43/2002, de 2 de março, na Lei n.º 34/2006, de 28 de julho e no Decreto Regulamentar n.º 86/2007, de 12 de dezembro. Pese embora quem o assine não tenha presenciado o avistamento, a abordagem e as medidas cautelares adotadas, quem o assina é a pessoa que no Centro de Operações recebe as informações do meio aéreo no local, comunica aos superiores hierárquicos, no caso ao Comandante BB, deste recebe as ordens que transmite aos meios náuticos que se encontram no local e que, para esses efeitos está em permanente contacto com todos os meios aéreos e náuticos, recebendo e transmitindo informações em direto, de acordo com o disposto no artigo 19.º, n.º 1 da Lei n.º 34/2006, de 28 de julho.

A questão, que cremos ser a levantada pelos arguidos, prende-se com o valor probatório do auto de notícia. A doutrina e a jurisprudência dividem-se quanto ao valor probatório do auto de notícia de crime – há quem entenda que se integra no âmbito do artigo 169º do Código de Processo Penal, de forma a atribuir-lhe um valor qualificado por via da sua equiparação a documento autêntico, nos termos dos artigos 363º, n.º 2, e 369º do Código Civil, e quem entenda que não tem a força probatória que o artigo 169º do Código de Processo Penal confere aos documentos autênticos e autenticados extra processo, é tão só um documento intra-processo, fundamental no processo penal porque traz a notícia de um crime, mas com um valor probatório muito limitado e sujeito à livre apreciação do julgador.

O auto de notícia, exarado com as formalidades legais, por autoridade pública nos limites da competência que lhe é atribuída por lei constitui um documento autêntico (art.º 363º, n.º 2, do Código Civil). Não pode, porém, confundir-se a natureza do documento com o problema da sua fé em juízo, no específico âmbito do processo penal e por força dos princípios acolhidos no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, atinentes às garantias da defesa.

Isto, naturalmente, sem prejuízo de os documentos autênticos só fazerem prova plena dos factos atestados com base nas perceções do documentador e dos que se passam na sua presença (art.º 371º, n.º 1, do Código Civil) e de, no que se refere ao processo penal, ser admitido o contraditório (artigos 165º, n.º 2, e 327º, n.º 2, do Código de Processo Penal). Inquestionável, portanto, é que o valor probatório do auto de notícia, como documento autêntico nos termos das disposições conjugadas dos artigos 169º do Código de Processo Penal e 371º, n.º 1, do Código Civil, se circunscreve aos comportamentos presenciados e ao que foi percecionado diretamente pela autoridade policial, não se estendendo a outros contributos, mormente às declarações de terceiros aí eventualmente vertidas, nomeadamente as referentes ao relato dos eventos, por parte do queixoso, do suspeito ou de testemunhas.

Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de novembro de 2022, disponível em texto integral no site www.dgsi.pt.

Em consequência, se se entender que o auto de notícia deveria ter sido assinado pelos agentes da Polícia Marítima que estiveram no local e não pelo Comandante da Polícia Marítima que coordenou a operação em terra, daí nenhuma nulidade decorre quanto ao auto de notícia (nem está legalmente prevista), mas tão só que o mesmo só pode atestar o que lhe foi comunicado pelos agentes no local e que, por conseguinte, não tem o valor probatório previsto no artigo 169.º do Código de Processo Penal, mas vale como denúncia obrigatória nos termos do disposto no artigo 242.º do Código de Processo Penal. Aliás, tem vindo a ser entendimento deste Tribunal que o auto de notícia deve estar sujeito à livre apreciação do julgador e analisado em conjunto com os demais elementos probatórios.

Por outro lado, tendo a testemunha FF sido o coordenador da operação conjunta entre a Polícia Marítima, a Marinha e a Força Aérea que esteve na origem dos presentes autos, ainda que a operar no Centro de Operações em terra, o seu conhecimento não é indireto, porquanto os agentes no local atuam sob as suas ordens.

Não se trata, por isso, de um depoimento indireto nos termos do artigo 129.º do Código de Processo Penal. Mas, ainda que assim fosse, a testemunha EE, agente da Polícia Marítima que esteve no local enquanto órgão de polícia criminal também prestou o seu depoimento. Como aliás, também assim o não é o depoimento da testemunha BB, que tendo estado em terra coordenou a operação e deu instruções à testemunha FF. Destarte, pelos fundamentos invocados cremos não se verificar a invocada nulidade do auto de notícia de fls. 3 nem qualquer irregularidade no que concerne ao depoimento da testemunha FF, pelo que se indefere.».

*

Desta transcrição resulta que no acórdão recorrido se acolheu a orientação que não reconhece ao auto de notícia um valor probatório reforçado, antes o considerando um elemento sujeito à livre apreciação do julgador, conjugado com os demais meios de prova e as regras da experiência comum, nos termos do artigo 127.º do CPP, e que, por outro lado, considerou que o auto de notícia posto em crise pelo recorrente não padece de qualquer nulidade, por isso indeferindo a que por ele foi arguida na contestação.

Independentemente dessa posição, que se mantém controversa e colhe o apoio de alguma da doutrina e jurisprudência citadas, aderiu, como antes se aludiu, à ideia de que a eventual inobservância dos requisitos formais, no caso, a falta de assinatura de um dos elementos da Polícia Marítima intervenientes na operação de abordagem, apresamento e reboque da embarcação para o porto de Faro, detenção das pessoas que nela se encontravam e retenção dos bens, objetos e valores por eles detidos, não integraria qualquer nulidade, mas uma mera irregularidade, nos termos sobreditos.

Sendo assim, mesmo que se considerasse verificada essa omissão, ela apenas implicaria a irregularidade do auto de notícia posto em crise, cuja arguição deveria ter ocorrido no próprio ato da respetiva elaboração, ou não tendo os arguidos estado presentes nesse ato, nos três dias seguintes à sua intervenção no processo que lhes tivesse permitido o contacto com tal auto.

Ora, como resulta da análise do processo, após a abordagem, apresamento, detenção e retenção ocorridas no dia 20 de marços de 2023, pelas 23 horas e 15 minutos (facto provado 1), os arguidos, embarcação e demais objetos, bens e valores foram entregues à Polícia Judiciária, no dia 21 desse mesmo mês, acompanhados do auto de notícia em causa, na mesma data em que esses acontecimentos e autos foram comunicados ao Ministério Público, pela Polícia Marítima e pela Polícia Judiciária, conforme decorre do questionado auto de notícia e do expediente elaborado por esta última entidade, de 21.03.2024, com a referência ...38, com base no qual foi requerido o interrogatório judicial dos arguidos detidos e a aplicação das medidas de coação.

O Interrogatório teve lugar no dia 22.03.2023 perante o juiz de instrução criminal competente, conforme resulta do respetivo auto, com a referência ...72.

No decurso desse interrogatório, os arguidos foram assistidos pela mesma defensora subscritora do presente recurso, que teve acesso aos autos, que consultou, e no decurso do qual suscitou diversas nulidades, nenhuma delas referente ao auto de notícia.

Tão pouco o questionou aquando do recurso que interpôs, em 24.04.2023 (referência...19), do despacho do JIC que aplicou aos arguidos a prisão preventiva.

Donde, forçoso é concluir que a referida irregularidade, por não ter sido arguida nos termos e prazos previstos no artigo 123º, se deve considerar sanada, sem qualquer consequência na validade dos atos posteriores do processo.

Assim sendo, também esta questão improcede.

*

2. 2. 4. quebra da cadeia de custódia dos meios de prova e sua consequente nulidade, nos termos dos artigos 249º, n.º 2, do CPP e 32º, n.º 8, da CRP

Nas conclusões 31ª a 40ª, em linha e na sequência dos argumentos esgrimidos a propósito das questões analisadas nos pontos 2. 2. 1, 2. 2. 2. e 2. 2. 3., suscita a nulidade dos meios de prova recolhidos por quebra da respetiva cadeia de prova.

Estribado em doutrina que cita e no que se encontra estabelecido noutros ordenamentos jurídicos, convoca como fundamento factual da questão a alegada inexistência no processo de qualquer documento, termo comprovativo da entrega dos arguidos, da embarcação, do produto estupefaciente e dos demais objetos, bens e valores por aqueles transportados à Polícia Judiciária pela Polícia Marítima, bem como no facto de o teste rápido ao referido produto e a posterior perícia a que foi sujeito e os exames e perícias dos equipamentos transportados pelos arguidos terem sido efetuados por quem não procedeu à sua efetiva apreensão e após a intervenção no procedimento de elementos da Marinha, passível de os contaminar.

No entanto, não indica qualquer circunstância material, nomeadamente na conservação e no manuseamento do produto e equipamentos apreendidos pela Polícia Marítima com o auxílio de elementos da Marinha, muito menos que estes, para além da função auxiliar desempenhada em termos de segurança e reboque da embarcação, tivessem tido qualquer intervenção na apreensão, descarga e entrega à Polícia Judiciária, de modo a infirmar a conformidade do auto de notícia elaborado pela Polícia Marítima com a realidade histórica e física dos acontecimentos nele retratados, tanto bastando para afastar a violação do disposto no artigo 249º, n.º 1, al. a), do CPP, considerando o que a propósito dos seus poderes de atuação, enquanto entidade policial e órgão de polícia criminal, se afirmou nos pontos anteriores e que aqui recobram plena validade.

Tão pouco o faz relativamente a todo o expediente posterior e sequencialmente elaborado pela Polícia Judiciária, no dia imediatamente seguinte à interceção da embarcação e dos arguidos, que, relembre-se, ocorreu pelas 23 horas e 15 minutos do dia 20.03.2023, nem a sua atempada comunicação ao Ministério Público e validação judicial em momento prévio ao início do interrogatório judicial dos arguidos detidos, durante o qual a defesa pediu e lhe foi concedida a possibilidade de consulta integral dos autos, de que se prevaleceu, como acima se demonstrou, tudo concorrendo no sentido da incompreensão dos fundamentos da presente questão.

Na verdade, se o seu fundamento reside na inexistência de termo de entrega pela Polícia Marítima à Polícia Judiciária dos bens apresados e dos arguidos detidos, bem assim como a mera possibilidade de contaminação do produto estupefaciente e equipamentos pela simples intervenção coadjuvante em termos de fortaleza e segurança daquela polícia, sem demonstração de qualquer manuseamento do produto estupefaciente e/ou dos equipamentos apreendidos, nenhuma alusão se fazendo quanto à genuinidade dos atos de identificação e tomada de declarações e depoimentos dos arguidos e testemunhas realizados no processo e nele devidamente documentados, desde logo no primeiro interrogatório judicial daqueles, e à competência legal e técnica dos agentes e peritos que procederam aos exames e perícias a que os bens, valores e objetos apresados e apreendidos foram posteriormente sujeitos, não se vê onde e como possa ter havido quebra da cadeia de custódia dos meios de prova, ou sequer dos meios de obtenção de prova, pois só relativamente a estes aquela putativa inexistência de documento comprovativo de transmissão entre os OPC envolvidos no processo poderia comprometer o seu valor probatório e posterior valoração pelo tribunal para formação da sua convicção e fixação da matéria de facto, que, de resto, o recorrente não impugnou amplamente ou em “revista alargada”, nos termos dos artigos 412º e 410º, n.º 2, do CPP.

Tanto basta para arredar a verificação da arguida quebra da cadeia de custódia dos meios de prova recolhidos e valorados no caso em apreço, cuja “identidade e autenticidade ab initio ad finem de todo o iter processualis”3 se mostra concludentemente exposto no que sobre a questão se consignou no acórdão recorrido, perante o qual o recorrente também suscitou esta mesma questão e que, para melhor compreensão se transcreve:

Analisemos então a segunda questão referente à nulidade de todo o processo, a partir do auto de notícia de fls. 3 decorrente da quebra da custódia de prova.

O nosso código de processo penal, ao contrário do código de processo penal brasileiro, não prevê nem regula a chamada cadeia de prova. De forma sintética, a cadeia de prova traduz-se no conjunto de procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica dos vestígios recolhidos em locais ou em vítimas de crimes, para impedir que sejam adulterados, destruídos ou contaminados e, dessa forma, garantir a integridade e confiabilidade desses vestígios.

Invocam os arguidos que nos autos não existe nenhum documento da autoridade que esteve no mar referente à abordagem, acondicionamento e transporte do produto estupefaciente para o porto de Faro, qualquer registo dos fardos que alegadamente se encontravam na embarcação apresada, nem como ou por quem foram transportados para o porto de Faro, quem os entregou à Polícia Judiciária, quem os pesou e como os pesou, não havendo, por conseguinte, quaisquer garantias que o estupefaciente que se encontrava na embarcação tenha sido o que chegou ao porto de Faro, pois quem elaborou os autos de notícia e de apreensão não foram as entidades que estiveram no mar.

Sobre a questão da validade das apreensões reitera-se o supra mencionado. A abordagem feita à embarcação destinou-se exclusivamente à verificação da sua identificação e à avaliação da legalidade da sua circulação. Havendo indícios de crime, o órgão de polícia criminal que coordenava a operação, adotou, nos termos dos artigos 178.º, n.º 4 e 5 e 249.ºdo Código de Processo Penal as providências cautelares necessárias e urgentes para a assegurar os meios de prova, sendo que, de acordo com o despacho de fls. 74 as mesmas foram validadas no prazo legal. É evidente que só depois de entregue o barco à Polícia Judiciária é que se procedeu, legalmente, à detenção dos arguidos e apreensão dos objetos relativos à prática do crime. Assim, os até aí suspeitos foram detidos e constituídos como arguidos no momento próprio, quando a suspeita se objetivou o que só aconteceu, depois da busca e apreensão, no preciso momento em que se confirmou mediante o teste rápido que o produto que transportava deu positivo para canábis, isto é, uma base indiciária segura para lhes imputar a prática de crime de tráfico de estupefacientes. Nada há a apontar ao procedimento adotado pelos vários intervenientes processuais, nem nenhuma nulidade decorre pelo facto de os autos de apreensão (fls. 20, 21, 28, 34, 40) e detenção (fls. 55) terem sido efetuados pela Polícia Judiciária após a realização do teste rápido ao estupefaciente (fls. 19).

Relativamente à questão da cadeia de prova, com efeito, tendo as autoridades competentes agido de acordo com o disposto nos artigos 19.º e 20.º da Lei n.º 34/2006, de 28 de julho – no que respeita à adoção das medidas cautelares adequadas e ao apresamento do navio – como decorre da informação de fls. 677 e do depoimento das testemunhas FF e EE, as embarcações da marinha e da polícia marítima que se deslocaram ao local, sendo duas lanchas rápidas, não possuem diário de bordo, motivo pelo qual estão em permanente comunicação com os meios aéreos da Força Aérea e que por sua vez estão em constante comunicação com o Centro de Operações em terra onde tudo vai sendo registado, de tal modo que foi feito constar no auto de notícia de fls. 3 e 4. Todavia, a embarcação Dragão que se deslocou ao local tem diário de bordo, que consta a fls. 677 a 681, relativamente ao qual a Comandante GG prestou depoimento e explicou as rasuras que dele constam, confirmando que a saída foi pelas 10h57 do dia 20 de março como decorre da linha mais à direita de fls. 678, e no qual se encontra explanado a fls. 678 verso e 680 verso a operação de apoio realizada e o reboque da embarcação dos arguidos para o porto de Faro e a sua entrega às autoridades locais.

Por outro lado, do que resulta das declarações do arguido CC a embarcação em que os arguidos seguiam saiu de Marrocos, dirigia-se para Huelva, e levavam droga, da qual não eram os donos. Explicou ainda que a determinado ponto iam dividir a carga, o que se mostra em consonância com o descrito no auto de notícia de fls. 3 e 4, referente à existência de duas embarcações, das quais uma conseguiu fugir. Para além disso, estamos a falar de uma operação que decorre em alto mar, à noite, onde era manifestamente impossível contar fardos de droga. Tal como era manifestamente inverosímil que as lanchas da Polícia Marítima e da Marinha, ou que o navio da Marinha “Dragão”, estivessem a carregar fardos de droga para colocar na embarcação dos arguidos, fardos esses que, reitera-se, o arguido CC assumiu que trazia na embarcação.

É no mínimo fantasioso, colocar em causa que os fardos de droga que foram entregues em terra à Polícia Judiciária não fossem os fardos que se encontravam na embarcação dos arguidos e que foram cautelarmente apreendidos, sendo que existe correspondência entre o número de fardos comunicado pela Polícia Marítima a fls. 3 e 4 e o número de fardos constantes do auto de apreensão de fls. 20.

Os setenta e nove fardos foram entregues à Polícia Judiciária à chegada ao porto de Faro, como resulta do auto de notícia de fls. 3 e 4 e, a partir desse momento, foram pesados pela Polícia Judiciária como consta de fls. 19 e submetidos a teste rápido resultaram positivo para cannabis. Foram apreendidos pela Polícia Judiciária – fls. 20 – foram fotografados – fls. 23 e 24 – e foram remetidos ao Laboratório de Polícia Científica para qualificação da substância, quantificação do respetivo grau de pureza e quantificação, mediante a indicação dos dias de consumo médio individual – fls. 139 – exame esse que foi elaborado e consta a fls. 518 a 520 dos autos. E nem se diga que o peso é distinto – fls. 19 e fls. 519/520 – porquanto se num primeiro momento os fardos são pesados com os invólucros (como se vêm nas fotografias de fls. 23 e 24), no LPC são pesadas as placas que vêm no interior dos fardos e apurado o peso líquido do estupefaciente, o qual é o resultado da subtração da tara (peso do invólucro) ao peso bruto (soma do peso da tara com o peso da droga em causa), donde a divergência entre o peso indicado a fls. 19 e o peso constante do referido relatório pericial (na medida em a realização do exame implica a destruição do estupefaciente utilizado nesse exame).

Por conseguinte, nada nos autos permite concluir que houve quebra da cadeia de custódia de prova e, por conseguinte, que as apreensões (fls. 20, 21, 28 e 34), o teste rápido (fls. 19) e guias de depósito de objetos (fls. 49 a 52) padeçam de qualquer nulidade prevista no artigo 119.º do Código de Processo Penal e que o exame pericial de fls. 519/520 padeça de qualquer falsidade.».

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Em suma, no caso sub judice não ocorreu qualquer circunstância passível de afetar a validade ou a identidade e autenticidade dos meios de prova valorados pelo tribunal em audiência de julgamento e com base nos quais formou a respetiva convicção, a qual se perfila insuscetível de censura, porque baseada na prova documental, pericial e pessoal constante dos autos e neles validamente recolhida, produzida e/ou reproduzida, examinada e valorada, com integral respeito pelos princípios constitucionais do due process and fair trial consagrados nos artigos 20º e 32º da CRP e sem evidência de qualquer desvio ou erro flagrante na sua apreciação, por ilógico ou contrário às disposições legais aplicáveis ou às regras da experiência comum e do normal acontecer, pelo que, sem necessidade de outras considerações, forçoso é concluir pela improcedência da questão aqui em apreço.

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2. 2. 5. modalidade de comparticipação do recorrente nos factos pelos quais foi condenado, como coautor, em violação do artigo 26º do CP

Nas conclusões 41ª a 43ª do recurso, o recorrente suscita a questão da impossibilidade de definir a modalidade da sua comparticipação nos factos delituosos submetidos a julgamento, uma vez que dos factos provados não é possível concluir “de que forma os arguidos gizaram entre si um plano e com que propósito”, tanto mais que os arguidos não praticaram todos os mesmos factos, considerando, por isso, inviável condená-lo como coautor do crime de tráfico de estupefacientes em apreço e pela consequente revogação do acórdão recorrido, por violação do artigo 26º do CP.

Sem o dizer explicitamente, parece pretender que o acórdão sob escrutínio padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tal como previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a), do CPP.

Sem razão, no entanto.

Antes de mais porque em lado algum dos factos provados se afirma terem os arguidos gizado entre si um plano e com determinado propósito, nem essa planificação prévia e a definição exata das tarefas de cada um se mostram necessárias para lhes imputar e para os condenar pela prática do crime de tráfico em coautoria, a qual se basta, como é doutrinal e jurisprudencialmente pacífico, com o que nele se deu como assente nos pontos 1 a 8 dos factos provados, designadamente que:

«(…)1. No dia 20 de março de 2023, pelas 23 horas e 15 minutos, na posição das coordenadas de Latitude 36º 00’N e Longitude 007º 12’W, a cerca de 70 milhas náuticas a Sul da Foz do Rio Guadiana, na embarcação semirrígida,(…), os arguidos CC, DD e AA detinham e transportavam 79 fardos que continham (…)

5. Os arguidos usaram e destinavam telefones satélite e o localizador de GPS que se encontravam na embarcação para navegar no mar e estabelecer contactos telefónicos durante a operação de transporte.

6. Os arguidos CC, DD e AA previram e quiseram agir da forma descrita.

7. Atuaram os arguidos de comum acordo e em conjugação de esforços e vontades, com o conhecimento de que detinham e transportavam a dita quantidade de canábis, substância cuja natureza, características, composição e efeitos conheciam, e que a mesma se destinava a ser introduzida no mercado de tráfico de estupefacientes, bem sabendo que a detenção e transporte desse produto estupefaciente (canábis) lhes era vedada por lei, uma vez que não estavam autorizados para o efeito.

8. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

(…)».

Efetivamente, como se afirma na fundamentação do acórdão sindicado, “(…) Como resulta do teor do artigo 26.º do Código Penal, podem os factos qualificados na lei penal como crime ser cometidos por vários agentes em co-autoria, a qual pode, nomeadamente, consistir na participação direta na execução do facto juntamente com outro ou com outros.

E nesse caso todos os agentes são punidos como responsáveis pela totalidade da conduta, não obstante cada um deles poder praticar apenas uma parte dos factos, como se verifica no caso em apreço. Com efeito, os arguidos atuaram de forma concertada e conjugada, extraindo-se dos factos a vontade e consciência de recíproca colaboração.

A co-autoria corresponde a “um exercício conjunto no domínio do facto, uma contribuição objetiva para a realização, que tem que ver com a causalidade, embora possa não fazer parte da «execução»” (cfr. Leal-Henriques - Simas Santos, Código Penal anotado, 1.º vol. pág. 258).

Também existe “co-autoria material quando, embora não tenha havido acordo prévio expresso, as circunstâncias em que os arguidos atuaram indiciam um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum” (ob. loc. e auts. ora citados).

Na co-autoria, os participantes detêm conjuntamente o domínio do facto, sendo o essencial que exista um “domínio funcional do facto”, o qual ocorre “quando o contributo do agente – segundo o plano de conjunto – põe, no estádio da execução, um pressuposto indispensável à realização do evento intentado, quando, assim, todo o empreendimento ou resulta ou falha” (Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, sumários e notas das Lições ao 1.º ano do Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de Coimbra de 1975-1976, pág. 59).

No caso, é evidente que os arguidos agiram de forma conjunta e com vontade de colaboração, no sentido de transportar a droga proveniente de Marrocos para Huelva, pelo que todos eram responsáveis pela totalidade do estupefaciente que pretendiam fazer entrar em território europeu. Pelo que, os arguidos são co-autores do crime de tráfico de estupefacientes de que se encontram acusados e como tal devem ser condenados”.

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Nada, portanto, a censurar ao assim decidido, considerando os factos provados, que se mostram bastantes para a condenação dos arguidos como coautores do crime de tráfico de estupefacientes que lhes vinha imputado, sem que o texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência, evidencie que ficaram por indagar factos necessários a essa imputação, assim afastando a verificação do aludido vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Com efeito, sendo o crime em causa passível de cometimento mediante qualquer das múltiplas modalidades de ação típicas previstas no artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, a circunstância de os três deterem e transportarem na embarcação em que foram intercetados pelas autoridades policiais portuguesas, em ação conjunta e mediante acordo entre todos, forçoso é concluir que cada um deles dominava a situação de facto, pelo menos parcialmente, estando à sua disposição e na sua disponibilidade executar ou abortar o empreendimento em que se envolveram, que pressupunha o transporte e a posterior trasladação ou descarga, em pleno oceano ou em porto seguro, com conhecimento das caraterísticas do produto estupefaciente detido e transportado e do seu destino, sendo a intervenção de todos e de cada um deles indispensável à realização desse propósito, assim se preenchendo todos os requisitos de que depende a verificação da coautoria, sem prejuízo, naturalmente, da individualização da culpa, como pressuposto e inultrapassável limite da punição.

É que, como a jurisprudência constante e uniforme do STJ tem vindo a afirmar, a coautoria não exige outros requisitos que não os enunciados e considerados no acórdão recorrido, nomeadamente a existência de um plano prévio, conjunto e expresso e a exata definição dos contornos da comparticipação, assim como a sua igualização, antes admitindo que o acordo conjunto seja sucessivo e tácito e que a intervenção parcelar de cada um esteja no domínio do próprio e seja essencial à realização do propósito comum, como aqui sucedeu, considerando os factos provados.

Neste sentido, podem ver-se, entre outros, os acórdãos de 7.11.2007, proferido no processo 07P3242, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, de 14.12.2017, proferido no processo n.º 470/16.5JACBR.S1, relatado pelo Conselheiro Francisco Caetano, e de 18.11.2021, proferido no processo n.º 2029/17.0GBABF.E2.S1, relatado pela Conselheira Helena Moniz, todos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

Termos em que também esta questão improcede.

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2. 2. 6. medida da pena de prisão aplicada

Nas conclusões 44ª a 52ª, o recorrente manifesta ainda discordância com a medida da pena em que foi condenado, pretendendo vê-la reduzida no sentido de “ser condenado numa pena educacional e ressocializadora, próxima dos mínimos legais”.

Sustenta esta posição no que considera uma violação do princípio da igualdade estabelecido no artigo 13º da CRP, já que a pena de 6 (seis) anos de prisão em que foi condenado é exagerada e desigual à aplicada noutros que diz semelhantes àquele aqui em apreço, para tanto invocando o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 18.2.2023, proferido no processo n.º 304/20.6JAFAR.E1, em que os arguidos foram condenados na pena de 5 (cinco) anos de prisão suspensa por igual período.

Adita que o tribunal não valorou em seu favor, como devia, “o facto de não se ter feito qualquer prova quanto ao seu domínio na escolha dos meios utilizados para efetuar o transporte, nem no acondicionamento do estupefaciente”.

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Vejamos se lhe assiste razão.

Antes de prosseguir, importa relembrar e esclarecer que a moldura penal abstrata ou legal prevista para o crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, por referência à Tabela I-C ao mesmo anexa, é a considerada no acórdão recorrido, ou seja, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos de prisão.

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Atualmente, é consensual a ideia de que a determinação concreta da pena não está dependente de qualquer exercício discricionário ou “arte de julgar” do juiz, não se compadece com o recurso a critérios de índole aritmética, nem almeja uma “precisão matemática”, antes reclama a ponderação e valoração das finalidades de prevenção das penas e dos critérios da sua escolha e dosimetria, sempre por referência à culpa do agente, como seu necessário pressuposto e limite inultrapassável, em conformidade com o disposto nos artigos 40º, 70º e 71º do CP, no que às penas singulares concerne 4.

Conforme, aliás, constitui jurisprudência constante do STJ e pode ver-se do seguinte trecho extraído do acórdão de 14.12.2023, proferido no processo n.º 130/18.2JAPTM.2.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, que aqui se segue de perto, «A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).

Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.

Estabelece o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º 3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º 1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.».

*

À luz de tais considerações, importa verificar a fundamentação do acórdão recorrido a este propósito e se dela emerge ou não alguma dúvida sobre a sua observância, devendo, em caso negativo e em princípio, o tribunal de recurso abster-se de qualquer modificação, pois como tem sido jurisprudência constante do STJ “Sendo os recursos remédios jurídicos, mantendo o arquétipo de recurso-remédio também em matéria de pena, a sindicabilidade da medida da pena abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada5.

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No que aqui releva, essa fundamentação foi do seguinte teor:

«(…)5. Da determinação da medida concreta da pena:

Ao crime de tráfico de estupefacientes corresponde uma moldura penal abstrata de quatro a doze anos de prisão, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

De acordo com o disposto no artigo 40.º do Código Penal, a aplicação das penas e medidas de segurança visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo em caso algum a medida da pena ultrapassar a medida da culpa.

Como bem referem Leal-Henriques e Simas Santos, “Código Penal anotado”, 3ª ed., 564, o nosso direito penal acolheu as seguintes proposições conclusivas, formuladas por Figueiredo Dias:

“- a finalidade primária da pena é o «restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime» (prevenção geral positiva de integração – artºs 18º, nº 2 da CRP e 40º, nº 1 do CP;

- esta finalidade primária não posterga o efeito, meramente lateral, causado pela pena em termos de prevenção geral negativa ou de intimidação geral;

- dentro dos «limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração» a medida concreta da pena será encontrada em função da necessidade de socialização do agente (prevenção especial positiva ou de integração) e de advertência individual ou inocuização (prevenção especial negativa);

- a culpa não é fundamento da pena, mas tão-somente o seu limite inultrapassável (vd. artº 40º, nº 2 do CP)”.

Já a fixação da medida concreta da pena far-se-á nos termos equacionados nos artigos 40.º, n.º 2 e 71.º, ambos do Código Penal, ou seja, à culpa cabe a função de determinar o limite máximo da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer

uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos (dentro do que é consentido pela culpa) e cujo limite mínimo se encontra nas exigências de defesa do ordenamento jurídico; à prevenção especial, cabe a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente.

No caso concreto, são elevadas as exigências de prevenção geral - atendendo a que o tráfico de estupefacientes é um crime que causa grande alarme social e que importa realçar o papel dos tribunais na luta contra a toxicodependência e contra o tráfico de drogas, designadamente por via marítima dado o exponencial aumento da introdução de droga na Europa por esta via. Quanto às exigências de prevenção especial, há que ter em consideração que os arguidos não têm antecedentes criminais em território português e que apenas o arguido CC assumiu parte dos factos.

Feitas estas considerações sobre as exigências de prevenção geral e especial, deverão ser consideradas, ainda, todas as circunstâncias gerais que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente, designadamente, o grau de ilicitude do facto, a intensidade do dolo e a conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime, bem como as suas condições pessoais e a sua situação económica.

Assim, na determinação da medida da pena cumpre ponderar as seguintes circunstâncias:

- o grau de ilicitude, sendo que a conduta dos arguidos se situa num patamar elevado tendo em conta a quantidade da droga transportada (aproximadamente duas toneladas e meia), e que exigiu o seu transporte por três pessoas, mas também a sua qualidade, sendo hoje sabido que a cannabis tem vindo a registar um cada vez maior grau de adição, não se descurando que nenhum dos arguidos tinha domínio sobre a quantidade do estupefaciente, os meios utilizados no transporte ou o destino do mesmo;

- a forma de execução dos factos, tendo em consideração que se trata de um tráfico transfronteiriço de droga e que a intervenção dos arguidos, como transportadores – pessoas que por norma em situações de dificuldades económicas assumem um papel subordinado – é absolutamente essencial na operação de tráfico; a favor dos arguidos, valora-se o facto de não se ter feito qualquer prova quanto ao seu domínio na escolha dos meios utilizados para efetuar o transporte, nem no acondicionamento do estupefaciente;

- a culpa revela-se intensa, na medida em que os arguidos agiram com dolo direto, o que releva como circunstância agravante;

- os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram: quanto a este aspeto, considera-se, em abono dos arguidos e pese embora estes não tenham prestado declarações que, regra geral, neste tipo de crime as motivações são de ordem económica;

- as condições pessoais do agente e a sua situação económica: nesta parte valora-se a inserção familiar e profissional dos arguidos nos respetivos países de origem,

- a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime: valora-se a assunção, ainda que parcial e parca do arguido CC, sendo que, os arguidos não mostraram qualquer arrependimento;

Pelo exposto, considera-se proporcional e adequada às finalidades da punição a condenação dos arguidos numa pena de 6 anos de prisão, cada um, pelo crime de tráfico de estupefacientes.».

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Desta transcrição resulta evidenciado o rigoroso cumprimento pelo acórdão recorrido das operações legalmente previstas para fixação da pena de prisão decretada, outrossim do escrupuloso respeito pelas respetivas finalidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, por referência ao arguido recorrente e aos seus coautores e nos limites consentidos pela sua culpa.

O acórdão sopesou na medida justa todas as circunstâncias que militam a favor do arguido e por ele convocadas.

Desde logo e quanto à igualdade de tratamento, importa sublinhar que o tribunal, apesar de o mesmo não ter manifestado qualquer sinal de arrependimento e de interiorização do desvalor da respetiva conduta, diferentemente do coarguido CC, aplicou aos três coarguidos a pena de prisão de 6 (seis) anos, assim o discriminado positivamente, ou seja sem qualquer violação do princípio da igualdade estabelecido no artigo 13º da CRP, que não seja relativamente e em desfavor do coarguido CC.

Por outro lado, também sob o prisma da igualdade de tratamento em face do referencial jurisprudencial do STJ para situações semelhantes, ou seja, dos chamados “correios”, a referida pena se mostra com ele concordante.

Com efeito, como se considerou no acórdão de 17.10.2024, proferido no processo n.º 756/23.2JAPDL.S16, relatado pelo aqui relator e que, pela sua pertinência ao caso em apreço, face à alegada violação do princípio da igualdade invocada pelo recorrente por referência ao acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 18.02.2023, proferido no processo n.º 304/20.6JAFAR.E17, se relembra “o referencial jurisprudencial não pode aferir-se em função de um caso isolado e mais ou menos próximo, mas sim na consideração da bitola habitual do STJ para casos semelhantes, que aqui podemos concentrar nas penas aplicadas aos chamados “correios” ou equiparáveis.

Esse referencial, como se afirmou no acórdão do STJ, de 26.10.2023, proferido no processo n.º 202/22.9JELSB.L1.S1, relatado pelo do presente, citando o acórdão de 13.9.2023, proferido no processo n.º 176/22.6JELSB.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Pedro Branquinho Dias, com identificação de outros arestos do STJ, tem vindo a estabilizar-se desde já há algum tempo, com a aplicação/confirmação de penas concretas variáveis entre os 5 e os 7 anos de prisão, intervalo no qual, por conseguinte, se inscreve a pena aqui em discussão8.

Linha de orientação observada ainda no acórdão de 24.04.2024, proferido no processo n.º 781/21.8PDAMD.L1.S1, de que também foi relator o do presente9.

Pode, pois, concluir-se que a pena aplicada no caso em apreço se enquadra na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça para casos semelhantes, não havendo, por essa via também, qualquer fundamento para a modificar, mais ainda se nos lembrarmos do que acima se deixou dito quanto à excecionalidade da intervenção corretora do STJ no âmbito da determinação do “quantum” das penas.

E que não resulta do mesmo a violação de qualquer norma constitucional, nomeadamente dos artigos (…) e 13º da CRP, pois que a (…) pena aplicada (…)respeita o princípio da igualdade estabelecido no segundo e nas pertinentes normas legais”.

Por outro lado, o acórdão recorrido, ponderou e valorou todas as demais circunstâncias favoráveis ao recorrente e por ele expressamente alegadas, designadamente, a ausência de antecedentes criminais registados em Portugal e, a propósito da ilicitude, elevada é certo, mas “não se descurando que nenhum dos arguidos tinha domínio sobre a quantidade do estupefaciente, os meios utilizados no transporte ou o destino do mesmo”.

Só assim, de resto, se compreende a benevolência da pena em que o recorrente e os demais coarguidos foram condenados, 2 (dois) anos apenas acima do limite mínimo da respetiva moldura penal abstrata ou legal, correspondente a ¼ desta, considerando o elevado grau de ilicitude dos factos bem evidenciada no acórdão e refletida na própria norma incriminadora e no artigo 1º, al. m), do CP, que classifica o crime de tráfico de estupefacientes como criminalidade altamente organizada, em consonância com o que acima se consignou sobre os bens jurídicos protegidos pela incriminação e o concerto mundial acerca da sua danosidade social e individual e necessidade de generalizado combate, que culminou com a assinatura e ratificação massiva da referenciada Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988.

Outro tanto se podendo dizer da intensidade da culpa com que atuaram, sob a forma de dolo direto e aderindo ao que sabiam ser um transporte de grande quantidade de produto estupefaciente destinado à distribuição por milhares de consumidores, mediante avultadas contrapartidas financeiras, que em parte lhes eram destinadas, com os conhecidos efeitos nocivos para a saúde daqueles e da coesão familiar e social respetivas e o inerente potencial aumento da criminalidade associada ao tráfico e consumo, a que se mostraram indiferentes, contributo decisivo que não renegaram nem reconheceram como desvalioso, o que, a par das fortes exigências de prevenção geral que este tipo de atividade concita, agrava também as exigências de prevenção especial positiva e de inibição, na medida em que revelam permeabilidade às solicitações que lhes são dirigidas para aquele tipo de colaboração com os “donos do negócio”, cuja superação reclama o cumprimento de uma pena de prisão efetiva e em regime de reclusão institucional, mais ainda se valorarmos positivamente o bom enquadramento prisional evidenciado durante o cumprimento da medida de coação privativa da liberdade (cfr. factos provados sob os n.ºs 37 e 44).

O acórdão recorrido teve ainda em consideração os hábitos de trabalho e a inserção social e familiar do recorrente, que igualmente contribuíram para a fixação da pena naquela medida de 6 (seis) anos de prisão, como dito, muito mais próxima do limite mínimo da moldura penal abstrata ou legal do crime pelo qual foi condenado do que dos seus pontos máximo e médio.

Pena que, assim, se mostra adequada à intensidade do dolo direto com que atuou, ficando muito aquém do superior limite por ele consentido, bem como ao elevado grau de ilicitude associado à respetiva conduta, conforme antes evidenciado.

Pode, em suma, afirmar-se que o acórdão recorrido se mostra bem fundado e que, em face das finalidades das penas, em particular das elevadas exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, sob pena de postergação da proteção dos bens jurídicos que com a incriminação se pretende acautelar, já antes mencionados, a pena de 6 (seis) anos de prisão aplicada ao arguido, é justa, adequada e fixada de harmonia com os princípios da necessidade e da proporcionalidade, sem ultrapassar a medida da sua culpa.

Termos em que improcede também esta questão.

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2. 2. 7. inconstitucionalidade do artigo 4º, n.º 2, do Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a repressão do Tráfico Ilícito de Droga no Mar.

Por fim, nas conclusões 53ª e 54ª, o recorrente vem alegar a inconstitucionalidade da interpretação feita no acórdão recorrido do artigo 4º, n.º 2, do Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a repressão do Tráfico Ilícito de Droga no Mar, desde logo assumindo que o faz para garantir a possibilidade de eventual recurso para o Tribunal Constitucional (TC).

Sustenta esse seu entendimento na circunstância de no acórdão recorrido se ter feito uma interpretação do artigo 4º, n.º 2, do Tratado no sentido de o direito de representação a que se refere o seu n.º 1, significar a atribuição aos Estados Subscritores de um direito de intervenção não previamente autorizado, ainda que mediante o empenhamento de forças militares sem insígnias em espaço fora do seu território e integrante do território do outro, em violação do artigo 5º da CRP, que, precisamente, sob a epígrafe “Território”, estabelece os limites do território português, deferindo à lei a definição da extensão e limite das águas territoriais, a zona económica exclusiva e os direitos de Portugal aos fundos marinhos contíguos, assim como a proibição de alienação de qualquer parte do nosso território ou dos direitos de soberania que sobre ele exerce.

Ora, pese embora o recorrente não indique a concreta norma, princípio ou parâmetro constitucional do artigo 5º da CRP que considera violado pela interpretação feita no acórdão recorrido do artigo 4º do referido Tratado Bilateral, o que inviabiliza a apreciação da questão suscitada, pode com segurança afirmar-se que esse acórdão em lado algum fez uma interpretação aplicativa daquele artigo violadora das normas, princípios e parâmetros constitucionais estabelecidos no artigo 5º da CRP.

Para tanto seria necessário ter reconhecido ao Reino de Espanha as prerrogativas de intervenção na nossa zona económica exclusiva, que considerou caberem às autoridades marítimas portuguesas na zona económica exclusiva espanhola no concreto contexto do caso em apreço, qual seja o do combate ao tráfico internacional de estupefacientes que se rege, além desse tratado, por normas convencionais das Nações Unidas ratificadas por Portugal e que nos vinculam nas relações internacionais, nos termos previstos nos artigos 7º e 8º da CRP, legitimando com eficácia supralegal cedências e/ou partilhas da nossa soberania, à luz das quais deve ser interpretado o artigo 5º.

Mas não foi sobre isso que o tribunal a quo se pronunciou, antes e apenas sobre os poderes de representação de Portugal na zona económica exclusiva espanhola se e quando, perante fundadas suspeitas de atividades de tráfico de estupefacientes por mar, se mostre necessário intervir para as fazer cessar sem possibilidades de consulta e autorização prévias do Reino de Espanha, pelo que, quando muito, o tribunal estaria a legitimar a cedência de soberania territorial pelo Reino de Espanha e não pela República Portuguesa, sendo manifesto que essa eventual legitimação não colidiria com qualquer norma, princípio ou parâmetro constitucional extraível do artigo 5º da CRP.

Seja como for, como se consignou no ponto 2. 1. 2, deste acórdão, essa interpretação aplicativa era e é, na economia deste caso, irrelevante, na medida em que, para efeitos de combate ao tráfico internacional de estupefacientes e substâncias Psicotrópicas, à luz das aí referidas convenções das Nações Unidas sobre esse tráfico e o direito do mar, as zonas económicas exclusivas são consideradas alto mar, não integrantes, portanto, do território de qualquer país, sendo a intervenção dos diversos Estados nessas zonas e âmbito reguladas pelas correspondentes normas convencionais, que lhes conferem uma “jurisdição universal”.

Nenhuma inconstitucionalidade normativa, por conseguinte, é passível de conhecimento in casu, seja por indefinição da concreta norma, princípio ou parâmetro constitucional violado, seja porque, efetivamente, além de desnecessária, a questionada interpretação feita no acórdão recorrido do artigo 4º do referido Tratado Luso-Espanhol não ofende o estatuído no artigo 5º da CRP.

Improcede, pois, a questão de inconstitucionalidade suscitada neste segmento do recurso.

IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em:

a) Negar provimento ao recurso do arguido AA e manter o acórdão recorrido;

b) Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UC (cfr. artigos 513º do CPP e 8º, n.º 9, do RCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa), ressalvado eventual benefício de apoio judiciário.

Lisboa, d. s. c.

(Processado e revisto pelo relator e assinado eletronicamente pelos subscritores)

João Rato (relator)

Agostinho Torres (1º adjunto)

Jorge dos Reis Bravo (2º adjunto)

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1. Cfr. artigo 412º do Código de Processo Penal (CPP) e, na doutrina e jurisprudência, as correspondentes anotações de Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, de António Henriques Gaspar et al., 2021 - 3ª Edição Revista, Almedina.

  Tudo sem prejuízo, naturalmente, da necessária correlação e interdependência entre o corpo da motivação e as respetivas conclusões, não podendo nestas acrescentar-se o que não encontre arrimo naquele e sendo irrelevante e insuscetível de apreciação e decisão pelo tribunal de recurso qualquer questão aflorada no primeiro sem manifestação nas segundas, não podendo igualmente, salvo as de conhecimento oficioso, conhecer-se de questões novas não colocadas nem consideradas na decisão recorrida, como se afirmou no acórdão deste STJ, de 23.11.2023, proferido no processo n.º 687/23.6YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível em .

2. A referência ao artigo 30º, n.ºs 1 e 5, da CRP, dever-se-á a manifesto lapso, pelo que se analisará a questão à luz do seu artigo 32º, n.ºs 1 e 5, este sim relativo às “garantias de defesa de processo criminal”, como indica esta sua epígrafe.

3. Palavras de Manuel Monteiro Guedes Valente, em “Cadeia de Custódia da Prova”, 2024-4ª Edição-Reimpressão, Almedina, pp. 53.

4. Para maiores desenvolvimentos, pode ver-se Adelino Robalo Cordeiro, in “A Determinação da Pena”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal – Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, Volume II, Centro de Estudos Judiciários , Lisboa 1998, a pp. 30 a 54, na esteira de Figueiredo Dias, em Direito Penal 2, Parte Geral – As consequências Jurídicas do Crime.

5. Conforme ponto IV do sumário publicado do acórdão de 8.11.2023, proferido no processo n.º 808/21.3PCOER.L1.S1, relatado Pela Conselheira Ana Barata Brito, sem prejuízo, naturalmente, da amplitude sindicante dos tribunais de recurso, quando, ainda assim, concluam pela injustiça da pena, por desproporcional ou desnecessidade, como se afirmou, v. g., no acórdão do STJ, de 14.06.2007, proferido no processo n.º 07P1895, relatado pelo Conselheiro Simas Santos, ambos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

6. Disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, no qual se confirmou a pena de 6 (seis) anos de prisão aplicada no tribunal da condenação pela prática de um crime de tráfico p. e p. pelo artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, por referência à Tabela I-C ao mesmo anexa, cometido por cidadão português, ao transportar por via aérea, de Lisboa para Ponta Delgada, uma mala contendo no seu interior cerca de 12 kg de haxixe, muito aquém das mais de duas toneladas transportadas no caso em apreço.

7. O acórdão ainda não se encontra publicado, tanto quanto resultou da pesquisa efetuada nas bases de dados disponíveis.

8. Ambos os acórdãos estão disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

9. Disponível no mesmo sítio.