RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
COLISÃO DE VEÍCULOS
MOTOCICLO
ABSOLVIÇÃO EM 1.ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
EXTEMPORANEIDADE
PODERES DE COGNIÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
ERRO DE JULGAMENTO
FACTOS CONCLUSIVOS
NEXO DE CAUSALIDADE
MANOBRA PERIGOSA
PROCEDÊNCIA PARCIAL
Sumário


I - Não é admissível o documento que foi junto ao processo de recurso para o STJ, em véspera da realização da conferência, numa clara violação da norma processual – art.º 165.º n.º 1, do CPP, não sendo possível, sequer, realizar-se o contraditório – art.º 165.º, n.º 2.

II - É admissível o recurso para o STJ, na sequência de recurso interposto para o tribunal da Relação que efectuou a alteração dos pressupostos a partir dos quais a 1ª instância absolvera o recorrente, designadamente alterando a matéria de facto fixada, julgando procedente o recurso e revertendo a absolvição decidida pelo tribunal de 1.ª Instância, condenando-o pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. nos termos do art.º 137.º, n.º1 do CP.

III - O que releva em sede de alteração da matéria de facto não é o acerto material do juízo sobre as questões resolvidas, mas se a decisão expressa, de modo suficientemente claro e congruente, as razões por que se decidiu em determinado sentido. Manifesto é que o acórdão recorrido não padece de qualquer um dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP, mostrando-se suficientemente fundamentado, não sofrendo de qualquer nulidade prevista no art.º 379.º, com referência ao art.º 374.º, ambas as disposições do CPP.

IV - Saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui, ainda, questão que cabe na competência do STJ como tribunal de revista, na medida em que a sua apreciação não envolva um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto, enquanto realidade da vida juridicamente relevante, ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado.

V - Trata-se de sindicar o uso que o tribunal de recurso faz dos seus poderes de reapreciação, não o acerto ou desacerto do seu julgamento quanto a saber se o facto está ou não provado. Não pode, pois, rejeitar-se sem mais, a pretexto de que se trata de matéria excluída do âmbito dos poderes de cognição, ao abrigo do art.º 434.º, do CPP, a crítica formulada pelo recorrente à exclusão dos factos alegadamente conclusivos.

VI - Só se tratará de matéria excluída do âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de justiça se essa exclusão não for puramente categorial, isto é, se sob essa qualificação se contiver a expressão de um juízo probatório diverso do da sentença ou uma diferente conclusão de facto emergente de valoração do conjunto da prova.

VII - A aplicação do princípio in dúbio pro reo, só pode ser sindicada se o recorrente indicar, como lhe competia, em que consistiu a violação imputada ao acórdão recorrido. Se, tal não ocorre, impossibilitando o Supremo Tribunal de aferir em que termos se verificou o eventual estado de dúvida insuperável do tribunal a quo, perante algum facto e que, nesse estado dedúvida, decidiu contra o arguido recorrente, não se verifica fundamento na invocação da violação desse princípio.

VIII - O tipo de ílicito negligente materializa-se na violação do dever objectivo de cuidado a que o agente está obrigado e de que é capaz. Nos crimes de resultado, como é o que agora está em consideração, os deveres de cuidado são concretizados pelas normas jurídicas respeitantes à actividade em causa porventura existentes – que podem ser de fonte legal, regulamentar (normação técnica incluída) ou estatutária – bem como, pelas regras de prudência comum idóneas a evitar a produção do resultado proibido ou, dito de outro modo, a criação da situação de perigo para o bem jurídico emergente da conduta do agente que se vem a concretizar na sua lesão.

IX - Para que a infracção a determinada norma seja, objectivamente, constitutiva de negligência é, desde logo, necessário que a evitação do resultado, no modo como se produziu, se compreenda no âmbito de protecção da norma de conduta infringida. Ora, a falta de matrícula não agrava o risco para o bem jurídico lesado, não podendo considerar-se causa adequada do resultado.

X - A circulação do veículo do tipo empilhador em vias públicas está sujeita às regras do Código da Estrada, designadamente, entre outras, as reguladas nos artigos 57.º, n.º 1, 66.º, e art.º 76.º.
XI - As passadeiras são zonas de passagem nas vias públicas por onde se realiza o trânsito de peões, estando nelas interdita a circulação de veículos – art.º 99.º , n.º 1, e art.º 104.º, a contrario, ambos do CE.

XII - Nos termos do art.º 135.º, n.º 3, al. a), do CE, a responsabilidade pelas infrações previstas no Código da Estrada e legislação complementar, e que respeitem ao exercício da condução, recai no condutor do veículo, sendo que “(…) o desrespeito das regras e sinais relativos a (…), mudança de direção ou de via de trânsito, (…), posição de marcha, (…)” e “A não utilização do sinal de pré-sinalização de perigo e das luzes avisadoras de perigo;” o faz incorrer na prática de contraordenações graves, p. e p, nos termos do art.º 145.º, n.º 1, als. f) e m), do Código da Estrada.

XIII - Independentemente de a faixa marcada no chão ser uma passadeira, certo é que a mesma era uma passadeira para peões e não uma passadeira para veículos a motor, ali não se mostrando estar colocada, sequer, qualquer sinalização de estrada que pudesse prevenir e alertar os restantes condutores de que nela podia circular um veículo do tipo do empilhador.

XIV - Os eventuais licenciamentos concedidos pelo Município ou as autorizações de utilização do veículo em causa, concedidas pela entidade patronal, apenas podem diminuir a culpa do arguido, mas não o desresponsabilizam, enquanto condutor do veículo. O condutor do veículo tem autonomia técnica na condução do veículo e não pode invocar uma ordem da entidade patronal que colida com os cuidados a que está obrigado a observar no âmbito da sua condução de veículos – art.º 103.º do CE.

XV - O que está em causa no homicídio negligente não é uma responsabilidade directa pelo evento, mas uma responsabilidade por violação do dever objectivo de cuidado que, no caso, não é o dever de prudência comum é o dever específico imposto pelo do CE, na condução de veículos a motor.

Texto Integral


Recurso Penal

Processo: 460/16.8GAALB.P2.S1

5ª Secção Criminal

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. AA (AA) interpôs o presente recurso penal do acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), de 25/10/2023 que, negando provimento ao recurso por ele interposto, decidiu nos seguintes termos:

Acordam os Juízes que integram esta secção criminal em julgar procedente o recurso interposto pelos assistentes BB e CC e, consequentemente condenar o arguido na pena de 12 (doze) meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio negligente (art° 137 n°1 do CP).

Determina-se a suspensão da execução da pena pelo mesmo período de tempo (art° 50 do CP).”.

2. O Recorrente AA cingiu o objecto do seu recurso essencialmente a duas questões, que se prendem com: i) nulidade por omissão de pronuncia e falta de fundamentação, pois, em seu entendimento “(…)o Tribunal da Relação não especificou em que medida o texto da decisão recorrida (proferida pela 1.ª instância), e de cuja matéria de facto alterou, tinha chegado a determinadas conclusões com as quais não concordava, nem nunca referiu sequer que as conclusões a que chegou a primeira instância contrariavam as regras da experiência (…) o acórdão recorrido padece de falta de fundamentação, o que constitui e acarreta a sua nulidade”; e, ii) com a condenação, que lhe foi aplicada pelo TRP, pela prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal (CP) e 3 (três) contraordenações graves, previstas e punidas pelos art.ºs 12.º, 21.º, 29.º, e 145.º, n.º1,al. f), do Código da Estrada (CE), porquanto “Não houve, em concreto uma omissão de cuidado exigível ao arguido (…)age sem culpa o funcionário que cumpre uma ordem sem conhecer que ela conduz à prática de um crime (…) que seja dado provimento ao presente recurso de revista e, por conseguinte, revogado o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que mantenha a absolvição do arguido”;

Por despacho de 28/06/2024, Ref.ª Cítius n.º ...42, nos termos do art.º 417.º, n.º 3 e 4, do CPP, o recorrente foi convidado a sintetizar as conclusões que formulou no seu recurso (152 conclusões), delimitando com precisão o objecto do recurso, sob pena de o mesmo ser rejeitado.

Não obstante, ainda assim, o recorrente apresentou novas alegações com extensas conclusões, nos termos seguintes:

Conclusões:

a) O Tribunal da Relação, na análise que faz sobre os factos para proferir “nova decisão” considera que certos factos dados com provados (33; 42 e 43) são conclusivos, e, portanto, eliminou-os do elenco dos factos dados como provados na sentença.

b) Salvo melhor entendimento, consideramos que nesta parte houve erro de julgamento do Tribunal da Relação.

c) Na verdade, não vislumbramos nada de conclusivo na expressão “condicionam a visibilidade de ambos os condutores” referida no facto 33.

d) Da mesma forma, consideramos que os factos referidos no 42 e 43 (“Se o motociclo circulasse à velocidade permitida para o local poderia ter imobilizado o veículo no espaço livre e visível à sua frente, sem embater no empilhador” e “Em decorrência da velocidade a que seguia, DD não conseguiu controlar o motociclo, caiu no solo e veio ao encontro do empilhador” não se afiguram conclusivos.

e) Da fundamentação de facto transcrita na sentença (referida nas páginas 71 e seguintes do acórdão), resulta clara a razão pela qual foi decidido julgar como provados esses factos.

f) As expressões referidas nesses factos, foram utilizadas com o intuito de descrever a dinâmica do acidente e a forma de condução do sinistrado, depreendidas dos factos provados nº29 e 30 da motivação de facto.

(…)

h) Pelo que, consideramos que o teor dos factos provados pela 1ª instancia sob os números 33,42 e 43, e que foram eliminados pelo Tribunal da Relação, é matéria que deve ser considerada de facto, tendo, por conseguinte o Tribunal da Relação violado as normas constantes dos 607, n.º 4, 662º e 663º, n.º 2, todos do C.P.C.

i) O Tribunal da Relação alterou a matéria de facto, dando como não provado o facto nº50 e como provados três factos (alíneas c), d) e e), os quais na primeira instância haviam sido dados como provado e não provados respectivamente, depois de um rigoroso julgamento e após serem ponderadas todas as circunstâncias.

j) No entanto, para operar esta alteração, o Tribunal não procedeu - como se impunha - à respectiva fundamentação, razão pela qual não se vislumbra a razão de ser que levou aquele Tribunal, ao reapreciar a prova, a alterar a matéria de facto dada como provada e não provada.

k) Se é verdade, que a Relação não está impedida de alterar a matéria de facto constante na sentença, também é verdade que o artigo 431.º do CPP impõe restrições específicas em matéria de prova, ao dispor que a decisão recorrida pode ser modificada nas três situações ali descritas.

l) No caso vertente, o Tribunal da Relação não especificou em que medida o texto da decisão recorrida (proferida pela 1.ª instância), e de cuja matéria de facto alterou, tinha chegado a determinadas conclusões com as quais não concordava, nem nunca referiu sequer que as conclusões a que chegou a primeira instância contrariavam as regras da experiência, pelo que não se concebe o raciocínio adoptado pelo Tribunal da Relação para proceder a esta alteração, por não ter sido explicado em momento ou lugar algum.

m) Deste modo, concluímos que o acórdão recorrido padece de falta de fundamentação, o que constitui e acarreta a sua nulidade, nos termos dos artigos 374 e 379 do C.P.P.

n) O Tribunal da Relação julgou procedente o recurso e em consequência, condenou o arguido a 12 meses de prisão (suspensa pelo mesmo período) pela prática de um crime de homicídio negligente, por continuar a entender, neste

caso concreto, que houve concausalidade na produção do acidente e que os factos ilícitos (Circular, com um empilhador sem matrícula, na via pública e Utilizar as passadeiras para atravessar a via com o empilhador) foram cometidos pelo arguido com culpa.

o) Contudo, salvo melhor opinião, entendemos que, perante as circunstâncias e prova produzida nos autos, o Tribunal da Relação não poderia ter condenado o arguido pelo crime de que vinha acusado.

p) Do elenco dos factos provados, bem como da fundamentação de facto, quer antes quer depois da alteração, resulta evidente que o arguido atuou com todo o cuidado que lhe era exigível.

q) Dos factos provados ( 10, 29, 30, 31 e 34) bem como da motivação de facto da sentença resulta inequívoca a conclusão de que a morte do DD se deveu única e exclusivamente à conduta negligente do sinistrado.

r) Salvo melhor opinião, entendemos que, perante a prova produzida nos autos, o Tribunal da Relação não poderia ter condenado o arguido pelos motivos que passamos a expor:

s) Nos autos, a acusação imputa ao arguido o crime de homicídio por alegadamente o arguido não se ter assegurado se viriam veículos em circulação, quando iniciou a travessia de uma passagem de peões com o empilhador.

t) Esta matéria não ficou provada, pois o como se depreende do facto provado nº8 só avançou depois de se certificar que não circulava nenhuma viatura.

u) Tal como é referido na declaração de voto vencido, “a circulação de máquina industriais na via publica não é proibido”, apenas se impondo como condição a matrícula (artº 107 nº 1 do código da Estrada). A deliberação do IMT nº46/2016 de 20 de Janeiro, atribuiu como data limite de 30 de Junho de 2016 (dois meses e 20 dias antes do acidente) a atribuição de matrícula para todo tipo de máquinas industriais.

v) A observância do dever legal de matricular o empilhador e o de se abster de circular na via não cabe ao arguido mas sim à proprietária (entidade patronal), por esse motivo foi lavrado auto de contraordenação contra esta (fls.66) nos termos do artº 135 nº3 al.b) C.E.

w) Acresce que a falta de matrícula não contribuiu para a ocorrência do acidente, o qual, perante as circunstâncias apuradas, ocorreria ainda que estivesse matriculado.

x) Por outro lado, o local onde ocorreu o acidente é uma zona industrial, e, por isso, a presença de empilhadores não deverá ser entendido como algo anormal ainda que ele estivesse parado na passadeira, o que poderia eventualmente

acontecer para deixar passar um obstáculo ou para executar um trabalho específico.

y) Foi apurado que o condutor do motociclo, passava por aquele local várias vezes e sempre em excesso de velocidade, sem respeitar a existência de passadeiras (conforme fundamentação de facto da sentença relatada na pag.76 do acórdão

e que, no dia do acidente, não parou a um sinal de Stop, fez um “cavalinho” e continuou a acelarar perto de uma passadeira (vid. Sentença relatada na pag. 70 do acórdão).

z) Por outro lado, ficou provado (artº 44 e 51) que desde 7-7-1994 existe uma deliberação Camarária que autorizou a entidade patronal do arguido a marcar passadeiras e rampas no separador central, por forma a facilitar o atravessamento da via pelos monta-cargas e outros equipamentos.

aa) E que a entidade patronal deu instruções ao arguido para atravessar a via com o empilhador, recorrendo a essas passadeiras, acedendo à primeira através do passeio e à segunda através do separador central. (facto 49º),

bb) Assim, se a marca desenhada com a aparência de passadeira, onde se deu o embate foi pintada pela entidade patronal do arguido de acordo com a autorização da Câmara Municipal e se a entidade patronal deu ordens expressas para atravessar a via com o empilhador por essa passadeira, nas deslocações entre os pavilhões, não era exigível ao arguido duvidar da legalidade dessa ordem e abster-se de obedecer as indicações da sua entidade patronal sobretudo quando sabe que foi a própria Câmara Municipal quem autorizou as obras especificas para esse fim.

cc) Tal como é referido na declaração de voto de Vencido “O arguido desconhecia que tal autorização era inválida (nula e de. nenhum efeito) e não lhe era exigível que o soubesse, tanto mais que o Código da Estrada, no seu art. 170, n.° 1, admite que os veículos possam circular nas bermas ou nos passeios nos casos previstos em regulamento local, pelo que aos olhos do homem comum, aqui personificado pelo condutor do veículo, de harmonia com as regras de experiência e normalidade de acontecer, tal autorização se afiguraria válida, agindo em erro sobre a ilicitude não censurável — art. 170, n.° 1, do Cód. Penal.

dd) “Na manobra de atravessamento da via protagonizada pelo condutor da máquina, aqui arguido, não vislumbramos da fundamentação de facto decisória, quer antes quer durante a respectiva concretização, qualquer violação dos deveres de cuidado que lhe eram exigíveis, única que poderia sustentar a responsabilização criminal”.

ee) Não houve, assim, em concreto uma omissão de cuidado exigível ao arguido

ff) Por outro lado, age sem culpa o funcionário que cumpre uma ordem sem conhecer que ela conduz à prática de um crime, não sendo isso evidente no quadro das circunstâncias por ele representadas.

gg) A douta sentença recorrida violou, interpretando menos adequadamente, os normativos legais constantes dos arts. 10°, 15°, 17º, 37º e 137°, n° 1, todos do Código Penal; bem como o princípio "in dubio pro reo” ”.

3. Os Assistentes BB e CC, responderam ao recurso, pugnando por que o mesmo deva ser considerado improcedente, não se lhe concedendo provimento, essencialmente porque “(…) o arguido assumiu o risco não permitido de conduzir o empilhador naquelas circunstâncias e efetuar a manobra de atravessar a via sob uma travessia para peões, violando assim o dever de cuidado que lhe era imposto.”, concluindo, em síntese, que:

(…)

76ª- Ora, in casu é evidente a proibição da circulação na via pública de um veiculo sem matricula e sem elementos sinalizadores de minimização de risco e a proibição da manobra de um empilhador atravessar a via pela passagem destinada aos peões e devidamente sinalizada com “ M1” constituída por barras longitudinais paralelas ao eixo da via, alternadas por intervalos regulares, indicando onde os peões devem efetuar o atravessamento da via, e também com o sinal H7 – indicação de passagem para peões – referenciado no art. 37 do Reg. Sinais de Trânsito.

77ª- As características do veículo conduzido pelo arguido, a manobra por este efetuada de atravessar a via utilizando para o efeito uma passagem destinada a peões e numa zona industrial num horário de maior movimento impunham já em si especiais deveres de cuidado.

78º- Ao que acresce que segundo o princípio de confiança na atuação dos outros que impera na circulação rodoviária e aos olhos do homem médio é exigível que os empilhadores não atravessem a via sob uma passagem destinada a peões devidamente sinalizada para o efeito e muito menos que, veículos que não reúnem as condições técnicas, nomeadamente não possuam matrícula quando sujeitos a essa obrigatoriedade, e sem sinalização adequada, circulem na via pública.

79ª- Assim, pode-se concluir que a conduta do arguido violou o dever objetivo de cuidado que sobre si recaia ademais em conexão com as normas jurídica do Código da Estrada que regulamentam as características dos veículos que podem circular na via pública e a proibição expressa do veiculo conduzido pelo arguido atravessar a faixa de rodagem utilizando para o efeito uma passagem para peões exclusivamente sinalizada para esse efeito, violação essa que se concretizou no resultado típico (a morte da vitima) integrando por isso o tipo de ilícito de homicídio negligente, como tem sido entendimento doutrinal e jurisprudencial.

80ª- Por outro lado, não se vislumbra, dadas as circunstâncias do caso, nomeadamente as características do veiculo conduzido pelo arguido que o impossibilitavam legalmente de circular na via pública, o local onde se encontrava no momento da colisão, a atravessar a faixa de rodagem pela passagem destinada a peões, como é que o facto da vitima circular a velocidade superior á permitida pode transformar o risco não permitido que o arguido assumiu ao efetuar a manobra fatal, nos termos em que a realizou, num risco permitido e para, por essa via ver afastada a sua responsabilidade penal. (…)

(…)

85ª- E, com o devido respeito, o facto de a entidade patronal lhe transmitir uma suposta autorização da Camara Municipal para atravessar a via naquele local, que diga-se, não existia, não o isenta de culpa, pois é evidente tanto para o arguido, como para o homem médio que, no quadro das circunstancias descritas, essa ordem poderia conduzir ao cometimento de um crime pois violam as regras de trânsito em vigor e que visam regular o mesmo e proteger os valores jurídicos que são colocados em causa pela circulação dos veículos automóveis, mormente a integridade física e a vida dos demais utentes.

86ª- Ao que acresce que a suposta ordem dada para os trabalhadores fazerem a travessia por aquele percurso não abrangia o facto do percurso ser efetuado com uma máquina que não podia circular na via pública, sem a sinalização devida e por uma pessoa que não tinha formação para manobrar máquinas fora das instalações, como aconteceu, o que era do perfeito conhecimento do arguido, tendo este assumido esse risco não permitido, com as consequências que daí poderiam advir.

87ª- É assim inequívoco que a conduta levada a cabo pelo arguido ao conduzir um veiculo na via pública sem ter formação para tal, veiculo este que estava proibido de circular por não ter matricula, ao atravessar a via sob uma passagem para peões devidamente sinalizada como tal, numa hora de maior tráfego e com a consciência de que no local não existia qualquer sinalização que alertasse os condutores para o perigo dessa manobra, teve como resultado a morte de uma pessoa, sendo que o arguido tinha consciência de que isso poderia acontecer.

88ª- Assim, o arguido assumiu o risco não permitido de conduzir o empilhador naquelas circunstâncias e efetuar a manobra de atravessar a via sob uma travessia para peões, violando assim o dever de cuidado que lhe era imposto.

89ª - Nas suas declarações o arguido demonstrou ter conhecimento das características do local, da sinalética existente e, que o empilhador não tinha matrícula nem sinalização adequada e que perante as regras de segurança rodoviária não lhe era permitido efetuar tal manobra.

90ª- Podendo assim concluir-se que a conduta do arguido violou o dever objetivo de cuidado que sobre si recaia ademais em conexão com as normas jurídicas do Código da Estrada que impede a realização da manobra efetuada pelo arguido com o empilhador a transitar sem matrícula a atravessar a via sob uma passadeira, violação essa que se concretizou num resultado típico (a morte da vitima) integrando por isso a mesma o tipo de ilícito negligente.

91ª- Ao que acresce que basta considerarmos que, se o arguido, sabendo que o empilhador não tinha matricula e não podia circular na via pública com o mesmo, na mera hipótese que, não se concebe, de supor existir uma autorização da Camara para atravessar a via naquele local, não devia nunca sair das instalações com um veiculo que sabia que não podia circular na via pública, sem elementos sinalizadores de minimização do risco, com a agravante de não ter recebido sequer formação para tal, sendo também por aqui, evidente que conhecia a ilicitude da sua conduta e mesmo assim assumiu esse risco de forma livre, voluntária e consciente que veio a resultar na morte de um ser humano.

92ª- Pelo exposto, contrariamente ao alegado pelo recorrente, o douto acórdão em crise não merece o mínimo reparo, encontrando-se brilhantemente elaborado e fundamentado, tendo feito uma correta interpretação da lei, devendo por isso ser mantido.” – sublinhado nosso.

4. O Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, também, apresentou resposta ao recurso do recorrente, essencialmente concluindo:

Em resumo, diz o arguido que não deveria ter sido condenado, senão mantida a sua absolvição, por distorção da teoria da causalidade adequada no acidente.

Porém, no douto Acórdão foram tratadas todas as questões a que o TRP estava vinculado, ou seja, aquelas que foram balizadas pelos recorrentes nas conclusões do seu requerimento de interposição de recurso, o que facilmente se dá conta compaginando as peças em questão.

Constitui princípio geral do direito processual que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, como decorre da 1.ª parte do n.º 2 do art. 660.º do CPC, aplicável ex vi do art. 4.º do CPP. Omitindo o tribunal esteve dever de julgamento, quando o juiz/tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, a respetiva decisão é nula - 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

Também não excedeu este Tribunal os seus poderes deveres de cognição e decisão.

Todas as opções estão explicitadas, esgrimidas, lógicas e fundamentadas.

Em síntese, e caso se entenda que não deve ser rejeitado, nos termos do disposto no artigo 420º, nº 1 al. a) do CPP, sempre se dirá que o Acórdão recorrido mostra-se bem fundamentado, de facto e de direito, cumprindo integralmente o exame critico que a lei impõe, fez correcta interpretação e aplicação do direito, não enfermando de qualquer vicio ou nulidade, não tendo sido violadas as normas invocadas pelo arguido, ou quaisquer outras que cumpra apreciar, ou principio geral, e mantendo dessa forma a posição assumida processualmente, pelo que deve ser este integralmente mantido, improcedendo o recurso interposto pelo arguido. ”.

5. O Ministério Público, junto deste STJ, emitiu parecer no sentido de o recurso interposto pelo arguido dever ser rejeitado, ou, “(…) a não se entender assim, sempre em conferência se deverá decidir pela sua rejeição, mantendo–se a decisão recorrida”, essencialmente referindo:

“Isto posto, retomemos o essencial:

O recorrente sustenta outra qualificação dos factos provados, mas sem atender aos factos que o TRP modificou no âmbito dos seus poderes, pelo que navega, do princípio ao fim, na invocação de erro de julgamento, convocando factos e interpretando–os segundo o sentido que entende terem, sempre no pressuposto de que quem bem julgou foi a 1.º instância e que certo está o voto de vencido que consta do acórdão recorrido.

Ora, em sede de recurso de revista não há lugar, por regra, à formulação, revisão ou inovação dos juízos relativos à apreciação e valoração da prova, pelo que não é convocável erro de julgamento direta ou indiretamente assente na violação do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal, pois o presente recurso visa exclusivamente a reapreciação da matéria de direito e o citado princípio tem aplicação na apreciação da prova, que não compete a este supremo tribunal reapreciar ou censurar, a não ser, excecionalmente, quando esteja patenteado de forma manifesta no texto da decisão recorrida, à semelhança da apreciação dos vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal5.

Tem sido essa a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, entendendo–se que um suposto erro de julgamento não pode ser corrigido pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Na verdade, impulsionada pelo recurso dos assistentes da decisão de 1.ª instância, a Relação reapreciou a matéria de facto provada e não provada e formulou o seu juízo valorativo de forma legítima, congruente e isenta de dúvidas, a partir da valoração das provas que o recurso referido impunha reavaliar e que, estando adquiridas no processo, impuseram decisão diversa da 1.ª instância, observando os poderes que o quadro legal definido no artigo 431.º do Código de Processo Penal legitima.

Atendendo aos termos em que o recorrente objetiva o seu recurso, insurgindo–se contra a matéria de facto fixada, a valoração da prova e a consequente, necessária e suficiente qualificação jurídica que lhe corresponde, na verdade atacou essencialmente a convicção do Tribunal recorrido, pelo que, fixando o artigo 434.º do Código de Processo Penal os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, que não é um tribunal de instância, mas de revista, não pode este Supremo Tribunal conhecer das questões suscitadas pela recorrente.

Ainda que sejam diferentes “erro na apreciação da prova” e “erro notório na apreciação da prova”, no caso presente tanto a reapreciação da matéria de facto, em termos amplos (erro-julgamento), como no âmbito dos vícios do artigo 410.º, do Código de Processo Penal (erro-vício) ou nulidades (porém, inexistentes), não podem servir de fundamento ao recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que se impõe rejeitar, por inadmissível, o recurso interposto pelo arguido, nos termos conjugados dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2 e 434.º, todos do Código de Processo Penal.”.

6. O recorrente notificado para se pronunciar sobre o parecer do MP, conforme art.º 417.º, n.º 2, do CPP, nada disse, sendo certo que, os Assistentes, notificados nos mesmos termos responderam que manifestavam “(…) a sua concordância com o mesmo e seus fundamentos.”

7. Em 27/11/2024, o arguido requereu a junção aos autos de um documento intitulado “Relatório Técnico Pericial Acidente / Empilhador e Motociclo”, apresentado no âmbito da acção cível que corre termos no Juízo Central Cível de ... - Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de ..., o Proc. n.º 926/18.5..., alegando que a sua Ilustre advogada só agora tomou conhecimento do mesmo, como ali se refere que “(…) a aqui signatária somente na presente data teve conhecimento da existência deste relatório, visto que nunca foi notificado do mesmo naquele processo”. Pretende o requerente que “(…) seja admitida a junção aos presentes autos do referido relatório pericial, com vista à descoberta da verdade material”.

8. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTOS

1. De facto

O objecto do presente recurso é o acórdão do TRL, de 25/10/2023, que, alterando a matéria de facto fixada, julgou procedente o recurso interposto pelos assistentes do acórdão proferido em 06/09/2022, pelo Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo de Competência Genérica de ... – J2, revogando tal decisão absolutória e decidindo “(…) condenar o arguido na pena de 12 (doze) meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio negligente (artº 137 nº1 do CP).

Determina-se a suspensão da execução da pena pelo mesmo período de tempo (artº 50 do CP).”

E, é a seguinte matéria de facto provada e fixada, com reprodução dos factos alterados pelo tribunal recorrido realçados a cinza:

Factos provados.

1) O arguido é trabalhador da “D...”, desempenhando funções no setor do ambiente, [matéria alegada na contestação].

2) No exercício das suas funções conduz e manobra empilhadores [matéria alegada na contestação].

3) A entidade empregadora “D...” tem dois pavilhões, que estão separados por um arruamento municipal, designado arruamento C, sito na Zona Industrial de ... [matéria alegada na contestação e que decorria igualmente da acusação].

4) Entre os dois pavilhões há movimento de pessoas/funcionários e veículos de transporte para transferência de pequenas cargas (matérias primas e produtos semi-acabados) [matéria alegada na contestação].

[Da matéria da acusação e, em parte, da contestação, a que acresce matéria aditada e comunicada pelo Tribunal]

5) No dia .../.../2016, cerca das 13 horas e 50 minutos, o arguido AA encontrava-se ao volante de um empilhador, propriedade da “D...” e pretendia com ele deslocar-se do pavilhão nº 1, que se situa de um dos lados do arruamento C, orientação este, para o pavilhão nº 2, que se situa do lado contrário, a orientação oeste.

6) Após ter saído pelo portão principal do pavilhão da referida empresa, mudou de direção à esquerda – sentido sul - dirigindo-se pelo passeio até uma passagem de peões que se encontra na via ascendente do arruamento C.

7) Seguidamente, atravessou a via de trânsito destinada ao sentido ascendente através dessa passagem de peões – de este para oeste - chegando ao separador central da faixa de rodagem.

8) Uma vez ali e após ter imobilizado por completo a sua marcha, levantou-se do empilhador, olhou para a sua direita e, após certificar-se que não circulava nenhuma viatura, entrou na via destinada ao sentido descendente, através de outra passagem de peões que ali se encontrava, da esquerda – este - para a direita – oeste.

9) Após o referido em 8), seguia em sentido descendente da via DD, ao volante de um motociclo de passageiros de marca Yamaha, modelo R1, de matrícula CS-...-ZH (matrícula francesa).

10) O aludido DD seguia em velocidade não concretamente apurada, mas superior à legalmente permitida no local (40 km/h).

11) Ao aperceber-se da aproximação súbita do motociclo, o arguido, que já tinha percorrido cerca de metade da passadeira, trava e paralisa o empilhador,

12) Ficando este a ocupar, com os rodados traseiros, a primeira barra longitudinal das sete de que é constituída a passagem para peões e, com os garfos, a sua quarta barra longitudinal, encontrando-se estes a alcançar o início da quinta barra longitudinal.

13) Em contrapartida, ao aperceber-se do veículo conduzido pelo arguido a uma distância superior a vinte e quatro metros, DD travou bruscamente,

14) Seguidamente, perde o controlo do motociclo, desequilibrou-se, tombou no solo, conjuntamente com a viatura, e prosseguiu, deslizando no pavimento da via com o lado esquerdo do corpo, até vir a embater com a sua cabeça na roda frontal direita do empilhador,

15) Enquanto o motociclo prossegue em derrapagem no solo, em direção ao garfo direito do empilhador, com o qual vem a colidir.

16) Resultante desse embate, o motociclo conduzido por DD rodopiou de traseira sobre a respetiva direita, passando por baixo dos garfos do empilhador, arrastando-se pelo pavimento até ficar imobilizado em cima do passeio do lado direito, cerca de oito metros após a passagem para peões onde se deu o embate.

17) Por sua vez, na sequência do embate, DD foi projetado para a retaguarda e ficou prostrado na passagem para peões, ligeiramente afastado do empilhador, paralelamente à faixa de rodagem, na posição de decúbito ventral.

18) Como consequência deste embate, DD sofreu ferimentos que redundaram na sua morte imediata.

19) Na verdade, a morte de DD ocorreu em virtude das lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, faciais, tóraco-abdominais e do membro superior esquerdo, as quais constituem causa adequada de morte.

20) Tendo-se concluído na autópsia médico-legal efetuada à vítima que, tais lesões constituem causa de morte violenta e denotam haver sido produzidas por violento traumatismo de natureza contundente e contuso-perfurante, podendo ter sido devidas a acidente de viação, como consta da informação.

21) Os resultados toxicológicos revelaram a presença de cerca de 0,02 g/l no sangue da vítima.

22) A estrada onde se deu o embate é constituída por betão betuminoso, em estado de conservação regular e razoáveis condições de circulação.

23) A faixa de rodagem do arruamento C é constituída por duas vias, uma em cada sentido de trânsito, cada uma com uma largura de cerca de 7,55 metros, e mediadas por um separador central.

24) O local situa-se numa reta com boa visibilidade.

[Factos instrumentais obtidos da instrução da causa e comunicados pelo Tribunal para efeitos de alteração não substancial da matéria indicada na acusação]

25) DD entrou no arruamento C através do entroncamento formado pela junção das vias do arruamento C com a do arruamento M, provindo deste último arruamento, de este para oeste.

26) A faixa de rodagem deste arruamento no sentido de trânsito percorrido pela vítima é constituída por via com declive descendente.

27) No final do arruamento M encontra-se colocada sinalização vertical “Stop”, acompanhada de uma marca transversal “M8” - linha de paragem - ambos situados a cerca de 103,8 metros do local de embate.

28) Após ultrapassar o entroncamento referido em 25), DD entra na via ascendente do arruamento C, prosseguindo no sentido este-oeste em direção ao eixo da faixa de rodagem, até entrar na via descendente do mesmo arruamento,

29) Após, a uma distância superior a 70 metros do local onde se deu o embate, fletiu para a sua esquerda, ou seja, para sul.

30) Altura em que levanta a roda dianteira do seu motociclo do solo e a faz retomar ao mesmo, prosseguindo em aceleração.

31) A cerca de 25 metros da passagem para peões onde se deu o embate, a norte desta existe uma outra passagem para peões.

32) Aquando da travessia do empilhador e no momento do embate, a via descendente do arruamento C encontrava-se ocupada com viaturas dos dois lados, em particular, do lado direito do condutor do empilhador,

33) O que, conjugadamente com a copa das árvores existentes no separador central, condicionam a visibilidade de ambos os condutores. [ Considerada conclusiva ]

34) A travagem referida em 13) deixou uma marca na via, iniciada a cerca de 40 cms do limite sul da barra longitudinal da segunda passagem para peões referida em 31) com uma extensão de 9,5 metros.

35) A derrapagem do motociclo referido em 15) deixou uma marca com 14 metros de extensão, que se segue à referida em 34).

36) O empilhador conduzido pelo arguido não tinha matrícula.

(Da acusação)

37) No momento do embate, o dia estava claro, o tempo estava ameno e seco.

38) O veículo conduzido pelo arguido estava em perfeitas condições de circulação, não existindo qualquer anomalia mecânica suscetível de influenciar a condução.

39) O motociclo conduzido pela vítima estava em perfeitas condições de circulação, não existindo qualquer anomalia mecânica suscetível de influenciar a condução.

40) O limite de velocidade no local é 40 quilómetros por hora.

[Da contestação]

41) O embate fez deslocar o empilhador entre trinta a quarenta cms para a sua esquerda.

42) [ Se o motociclo circulasse à velocidade permitida para o local poderia ter imobilizado o veículo no espaço livre e visível à sua frente, sem embater no empilhador.] Considerado conclusivo

43) [ Em decorrência da velocidade a que seguia, DD não conseguiu controlar o motociclo, caiu no solo e veio ao encontro do empilhador ] Considerado conclusivo.

44) A “D...” enviou ao Ex.mo Sr. Presidente da Câmara Municipal de ..., uma missiva datada de 8/6/1994, com o assunto “passagem entre pavilhões”, com o seguinte teor:

“ […] Como é do vosso conhecimento a nossa empresa tem duas áreas industriais, uma de cada lado da via.

Com a entrada em funcionamento do novo pavilhão, vamos ter movimento de pessoas, viaturas e veículos de transporte entre os dois espaços.

Para permitir essa circulação de modo mais eficaz e funcional, vimos solicitar se dignem abrir e marcar duas passagens de cerca de 3 metros, cada uma na via central.

Pedimos o favor de atender ao nosso pedido com a brevidade possível, visto estarmos, desde já a transferir máquinas e outros equipamentos com o atravessamento da via, por monta-cargas em condições difíceis.

Antecipadamente gratos subscrevemo-nos, com toda a estima, […]

45) A “D...” enviou ao Ex.mo Sr. Presidente da Câmara Municipal de ..., uma missiva datada de 5/7/1994, com o seguinte teor:

D... […] vem solicitar a V. Exª a aprovação da proposta de marcação de passadeiras e execução de rampas nos passeios e separador central, conforme indicado em planta topográfica anexa, tendo em consideração o que passamos a expôr:

1 – Face à necessidade de ampliação das instalações industriais, administrativas e sociais da empresa, fomos obrigados a construir uma nova unidade a poente das instalações primitivas, ficando separadas pelo arruamento Municipal,

2 – A fim de permitir a ligação de pessoas e transferência de pequenas cargas (matérias primas e produtos semi-acabados) julgamos oportuno definir zonas próprias para travessia do referido arruamento,

3 – As rampas a executar nos passeios e separador central (na largura das passadeiras) têm como objetivo permitir a circulação de empilhador e carrinhos de mão, não perturbando a normal circulação ao longo dos passeios existentes,

4 – O fluxo de pessoas e transporte de cargas será efetuado com a devida segurança e sinalização. […]

46) O Município de ... remeteu à “D...” missiva datada de 21/7/1994, subscrita pelo sr. Presidente da Câmara, com o seguinte teor:

“[…] Relativamente ao solicitado sobre “passagem entre pavilhões” informamos V. Excias que a Câmara Municipal, em sua reunião do passado dia 7, deliberou autorizar essa Empresa a realizar os trabalhos sob a orientação e fiscalização do Chefe de Divisão de Obras Públicas, Sr. Engº EE […] “

47) Em reunião Camarária datada de 7/7/1994 foi apreciado o pedido da “D...” no sentido de solicitar à Câmara Municipal a marcação e abertura de duas passagens de cerca de três metros cada na via central, entre as duas áreas industriais, por forma a facilitar o atravessamento da via pelos monta-cargas e outros equipamentos, tendo sido deliberado, por unanimidade, autorizar a empresa a realizar os trabalhos em conformidade com os desenhos, a apresentar pela Câmara Municipal, e sob a fiscalização da autarquia.

48) As obras autorizadas envolviam marcações de passadeiras e execução de rampas nos passeios e separador central.

[Factos apurados no decurso da decisão da causa favoráveis ao arguido]

49) A entidade patronal do arguido tinha-lhe dado instruções no sentido de, no exercício das suas funções, fazer o acesso de um pavilhão ao outro com o empilhador procedendo ao atravessamento da faixa de rodagem nos moldes acima narrados, ou seja, recorrendo às passagens para peões referidas em 6) e 8), acedendo à primeira através do passeio e à segunda através do separador central.

c) Apesar de DD circular em velocidade superior à legalmente permitida no local, a entrada repentina do veículo conduzido pelo arguido na faixa onde aquele circulava, contribuiu decisivamente para a produção do acidente.

d) O arguido não agiu com o cuidado que lhe era exigível, prevendo que tal condução poderia redundar na colisão com o veículo conduzido pela vítima, ainda que não se tenha conformado com esse resultado.

e) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária, e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

51) Aquando do embate, o arguido encontrava-se no seu horário de trabalho e em execução do seu trabalho.

[Das condições pessoais, socio económicas e dos antecedentes criminais]

52) O arguido encontra-se de baixa médica, derivada de um problema oncológico.

53) Aufere cerca de €800,00 [oitocentos euros].

54) Vive em casa própria.

55) Não tem dívidas, nem filhos menores.

56) É proprietário de duas viaturas, uma modelo “megane”, marca Renault, do ano de 2009, outra da marca Citroen, do ano de 2000.

57) Não tem antecedentes criminais.

Factos não provados.

Com relevo para a boa decisão da causa ficou por provar:

a) Ao aperceber-se da entrada na via do veículo conduzido pelo arguido, DD travou bruscamente, mas não conseguiu evitar embater frontalmente contra a lateral direita, mais precisamente o garfo empilhador do veículo conduzido pelo arguido.

b) O arguido abordou a aproximação à faixa de rodagem, sem se assegurar que inexistiam quaisquer outros veículos em circulação na via.

50) O arguido desconhecia que do cumprimento dessas indicações poderia resultar a morte de DD.

2. De direito

1. Questão prévia

Em processo penal, os documentos devem ser juntos no âmbito do decurso do Inquérito ou da Instrução, excepcionalmente podendo sê-lo até ao encerramento da audiência em primeira instância, o que impõe dever ser demonstrado que não teria sido possível fazer a sua junção anteriormente – art.º 165.º, do CPP.

No caso, o recorrente requereu a junção de um documento, alegando não ter tido conhecimento do mesmo senão agora, e pretendendo que “(…) seja admitida a junção aos presentes autos do referido relatório pericial, com vista à descoberta da verdade material”.

Tal pretensão, manifestamente, não é admissível.

Com efeito, o documento intitulado de “relatório pericial” foi junto ao processo de recurso para o STJ e em véspera da realização da conferência, numa clara violação daquela norma processual – art.º 165.º n.º 1, do CPP, não sendo possível realizar-se, sequer, o contraditório – art.º 165.º, n.º 2.

Acresce que o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questões que não foram do conhecimento do tribunal recorrido, não sendo tal documento atendível, aliás, como bem reconhece o requerente ao dizer que “(…) embora consciente de que, em regra, se encontraria esgotada a oportunidade de apresentação de documentos em sede de recurso”, fê-lo por considerar que o mesmo é essencial à descoberta da verdade material, chamando à colacção a salvaguarda das “(…) garantias constitucionais de defesa do Arguido).

Ora, o documento em causa não constitui um documento autêntico nem autenticado, conforme art.º 169.º do CPP, sendo certo que o seu conteúdo em nada altera a matéria de facto provada que não pode, agora, ser questionada. Tal documento, objetivamente considerado, apenas contém uma outra valoração de situações já objeto de prova e apreciação pelo tribunal de primeira instância e pelo tribunal recorrido, pelo que, consequentemente, a requerida junção de documento é extemporânea, e não será objeto de apreciação por este tribunal.

Indefere-se, pois, o requerido.

2. O presente recurso foi interposto, apenas, pelo arguido AA, pelo que, de acordo com o princípio da proibição da reformatio in pejus, previsto no art.º 409.º, n.º 1, do CPP “Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, (…), o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.”. Respeitando esta limitação, a apreciação do objecto recurso cingir-se-á às questões colocadas e que serão apreciadas pela ordem estabelecida pelo recorrente.

Assim sendo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a jurisprudência deste Supremo Tribunal é pacífica em afirmar que “(…) é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.” – Ac. do STJ de 17/06/2020, Proc. n.º 91/18.8JALRA.E1.S1, em www.dgsi.pt.

O recorrente pretende que sejam apreciadas as seguintes questões:

i. Nulidade do acórdão recorrido, por padecer de falta de fundamentação quanto à alteração da matéria de facto – conclusões a) a m), das alegações de recurso;

ii. Erro de julgamento do acórdão recorrido ao desconsiderar matéria de facto assente pela decisão de 1ª instância com fundamento em que é conclusiva ( conclusões a) a h) das alegações);

iii. Erro de julgamento do acórdão recorrido ao considerar praticado pelo arguido o crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos do art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal, por ter considerado violação causal do resultado “morte” o facto de conduzir na via pública uma máquina industrial sem matrícula, fazer o atravessarmento da faixa de rodagem sobre a passadeira destinada aos peões e por não ter atendido a que o arguido agiu com todo o cuidado que lhe era exigível e obedecendo às indicações da sua entidade patronal – conclusões n) a ff), das alegações de recurso;

Vistas as questões assim suscitadas pelo recorrente, neste recurso, fácil é concluir que o mesmo, apesar de saber que o recurso para o Supremo Tribunal versa matéria de direito, essencialmente insiste na i) na nulidade da decisão do acórdão da Relação, por falta de fundamentação quanto à alteração da matéria de facto fixada no acórdão proferido pela 1.ª Instância, focando-se nas questões da fundamentação da matéria de facto provada e do erro de julgamento, tal como resulta da transcrição das suas alegações, tendo sido assim condenado na prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos do art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal,; e ii) insiste que deve ser absolvido porquanto não actuou com culpa, antes cumprindo ordens da sua entidade patronal.

1. Rejeição do recurso

O Ministério Público junto deste Supremo Tribunal, pugnou pela rejeição do recurso considerando que o recorrente no seu recurso se insurge “ (…)contra a matéria de facto fixada, a valoração da prova e a consequente, necessária e suficiente qualificação jurídica que lhe corresponde, na verdade atacou essencialmente a convicção do Tribunal recorrido”, entendendo assim que o recurso deve ser rejeitado nos termos dos art.ºs 420.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.º 2 e 434.º, todos do CPP, porquanto, pretendendo o recorrente a reapreciação da matéria de facto, tal questão está vedada ao conhecimento do STJ, em sede de recurso de revista.

Antes de mais, cumpre ter presente que a Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, deu nova redacção à al. e), do n.º 1, do art.º 400.º, do CPP, que passou a dispor não ser admissível recurso “ e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;” – negrito nosso.

O caso sob recurso corresponde a esta excepção.

Com efeito, por sentença de 06/09/2022, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo de Competência Genérica de ...– J2, o arguido ora recorrente viu julgada improcedente a acusação pública e, consequentemente, foi absolvido da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal, e de três contraordenações graves, previstas e punidas pelos art.ºs 12.º, 21.º, 29.º, e 145.º, n.º 1, al. f), do Código da Estrada. Porém, na sequência de recurso interposto dessa decisão pelos Assistentes, o TRP efectuou a alteração dos pressupostos a partir dos quais a 1ª instância absolvera o ora recorrente, designadamente alterando a matéria de facto fixada e, julgando procedente o recurso, pelo que, reverteu a absolvição decidida pelo tribunal de 1.ª Instância e, condenou-o na pena de 12 (doze) meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. nos termos do art.º 137.º, n.º1 do CP, tendo sido determinada a suspensão da execução da pena pelo mesmo período de tempo (art.º 50 do CP).

Por este ângulo, o recurso é admissível.

Porém, a questão que o Ministério Público suscita é de outra natureza, não incide sobre a recorribilidade do acórdão em si mesmo, mas sobre se as questões suscitadas no recurso cabem no âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça. Sobre os poderes de cognição, dispõe o art.º 434.º do CPP que, “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”.

Deste modo, há que averiguar se a impugnação do acórdão a que o recorrente procede exorbita do âmbito dos poderes de cognição. Ora, examinadas em detalhe as alegações, verifica-se que o recorrente pretende que sejam apreciadas as questões seguintes:

i. Nulidade do acórdão recorrido, por padecer de falta de fundamentação quanto à alteração da matéria de facto – conclusões i) a m), das alegações de recurso;

ii. Erro de julgamento do acórdão recorrido ao desconsiderar matéria de facto assente pela decisão de 1ª instância com fundamento em que é conclusiva (conclusões a) e h) das alegações);

iii. Erro de julgamento do acórdão recorrido ao considerar praticado pelo arguido o crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos do art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal, por ter considerado violação causal do resultado “morte” o facto de conduzir na via pública uma máquina industrial sem matrícula, fazer o atravessarmento da faixa de rodagem sobre a passadeira destinada aos peões e por não ter atendido a que o arguido agiu com todo o cuidado que lhe era exigível e obedecendo às indicações da sua entidade patronal – conclusões n) a ff), das alegações de recurso;

Deste modo, sem prejuízo de não se tomar conhecimento do recurso na parte em que deva concluir-se que aquilo que efectivamente se pretende é a reapreciação da matéria de facto, não há fundamento para que se rejeite in totum o recurso, o que basta para que, na parte respeitante, se julgue improcedente o alegado pelo Ministério Público, quanto à rejeição do recurso.

1. Da arguida nulidade da decisão, por falta de fundamentação e do erro de julgamento na eliminação de matéria de facto com fundamento em que é conclusiva

2.4.1. Alega o recorrente que o acórdão sob impugnação é nulo nos “(…) termos dos artigos 374 e 379 do C.P.P..”, porquanto “O Tribunal da Relação alterou a matéria de facto, “dando como não provado o facto nº50 e como provados três factos (alíneas c), d) e e), os quais na primeira instância haviam sido dados como provado e não provados respectivamente, depois de um rigoroso julgamento e após serem ponderadas todas as circunstâncias” – conclusão i) e seguintes do recurso – considerando verificar-se a falta de fundamentação quanto à alteração da matéria de facto fixada no acórdão proferido pela 1.ª Instância, focando-se nas questões da fundamentação da matéria de facto provada, tal como resulta da transcrição das suas alegações.

Com efeito, o recorrente insiste em que, para “(…) operar esta alteração, o Tribunal não procedeu - como se impunha - à respectiva fundamentação, razão pela qual não se vislumbra a razão de ser que levou aquele Tribunal, ao reapreciar a prova, a alterar a matéria de facto dada como provada e não provada.”, não tendo “especificado”, “(…) em que medida o texto da decisão recorrida (proferida pela 1.ª instância), e de cuja matéria de facto alterou, tinha chegado a determinadas conclusões com as quais não concordava, nem nunca referiu sequer que as conclusões a que chegou a primeira instância contrariavam as regras da experiência, pelo que não se concebe o raciocínio adoptado pelo Tribunal da Relação para proceder a esta alteração, por não ter sido explicado em momento ou lugar algum”, pelo que, em seu entendimento tal circunstância acarreta a nulidade do acórdão.

Sem razão, nesta perspectiva. O que releva nesta sede não é o acerto material do juízo sobre as questões resolvidas, mas se a decisão expressa, de modo suficientemente claro e congruente, as razões por que se decidiu em determinado sentido.

Ora, sobre a alteração da matéria de facto, disse o acórdão recorrido:

“A acusação e a decisão a quo debruçam-se sobre os artºs 12 (início de marcha), 21 (sinalização de manobras), 29 (cedênciaprincípio geral) e 145 nº 1 alª f (contra-ordenações graves) todos do CE. Sinceramente, não entendemos qual a utilidade destes dispositivos (normativos) para a boa decisão da causa. Estas normas estão pensadas para os normais utentes da via, para quem usa veículos e o nosso caso exorbita estas coordenadas. A máquina não pode usar a via pública, consequentemente não pode usar a passadeira, acima de tudo e também porque esta passagem está reservada aos peões. Mas da matéria dada como provada resultam violadas contra-ordenações que não as indicadas – artºs 117 nºs 3 e 8 do CE, além do disposto no D/L nº 107/2006 de 8 de Junho. É interessante verificar que neste diploma, ainda que uma máquina como esta estivesse matriculada, o legislador exige sinalização específica (artº14) sob pena sob pena de ser aplicada coima (artº 45). Por isso a matéria de facto responde: temos uma máquina não matriculada sobre a passadeira, o que pressupõe a violação de um dever objectivo de cuidado.

A procedência do recurso compreende a matéria de facto traduzida no nexo de causalidade – morte do infeliz DD – e comportamento negligente – falta de observância de um dever de cuidado…

A decisão é modificada nos termos do artº 431 alª a) do CPP – se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base. Não obstante, os recorrentes também impugnaram de facto. Efectivamente do processo figuram todos os elementos de prova necessários para proferir (nova) decisão.

Vamos aos factos, procurando assinalar algumas curiosades, às quais o tribunal a quo não consegue fugir:

Facto nº 5 – Condução de um empilhador, sem matrícula (facto nº 36), na via pública.

Facto nº 7/8 – atravessamento da via (ascendente e descendente) na passagem de peões, vulgo passadeira.

Factos nºs 18/20 – Como consequência do embate, DD sofreu ferimentos que determinaram a morte – lesões traumáticas e causa da morte.

Facto nº 33 – condicionar a visibilidade de ambos os condutores é conclusivo …

Facto nº 42 - Se o motociclo circulasse à velocidade permitida para o local poderia ter imobilizado o veículo no espaço livre e visível à sua frente, sem embater no empilhador. Este facto é conclusivo e por maioria de razão, uma vez que só sabemos que a vítima circulava a mais de 40 Km/h (facto nº 10). A presença de um empilhador sobre a passadeira é anómala.

Facto nº 43 – Também é conclusivo - Em decorrência da velocidade a que seguia, DD não conseguiu controlar o motociclo, caiu no solo e veio ao encontro do empilhador. Continuamos a afirmar, de acordo com a matéria dada como provada, que a vítima seguia a velocidade não concretamente apurada, mas superior à legalmente permitida – 40 Km/h.

Facto nº 45 – Apesar da irrelevância da missiva proveniente da CM, é possível afirmar (nº 4) que o fluxo de pessoas e transporte de cargas (e outros equipamentos como se diz no facto nº 47) será efectuado com devida segurança e sinalização!...

Com uma empilhadora sem matrícula e desacompanhada de qualquer sinalização especial?

Facto nº 50 - O arguido desconhecia que do cumprimento dessas indicações poderia resultar a morte de DD.

As indicações da empresa compreendem a ordem de circular com o empilhador pela via pública, recorrendo à passadeira para peões.

Pretende dizer-se que o arguido desconhecia que não podia circular na via pública com um empilhador não matriculado e que esta circulação pela passadeira podia dar origem a acidentes graves, precisamente como o acidente que agora curamos de analisar.

Obviamente um facto como este não pode ir à rubrica de factos provados.

Dos factos não provados a registar:

Facto alª a) - Ao aperceber-se da entrada na via do veículo conduzido pelo arguido, DD travou bruscamente, mas não conseguiu evitar embater frontalmente contra a lateral direita, mais precisamente o garfo empilhador do veículo conduzido pelo arguido.

Este facto pode continuar na rubrica de factos não provados porque os factos nºs 12/14 da rubrica factos provados descrevem assertivamente como decorreu o embate.

O facto não provado descrito na alª b) tem como propósito transmitir que o arguido não se assegurou de quaisquer outros veículos em circulação na via, porém a relevância desta afirmação é inócua porque pura e simplesmente o arguido não podia circular na via com um empilhador não matriculado. Todas as precauções que tivesse tomado eram indiferentes, suposto que a máquina não podia circular na via e muito menos numa passadeira.

Os factos alªs c), d) e e) depois de reelaborados (reescritos) passam a figurar no elenco dos factos provados.

c) Apesar de DD circular em velocidade superior à legalmente permitida no local, a entrada repentina do veículo conduzido pelo arguido na faixa onde aquele circulava, contribuiu decisivamente para a produção do acidente.

d) O arguido não agiu com o cuidado que lhe era exigível, prevendo que tal condução poderia redundar na colisão com o veículo conduzido pela vítima, ainda que não se tenha conformado com esse resultado.

e) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária, e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

A matéria aditada tem de compreender a causalidade e a negligência. A falta de um dever de cuidado não é compaginável com um facto como o previsto no nº 50, matéria agora arrolada como não provada.

Assim:

- Como consequência do embate a vítima DD sofreu ferimentos causa da sua morte imediata;

- O arguido não actuou com cuidado exigível e não previu a hipótese de colisão com os utentes da via, designadamente não se conformou com aquele resultado.

- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Correspectivamente os factos dados como não provados (c,d e e) serão levados à rubrica de provados.

O artº 50 – provado – declara-se agora como não provado.

O comportamento negligente do arguido deve ser temperado na fixação da medida concreta da pena, por força de várias condicionantes: a relação laboral do arguido, a intervenção da CM, criando uma aparência de legalidade e a convergência de culpas, perante o excesso de velocidade que a vítima imprimiu ao ciclomotor, pelo menos mais de 40 Km/h. Nos termos dos artºs 40 nºs 1 e 2; 70, 71 e 50, todos do CP, entendemos justa e adequada uma pena privativa de liberdade, cuja execução deve ficar suspensa pelo mesmo período de tempo. O crime apesar de negligente é grave e a conduta do arguido conduziu à morte da vítima. A sanção só pode ser conformada com aquelas variantes.

Recordar, ainda que as condições pessoais, sócio-económicas e antecedentes criminais do arguido são favoráveis.

O arguido vai condenado na pena de 12 (doze) meses de prisão, cuja execução ficará suspensa, pelo mesmo período de tempo.”

Manifesto é que o acórdão recorrido não padece de qualquer um dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP, mostrando-se suficientemente fundamentado, não sofrendo de qualquer nulidade prevista no art.º 379.º, com referência ao art.º 374.º, ambas as disposições do CPP.

2. Todavia, não deve confundir-se a arguição de nulidade por falta de fundamentação com a crítica que o recorrente também dirige ao acórdão recorrido por ter excluído do elenco da matéria de facto atendível o que considerou ser conclusivo. Aqui há um ataque à decisão por erro de direito no uso dos poderes de alteração da matéria de facto e não ao discurso justificativo ou à ausência dele.

Efectivamente, saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui, ainda, questão que cabe na competência do STJ como tribunal de revista, porquanto a sua apreciação não envolve – melhor dito –, na medida em que não envolva um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto, enquanto realidade da vida juridicamente relevante, ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado.

Ao STJ está vedado sindicar a convicção formada pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto, salvo na medida em que a lei exija prova vinculada ou determine o valor de determinado meio de prova. Porém, como se disse no Ac. deste STJ, de 28/09/2017, Proc. 809/10.7BLMG, em www.dgsi.pt, “(…)Avaliar se matéria considerada como um facto provado reflecte, indevidamente, uma apreciação de direito ou consubstancia um juízo conclusivo, por envolver uma “qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 312) insere-se no âmbito das suas competências.”. No mesmo sentido, com mais referências doutrinais e jurisprudenciais, o Ac. STJ, de 14/07/2021, Proc. 19035/17.8PR.

Trata-se de sindicar o uso que o tribunal de recurso faz dos seus poderes de reapreciação, não o acerto ou desacerto do seu julgamento quanto a saber se o facto está ou não provado.

Este entendimento é igualmente válido no processo penal. Não pode, pois, rejeitar-se sem mais, a pretexto de que se trata de matéria excluída do âmbito dos poderes de cognição, ao abrigo do art.º 434.º, do CPP, a crítica formulada pelo recorrente à exclusão dos factos alegadamente conclusivos. Só se tratará de matéria excluída do âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de justiça se essa exclusão não for puramente categorial, isto é, se sob essa qualificação se contiver a expressão de um juízo probatório diverso do da sentença ou uma diferente conclusão de facto emergente de valoração do conjunto da prova.

No caso, está em causa a exclusão pelo acórdão recorrido dos factos n.º 33, n.º 42.º e n.º 43, do elenco dos factos provados a pretexto de que são ou envolvem juízos conclusivos.

Vejamos.

No facto sob o n.º 33, em articulação e desenvolvimento de significação com o afirmado no facto sob o n.º 32, de que “(…) aquando da travessia do empilhador e no momento do embate, a via descendente do arruamento C encontrava-se ocupada com viaturas dos dois lados, em particular, do lado direito do condutor do empilhador”, deu a sentença por provado que “ [ essa ocupação], conjugadamente com a copa das árvores existentes no separador central, condicionam a visibilidade de ambos os condutores”.

O Tribunal da Relação entendeu que, condicionar a visibilidade de ambos os condutores, é conclusivo. É certo que afirmar que determinados obstáculos condicionam a visibilidade dos condutores considerados comporta uma síntese relativamente a uma percepção que poderia expressar-se de um modo mais analítico, por exemplo, mediante a indicação da distância que era possível avistar, a partir de um ponto de observação e com uma orientação e ângulo de visão determinados. Mas, essa formulação de síntese avaliativa da prova adoptada pela sentença não é de molde a resolver, por si só, o litígio em questão, não é de tal ordem que, por se expressar o juízo probatório dessa maneira, toda a acção se resolva nessa resposta. Pode afectar, na margem de indeterminação que lhe é inerente, o alcance significante do facto para a resolução do ponto problemático. Mas, não o torna irrelevante para a apreciação de um acidente como aquele que se discute.

Na vida diária dos tribunais, o juízo probatório e o estabelecimento dos factos não pode aspirar a uma expressão totalmente despida de juízos avaliativos da realidade observada. O julgamento da matéria de facto implica, quase sempre, algum grau de conclusividade, expressando-se o julgador mediante juízos de facto, obrigando-o a sintetizar os materiais dispersos que lhe são apresentados através das provas. Parafraseando o que se disse noutra ocasião – Ac. STJ de 13/11/2007, Proc. 07A3060, em www.dgsi.pt –, é praticamente impossível estabelecer factos que não tragam em si implicados juízos sobre outros elementos de facto, o que tem de aceitar-se sob pena de a resolução judicial dos litígios se transformar numa pretensa ortodoxia de linguagem que não capta a realidade da vida juridicamente pertinente e assenta em abstracções ou subtilezas jurídicas distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger.

Retornando ao caso, dizer que a existência de veículos estacionados e de árvores numa determinada localização condicionam a visibilidade para ambos os condutores, não é um facto conclusivo que deva ser desconsiderado num contexto como aquele que, concretamente, está em causa na incorporação da matéria de facto da primeira instância. Um declaratário normal fica a saber que o horizonte de visão do condutor do empilhador, para o seu lado direito sofria limitações por virtude do obstáculo constituído pelos automóveis estacionados e pelas árvores e que o mesmo sucedia com o do motociclista, relativamente ao ponto em que o empilhador se encontrava.

Pelo que procede, nesta parte, a conclusão do recorrente, devendo essa afirmação constante do n.º 33 ser atendida como matéria de facto validamente assente.

3. O mesmo não pode decidir este Supremo Tribunal, quanto à eliminação dos factos n.º 42 e n.º 43, em que se afirmava que “(…) se o motociclo circulasse à velocidade permitida para o local poderia ter imobilizado o veículo no espaço livre e visível à sua frente, sem embater no empilhador” e que “(…) em decorrência da velocidade a que seguia, DD não conseguiu controlar o motociclo, caiu no solo e veio ao encontro do empilhador”.

Embora eliminados com recurso ao expediente justificativo de que se trata de factos conclusivos, quanto a eles há no acórdão um mínimo de esforço de avaliação autónoma da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação. Não se tratou apenas de uma etiquetagem jurídico-processual. O acórdão justifica essa eliminação, afirmando e repetindo, que só se sabe que o motociclo circulava a velocidade superior ao permitido para o local, de 40km por hora.

Neste contexto justificativo, não se está perante a desconsideração de parte da matéria de facto assente na sentença com o mero fundamento no qualificativo de conclusividade, mas perante uma diferente avaliação global da realidade fáctica ou a extracção de diferente conclusão de um facto provado para outro inferido. Isto é, da não sustentação da avaliação dos factos, domínio em que o Tribunal da Relação tem a última palavra, salvo a ocorrência dos vícios a que se refere o n.º 2 do art.º 410.º do CPP.

4. Relativamente à invocação do princípio in dubio pro reo

O recorrente invoca muito vagamente a violação do princípio in dubio pro reo sem que concretize os termos da violação que imputa ao acórdão recorrido – conclusão gg), das alegações de recurso.

Não obstante, a propósito deste tema, importa precisar os termos em que o STJ conhece da alegada violação do princípio aqui em causa. Repete-se o que se disse no Ac. do STJ de 19/09/2024, Proc. n.º 651/20.7POLSB.L1.S1, não publicado: “Como já se afirmou neste STJ, Ac. de 14/09/2023, Proc. n.º 1309/16.7TDLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt, “Cabe nos poderes de cognição do STJ, como o resulta do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, verificar se a decisão de facto satisfaz a exigência de que tal processo de formação da convicção seja objectivado e motivado e que o resultado final esteja em consonância com essa objectivação suficiente e racionalmente motivada, bem como se, nas inferências de que o tribunal recorrido se serviu para afirmar determinados factos foram observados os limites que decorrem de princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente o uso de provas proibidas, a violação do direito ao silêncio do arguido, a observância da presunção de inocência e do in dubio pro reo no julgamento de facto. Há normas jurídicas que presidem a tal tarefa, cuja observância é sindicável em revista. Em especial, quanto ao princípio in dubio pro reo, conforme doutrina do Ac. do STJ, de 15/12/2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1, e tal como se disse no Ac. de 12/01/2023, Proc n.º 569/20.3JAAVR.P1.S1, em www.dgsi.pt , “(…), a jurisprudência deste Supremo Tribunal é actualmente uniforme na aceitação de que a análise da violação, ou não, deste princípio jurídico é uma questão de direito, incluída nos seus poderes de cognição, conforme, de entre outros, o Ac. de 14/04/2016, Proc. 325/14.8JABRG.G1.S1, em www.dgsi.pt, que se acompanha. Não se trata de proceder autonomamente à valoração da prova, mas de apreciar se a decisão recorrida observou uma regra de direito sobre a prova, o que cabe indiscutivelmente nos poderes de cognição do tribunal de revista. (…) Questão diferente, será o que respeita ao âmbito em que o princípio in dubio pro reo opera, aos elementos de que é permitido este Supremo Tribunal socorrer-se e a extensão do controle da observância deste princípio a que pode proceder, aspectos para cuja compreensão e evolução jurisprudencial o já mencionado acórdão de 15/12/2011 continua a dar contributo.”.

Assim, pode e deve o Supremo Tribunal de Justiça avaliar da legalidade do uso dos poderes de livre apreciação da prova (art.º 127.º do CPP), da observância da presunção de inocência do arguido e do princípio processual in dubio pro reo, até onde for possível, face ao texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum (art.º 410.º, n.º 2, al. c), do CPC).”.

Todavia no caso sob recurso, só se poderia sindicar a aplicação do princípio em causa, se o recorrente tivesse indicado, como lhe competia, em que consistiu a violação imputada ao acórdão recorrido. Ora, tal não se verifica, impossibilitando este Supremo Tribunal de aferir em que termos se verificou o eventual estado de dúvida insuperável do tribunal a quo, perante algum facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido recorrente.

Não se vislumbrando a existência desse estado de dúvida que se possa inferir da decisão recorrida não se verifica fundamento na invocação da violação desse princípio, perante este Supremo Tribunal.

Assim sendo, na parte respeitante, improcede a alegação do recorrente.

3. Do pedido de Absolvição

1. Alega o recorrente que deve ser absolvido da prática do crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos do art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal, por, na essencialidade das questões suscitadas no seu recurso, considerar que “(…) perante as circunstâncias e prova produzida nos autos, o Tribunal da Relação não poderia ter condenado o arguido pelo crime de que vinha acusado.”, por ter actuado com todo o cuidado que lhe era exigível e obedecendo às indicações da sua entidade patronal – conclusões n), o) e p), das alegações de recurso –, concluindo que “Dos factos provados ( 10, 29, 30, 31 e 34) bem como da motivação de facto da sentença resulta inequívoca a conclusão de que a morte do DD se deveu única e exclusivamente à conduta negligente do sinistrado.” – conclusão q), das alegações de recurso – e que “A observância do dever legal de matricular o empilhador e o de se abster de circular na via não cabe ao arguido mas sim à proprietária (entidade patronal), por esse motivo foi lavrado auto de contraordenação contra esta (fls.66) nos termos do artº 135 nº3 al.b) C.E. Acresce que a falta de matrícula não contribuiu para a ocorrência do acidente, o qual, perante as circunstâncias apuradas, ocorreria ainda que estivesse matriculado.” – conclusões v) e w), das alegações de recurso.

Está demonstrado que o arguido ora recorrente conduzia um empilhador – propriedade da sua entidade patronal e possui dois pavilhões industriais, que estão separados por um arruamento municipal – e pretendia com ele deslocar-se do pavilhão nº 1, que se situa de um dos lados do arruamento, para o pavilhão nº 2, que se situa do lado contrário, pelo que dirigindo-se pelo passeio até uma passagem de peões ali existente, atravessou a via de trânsito destinada ao sentido ascendente através dessa passagem de peões, e, após certificar-se que não circulava nenhuma viatura, entrou na via destinada ao sentido descendente, através de outra passagem de peões que ali se encontrava – cf. factos provados 2 e 5 a 8, da matéria de facto provada.

De igual modo está provado que entre os dois pavilhões há movimento de pessoas/funcionários e veículos de transporte para transferência de pequenas cargas (matérias primas e produtos semi-acabados), bem como, que o local onde ocorreram os factos se situa numa reta com boa visibilidade, sendo uma estrada, cuja faixa de rodagem é constituída por duas vias, uma em cada sentido de trânsito, cada uma com uma largura de cerca de 7,55 metros, e mediadas por um separador central – cf. factos provados 4, 22 a 24, da matéria de facto provada.

Mais se mostra provado que a estrada em causa é um arruamento municipal que sofreu trabalhos de construção de marcações de passadeiras e execução de rampas nos passeios e separador central, realizados pela entidade patronal do arguido e autorizados pelo Município de ..., a fim de permitir “a abertura de duas passagens de cerca de três metros cada na via central, entre as duas áreas industriais, por forma a facilitar o atravessamento da via pelos monta-cargas e outros equipamentos”; e a entidade patronal do arguido recorrente havia “(…) dado instruções no sentido de, no exercício das suas funções, fazer o acesso de um pavilhão ao outro com o empilhador procedendo ao atravessamento da faixa de rodagem nos moldes acima narrados, ou seja, recorrendo às passagens para peões referidas em 6) e 8), acedendo à primeira através do passeio e à segunda através do separador central.” – cf. factos provados 44 a 49, da matéria de facto provada; sublinhado nosso.

Na realidade, foi no decurso desta manobra que se produziu o acidente de que resultaram para a vítima as lesões descritas no relatório da autópsia e que foram causa necessária da sua morte, em circunstâncias que o acórdão recorrido, em divergência com a sentença de primeira instância, considerou preencherem o ilícito típico do crime de homicídio por negligência previsto no n.º 1 do art.º 137.º do Código Penal.

A divergência entre as instâncias e a posição contraposta dos assistentes e do arguido, no presente recurso, radicam na possibilidade de imputação do resultado – a morte do motociclista – a negligência do arguido. Importa, uma vez que o art.º 137.º, do CP, não contém um conceito autónomo de negligência, ter presente o art.º 15.º, do Código Penal que, sob a epígrafe Negligência, dispõe que :

Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz :

a. Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou

b. Não chegar sequer a representar a realização do facto.

O tipo de ílicito negligente materializa-se na violação do dever objectivo de cuidado a que o agente está obrigado e de que é capaz. Nos crimes de resultado, como é o que agora está em consideração, os deveres de cuidado são concretizados pelas normas jurídicas respeitantes à actividade em causa porventura existentes – que podem ser de fonte legal, regulamentar (normação técnica incluída) ou estatutária –bem como, pelas regras de prudência comum idóneas a evitar a produção do resultado proibido ou, dito de outro modo, a criação da situação de perigo para o bem jurídico emergente da conduta do agente que se vem a concretizar na sua lesão.

Segundo o acórdão recorrido, a matéria de facto que ficou assente, após a alteração a que procedeu, permite imputar ao arguido a morte da vítima porque

i. Circulava na via pública conduzindo uma máquina que por não ter matrícula não podia circular na via pública;

ii. Atravessou com ela a faixa de rodagem, utilizando a passadeira assinalada e destinada à travessia dos peões;

iii. Cortou a linha de marcha do motociclo tripulado pela vítima violando a regra de prudência comum de se se certificar que o poderia fazer sem perigo de colisão.

O arguido sustenta, em síntese, que:

i. Que a falta de matrícula e a circunstância de o atravessamento da faixa de rodagem ser feito pela passadeira para peões não permitem imputar-lhe o ilícito a título de negligência porque nenhuma delas é causal do acidente;

ii. Que o atravessamento da faixa de rodagem passando com o empilhador sobre a passadeira estava autorizada pela câmara municipal e foi executado em cumprimento de ordens da sua entidade patronal, ao abrigo da referida autorização municipal;

iii. Que adoptou todos os cuidados exigíveis, certificando-se de que não havia qualquer veículo a circular pela faixa que atravessou;

iv. Que o acidente é exclusivamente imputável ao facto de a vítima imprimir ao motociclo velocidade excessiva.

Os assistentes defendem o acerto do acórdão recorrido, em toda a sua extensão, de facto e direito.

1. Um empilhador é uma máquina, do tipo carro automotor, para movimentar, baixar, transportar e empurrar cargas, sendo por isso tido como uma máquina industrial destinado à execução de obras ou trabalhos industriais e que só eventualmente transita na via pública, conforme art.º 109.º, n.º 2, do CE, sendo certo que à data do acidente deveria estar matriculado para ser admitido a essa circulação, tal como estabelecido pelo art.º 117.º, n.º 1, do CE e pelo Decreto 107/2006, de 8 de Junho.

Uma vez que o empilhador envolvido no acidente não estava matriculado e por isso era proibido conduzi-lo na via pública, o acórdão recorrido considerou que a infracção a essa proibição integrava violação do dever objectivo de cuidado por parte do arguido susceptível de constituir elemento de imputação da morte do motoclista que nele embateu.

Não se acompanha este raciocínio. Para que a infracção a determinada norma seja, objectivamente, constitutiva de negligência é, desde logo, necessário que a evitação do resultado, no modo como se produziu, se compreenda no âmbito de protecção da norma de conduta infringida. Ora, a falta de matrícula não agrava o risco para o bem jurídico lesado, não podendo considerar-se causa adequada do resultado.

Reconhece-se que o procedimento administrativo de matrícula não se esgota na atribuição de um elemento de identificação da máquina para a disciplina e fiscalização da circulação rodoviária, tendo também como finalidade, se não como finalidade primária, verificar se reúne os requisitos de funcionamento e segurança que minimizem o perigo para terceiros que potenciam (vid. o capítulo das características técnicas, art.ºs 5.º e segs, do Dec. Lei n.º 107/2006), em que se inclui, também, o incremento de risco para o tráfego na via pública que a sua utilização num contexto para que não é concebida pode implicar.

Todavia, não há na matéria de facto assente qualquer vislumbre de que algum aspecto inerente a esses elementos de constituição e funcionamento da máquina tenha contribuído para o evento de que resultou a morte do motociclista. Nada na matéria de facto aponta que para o acidente tenha contribuído algum elemento da própria máquina, nomeadamente, alguma falha do sistema de travagem, rodas, pneus, direção, luminosidade ou outro requisito necessário para a atribuição de matrícula. Designadamente, os assistentes referem na sua alegação a falta de elementos de sinalização luminosa da marcha, mas nada a esse respeito consta da matéria de facto provada.

Tanto basta para que não se possa acompanhar o acórdão recorrido na parte em que integra a falta de matrícula na negligência causal do homicídio, procedendo nesta parte as conclusões do recorrente.

2. O acórdão recorrido coloca a ênfase, na determinação de uma acção do arguido, particularmente desvaliosa para o bem jurídico protegido pela incriminação, no desrespeito do que considera ser a proibição de utilização de uma passadeira destinada ao atravessamento da via por peões para o empilhador sobre ela circular transversalmente, deslocando-se de um para o outro lado da faixa de rodagem.

À primeira vista o argumento impressiona. As passagens especialmente assinaladas para o atravessamento da via por peões impõe especiais cuidados aos condutores (cf. art.º 103.º, do Código da Estrada), devendo estar desimpedidas para que possam cumprir essa finalidade, só sendo permitido que por elas transitem, além dos peões, os artefactos que são a estes equiparados (art.º 104.º, do Código da Estrada), em que um empilhador se não compreende, pelo que, a contrario essa utilização é proibida.

Não obstante, também aqui se coloca a questão de saber se esse hipotético desrespeito pelo arguido da destinação da passadeira permite, por si mesmo, a imputação objectiva ao arguido do acidente de que resultou a morte do motociclista. Isto é, se no dever de previsão ou de justa previsão das consequências dessa utilização da passadeira, se inclui, num juízo ex ante de causalidade adequada o de, por essa mesma infracção, se potenciar um risco maior para a vida ou integridade física dos outros condutores. E, também, aqui tem de concluir-se que esta consequência não está no âmbito de protecção da norma que obriga a respeitar as cautelas que o Código da Estrada impõe aos condutores, face às passagens especificamente assinaladas para a travessia da faixa de rodagem por peões.

Com efeito, a norma estradal relativa às zonas assinaladas para a travessia da faixa de rodagem por peões é uma norma com finalidade de protecção dos peões e equiparados, não dos restantes condutores. Para gerar o risco ou aumentar o perigo de colisão com outros veículos, a utilização dessa passagem em vez de outro lugar parece indiferente. Basta hipotizarmos que o atravessamento da faixa de rodagem se fazia do mesmo modo, mas noutro lugar, fora do percurso assinalado no pavimento para a passagem de peões, para se representar que, no que respeita à acção do condutor do empilhador, nada se alterava na dinâmica do acidente e na interacção com os demais condutores, cuja linha de marcha a travessia assim empreendida interceptaria.

Assim, não pode acompanhar-se o acórdão recorrido neste nexo de imputação objectiva do resultado “morte” do motociclista ao arguido, por não ter representado ou não ter representado, justamente, que dessa específica circunstância de efectuar o atravessamento da faixa de rodagem pela passagem para peões podia resultar o agravamento do risco.

3. Resta apurar da violação do dever de prudência comum e ponderar os novos factos provados.

3.4.1. Os novos factos resultantes da alteração da matéria de facto, efectuada pelo tribunal recorrido, são os seguintes:

c) Apesar de DD circular em velocidade superior à legalmente permitida no local, a entrada repentina do veículo conduzido pelo arguido na faixa onde aquele circulava, contribuiu decisivamente para a produção do acidente.

d) O arguido não agiu com o cuidado que lhe era exigível, prevendo que tal condução poderia redundar na colisão com o veículo conduzido pela vítima, ainda que não se tenha conformado com esse resultado.

e) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária, e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

50) O arguido desconhecia que do cumprimento dessas indicações poderia resultar a morte de DD.

Com base nestes factos o tribunal recorrido condenou o arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos do art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de doze meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período.

3.5. Nos termos do DL n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro, Prescrições mínimas de segurança e de saúde na utilização de equipamentos de trabalho, os instrumentos de trabalho deste tipo só podem ser conduzidos por profissionais devidamente habilitados, sendo certo que, mesmo no local de trabalho devem estar devidamente sinalizados com avisos ou outra sinalização indispensável para garantir a segurança dos trabalhadores – cf. art.ºs 2.º, al. a), 32.º, n.º 1 e https://www.zonaverde.pt/site/regras-de-seguranca-na-conducao-de-empilhadores/ .

Um empilhador constitui um equipamento de trabalho, do tipo carro automotor de movimentação baixar, transportar e empurrar cargas, sendo por isso tido como uma máquina industrial destinado à execução de obras ou trabalhos industriais e que só eventualmente transita na via pública, conforme art.º 109.º, n.º 2, do CE, sendo certo que, para esse efeito deve estar matriculado para ser admitido a circular em via pública, tal como exige o disposto no art.º 117.º, n.º 1, do CE.

Pelas suas próprias características – cf. https://portal.act.gov.pt/AnexosPDF/Fichas%20de%20seguran%C3%A7a/Empilhadores%20de%20garfos.pdf – conduzir um empilhador representa uma grande responsabilidade, competindo ao condutor fazê-lo em circunstância de tempo, modo e lugar de forma a evitar acidentes no local de trabalho. Por isso que este tipo de equipamento de trabalho não deve circular em vias públicas sem que sejam asseguradas as condições de circulação impostas pelo CE.

No caso, não restam dúvidas de que, tal como resulta dos factos provados, a estrada em causa constitui uma via pública (arruamento municipal), encontrando-se devidamente sinalizada, por onde circulam outros veículos e possuindo passeios laterais. – cf. factos provados 45 e 48, da matéria de facto provada.

Assim sendo, a circulação do veículo do tipo empilhador em vias públicas está sujeita às regras do Código da Estrada, designadamente, entre outras as reguladas nos artigos 57.º, n.º 1 – é proibido o trânsito nas vias públicas de veículos cujos pesos brutos, pesos por eixo ou dimensões excedam os limites gerais fixados em regulamento –; art.º 66.º– o trânsito de veículos que efetuam transportes especiais e que transportem cargas que pela sua natureza ou outras características o justifiquem pode ser condicionado por regulamento –; art.º 76.º º– mediante sinalização podem ser reservadas faixas de rodagem ao trânsito de veículos de certas espécies ou a veículos destinados a determinados transportes.

Por outro lado, nos termos do art.º 11.º, do CE, todos os condutores de veículos que circulem na via pública devem “(…) durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança”. Por isso ao condutor do empilhador impunha-se o dever de respeitar as regras de condução na estrada – desde logo, a posição de marcha – tal como impõe o CE, nos seus artigos: 13.º (posição de marcha) – a marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes –, art.º 21.º, n.º 1 (sinalização de manobras) – quando o condutor pretender reduzir a velocidade, parar, estacionar, mudar de direção ou de via de trânsito, iniciar uma ultrapassagem ou inverter o sentido de marcha, deve assinalar com a necessária antecedência a sua intenção –, art.º 35.º, n.º 1 (algumas manobras em especial) – o condutor só pode efetuar as manobras (…) mudança de direção ou de via de trânsito, (…) e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito –, art.º 44.º, n.º 1 (mudança de direção para a esquerda) – o condutor que pretenda mudar de direção para a esquerda deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afeta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e efetuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação – e art.º 103.º (cuidados a observar pelos condutores) e que lhe são impostos enquanto condutor.

Acresce referir que as passadeiras são zonas de passagem nas vias públicas por onde se realiza o trânsito de peões, estando nelas interdita a circulação de veículos – art.º 99.º , n.º 1, e art.º 104.º, a contrario, ambos do CE.

De salientar que, nos termos do art.º 135.º, n.º 3, al. a), do CE, a responsabilidade pelas infrações previstas no Código da Estrada e legislação complementar e que respeitem ao exercício da condução, recai no condutor do veículo, sendo que “(…) o desrespeito das regras e sinais relativos a (…), mudança de direção ou de via de trânsito, (…), posição de marcha, (…)” e “A não utilização do sinal de pré-sinalização de perigo e das luzes avisadoras de perigo;” o faz incorrer na prática de contraordenações graves, p. e p, nos termos do art.º 145.º, n.º 1, als. f) e m), do Código da Estrada.

6. Das circunstâncias factuais apuradas em sede de matéria de facto, quanto às características do local do acidente e do veículo conduzido pelo arguido ora recorrente, cumpre apreciar o alegado pelo mesmo neste recurso com vista a apurar da sua responsabilidade criminal, face aos factos relacionados com a ocorrência do acidente de viação ocorrido no dia 20/9/2016, em consequência do qual resultou a morte de DD.

1. Na apreciação do mérito do recurso e sobre a conduta ilícita do arguido e as respectivas consequências jurídicas, essencialmente, disse-se no acórdão recorrido:

O uso de um empilhador, sem matrícula, na via pública, é expressamente proibido. As passadeiras destinam-se aos peões, com os cuidados necessários a observar pelos condutores.

Resultam daqui dois factos incontornáveis:

- Circular, com um empilhador sem matrícula, na via pública.

- Utilizar as passadeiras (passagens destinadas para a travessia de peões) para atravessar a via com o empilhador.

O empilhador não tinha matrícula e atravessou a via pela passadeira.

(…) O acidente ocorreu no dia .../.../2016. Acontece que o arguido não utilizou a via pública destinada à circulação de veículos com motor, decidiu-se por atravessá-la, numa passadeira destinada aos peões. O veículo (empilhador) não utilizou a via no sentido tradicional. A falta de dever de cuidado agravou-se não só pelo facto de o empilhador não poder circular na via pública (via de comunicação terrestre afecta ao trânsito público), sem matrícula, mas também pela circunstância de o fazer por um local da via onde é improvável (proibido) que seja atravessado por uma máquina industrial. A ideia peregrina de que a Câmara Municipal pode conceder autorização para o empilhador atravessar a via pública (certidão de fls.615), ainda que a via seja propriedade da autarquia, pelo decurso de obras num dos pavilhões da empresa, fere as mais elementares regras previstas no CE e legislação complementar rodoviária.

(…) Apenas para esclarecer que a Câmara Municipal não pode intervir numa área para a qual não tem competência funcional e material.

(…) Os deveres gerais de circulação de trânsito estão prejudicados pela impossibilidade da máquina industrial ser utilizada na via pública, onde acresce o facto de o arguido ter decidido utilizar a via privativa dos peões (passadeira) para cruzar a faixa de rodagem. A interpretação do conteúdo da norma prevista no artº 109 nº 2 do CE – que só eventualmente transita na via pública – deve ser entendido no confronto com as normas previstas nos artºs 117 nº 3 e na restante descrição do artº 109 nºs 2 e 5, todos, do CE. Só excepcionalmente se pode conceber uma máquina industrial na via (…)

(…) No caso sub iudice basta-se com um risco não permitido. O risco geral para a vida, muito comum no modelo de vida hodierna, integram-se na teoria da adequação social. No presente caso a situação agrava-se com a convergência causal de comportamentos antijurídicos: a concorrência de culpas, dupla causalidade (…)

(…) Sabemos que a vítima circulava a mais de 40 Km/h (velocidade excessiva) mas, também não podemos olvidar que o empilhador não pode circular na via pública e muito menos cruzar um arruamento no local destinado a peões - passadeira. Tudo indica, no quadro actual, que há concorrência de culpas ou em termos jurídico-penais concausalidade na produção do acidente, circunstância que não retira a conduta ilícita praticada pelo arguido, integradora do crime por que vem acusado – homicídio por negligência previsto e punido no artº 137 nº 1 do CP.

(…) O arguido saíu com uma máquina para a rua quando não o podia fazer: só eventualmente transita na via pública (máquina matriculada) acresce que encetou caminho, perpendicular à via, pela passadeira. As passadeiras estão destinadas aos peões (artº 101 do CE) e a equiparação prevista no artº 104 do CE, não inclui as empilhadoras…

O facto de o arguido sair para a rua com uma máquina industrial e decidir atravessar por lugar destinado aos peões viola um dever objectivo de cuidado, inserto naquelas normas e determina que o resultado morte (acidente), no caso concreto, seja uma consequência directa, necessária, típica e previsível desta conduta. Há uma certeza: se o arguido não tivesse vindo para a via pública com um empilhador e não tivesse atravessado a passadeira, o condutor do ciclomotor não teria embatido contra aquela máquina, sem prejuízo do condutor circular com excesso de velocidade – pelo menos a mais de 40 KM hora – e sem prejuízo de qualquer outra consequência, cujo dever não temos obrigação de antever. A causa da morte (lesões) circunscreve-se ao facto da vítima ter embatido, sobre a passadeira, contra uma máquina industrial.

(…) a conduta do arguido é ilícita, viola normas estradais, um dever objectivo de cuidado e determina o acidente com os contornos relatados pelo tribunal (homicídio involuntário), mas sem qualquer exclusão da culpa …

(…) No presente caso o arguido é funcionário da empresa D... - proprietária dos pavilhões sitos de um lado e de outro da rua. Recebeu ordens para circular com o empilhador entre as duas unidades da empresa. Sabia da intervenção da CM a facilitar esta circulação, porém não podemos olvidar que o arguido tem carta de condução e conhece globalmente as normas do Código da Estrada. Sabe que o empilhador não está matriculado, como também sabe que a passadeira é fundamentalmente para peões e, sobretudo sabe que o empilhador é para utilizar no interior da unidade industrial, como monta-cargas… Também sabe que o empilhador circulou sem estar sinalizado ou com as precauções devidamente adequadas. Neste sentido uma ordem superior da empresa D..., cuja execução possa implicar a comissão de um delito, deve ser recusada. A obediência devida deixou de ser uma causa de exclusão da ilicitude e de justificação da conduta, fora dos casos clássicos, confina-se a direitos de intervenção; instruções de autoridades ou serviços públicos; actuação no lugar de órgãos estatais (detenção provisória e auto-ajuda); direito de correcção (c/limites) e demais casos contados, depois de devidamente ponderados segundo princípios de direito.

O comportamento do arguido violou um dever objectivo de cuidado – não circular na via pública com máquinas industriais – máquinas não matriculadas – e não atravessar nas passadeiras, destinadas a peões, com o referido aparato.

A conduta do arguido violou o princípio da confiança, estrutural no âmbito da circulação rodoviária. Violou normas do CE, pelas quais também foi acusado e que de imediato trataremos.

A conduta do arguido integra um crime de homicídio por negligência (artº 137 nº 1 do CP).”.

2. Independentemente de a faixa marcada no chão ser uma passadeira, certo é que a mesma era uma passadeira para peões e não uma passadeira para veículos a motor, ali não se mostrando estar colocada, sequer, qualquer sinalização de estrada que pudesse prevenir e alertar os restantes condutores de que nela podia circular um veículo do tipo do empilhador. Um veículo, qualquer que fosse, para efectuar ali uma travessia para o lado contrário da estrada – mesmo que pisasse a passadeira, isso não seria causal do acidente –, teria de efectuar uma manobra de aproximação ao eixo da via, esperar que passasse todo e qualquer outro veículo e, só depois de assinalar a marcha, virar à esquerda e atravessar de novo a faixa de rodagem para o outro lado.

Com efeito, nos termos do Código da Estrada, veículos deste tipo, para circularem na via pública, têm sempre de assinalar a marcha com farolins próprios (luzes) ou outro tipo de sinalização de idêntico valor, pois, pela sua própria natureza, constituem um obstáculo ou embaraço, na via pública, porque são lentos, pesados e não possuem a mobilidade que outros veículos a motor possuem, razão porque a lei lhes impõe condições especiais de circulação na via pública.

6. O acórdão recorrido atribui o nexo causal do acidente à falta de licenciamento para o veículo circular na via pública – “Circular, com um empilhador sem matrícula, na via pública”, apesar de esse facto, em si mesmo, não ser determinante para a aferição da responsabilidade e culpa do ora recorrente, nem constituir contraordenação causal do acidente.

Como já se disse, para haver nexo causal entre a infracção e o resultado que se quer imputar, é necessário que o interesse protegido esteja no âmbito de ilicitude da norma. Mas, é verdade que o facto de o arguido conduzindo o empilhador em causa e atravessar a estrada, de um lado para o outro, nos termos em que o fez – “Utilizar as passadeiras (passagens destinadas para a travessia de peões)…” –, viola o Código da Estrada.

Os eventuais licenciamentos concedidos pelo Município ou as autorizações de utilização do veículo em causa, concedidas pela entidade patronal, apenas podem diminuir a culpa do arguido, mas não o desresponsabilizam, enquanto condutor do veículo. O condutor do veículo tem autonomia técnica na condução do veículo e não pode invocar uma ordem da entidade patronal que colida com os cuidados a que está obrigado a observar no âmbito da sua condução de veículos – art.º 103.º do CE. Efectivamente, a entidade patronal até pode indicar ao condutor que utilize uma via de sentido proibido ou que conduza a 150 Km/h, dentro de uma localidade. No entanto, compete ao condutor dirigir o veículo segundo as regras estradais e em obediência às leis que regulam o trânsito de pessoas e veículos, fazendo prevalecer essa obediência sobre as ordens da sua entidade patronal. Nesse domínio tem o direito de desobedecer às ordens que lhe são transmitidas.

Essas circunstâncias – a obediência a ordens da entidade patronal ou a convicção de que o Município autorizara a utilização das passadeiras de peões para o atravessamento da via com o empilhador –, apenas relevam na graduação da culpa. Porém, o reconhecimento da existência de uma negligência causal resulta com evidência da factualidade provada e da conduta do arguido, implicando a sua responsabilização por violação de deveres de cuidado.

Com efeito, o acidente ocorreu ou as suas consequências foram determinadas por virtude de faltar não a atribuição de matrícula, mas aquilo que se visa com esse facto que é o licenciamento de circulação na via pública. É certo que o outro condutor vinha, seguramente, com excesso de velocidade para o local e a realizar manobras de condução que o colocavam a si e aos outros em risco de acidente, tal como é salientado no acórdão recorrido ao referir que “ Sabemos que a vítima circulava a mais de 40 Km/h (velocidade excessiva) mas, também não podemos olvidar que o empilhador não pode circular na via pública e muito menos cruzar um arruamento no local destinado a peões - passadeira. Tudo indica, no quadro actual, que há concorrência de culpas ou em termos jurídico-penais concausalidade na produção do acidente” – sublinhado nosso.

Mas, essas circunstâncias, apenas relevam em sede de graduação e concorrência de culpas, pois verifica-se sempre negligência causal na conduta do arguido, apesar do comportamento da vítima e da sua intervenção no infeliz evento.

Por isso, neste conspecto impõe-se a correcção do acórdão recorrido quanto à fundamentação, porquanto a falta da matrícula não implica o nexo de ilicitude, pois é necessário que a infracção esteja no âmbito de protecção da norma, porque só assim é possível afirmar-se que uma infracção é causa de um acidente, no caso, rodoviário. Se a infracção respeita a outra coisa, como seja a exigência de matrícula para a circulação, este facto não interfere com o acidente. Na verdade, o arguido até pode ter cometido uma infracção ao CE por conduzir um empilhador que não se encontrava matriculado (ele ou a sua entidade patronal), mas esta infracção não é a causal do acidente. Causal é a infracção (ou infracções) resultante do desrespeito pelo arguido, enquanto condutor do veículo, das regras de condução.

7. Mas, já não quanto à verificação da infracção imputável ao arguido.

Efectivamente, o arguido não podia conduzir o empilhador e atravessar a estrada, utilizando a passagem destinada aos peões, ainda que autorizado pela sua entidade patronal. Todavia, apesar de esse facto impressionar por o arguido ter passado em cima da passadeira que se encontrava sinalizada como tal, isso é relativamente indiferente excepto num aspecto: por um lado, para o condutor do velocípede obrigava-o a vir com cuidado, face à aproximação da passagem para peões, pois, seria expectável que o mesmo calculasse que ali pudesse encontrar pessoas a atravessar a passadeira; e, por outro lado, o mesmo não esperaria que em vez de pessoas iria encontrar um carro ou um veículo como um empilhador a utilizar aquelas passagens de peões, para atravessar a faixa de rodagem, cruzando-a.

Assim sendo, fácil é ver que, o que é verdadeiramente causal do acidente não é o facto de o arguido conduzindo o empilhador pisar a passadeira, mas o de efectuar uma manobra de atravessamento da estrada, no sentido perpendicular às faixas de rodagem, usando para o efeito uma passagem exclusivamente destinada a peões, sem que a sua marcha estivesse devidamente sinalizada, de acordo com o previsto e preceituado no CE, quer quanto à posição de marcha na via pública ou de mudança de direcção à esquerda quer quanto ao cruzamento da faixa de rodagem, utilizando para o efeito a passadeira para peões.

Com efeito, o arguido até podia estar autorizado pela sua entidade patronal a proceder dessa maneira, mas ao fazê-lo sabia que contrariava com a sua conduta as regras de trânsito e de condução de veículos daquele tipo na via pública. Na verdade, ao atravessar a via daquele modo, virando à esquerda, além de ter utilizado a passadeira para peões, o arguido cortou a via de trânsito contrária, sem que tivesse obedecido às regras de trânsito de circulação na estrada e observado os deveres de cuidado na mudança de direcção e cruzamento das faixas de rodagem da estrada.

1. Neste conspecto, não tem razão o recorrente quando alega que em concreto não agiu com culpa, nem omitiu um dever de cuidado que lhe fosse exigível, porquanto recebeu instruções para atravessar a via com o empilhador, recorrendo às passadeiras para peões existentes no local do acidente, acedendo à primeira através do passeio e à segunda através do separador central, “(…) não era exigível ao arguido duvidar da legalidade dessa ordem e abster-se de obedecer as indicações da sua entidade patronal sobretudo quando sabe que foi a própria Câmara Municipal quem autorizou as obras especificas para esse fim.”.

Na verdade, o que está em causa no homicídio negligente não é uma responsabilidade directa pelo evento, mas uma responsabilidade por violação do dever objectivo de cuidado que, no caso, não é o dever de prudência comum é o dever específico imposto pelo do CE, na condução de veículos a motor. Efectivamente, a responsabilidade do arguido advém-lhe do facto de ter violado as regras de condução do veículo na posição de marcha imposta pelo CE e no que respeita ao cumprimento das regras de mudança de direcção à esquerda, pois, o arguido só podia realizar a manobra em causa com recurso às regras de mudança de direcção à esquerda. Ou seja, o arguido não desconhecia que não podia conduzir o empilhador no lugar das passadeiras destinadas aos peões, bem como, não desconhecia que não podia utilizar as mesmas para fazer o atravessamento da estrada que utilizava, de acordo com as regras de condução quer do CE quer, especificamente, de condução de veículos do tipo do empilhador.

Em suma, o arguido podia e devia ter recusado cumprir as instruções que lhe foram transmitidas, pois, sabia e aceitou o risco, que enquanto condutor de um veículo a motor, do tipo empilhador, não podia efectuar uma manobra de cruzamento de uma estrada, no sentido perpendicular às faixas de rodagem, usando para o efeito uma passagem exclusivamente destinada a peões, sem que a sua marcha estivesse devidamente de acordo com o previsto e preceituado no CE, quer quanto à posição de marcha na via pública, quer quanto à mudança de direcção à esquerda e cruzamento da faixa de rodagem, quer ainda, quanto à sinalização do veículo em causa, factores esses que, pelo menos, integram infracções contraordenacionais p. e p. nos termos dos art.ºs 13.º, 21.º, n.º 1, 35.º, n.º 1, 44.º n.º 1, 103.º, n.º 1 e 145.º, todos do CE e que foram causais do acidente de viação que provocou a morte da vítima.

Consequentemente, com a sua conduta ilícita o arguido incorreu na prática de um crime de homicídio por negligência previsto e punido no art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal.

Por isso que, ainda que com fundamentação de direito diferente, se mantém a decisão recorrida, improcedendo as alegações do recorrente quanto ao pedido de absolvição do crime por que vem condenado.

III – DECISÃO

Termos em que, acordando, se decide:

a. Indeferir a requerida junção de documentos, dada a sua extemporaneidade – art.º 165.º, n.º1, do CPP;

b. Conceder parcial provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida, quanto à condenação do recorrente pela prática de um crime de homicídio por negligência previsto e punido no art.º 137.º n.º 1, do Código Penal, embora com diferente fundamentação.

c. Fixar em 8 UC a taxa de justiça devida pelo recorrente.

d. Determinar que, após trânsito, se devolva ao arguido o documento anexo ao Requerimento Ref.ª n.º ...45.

Lisboa, 28 de Novembro de 2024 (processado e revisto pelo relator)

Leonor Furtado (Relator)

Jorge Reis Bravo (Adjunto)

Heitor Vasques Osório (Adjunto)