RESERVA DE PROPRIEDADE
CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE BEM FUTURO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Sumário


1. A reserva de propriedade não confere ao adquirente o poder de uso, fruição ou disposição que assiste a um verdadeiro proprietário – a propriedade fica reservada para o alienante até ao cumprimento total ou parcial das obrigações assumidas pelo adquirente ou até à verificação de qualquer outro evento.
2. Tal não significa que o adquirente não possa proceder à venda desse bem, desde que as partes considerem tratar-se da venda de bem futuro, ficando assim o contrato sujeito à disciplina do art. 893.º do Código Civil.
3. Neste caso, o contrato fica na dependência de um facto futuro e incerto, a aquisição da propriedade por parte do vendedor, para uma posterior transmissão ao comprador.
4. Tendo o adquirente de veículo automóvel, com reserva de propriedade registada a favor de um Banco, acordado na revenda do veículo a outra entidade, obrigando-se a proceder ao cancelamento dessa reserva através do pagamento do crédito que havia contraído, tal contrato está sujeito às regras da venda de bem futuro.
5. Não tendo o adquirente com reserva de propriedade pago as prestações que devia ao Banco, colocou-se na situação de não poder cumprir o contrato, pelo que o comprador que procedeu de boa fé tem o direito de exigir a restituição integral do preço.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível e Criminal de Évora, ALL TRUST MOTORS – Unipessoal, Lda., demandou AA, pedindo:
a) a declaração de nulidade do contrato de compra e venda do veículo identificado nos autos, para os efeitos do art. 892.º do Código Civil, ou se assim não for entendido, que o Réu seja condenado nos termos do disposto no Art.º 289º, do CC e, em consequência, com a declaração de nulidade do contrato;
b) a condenação do R. na restituição do preço pago pela A., no valor de € 55.000,00, contra a devolução do veículo automóvel, respectivas chaves e documento DUA, em bom estado de funcionamento e de conservação;
c) a condenação do R. a pagar a quantia de € 7.500,00, a título indemnização do lucro cessante, pelo ganho que não obteve por não ter vendido o veículo, quando tinha cliente para o adquirir e pagando-lhe a quantia de € 62.500,00;
d) a condenação do R. a pagar a quantia de € 11.550,00, a título de juros remuneratórios, aplicável às transacções comerciais à taxa legal de 7%/ano, por privação de uso daquele capital durante o período de três (3) anos;
e) a condenação do R. nos juros vincendos, à mesma taxa legal de 7%, desde a citação e até ao efectivo e integral pagamento da quantia de € 55.000,00.
Para o efeito, alega a aquisição do R. de uma viatura automóvel, para a qual tinha já uma encomenda de cliente habitual, encontrando-se registada uma reserva de propriedade a favor de terceiro (Banco Primus). Apesar da A. ter pago o preço acordado com o R. – € 25.000,00 em numerário, € 14.744,06 através de cheque bancário, e € 15.000,00 através de transferência bancária – o R. não procedeu ao cancelamento da reserva de propriedade, condição essa que havia sido estabelecida para a celebração do negócio. A A. ainda pagou algumas prestações do empréstimo que o R. havia contraído junto do Banco Primus, e interpelou-o para em 30 dias pagar a dívida à financeira e cancelar a reserva de propriedade sem que tal tivesse sucedido, pelo que perdeu o interesse na concretização do negócio.
Na contestação, o R. alega que não recebeu o preço acordado para a venda da viatura (€ 55.000,00), que a A. se comprometeu a liquidar as prestações mensais devidas ao Banco Primus e a cancelar ela a reserva de propriedade, o que não cumpriu, pelo que procedeu à resolução do contrato.
Em reconvenção, pede o reconhecimento da resolução do contrato por incumprimento definitivo da A., a restituição do veículo, a fixação de sanção pecuniária compulsória no valor diário de € 100,00, o pagamento de € 5.000,00 referente à desvalorização sofrida pelo veículo, e de € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Realizado julgamento, a sentença julgou a acção parcialmente procedente e improcedente a reconvenção, proferindo o seguinte dispositivo:
1. Declarar resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre as partes referente ao veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Mercedes Benz, modelo GLC 250d 4matic, com a matrícula …-…-51, com fundamento no seu incumprimento por parte do réu AA, tendo lugar a restituição do que foi prestado, consequentemente determinando-se que a autora ALL TRUST MOTORS – Unipessoal, Lda., restitua ao réu AA o referido veículo automóvel e condenando-se o réu AA a pagar à autora ALL TRUST MOTORS – Unipessoal, Lda., o montante de € 54.744,06 (cinquenta e quatro mil setecentos e quarenta e quatro euros e seis cêntimos).
2. Condenar o réu AA a pagar à autora ALL TRUST MOTORS – Unipessoal, Lda., a quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) a título de indemnização pelos lucros cessantes.
3. Condenar o réu AA a pagar à autora ALL TRUST MOTORS – Unipessoal, Lda., juros vencidos e vincendos sobre o montante objecto de restituição referido em 1 até efectivo e integral pagamento, sendo contabilizados do seguinte modo: juros vencidos à taxa legal prevista para as obrigações comerciais sobre a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) contabilizados desde 06-06-2018, juros vencidos à taxa legal prevista para as obrigações comerciais sobre a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) contabilizados desde 03-07-2018, e juros vencidos à taxa legal prevista para as obrigações comerciais sobre a quantia de € 14.744,06 (catorze mil setecentos e quarenta e quatro euros e seis cêntimos) contabilizados desde 18-01-2019.
4. Absolver o réu AA do restante peticionado pela autora ALL TRUST MOTORS – Unipessoal, Lda..
5. Absolver a autora ALL TRUST MOTORS – Unipessoal, Lda., da totalidade do pedido reconvencional deduzido pelo réu AA.
6. Julgar não verificada a litigância com má fé de qualquer uma das partes.

O R. recorre do assim decidido, rematando as suas alegações com conclusões que não efectuam uma verdadeira síntese dos fundamentos pelos quais pede a revogação da sentença, como exigido pelo art. 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
De todo o modo, podem ali ser surpreendidas as seguintes questões fundamentais a decidir no recurso, que assim se identificam (art. 663.º n.º 2 do Código de Processo Civil):
· Se a sentença recorrida incorre na nulidade prevista no art. 615.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Civil, no que respeita à apreciação da matéria de facto, ao ter declarado provada a declaração de entrega do veículo datada de 06.06.2018;
· Se incorre também em nulidade, nos termos da mesma norma, ao ter declarado a resolução do contrato de compra e venda e a restituição pelo R. do montante que lhe foi entregue a título de pagamento do veículo.
· Se deve ser alterada a decisão de facto quanto aos pontos 2 a 6, 13, 14, 15, 16 a 19, 21, 27 e 32 da matéria de facto provada, e quanto às alíneas g) a i), j), k), n) e o) da matéria de facto não provada;
· Em especial, se deve ser alterada a redacção do ponto 2 dos factos provados, e alterada a resposta aos pontos 3 a 6 dos factos provados, para não provados;
· Se deve ser alterada a resposta aos pontos 13 e 32 dos factos provados e as alíneas g) a i) dos factos não provados passarem aos provados;
· Se os pontos 14 e 15 dos factos provados devem passar a não provados;
· Se os pontos 16, 18 e 19 dos factos provados devem ter outra redacção, se o ponto 17 deve ser declarado não provado e se as alíneas j) e k) dos factos não provados devem passar a provados;
· Se o ponto 21 dos factos provados deve passar a não provado e se as alíneas n) e o) dos factos não provados devem passar a provados;
· Se deve ser alterada a resposta ao ponto 27 dos factos provados;
· Se dos pontos 36 a 70 dos factos provados se pode concluir que o Recorrente acordou com a testemunha BB que este é que iria proceder ao pagamento das prestações mensais devidas ao Banco Primus e cancelamento da reserva de propriedade;
· Se, face à procedência da impugnação da matéria de facto, se pode concluir que o negócio firmado entre as partes foi no sentido da A. liquidar o valor integral acordado para a compra do veículo (em prazo não superior a seis meses), procedendo entretanto à liquidação das prestações devidas ao Banco Primus;
· Se não tendo a A. cumprido o prazo de seis meses para a liquidação do valor integral acordado para a compra do veículo, nem assumido o pagamento da totalidade das prestações mensais bancárias, tanto nesse período dos seis meses, como posteriormente (quando já em mora), incumpriu de forma definitiva o contrato, nos termos do art. 808.º n.º 1 do Código Civil;
· Se assiste assim ao R. o direito a resolver o contrato, nos termos do art. 433.º do Código Civil, devendo a A. restituir o veículo;
· Se assiste ao R. o direito a uma indemnização por danos patrimoniais no valor de € 5.000,00, a título de desvalorização do veículo.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Da arguição de nulidade da sentença
Argumenta o Recorrente que a sentença incorreu em nulidade, nos termos do art. 615.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Civil, sob uma dupla perspectiva: na apreciação da matéria de facto, ao ter declarado provada a declaração de entrega do veículo datada de 06.06.2018; e ao ter declarado a resolução do contrato de compra e venda e a restituição pelo R. do montante que lhe foi entregue a título de pagamento do veículo.
Apreciando, diremos que, ao abrigo da norma invocada pelo Recorrente, a sentença será nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Alberto dos Reis[1] escrevia que esta nulidade verifica-se “quando a sentença enferma de vício lógico que a compromete (…)”, quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.”
E também se escreveu[2] que a lei refere-se “à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão. (…) (Nestes) casos (…), há um vício real de raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente.”
No caso dos autos, o Recorrente argumenta que a sentença incorreu em nulidade por ter declarado provada a declaração de entrega do veículo em 06.06.2018, e por ter declarado a resolução do contrato de compra e venda e a restituição pelo R. do montante que lhe foi entregue a título de pagamento do veículo.
Porém, não se vislumbra qualquer contradição entre os fundamentos de facto e a análise jurídica realizada na sentença.
Não há um vício lógico nem uma contradição real entre os fundamentos e a decisão, mas o mero exercício pelo tribunal recorrido do seu poder de livre apreciação da prova, e de livre indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, que lhe é concedido pelo art. 5.º n.º 3 do Código de Processo Civil.
O tribunal analisou a prova produzida, fixou os factos provados e não provados, e interpretou as regras de direito que entendeu pertinentes, concluindo por uma solução que considerou compatível com a matéria de facto que julgou provada.
Se o Recorrente discorda das conclusões obtidas na sentença recorrida, o seu fundamento de recurso não é a invocação de nulidade, mas a identificação de outros caminhos de análise da prova produzida e de interpretação jurídica.
Julga-se, assim, improcedente a arguição de nulidade da sentença.

Impugnação da matéria de facto
(…)
Em resumo, toda a impugnação da matéria de facto é julgada improcedente.

A matéria de facto provada é, assim, fixada nos exactos termos que constam da sentença, que são:
1. A autora é uma sociedade comercial que tem como objecto social o comércio de automóveis ligeiros e a manutenção, reparação e oficina de automóveis.
2. Na prossecução de tal objecto, a autora acordou com o réu, em 06-06-2018, adquirir-lhe o veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca Mercedes Benz, modelo GLC 250d 4matic, com a matrícula …-…-51.
3. Em tal contexto, foi preenchido e subscrito pela autora (na pessoa do seu legal representante FF) e pelo réu documento intitulado de “requerimento de registo automóvel”, aí se encontrando identificados os seus diversos campos do seguinte modo: “(…) veículo – matrícula …-…-51 marca Mercedes Benz” (…) sujeito activo (…) – All Trust Motors Unipessoal, Lda. (…) sujeito passivo (…) – AA (…) declarações – o contraente indicado como sujeito passivo (vendedor) declara que em 06-06-2018 efectivamente celebrou nessa qualidade o contrato nele especificado e que por isso confirma-o sem quaisquer restrições (preencher caso se trate de contrato verbal de compra e venda com ou sem reserva de propriedade) (…)”.
4. De tal documento constam apostas, no seu segmento de “assinaturas”, no campo referente ao “sujeito activo”, a assinatura de FF enquanto representante legal da sociedade autora e, no campo referente ao “sujeito passivo”, a assinatura do réu.
5. Em tal data supra-referida, a autora tinha já um cliente habitual interessado na aquisição do veículo: CC.
6. O negócio levado a cabo entre a autora e o réu foi intermediado pelo colaborador da autora BB que angariou o antes referido cliente, tendo sido este quem o conduziu e concretizou.
7. CC procurava afectar o veículo supramencionado a uma sociedade comercial que são sócios os seus filhos DD e EE: a sociedade comercial com a designação (…) Lda.
8. BB, colaborador da autora, é engenheiro mecânico com experiência profissional no mercado automóvel.
9. BB é amigo do réu que conhece há vários anos.
10. Aquando do acordo referido em 2, encontrava-se averbado sobre o mencionado veículo em sede de registo automóvel “reserva de propriedade” a favor da entidade Banco Primus S.A.
11. A autora era conhecedora de tal circunstância.
12. De documento intitulado “certificado de matrícula” referente ao veículo de matrícula …-…-51 consta como “data de emissão” o dia 02-08-2017, aí se encontrando aposto o nome do réu como sendo o “titular do certificado” e figurando do campo “reserva de propriedade” inscrita a identificação da sociedade Banco Primus, S.A..
13. Tal documento foi entregue à autora juntamente com fotocópia do cartão de cidadão do réu, o veículo e as suas chaves, no referido dia 06-06-2018.
14. No contexto do acordo celebrado, foi subscrito pelo réu na qualidade de “proprietário” documento intitulado “recibo/declaração de entrega”, cuja data aposta é 6 de Junho de 2018.
15. Para além da assinatura do réu, de tal documento consta a identificação da sociedade autora, mais aí constando o seguinte: “AA com o número de identificação fiscal …, declara que recebeu de All Trust Motors Unipessoal Lda., com o número de identificação de pessoa colectiva 514433981 o valor de 55.000 € (cinquenta e cinco mil euros) referente ao veículo com a matrícula …-…-51, marca Mercedes-Bens e modelo Glc 250, chassi n.º …”.
16. A título de pagamento parcial referente ao acordo aludido em 2, pela autora – na pessoa de BB - foi entregue ao réu, em 06-06-2018, a quantia de € 25.000,00 em numerário.
17. Tal modo de pagamento – em numerário – foi uma solicitação provinda do réu.
18. A título de pagamento parcial referente ao acordo aludido em 2, foi igualmente entregue ao réu cheque bancário pós-datado para o dia 18-01-2019 no valor de € 14.744,06, quantia que veio a ser depositada na sua conta bancária.
19. A título de pagamento parcial referente ao acordo aludido em 2, foi ainda efectuada pela autora uma transferência bancária no montante de € 15.000,00 para conta bancária titulada pelo réu, no dia 03-07-2018.
20. A “reserva de propriedade” sobre o veículo supra-referida não veio a ser cancelada pelo réu após os pagamentos feitos, não tendo este liquidado o empréstimo contraído para aquisição do mesmo.
21. O cancelamento da “reserva de propriedade” pendente sobre o automóvel por parte do réu através do pagamento do remanescente do seu crédito bancário foi uma condição estabelecida pela autora para a aceitação do negócio a qual foi acordada entre as partes.
22. No início do mês de Março de 2021, quando o veículo Mercedes em causa nos autos se encontrava na oficina automóvel situada no Parque Industrial de Évora, gerida por GG, aí se dirigiu o réu acompanhado de um veículo de reboque, tendo solicitado a presença de órgão de polícia criminal e tendo instado GG a entregar-lhe tal veículo, o que este recusou.
23. O réu requereu junto do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, a 5-3-2021, a notificação judicial avulsa de GG.
24. No articulado deduzido, alegou e requereu nos seguintes termos:
“1º O requerente é dono e legitimo proprietário do automóvel MERCEDEZ­BENZ GLC, 250d 4matic, branco, matrícula …-…-51, ano 2017, código de homologação …, nº de quadro …, conforme demonstra cópia de documento anexo.
2º O requerente vem, por meio desta notificação, fazer jus, em razão da sua condição de proprietário do bem, solicitar ao notificado que seja procedida a entrega do veículo a si.
3º O veículo em questão encontra-se depositado na oficina mecânica indicada acima, a fim de que seja procedida reparação técnica.
4º O veiculo acima mencionado fora depositado na oficina mecânica do Sr. GG por pessoa diversa do proprietário.
5º O proprietário já vem há meses tentando recuperar o veiculo, mas em todas as tentativas viu-se frustrado, pois aquele que se encontrava na posse do mesmo escusava-se.
6º O notificante faz constar, junto a presente Notificação os seguintes documentos: documento do veículo comprovando propriedade do bem e fotos da oficina mecânica (Notificado) comprovando que o veiculo encontra-se depositado no local.
Termos em que requer a NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA do requerido Sr. GG, dando-lhe conhecimento de que:
1. O requerente AA é o legítimo dono e proprietário veiculo MERCEDEZ..BENZ, GLC 250d. branco, matricula …-…-51, código de homologação … nº de quadro … que se encontra depositado junto ao notificado, conforme demonstra cópia em anexo;
2. Fica obrigado a proceder a entrega do veículo em questão somente ao proprietário ou pessoa por ele indicada paro levantar o veiculo, no prazo máximo de 3 dias após a notificação;
3. Não deverá ser realizado nenhum tipo de reparo no veiculo em questão
Mais requer que a presente notificação seja efectuada por OFICIAL DE JUSTIÇA, a ser designado pelo Tribunal Judicial da Comarca de Évora.
Junta: documento veículo e fotos do veiculo no local do notificado. (…)”.
25. Com a data de 18-05-2021, foi remetida à autora por parte do réu, representado pelos seus Advogados, a missiva de onde consta designadamente o seguinte:
ASSUNTO: Interpelação para pagamento do preço do veículo automóvel de marca MERCEDES (…)
Vem este escritório, devidamente mandatado para esse efeito, em representação do nosso constituinte melhor identificado em epígrafe, expor que V. Exa. se encontra em mora no pagamento do preço convencionado pela aquisição do veículo automóvel de marca MERCEDES, 204 X, matrícula …-…-51, chassis n.º …, encontrando-se em incumprimento do contrato verbal por vós aceite, sendo que já foi diversas vezes interpelado para por fim à referida mora.
Face ao exposto, encontra-se V. Exa. formalmente interpelado para proceder ao pagamento do preço em falta, no valor de 55.000,00€ (cinquenta e cinco mil euros), no prazo de 3 (três) dias após a recepção da presente missiva, sob pena de se verificar o incumprimento definitivo do contrato, com consequente resolução do contrato e entrega imediata do veículo, sem descurar eventual responsabilidade civil e/ou criminal. (…)”.
26. A autora procedeu ao pagamento de várias prestações mensais devidas ao Banco Primus em virtude do empréstimo contraído pelo réu para aquisição do veículo Mercedes com a matrícula …-…-51.
27. No início de Junho de 2018, entre o dia 1 e 6, a autora acordou com CC ceder à sociedade (…) Lda. o veículo Mercedes com a matrícula …-…-51 pelo preço de € 62.500,00.
28. O réu é empresário, sendo dono de um restaurante.
29. O réu adquiriu o veículo automóvel da marca Mercedes em causa nos autos com recurso a crédito automóvel em Julho de 2017, pelo prazo de 60 meses, de 20 de Julho de 2017 a 20 de Julho de 2022, ao Banco Primus S.A., contrato sob o n.º …, com o montante financiado de € 51.289,34.
30. No início de Maio de 2018, o réu informou BB que pretendia vender o veículo Mercedes antes referido por si detido pelo preço de € 55.000,00, tendo-lhe sido informado pelo primeiro que lhe podia arranjar um comprador para a viatura de forma célere.
31. Em 20 de Junho de 2018, a viatura Mercedes com a matrícula …-…-51 encontrava-se publicitada para venda no Instagram de HH, funcionário do stand de automóveis (…) Automotive.
32. A viatura supra-referida esteve em tal stand de automóveis até dia compreendido entre 1 e 6 de Junho de 2018, de forma a que fosse encontrado comprador para a mesma, altura em que foi entregue por HH a BB.
33. Sobre o veículo automóvel com a matrícula …-…-51, encontrava-se em vigor a apólice de seguro automóvel n.º …23, da Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., desde 18 de Janeiro de 2019 até 11 de Fevereiro de 2022, contratada pela sociedade (…) Lda.
34. O réu e BB já haviam mantido em data anterior a 6 de Junho de 2018 outros negócios relacionados com o comércio de automóveis.
35. A autora liquidou, entre outras, as seguintes prestações mensais ao Banco Primus por conta do empréstimo bancário para aquisição da viatura Mercedes contraído pelo réu:
- em Fevereiro de 2019, no valor de € 932,05;
- em Fevereiro de 2020, no valor de € 966,19;
- em Maio de 2020, no valor de € 931,27;
- em Julho de 2020, no valor de € 966,42;
- em Dezembro de 2020, no valor de € 929,56;
- em Janeiro de 2021, no valor de € 970,97;
- em Abril de 2021, no valor de € 963,39.
36. No dia 21/02/2019, BB remeteu ao réu mensagem escrita com o seguinte teor: “Bom dia, eu fiz-te a transferência. Entrego estes charutos e liquido o contrato se não te importares”.
37. No dia 2/7/2019, o réu remeteu a BB mensagem escrita com o seguinte teor “Resolve isso do carro se não eu não posso comprar o prédio! Sff”.
38. A tal mensagem respondeu BB nos seguintes termos; “Hello, já pedi hoje valor rescisão. Assim tiver comprovativo envio;) onde andas?”.
39. No dia 23/11/2019, o réu remeteu a BB mensagem escrita com o seguinte teor “Segunda vou tratar do assunto do carro”.
40. A tal mensagem respondeu BB nos seguintes termos; “Já está feito AA. Só cheguei esta noite. Vou enviar o mail. Senão só deixam de te mandar msg segunda.”
41. No dia 21/01/2020, BB remeteu ao réu mensagem escrita com o seguinte teor: “Bom dia sr brasileiro, está tudo bem? Quando regressas? Não recebeste os dados para eu pagar a prestação? Envia-me assim que receberes sff. Abraço”.
42. A tal mensagem respondeu o réu enviando os dados para pagamento da prestação mensal e nos seguintes termos: “Tens o selo do carro também! E vê-se pagas mas é o carro que preciso da conta sem créditos para começar a construir a casa!”.
43. A tal mensagem respondeu BB nos seguintes termos: “Ok, está mesmo quase quase! Quando vens?”.
44. No dia 22/01/2020, o réu remeteu a BB mensagens escritas com o seguinte teor “Os homens do banco primos ligaram (…) Vão mandar para o banco de Portugal que já se repete pela terceira vez”.
45. A tal respondeu BB nos seguintes termos: “Já não vai aparecer mais fica descansado.”.
46. No dia 24/03/2020, o réu remeteu a BB mensagem escrita com o seguinte teor “Já falaste com o empadinhas”.
47. A tal respondeu BB nos seguintes termos: “Bom dia. Estou só espera balancete actualizado e último ies. Dá-me mais um ou dois dias. :)”.
48. No dia 21/05/2020 e 23/05/2020 o réu remeteu mensagem escrita a BB com as referências para pagamento da prestação mensal devida ao Banco Primus.
49. A tal última mensagem respondeu BB o seguinte: “Bom dia, só consigo fazer na segunda AA. Falharam-me um pagamento! Já passo aí pela tabanca!”.
50. No dia 25/05/2020, o réu remeteu a BB mensagem escrita com o seguinte teor “Não te esqueças do pagamento”.
51. A tal mensagem respondeu BB nos seguintes termos “Bom dia, não. Durante o dia faço-o. Logo vou-te visitar”.
52. Enviadas pelo réu a 26/05/2020 novas referências para pagamento, respondeu BB nos seguintes termos: “Bom dia, já enviei para lá”.
53. A tal mensagem respondeu o réu: “Vê lá que me ligaram agora que ainda não. Está pago a prestação. Não me deixes ficar mal”.
54. A 23/06/2020, o réu enviou as seguintes mensagens a BB: “Tens que pagar ao banco Primus. O homem diz que vai mandar para o banco de Portugal. – imagem - Mais 38,69 €. – imagem - Qualquer dia vou ficar sem carta e depois eu é que sou o mão!”.
55. A tais mensagens respondeu BB nos seguintes termos: “Amanhã já te dou toda a documentação necessária para não teres problemas com multas. Já vou buscar para resolver e não te incomodarem. Já aí passo a busca-la.”.
56. A 21/07/2020, o réu enviou a BB a seguinte mensagem: “Não te esqueças de pagar a prestação”.
57. A tal mensagem respondeu BB: “Já paguei:)”.
58. No dia 22/10/2020, BB remeteu ao réu mensagem escrita com o seguinte teor: “Bom dia, mandaram-te entidade referência e valor da prestação? Podes enviar-me?”.
59. A tal mensagem respondeu o réu enviando os dados para pagamento da prestação mensal e nos seguintes termos: “E a última”.
60. A tal mensagem respondeu BB nos seguintes termos: “Essa já paguei. Agora as 9 já ligo. Ontem não tinha sistema, pensei que te tinham enviado.”.
61. A 26/10/2020, após envio de dados para pagamento da prestação mensal por parte do réu a BB, remeteu este a seguinte mensagem: “Tenho a conta bloqueada, por isso é que não consegui pagar na sexta à tarde. Só consigo pagar isso no fim da semana. Já te ligo. Estás cá em Estremoz?”.
62. A 22/12/2020, após envio de dados para pagamento da prestação mensal por parte do réu a BB, remeteu este a seguinte mensagem: “Paguei no dia AA. E enviei para lá mail.”.
63. No dia 16 de Janeiro de 2021, o Réu enviou a BB a seguinte mensagem escrita “Bom dia. Não te esqueças de pagar o selo do carro. Vê se me consegues arranjar 15000€ até terça-feira sff”.
64. A tal mensagem, respondeu BB nos seguintes termos: “Bom dia, como estão? Segunda já trato do selo. Isto não anda tb muito famoso. Mas temos de sentar. Mesa os dois e arranjar uma forma de pagamento, um plano pois tb quero terminar com isto amigo.”.
65. A 21/01/2021, após envio de dados para pagamento da prestação mensal por parte do réu a BB e da mensagem “Olha a última. Quando é que isso acaba”, remeteu este a seguinte mensagem: “Vai já! Está quase!”.
66. No dia 12 de Fevereiro de 2021, o réu enviou a BB a seguinte mensagem escrita: “Bom dia. Pagaram o selo fora da data e tenho la a multa para pagar. És capaz de me arranjar 5000€sff (…)”.
67. No dia 2 de Março de 2021, o réu enviou a BB a seguinte mensagem escrita: “Boas. Tens que me arranjar 10000€ sem falta esta semana sff. Qual o dia e as horas”.
68. A tal mensagem respondeu BB nos seguintes termos: “?? No início da semana reunimos os 2. Amanhã digo-te o dia e a hora para não te atrapalhar muito. Cumprimentos.”.
69. A 22/03/2021, o réu enviou a seguinte mensagem a BB: “Boa noite. Ligaram do banco primus que faltou o pagamento mensal e disseste que ias pagar o carro e ta tudo na mesma e tenho mais uma multa do velho”.
70. A 27/05/2021, após o envio por parte do réu de aviso de falta de pagamento da prestação mensal por parte do Banco Primus, BB enviou-lhe a seguinte mensagem: “AA não te consigo ajudar mais, está tudo entregue ao advogado. Abraço”.
71. GG foi notificado da notificação judicial avulsa referida em 22, 23, e 24 por oficial de justiça em 11 de Março de 2021.
72. De documento intitulado “participação” exarado por parte da PSP Comando Distrital de Évora, agente autuante (…), datado de 11-03-2021, referente a ocorrência sucedida na oficina de GG na Rua …, em Évora, no dia 10-03-2021 em que intervieram o réu, II, sua companheira, CC e GG, constam lavradas as seguintes “informações complementares”:
“Quando me encontrava no desempenho das minhas funções, desloquei-me à Rua …, Évora, Oficina por notícia de desentendimento entre cliente e proprietário (…)
O Sr. AA informou que é proprietário da viatura, exibindo o documento único em seu nome, no entanto mais informou que, sensivelmente em Junho de 2018, entregou a carrinha a individuo seu conhecido de nome BB com o intuito de este arranjar um cliente para a viatura.
Passado algum tempo, o referido individuo BB disse-lhe que já tinha vendido a carrinha só que até hoje ainda não lhe entregou qualquer cêntimo da venda da viatura razão pela qual estava a tentar recuperar a mesma. (…)
Contactado o responsável e proprietário pela oficina Sr. GG, este informou que a viatura foi entregue na oficina por uma outra pessoa, não o Sr. AA, ficando o veículo à sua responsabilidade e para evitar alvoroço, já tinha telefonado para o cliente que ali deixou a carrinha, o qual já se encontrava a caminho daquele local.
Passados poucos minutos compareceu no local, o Sr. CC, e confrontado com o acontecimento, o mesmo comunicou-me que, no dia 26 de Janeiro de 2019, comprou a referida carrinha pelo valor de 52.500 euros, a um indivíduo de nome BB, no entanto no acto da compra o mesmo não lhe entregou a declaração de compra e venda, o que ainda não aconteceu até hoje, possuído consigo unicamente uma factura com o valor que pagou, acima mencionado.
Mais informou que o veículo, por motivo de avaria, necessitou de uma revisão tendo optado pela mencionada oficina para o efeito e de momento ainda não se encontra reparada.”.
73. O veículo Mercedes em causa nos autos sofreu uma desvalorização pecuniária no seu valor comercial avaliada em montante não inferior a € 5.000,00.
74. Em Janeiro de 2019, o veículo Mercedes em discussão nos autos foi entregue pela autora à empresa (…) Lda. que lhe pagou o montante total de € 52.500,00.
75. Entre a autora e a empresa (…) Lda. mais foi acordado que a segunda pagaria à primeira o montante restante de € 10.000,00 no momento em que a “reserva de propriedade” pendente sobre o veículo fosse cancelada.

Aplicando o Direito.
1. Da resolução do contrato de compra e venda de bem futuro:
No aspecto jurídico, o recurso tinha por pressuposto a alteração da decisão de facto, que não procedeu.
De todo o modo, o Recorrente pretende que o incumprimento se ficou a dever à A., por não ter liquidado as prestações devidas ao Banco Primus, nem pago o preço acordado.
Apesar desta versão dos factos não ter qualquer suporte na matéria de facto provada (em bom rigor, quem tinha a obrigação de pagar tais prestações era o Recorrente, pois este é que contraiu o crédito junto do Banco e se comprometeu a proceder ao seu pagamento, em prestações), diremos, de todo o modo, que acompanhamos a fundamentação jurídica adoptada na sentença.
Como efeito, o R. não era titular pleno do direito de propriedade sobre o veículo automóvel, dada a existência de reserva de propriedade a favor de terceiro, devidamente inscrita no registo.
Face ao art. 409.º nº 1 do Código Civil, a reserva de propriedade não confere ao adquirente o poder de uso, fruição ou disposição de um verdadeiro proprietário – a propriedade fica reservada para o alienante até ao cumprimento total ou parcial das obrigações assumidas pelo adquirente ou até à verificação de qualquer outro evento. Como se escreve na sentença, “o vendedor é titular de um direito real diferente da propriedade plena – a propriedade reservada – e o comprador, por seu turno, titular de um direito de expectativa real, fortemente tutelado, de aquisição de um direito de propriedade pleno e, ainda, de um direito de gozo que inere à coisa e é oponível erga omnes. Em caso de incumprimento, designadamente pela falta de pagamento do preço, cabe ao adquirente resolver o contrato.”
Tal não significa que o adquirente não possa proceder à venda desse bem, desde que as partes considerem tratar-se da venda de bem futuro, ficando assim o contrato sujeito ao disposto no art. 893.º do Código Civil.
A propósito, Pedro Romano Martinez ensinou que “não se considera compra e venda de bens alheios a alienação de determinado bem cuja titularidade seja de terceiro, desde que as partes o tenham considerado como coisa relativamente futura, nos termos dos arts. 880.º, 893.º e 904.º CC; ou seja, é válida a compra e venda de bem alheio se as partes tiverem presente esse aspecto. No fundo, trata-se de um contrato aleatório, que vai ficar na dependência de um facto futuro e incerto, a aquisição da propriedade ou de outro direito real sobre a coisa por parte do vendedor, para uma posterior transmissão ao comprador. A este propósito, importa referir que, apesar de ser uma venda de bens alheios, não se lhe aplica este regime, à excepção do disposto no art. 894.º CC, sempre que o devedor tenha declarado que não garante a sua legitimidade ou que não responde pela evicção (art. 903.º n.º 2 CC).”[3]
No caso, pode-se considerar que as partes celebraram um contrato de compra e venda de bem futuro – está provado que conheciam a existência da reserva de propriedade a favor do Banco Primus e que o cancelamento desse encargo por parte do R. através do pagamento do crédito que este havia contraído junto do Banco foi uma condição estabelecida pela A. para a aceitação do negócio, o que R. aceitou.
Como tal, o R. estava obrigado a exercer as diligências necessárias para que a A. adquirisse o veículo, como resulta do art. 880.º n.º 1 do Código Civil.
Porém, o R. não pagou as prestações que devia ao Banco Primus e, pior, exigiu à A. o pagamento de algumas dessas prestações, como se fosse esta a devedora do seu empréstimo. De todo o modo, colocou-se o R. na situação de não poder cumprir o contrato, quer ao não pagar as prestações que devia ao Banco e assim impossibilitando o cancelamento da reserva de propriedade, quer remetendo à A. a carta de 18.05.2021, exigindo o pagamento integral do preço, como se ele fosse o pleno proprietário do veículo, que não era.
Face ao disposto no art. 903.º n.º 2 do Código Civil, tendo o vendedor declarado que não garantia a sua legitimidade ou que não respondia pela evicção, aplica-se a regra do art. 894.º n.º 1: o comprador que procedeu de boa fé tem o direito de exigir a restituição integral do preço, ainda que os bens se hajam perdido, estejam deteriorados ou tenham diminuído de valor por qualquer outra causa.
Ponderando ainda a evidente perda de interesse da A. na concretização do negócio, face ao incumprimento definitivo das obrigações que assistiam ao R., bem fez a sentença recorrida ao reconhecer a resolução do contrato, nos termos do art. 808.º do Código Civil, e ao condená-lo nas consequências legais associadas à restituição do preço pago, e na indemnização associada aos lucros cessantes.
Será, pois, a sentença recorrida confirmada.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente.

Évora, 23 de Maio de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
Elisabete Valente
José António Moita
__________________________________________________
[1] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 141.
[2] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1.ª ed., pág. 689.
[3] In Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, Almedina, Maio de 2000, pág. 105.