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LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
MÁ FÉ PROCESSUAL
Sumário
I – A má-fé processual não opera no domínio da interpretação e aplicação das regras do direito, mas tão só no domínio dos factos, pelo que a sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correcta interpretação da lei não é suficiente para se afirmar a litigância de má-fé de quem as sustenta. II – Só pode afirmar-se a litigância de má-fé se o processo fornecer elementos seguros, que não permitam dúvidas, sobre a atuação dolosa ou gravemente negligente da parte.
Texto Integral
Proc. n.º 705/21.2T8OAZ.P2
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
AA, residente na Rua ..., ..., ...., ... ..., concelho ..., intentou a presente acção declarativa comum contra BB, advogado, com domicílio profissional na Rua ..., ..., ... ..., concelho ..., e A... Company, SE, Sucursal em Espanha, com sede na ..., ..., ..., ....
Alegou, em síntese, o seguinte: em 24 de Junho de 2011 o réu BB foi nomeado patrono oficioso à autora para intentar acção judicial; depois de notificada dessa nomeação, a autora contactou o réu, explicando-lhe que o processo para o qual tinha sido nomeado já estava em curso no Tribunal do Trabalho de ..., sob o n.º ...; perante a nomeação para a propositura de uma acção, o réu deveria ter pedido escusa no processo e/ou criado uma vicissitude através do SINOA, dado que não existia correspondência entre a finalidade descrita no pedido de apoio judiciário e a efectiva pretensão da autora, ou apresentado um pedido de rectificação da finalidade do pedido, que suspenderia a contagem do prazo, salvaguardando assim os interesses da autora no respectivo processo e legitimando a sua intervenção no mesmo como patrono nomead0; mas o réu assim não fez e, dessa forma, permitiu que o prazo de 15 dias concedido à autora para reclamar créditos emergentes do contrato de trabalho decorresse integralmente, não sendo os créditos reclamados e não ficando contemplados na sentença proferida no identificado processo; a autora ficou prejudicada no montante correspondente a 3 meses de salário, num total de 1.731,00 €, acrescido dos montantes devidos a título de férias, subsídio de férias e de natal, no valor de 346,20 €; em Outubro de 2011 a autora apresentou participação junto da Ordem dos Advogados e, no âmbito de processo disciplinar, ao réu foi aplicada a sanção de advertência; a anterior entidade empregadora da autora foi declarada insolvente em 21.11.2013, tendo a autora reclamado no respectivo processo os créditos que resultaram da sentença proferida no processo laboral, no valor de 3.462,00€, e tendo recebido a quantia de 300,00€, liquidada pelo Fundo de Garantia Salarial, uma vez que o processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente; em face da conduta do 1.º réu, a autora ficou impedida de reclamar, tanto no processo laboral como no processo de insolvência, um crédito emergente do contrato de trabalho, no valor de 1.731,00€, acrescido dos proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de natal, no valor de 346,20 €, tendo sofrido, portanto, um prejuízo patrimonial, ao qual a acresceram danos de natureza não patrimonial, nomeadamente ansiedade, inquietação, desgaste e insónia; a 2.ª ré celebrou com a Ordem dos Advogados um seguro de responsabilidade civil profissional, tendo como segurados todos os seus membros, cujo limite engloba o presente pedido.
Concluiu pedindo a condenação solidária dos réus a pagar à autora:
a) a quantia de 2.111,00€, a título de indemnização por danos patrimoniais;
b) a quantia de 2.890,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais;
c) os juros que se vencerem desde a citação até efetivo e integral pagamento, à taxa de 4% ao ano.
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Ambos os réus contestaram.
O 1.º réu alegou, para além do mais, o seguinte: a sua não intervenção no processo pendente no Tribunal do Trabalho não causou à autora qualquer prejuízo efectivo; logo em 17.04.2012, a autora intentou execução de sentença contra a sua entidade patronal, no âmbito da qual não foram penhorados quaisquer bens à executada, pelo que aquela nada recebeu; posteriormente, a autora requereu a declaração de insolvência da mesma entidade empregadora, julgada procedente, tendo-lhe sido reconhecido um crédito no valor de 3.941,08 €; o processo de insolvência veio a ser encerrado por inexistência de bens; não foi, assim, a conduta do 1.º réu que impediu a autora de obter bom pagamento do montante que entendia dever receber da sua entidade empregadora.
Mais peticionou a condenação da Autora como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor do Réu.
A ré A... Company SE, Sucursal em Espanha, para além de arguir a prescrição do direito da autora, alegou o seguinte: os actos e omissões imputados ao segurado estão fora do período de vigência e excluídos da apólice subscrita junto da A... Company SE; as apólices em vigor nos anos de 2010 a 2011 e aplicáveis aos danos emergentes dos actos e omissões imputados ao 1.º réu são as apólices subscritas junto da B... Company (Europe) Lda.; encontra-se contratualmente previsto o pagamento de uma franquia de 5.000,00 €.
Tendo sido, posteriormente, admitida a intervenção principal provocada de B... Company Europe LTD, Sucursal em Espanha, também esta apresentou contestação, arguindo igualmente a prescrição do direito da autora e alegando o seguinte: a reclamação do alegado “sinistro profissional” foi pela primeira vez apresentada à interveniente com a citação para a presente acção, em 25 de Janeiro de 2022, data em que já haviam cessado os efeitos e/ou coberturas previstas nas apólices contratadas; até 31 de Dezembro de 2011 o sinistro em apreço nos autos não foi participado/reclamado pela autora, nem pelo réu advogado, junto da B... Company Europe Ltd.; encontra-se contratualmente previsto o pagamento de uma franquia de 5.000,00 €.
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Notificada para o efeito, a autora respondeu às excepções deduzidas.
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Realizada audiência prévia e frustrada a conciliação das partes, foi proferido saneador-sentença, que julgou procedente a excepção peremptória de prescrição e absolveu os réus do pedido.
Esta decisão foi revogada por acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, que determinou o prosseguimento dos autos.
Foi proferido despacho saneador, após o que veio a realizar-se audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, decide-se julgar a acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolver Réus BB e A... Company SE e a Chamada B... Company Europe Ltd do pedido.
Mais se decide condenar a Autora AA como litigante de má-fé, em multa, que se fixa em 3 (três) U.C., e em indemnização a pagar ao Réu BB, em montante a fixar.
(…)
Nos termos previstos no art. 543º do CPC, notifique a Autora AA e o Réu BB para se pronunciarem quanto à indemnização a fixar.».
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Inconformada, a autora apelou desta sentença, apresentando a sua alegação, que conclui da seguinte forma:
«Primeira:
A Senhora Juíza tira conclusões da matéria de facto dada como provada, mas estas estão erradas, já que considera que:
- “os créditos que a Autora refere, na petição inicial, que não lhe foram reconhecidos encontram-se abrangidos pela condenação proferida pelo Tribunal de Trabalho”;
- “a sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho condenou a entidade patronal a pagar à Autora as quantias previstas no artº 393º do Código do Trabalho e, bem assim, a indemnização prevista no artº 391º do mesmo Código”;
- “na alínea c) do segmento decisório, estão abrangidos todos os créditos salariais referidos pela Autora (nomeadamente férias, subsídio de férias e subsídio de Natal)”. Segunda:
A sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho não condenou a entidade patronal a pagar à Autora os valores relativos a férias, subsídio de férias e subsídio de Natal. Terceira:
Os créditos da autora, designadamente os relativos a férias, subsídio de férias e subsídio de Natal deveriam ter sido peticionados nos termos fixados no nº 3 daquela sentença, e não o foram, tendo a autora ficado prejudicada com esta falta. Quarta:
Atendendo aos elementos de prova existentes nos autos, nos factos provados deveria constar: “A sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho de ... não contemplou os créditos da autora relativos a férias, subsídio de férias e subsídio de Natal nem tais créditos foram peticionados nos termos fixados no nº 3 daquela sentença”. Quinta:
A Senhora Juíza condenou a autora como litigante de má-fé partindo da premissa de que a autora nada mais tinha que receber da sua entidade patronal para além do que consta da sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho, fundamentando assim a existência de pelo menos negligência grave por parte da autora Sexta:
A conduta da autora tem que ser avaliada com todas as circunstâncias do caso e também da pessoa que a autora é, como por exemplo do seu grau de instrução e também das suas capacidades de avaliação. Sétima:
A autora apenas frequentou a Escola até à 4ª Classe, e começou a trabalhar aos 13 anos, não tem nem nunca teve conhecimentos que lhe permitissem avaliar os seus direitos, designadamente os que se discutiam nos presentes autos, bem como peticionar os valores nos termos em que constam da petição. Oitava:
A autora procurou receber da sua entidade patronal o valor fixado na sentença proferida no Tribunal do Trabalho, mas os valores que peticionou nos presentes autos não são os mesmos nem estão incluídos nos valores que peticionou no processo executivo ou no processo de insolvência. Nona:
A autora não teve intervenção directa quer no processo de execução quer no processo de insolvência, mas sim a sua patrona nomeada, pelo que não tem conhecimento da evolução de tais processos Décima:
O réu BB não cumpriu com as suas obrigações, o que aliás consta da própria sentença em apreço e também do acórdão proferido pelo Conselho de Deontologia ..., da Ordem dos Advogados (doc. nº 4 junto com a petição inicial), datado de 26 de maio de 2017, sendo que neste consta, não só que o réu BB violou os seus deveres, como também expressamente se declara que “Por força da inércia do Sr. Advogado arguido, a Participante viu-se impedida de peticionar tais créditos, tendo sido prejudicada no montante correspondente a 3 meses de salário, ou seja, Eur. 1.731,00 /eur. 577,00 x 3)”, o que criou na autora a ideia não só de que tinha sido prejudicada pelo réu BB, como lhe foi indicado um valor desse prejuízo. Décima-primeira:
Este acórdão proferido pelo Conselho de Deontologia ..., da Ordem dos Advogados, levou a autora a avançar com um pedido de indemnização contra o réu BB, tendo começado por requerer o benefício do apoio judiciário com nomeação de patrono e isenção de custas. Décima-segunda:
Depois de ter sido deferido pedido de apoio judiciário, com nomeação de patrono, a autora apenas descreveu os factos e a Sra. Advogada que lhe foi nomeada patrona avaliou os mesmos e intentou o presente processo, pelo que a autora não elaborou a petição, com os pedidos que nela constam. Décima-terceira:
A autora não tinha conhecimentos para saber o que podia exigir e que valores, e apenas conhecia o que constava do acórdão proferido pelo Conselho de Deontologia ..., da Ordem dos Advogados, de que o réu BB violou os seus deveres, e de que ficou prejudicada por isso, no valor de 1.731,00 €. Décima-quarta:
Nos presentes autos, a autora veio reclamar o prejuízo que tivera conforme entendimento do acórdão proferido pelo Conselho de Deontologia ..., da Ordem dos Advogados, e os valores peticionados não estão incluídos na sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho assim como também não estavam incluídos na execução que se seguiu àquela sentença e no processo de insolvência. Décima-quinta:
O cerne do presente processo e a sua origem é o acórdão proferido pelo Conselho de Deontologia ..., da Ordem dos Advogados, ao declarar que o réu BB violou os seus deveres, e de que a autora ficou prejudicada por isso, no valor de 1.731,00 €. Décima-sexta:
A autora não agiu de má-fé, apenas se limitou a transmitir os factos à sua patrona e esta intentou o processo convencida da razão e dos direitos que assistiam à autora. Décima-sétima:
A autora não agiu por qualquer fim ou estado de espírito reprovável, mas sim alicerçada por um acórdão proferido pelo Conselho de Deontologia ..., da Ordem dos Advogados, que lhe reconhecia que o réu BB violou os seus deveres, e de que por isso a autora ficara prejudicada no valor de 1.731,00 €. Décima-oitava:
A autora apresentou a sua versão dos factos que vieram em parte a ser dados como provados e não se pode concluir que não tendo provado todos os factos que alegou configura o comportamento típico de quem recorre aos meios processuais para obter um fim ilegítimo ou contra o direito e à justiça. Décima-nona:
Na própria sentença se reconhece que o réu BB não cumpriu com as suas obrigações, concluindo-se também na mesma de que estariam preenchidos alguns requisitos da obrigação de aquele ter que indemnizar a autora. Vigésima:
A autora apresentou a sua versão dos factos, com os riscos inerentes à produção ou não de prova dos mesmos, mas a circunstância de não ter conseguido provar todos os factos por si alegados não pode levar a Senhora Juíza a decidir como decidiu. Vigésima-primeira:
Para existir litigância de má-fé não basta a dedução de pretensão sem fundamento como concluiu a Senhora Juíza, o que aliás não é correto, como se pode verificar dos factos provados. Vigésima-segunda:
Para que tivesse havido litigância de má-fé, a autora teria que deduzir a sua pretensão ou oposição infundamentada ou ao afirmar factos não ocorridos, e tenha atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, ou encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento. O que não acontece nos presentes autos. Vigésima-terceira:
A conduta da autora não permite concluir que “a Autora deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, litigando de forma absolutamente temerária, com, pelo menos, negligência grave”, e por isso não pode ser condenada como litigante de má-fé. Vigésima-quarta:
A entender-se o contrário, o valor da multa aplicada é manifestamente desajustado, por excessivo, por não corresponder a um justo equilíbrio entre o grau de culpa e a censurabilidade do comportamento da autora. Vigésima-quinta:
A autora foi condenada na multa que a Senhora Juíza fixou em 3 U.C., o que foi feito sem fundamento ou ponderação. Vigésima-sexta:
Nesta condenação a Senhora Juíza não cumpriu com o estabelecido nas normas legais, desde logo porque não tem a mínima menor avaliação da situação económica da autora nem da repercussão da condenação no património desta. Vigésima-sétima:
O valor da multa aplicado pela Senhora Juíza não poderia ser superior ao mínimo legal, já que dos autos resulta que a autora beneficia de apoio judiciário por não ter bens ou rendimentos que lhe permitam pagar não só a advogado como as custas processuais. Vigésima-oitava:
A multa aplicada pela Senhora Juíza é excessiva e deve ser alterada para valor compatível com situação económica da autora e a repercussão da condenação no património dela. Vigésima-nona:
A decisão judicial em apreço violou:
- os artigos 542º e 543º do Código de Processo Civil.
- o artigo 27º do Regulamento das Custas Processuais. Nestes termos e nos do douto suprimento, deve ser dado provimento ao recurso, e a autora ser absolvida do pedido de condenação como litigante de má-fé, com as devidas consequências legais».
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A ré A... Company, SE, Sucursal em Espanha respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.
Subsidiariamente, para a hipótese de procedência da apelação, solicitou a ampliação do âmbito do recurso relativamente aos fundamentos da defesa cujo conhecimento a sentença recorrida julgou prejudicado (o que nos remete para o artigo 665.º, n.º 2, do CPC), mas invocando o disposto no artigo 636.º, n.º 1, do CPC, relativo aos fundamentos em que a parte vencedora decaiu.
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A recorrente opôs-se à pretendia ampliação do âmbito do recurso, visto que apenas recorreu da sua condenação como litigante de má-fé, em multa e em indemnização a pagar ao Réu BB, tendo a decisão da absolvição dos réus e da chamada transitado em julgado.
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Por despacho de 10.05.2024, em complemento da sentença e nos termos previstos no artigo 543.º do CPC, o tribunal a quo fixou a indemnização a pagar pela autora ao réu em 250,00 €.
Mais determinou que os autos aguardassem, por 15 dias, que a autora viesse, querendo, completar o recurso apresentado por referência à decisão ora proferida.
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Inconformada com tal decisão, a autora veio, nos termos deste despacho, completar o seu recurso de apelação, apresentando a respectiva alegação, que conclui nos seguintes termos:
«Primeira:
A indemnização ao Réu BB só será de atribuir caso a litigância de má-fé se mantenha por improcedência do recurso apresentado pela autora. Segunda:
O valor da indemnização de 250,00 € é inadequado ao caso dos autos e às condições sócio económicas da autora. Terceira:
O Réu BB apenas reclamou o pagamento de honorários do seu Mandatário, sendo certo que esta despesa não era obrigatória existir, dado que como Advogado aquele réu poderia apresentar a sua defesa. Quarta:
Embora seja reconhecida “… a débil situação económica da autora…” o valor fixado de indemnização (250,00 €) não é compatível com as condições sócio económicas da autora. Quinta:
A Lei estabelece a possibilidade de ser fixado o montante da indemnização, mas de acordo “com prudente arbítrio, o que parecer razoável”, o que não aconteceu na decisão que foi proferida, já que não avaliou todas as circunstâncias do caso e também da pessoa que a autora é. Sexta:
Para além da multa que terá que pagar se vier a ser decidido que a autora litigou de má-fé, aquele valor acrescerá o montante da indemnização, o que representa um valor global muito elevado para a autora dadas as suas condições económicas. Sétima:
O montante da indemnização fixado é excessivo e deve ser alterado para valor compatível com situação económica da autora e a repercussão da condenação no património dela, e nunca superior a 100,00 €. Oitava:
A decisão judicial em apreço violou:
- os artigos 542º e 543º do Código de Processo Civil.
- o artigo 27º do Regulamento das Custas Processuais Nestes termos e nos do douto suprimento, deve ser dado provimento ao recurso, e a autora ser absolvida do pedido de condenação como litigante de má-fé, com as devidas consequências legais e se assim não for de entender deve o montante da multa e da indemnização ser fixado em valor não superior a 100,00 €».
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O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.
Não foi admitida a ampliação do recurso, porquanto este incide apenas sobre a condenação da autora como litigante de má-fé.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, importa decidir se deve ser mantida a sua condenação como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor do réu e, no caso afirmativo, qual o montante daquela multa e desta indemnização.
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III. Fundamentação
A. Factos Provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1. Em 24 de Junho de 2011, o Réu BB foi nomeado patrono oficioso a AA, tendo em vista a propositura de acção judicial.
2. Após a nomeação, a Autora informou o Réu BB que estava em curso, no Tribunal de Trabalho de ..., um processo sob o n.º ....
3. O Réu BB dirigiu-se ao Tribunal de Trabalho de ..., não lhe tendo sido possível consultar o Proc. n.º ....
4. O Réu BB não informou o Proc. n.º ... da sua nomeação e aí nunca interveio, nem não pediu escusa ou criou vicissitude no processo de nomeação, através do SINOA, nem informou a Autora que deveria apresentar pedido de rectificação da finalidade do pedido junto da segurança social.
5. No âmbito do Proc. n.º ..., foi proferida sentença, em 06.07.2011, notificada à Autora por notificação datada de 11.07.2011, aí se tendo decidido condenar a empregadora C..., Lda. a pagar à Autora:
a) a título de indemnização em substituição da reintegração, a quantia de 1.713 € (577 € x 3) sem prejuízo do previsto do artigo 393.º do Código de Trabalho;
b) a título de pagamento das retribuições vencidas desde 30-04-2011 (data do despedimento) até ao trânsito em julgado desta sentença, cujo valor perfaz, até 30-07-2011, o valor de 1.713 €;
c) o pagamento das demais prestações, vincendas, à razão de 577 € mensais, desde 30-07-2011, até trânsito em julgado desta sentença caso este seja posterior àquela data.
6. Mais aí se determinou a notificação da Autora para, em 15 dias, apresentar articulado no qual peticione créditos emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação que não se encontrem já contemplados na antecedente condenação.
7. Nada foi requerido pela Autora e/ou pelo Réu BB na sequência do referido em 6.
8. A Autora apresentou, em 26.10.2011, participação junto da O.A., tendo sido aplicada ao Réu BB a sanção disciplinar de Advertência.
9. A Autora, em 17.04.2012, intentou execução de sentença, contra a sua antiga entidade patronal (C..., Lda.), peticionando a quantia global de € 3.750,26, a qual correu termos sob o Proc. n.º ...-A, do Tribunal de Trabalho de ....
10. No âmbito de tal execução, nenhuns bens foram penhorados àquela sociedade e, por requerimento de 15/11/2013, a aqui Autora informou que:
“Foi instaurada, pela exequente, contra a executada, Processo de Insolvência que corre termos no Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, no 2º Juízo Cível, ao qual foi atribuído o n.º ....
Pelo que, não faz sentido a continuação deste processo executivo, devendo o mesmo ser extinto por inutilidade superveniente da lide, o que desde já se requer.”
11. A aqui Autora intentou contra a sociedade C..., Lda. processo de insolvência requerida, em Outubro de 2013, que correu termos sob o Proc. ..., a qual foi declarada em 21.11.2013, sendo a aqui Autora a única credora reconhecida. O processo de insolvência foi encerrado, por inexistência de bens, o que mereceu a concordância da aqui Autora.
12. No apenso de qualificação da insolvência, a Sra. AI informou que “(…) a insolvente apenas tem uma única credora/trabalhadora, requerente da insolvente. Ora, ao que foi possível apurar, tendo a insolvente dez (10) trabalhadores a seu cargo, logrou a mesma chegar a acordo com todos eles, com excepção da trabalhadora AA, tendo sido referido que tudo foi feito para chegar a acordo também com esta última.
Por outro lado, não subsiste a existência de quaisquer outras dívidas/passivo, pelo que, salvo melhor opinião, não se verificavam motivos suficientes que legitimassem a apresentação à insolvência pela própria, já que, face à inexistência de quaisquer outras dívidas, sempre manteve a intenção de chegar a acordo também com aquela credora/trabalhadora.”
13. No apenso de qualificação, a insolvência foi considerada como fortuita.
14. No processo de insolvência, a Autora reclamou e foi-lhe reconhecido um crédito no valor global de € 3.941,08.
15. A R. “A... Company SE, Sucursal en Espanä” celebrou com a Ordem dos Advogados um Seguro de Responsabilidade Civil Profissional, tendo como segurados todos os seus membros com inscrição em vigor, através das Apólices n.º E...8..., E...9..., E...0... e E...1..., em vigor nos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021, nos termos do qual, se transferiu para a mesma a responsabilidade pelos danos emergentes do exercício da actividade, em prática individual ou societária, por dolo, erro, omissão ou negligência profissional, dando-se por reproduzido o teor das respectivas cláusulas gerais, especiais e particulares da apólice.
16. Do montante limite de indemnização - € 150.000,00 – é descontada a franquia geral contratada, no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros) por sinistro, que fica a cargo do Segurado.
17. De acordo com o Ponto 7 das Condições Particulares da apólice: o segurador assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o Segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos durante vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, coberta pela presente apólice, e mesmo ainda, que tenham sido cometidos pelo Segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente Apólice, e sem qualquer limitação temporal de retroactividade.
18. Nos termos do Ponto 12 do Artigo 1º das Condições Especiais da Apólice em causa, considera-se como Reclamação: qualquer procedimento judicial ou administrativo iniciado contra qualquer segurado, ou contra o segurador, quer por exercício de acção direta, quer por exercício de direito de regresso, como suposto responsável de um dano abrangido pelas coberturas da apólice; Toda a comunicação de qualquer facto ou circunstância concreta conhecida por primeira vez pelo segurado e notificada oficiosamente por este ao SEGURADOR, de que possa:
i) Derivar eventual responsabilidade abrangida pela apólice;
ii) Determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento,
ou
iii) Fazer funcionar as coberturas da APÓLICE.
19. o Artigo 3º das Condições Especiais das Apólices em causa, sob a epígrafe “Exclusões”, estabelece expressamente, além do mais, que “ficam, expressamente excluídas da cobertura da presente apólice, as reclamações: (…)
a) Por qualquer facto ou circunstância já anteriormente conhecido(a) do Segurado, à data de início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente a vir gerar, reclamação;”
20. Nos termos do Artigo 8º das Condições Especiais das Apólices em análise:
1. Notificação de Reclamações ou Incidências: O tomador do seguro ou o segurado deverão, como condição precedente às obrigações do segurador sob esta apólice, comunicar ao segurador tão cedo quanto seja possível:
a) Qualquer reclamação contra qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice;
b) Qualquer intenção de exigir responsabilidade a qualquer Segurado, baseada nas coberturas desta apólice;
c) Qualquer circunstância ou incidente concreto conhecida(o) pelo segurado e que razoavelmente possa esperar-se que venha a resultar em eventual responsabilidade abrangida pela apólice, ou determinar ulterior formulação de uma petição de ressarcimento ou acionar as coberturas da apólice.”
21. Entre a B... Company (Europe) Limited e a Ordem dos Advogados foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, titulado pelas apólices de seguro n.º DP...1... e DP...1..., tendo como segurados todos os seus membros com inscrição em vigor, através das quais assumiu, perante o Tomador Ordem dos Advogados, a cobertura dos riscos inerentes ao exercício da atividade profissional desenvolvida pelos seus segurados, garantindo o eventual pagamento de indemnizações resultantes da responsabilização civil dos segurados, em decorrência de erros e/ou omissões profissionais incorridas no exercício da sua actividade, garantindo, até ao limite de capital seguro - € 150.000,00 - e nos termos expressamente previstos nas referidas condições particulares da apólice de seguro, o eventual pagamento de indemnizações por Prejuízos Patrimoniais Primários causados a TERCEIROS, em consequência de ERRO ou FALTA PROFISSIONAL cometido pelo SEGURADO ou por pessoal por quem ele legalmente deva responder, no desempenho da atividade profissional descrita nas Condições Particulares, com a dedução da correspondente franquia contratual, no montante de € 5.000,00, a qual fica a cargo dos Segurados, a deduzir da indemnização a que haja lugar, que vigoraram de 01.01.2006 até 31.12.2011, relativamente às “reclamações que sejam pela primeira vez apresentadas contra o segurado e notificadas à seguradora, ou contra a seguradora em exercício da ação direta, durante o PERÍODO DE SEGURO, dando-se por reproduzido o teor das respectivas cláusulas gerais, especiais e particulares da apólice.
22. A R. B... apenas teve conhecimento dos factos em causa nos autos com a citação para a presente acção, realizada em 25.01.2022.
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B. Factos Não Provados
O tribunal de primeira instância julgou não provado que:
a) O Réu BB consultou o Proc. n.º ....
b) Por causa da conduta do Réu BB, a Autora não viu reconhecidos créditos no valor de € 1.731,00 e € 346,20/€ 380,00.
c) A Autora recebeu cerca de € 300,00 do Fundo de Garantia Salarial.
d) Não fosse a conduta do Réu BB, a Autora receberia quantia superior àquela que recebeu do Fundo de Garantia Salarial.
e) A conduta do Réu BB, causou à Autora inquietação, desgaste, insónia, tendo-se esta sentido defraudada, não tendo honrado com compromissos assumidos junto de terceiros, na sequência do comportamento omisso do Réu, o que lhe gerou ansiedade.
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C. Fundamentação de Direito 1. Perante o teor da alegação do recurso, maxime da sua conclusão quarta, poderíamos ser levados a concluir que a recorrente pretendeu impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
A ser assim, impor-se-ia a rejeição dessa impugnação, por falta de cumprimento dos ónus primários previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC.
De harmonia com este preceito, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso concreto, a recorrente não especifica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não esclarecendo se pretende a alteração da decisão quanto a algum dos factos julgados provados ou não provados pela primeira instância e/ou a sua ampliação por haver omissão de pronúncia quanto a algum facto essencial para a decisão da causa.
Também não indica os concretos meios probatórios que, na sua opinião, impunham decisão diversa da recorrida. A recorrente limita-se a alegar que, atendendo aos elementos de prova existentes nos autos, nos factos provados deveria constar o seguinte: “A sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho de ... não contemplou os créditos da autora relativos a férias, subsídio de férias e subsídio de Natal nem tais créditos foram peticionados nos termos fixados no nº 3 daquela sentença”.
Tal alegação poderia, quando muito, satisfazer o último dos ónus acima elencados, mas já não os dois primeiros.
Em todo o caso, a asserção que a recorrente entende dever constar dos factos provados não configura um facto concreto, mas uma mera conclusão a extrair do teor da sentença aludida nos pontos 5 e 6 dos factos provados, ou melhor, uma mera valoração dos factos carreados para os autos, entre os quais se inclui o teor da sentença acima referida, naturalmente sujeita a interpretação, enquanto verdadeiro acto jurídico, nos termos do disposto no artigo 295.º do Código Civil (CC).
A própria recorrente começa por abordar a questão deste ponto de vista, alegando que a Sra. Juíza a quo tira conclusões erradas da matéria de facto provada (cfr. conclusões primeira e terceira), ainda que prossiga pugnando pela inserção nos factos provados das conclusões que reputa correctas, pretensão que não encontra respaldo nas normas dos artigos 5.º e 607.º do CPC.
Pelas razões expostas, não pode este tribunal reapreciar a decisão sobre a matéria de facto, que assim se considera definitivamente fixada. 2. A primeira questão a decidir traduz-se em saber se estão verificados os pressupostos de que a lei faz depender a condenação da autora recorrente como litigante de má-fé.
A decisão recorrida começa por fazer uma análise teórica desses pressupostos, em termos que não mereceram qualquer discordância das partes e não suscitam dúvidas a este tribunal. Por isso mesmo, limitar-nos-emos relembrar aqui, de forma breve, os aspectos mais relevantes do instituto da litigância de má-fé.
De acordo com o disposto no artigo 542.º, n.º 2, do CPC, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou tiver omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A má-fé a que se reportam as referidas alíneas a) e b) é a má-fé material ou substancial, aquela que se refere à relação jurídica material (vide, Alberto dos Reis, CPC Anotado, II, 3ª ed., p. 264). As restantes alíneas respeitam à chamada má-fé instrumental.
Em qualquer dos casos, a litigância de má-fé surge como um instituto processual, de tipo público, que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma modalidade da responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais. Corresponde antes a um subsistema sancionatório próprio, de âmbito limitado e com objectivos muito práticos e restritos.
No essencial, não relevam aí todas e quaisquer violações de normas jurídicas, mas apenas as actuações tipificadas nas diversas alíneas do citado artigo 542.º, n.º 2, do CPC; não é requerido dano: a conduta é punida em si, independentemente do resultado; exige-se dolo ou grave negligência, e não culpa lato sensu, em moldes civis; as consequências são apenas multa e, nalguns casos, indemnização calculada em moldes especiais (artigos 542.º, n.º 1, e 543.º, do CPC).
A má-fé processual não opera no domínio da interpretação e aplicação das regras do direito, mas no domínio dos factos; como se diz no ac. do STJ de 03.01.2007, in www.dgsi.pt, a sustentação de posições jurídicas, porventura desconformes com a correcta interpretação da lei, não basta à conclusão da litigância de má fé de quem as sustenta.
Contudo, tem-se entendido que a conclusão no sentido da litigância de má-fé não se pode extrair, mecanicamente, da simples alegação de factos pessoais que não se provaram ou da negação de factos pessoais que vieram a provar-se (acs. do STJ de 20.10.98 e da Relação do Porto de 24.10.02, disponíveis em www.dgsi.pt, nºs conv. 34689 e 35094, respectivamente).
Voltando ao caso concreto, verifica-se que a decisão recorrida, depois do já aludido excurso teórico sobre a litigância de má-fé, fundamenta assim a sua verificação no caso concreto:
«Afigura-se-nos que é manifesto que a Autora deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, litigando de forma absolutamente temerária, com, pelo menos, negligência grave, a coberto do benefício do apoio judiciário, quase 10 anos depois da data em que ocorreram os factos, procurando cobrar do Réu aquilo que bem sabia nunca conseguiria cobrar da sua entidade patronal.
Não podia a Autora ignorar que nada conseguiu cobrar da sua entidade patronal, nem em sede executiva, nem em sede insolvencial.
Peticiona que o Réu seja condenado a pagar-lhe a totalidade dos créditos que diz não lhe terem sido reconhecidos – e que, afinal, foram nos termos já supra expostos – bem sabendo que nunca os iria receber nem da sua entidade patronal, nem do Fundo de Garantia Salarial, considerando a data da cessação do contrato de trabalho e a data em que instaurou o processo de insolvência.
Pelo exposto, é de condenar a Autora como litigante de má-fé».
Como vemos, a decisão recorrida fundamenta a condenação da autora como litigante de má-fé no disposto na al. a), do n.º 2, do artigo 542.º do CPC (a dedução de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar), ou seja, na má-fé material ou substancial.
Para esse efeito, argumenta que a autora não podia ignorar que nada conseguiu cobrar da sua entidade patronal, nem em sede executiva, nem em sede insolvencial.
Esta afirmação é indiscutível. Mas é igualmente certo que nunca a autora afirmou ou procurar demonstrar algo diverso.
Pelo contrário, logo na petição inicial, a própria autora esclareceu que a sua entidade empregadora havia sido declarada insolvente em 21.11.2023, que aí reclamou os créditos que lhe haviam sido reconhecidos na sentença proferida no processo n.º ..., no valor de 3.462,00 €, do qual apenas veio a receber cerca de 300,00 € do Fundo de Garantia Salarial (o que acabou por não ficar demonstrado nestes autos, sendo certo que a alegação daquele recebimento se revela totalmente irrelevante para fundamentar a pretensão indemnizatória da autora) e que o processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente (cfr. artigos 20.º a 22.º da petição inicial).
Acresce que, tendo o réu BB alegado na sua contestação a propositura da execução para cobrança do crédito da autora e a sua frustração (cfr. artigos 11.º a 13.º e 29.º da contestação daquele réu), esta jamais questionou tal factualidade.
Argumenta ainda a decisão recorrida que a autora peticionou a condenação do réu a pagar-lhe os créditos que não lhe foram reconhecidos por causa da inércia do réu, quando, na verdade, aqueles créditos foram judicialmente reconhecidos.
Não cremos que assim seja, pelas razões que passamos a expor.
Na presente acção, para além de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 2.890,00 €, a autora pediu a condenação dos réus a pagarem-lhe uma indemnização por danos patrimoniais no valor de 2.111,00 €, correspondendo 1.731,00 € aos três meses de salário que lhe eram devidos ao abrigo do artigo 393.º do Código do Trabalho e os restantes 346,20 € – que depois computa em 380,00 €, sem que perceba porquê – aos valores devidos a título de férias, subsídio de férias e subsídio de natal, proporcionais à data da cessação, nos termos do disposto no artigo 245.º do mesmo código (cfr. artigos 13.º, 14.º, 18.º, 24.º, 25.º e 28.º da petição inicial), uma vez que tais quantias não foram contempladas na sentença do Tribunal de Trabalho por facto imputável ao réu BB.
A este respeito, afirma-se o seguinte na sentença recorrida: «afigura-se-nos que a sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho condenou a entidade patronal a pagar à Autora as quantias previstas no art. 393º do Código do Trabalho e, bem assim, a indemnização prevista no art. 391º do mesmo Código. Por outro lado, na alínea c) do segmento decisório, estão abrangidos todos os créditos salariais referidos pela Autora (nomeadamente férias, subsídio de férias e subsídio de Natal). Ou seja, todos os créditos salariais referidos nestes autos estavam reconhecidos e incluídos na sentença proferida no âmbito do Proc. ...».
Não podemos concordar com esta conclusão.
De harmonia com o disposto no artigo 391.º do Código do Trabalho, sendo o despedimento declarado ilícito, em substituição da reintegração, o trabalhador pode optar por uma indemnização, cabendo ao tribunal determinar o seu montante, entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, não podendo tal indemnização ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades.
A sentença referida no ponto 5 dos factos provados fixou assim esta indemnização: «2 – Condeno a empregadora a pagar à trabalhadora: a) a título de indemnização em substituição da reintegração, a quantia de 1 713 € (577 € x 3) sem prejuízo do previsto do artigo 393º do Código de Trabalho» (cfr. documento n.º 2 da petição inicial).
A decisão recorrida parece entender que esta ressalva da previsão do artigo 393.º do Código do Trabalho corresponde à condenação do réu no pagamento da indemnização prevista neste artigo (a acrescer à indemnização prevista no artigo 391.º, fixada no seu limite mínimo). Mas esta leitura não se afigura possível, pois também a indemnização prevista no artigo 393.º, n.º 2, al. a), carece de ser quantificada pelo juiz. Com efeito, dispõe este normativo que, no caso de despedimento por iniciativa do empregador em caso de contrato a termo, «2 - Sendo o despedimento declarado ilícito, o empregador é condenado: a) No pagamento de indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais, que não deve ser inferior às retribuições que o trabalhador deixou de auferir desde o despedimento até ao termo certo ou incerto do contrato, ou até ao trânsito em julgado da decisão judicial, se aquele termo ocorrer posteriormente». Tal como o artigo 391.º, aqui apenas se define o valor mínimo da indemnização, não se prevendo um valor fixo que se baste com a remissão para a previsão legal. Ora, na decisão referida no ponto 5 dos factos provados não foi fixado qualquer valor indemnizatório à luz do artigo 393.º, nem vemos como o pudesse ter sido.
O que resultava do artigo 98.º-J, n.º 3, do Código de Processo de Trabalho (CPT), na redacção então vigente, era que, no caso de não ser apresentando articulado de motivação de despedimento pelo empregador, se declarasse a ilicitude do despedimento e se condenasse aquele no mínimo de 30 dias de indemnização por ano; tudo o resto tinha que ser peticionado depois, nos termos da alínea c) do 98-J, número 3. Porém, o formulário que dava início à acção, que foi aprovado pela Portaria 1460-C/2009, de 31 de Dezembro, nem sequer tinha um campo ou espaço adequado para a alegação da data do início e o tipo de contrato de trabalho.
Como escreveu Susana Silveira (Revista Julgar n.º 15, Setembro-Dezembro de 2011, pp. 93-94) a respeito deste artigo 98.º-J do CPT, na redacção vigente em 2011, o n.º 3 desta disposição legal diz-nos «que se o empregador não apresentar o articulado motivador do despedimento, ou não juntar o processo disciplinar ou os documentos comprovativos das formalidades exigidas, o juiz declara a ilicitude do despedimento do trabalhador e: condena o empregador a reintegrar o trabalhador, ou, caso este tenha optado por uma indemnização em substituição da reintegração, a pagar ao trabalhador, no mínimo, uma indemnização correspondente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, devendo atender-se ao tempo decorrido desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial, estando, ainda, o juiz impossibilitado de atribuir indemnização inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades (art. 391.º, n.os 2 e 3, do CT); condena o empregador no pagamento das retribuições que o trabalhador deixou de auferir desde a data do despedimento até trânsito em julgado e ordena a notificação do trabalhador para, querendo, no prazo de 15 dias, apresentar articulado no qual peticione créditos emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação.
Uma vez caracterizada a disciplina normativa consequenciada pela não apresentação, pelo empregador, do articulado motivador do despedimento ou da não junção do processo disciplinar — em caso de despedimento por justa causa subjectiva — ou dos documentos comprovativos das formalidades exigidas — para a promoção do despedimento fundado em causa objectiva — logo ressaltam as dificuldades quanto à sua aplicação, tendo presente que, até esse momento, os únicos actos processuais praticados se traduzem na apresentação, pelo trabalhador, do requerimento formulário e na realização da audiência de partes e nenhum desses actos contém, de acordo com o regime legal, momento próprio para a alegação de factos absolutamente essenciais à condenação ora exigida. Isto é, como poderá o juiz proferir uma sentença condenatória com o alcance exigido pelo normativo que temos vindo de analisar se, até esse momento, a disciplina legal não impõe a alegação da retribuição do trabalhador a alegação da sua antiguidade, a opção entre a reintegração ou a indemnização de antiguidade, a alegação dos factos conducentes à atribuição de uma indemnização de antiguidade — caso seja esta a pretensão do trabalhador — fixada nos limites máximos legalmente previstos?
(…)
De afastar será a defesa de uma solução que, em ordem à resolução da problemática que colocámos, passe pela condenação em valor cujo apuramento seja relegado para incidente de liquidação prévio à execução de sentença – art. 661.º, n.º 2, do CPC – pois que uma tal possibilidade está reservada para situações caracterizadas pela mera ausência de elementos suficientes para determinar o montante em dívida e não para apuramento de factos que podem revelar-se verdadeiramente constitutivos do direito».
Atento o exposto e o teor da decisão em análise, entendemos que o seu dispositivo não abarca a indemnização prevista no artigo 393.º do CT e que a notificação referida no ponto 6 dos factos aqui julgados provados teve em vista, para além mais, a reclamação dessa indemnização.
Maiores dúvidas se podem suscitar a respeito do alcance da al. c), do dispositivo da mesma sentença, onde se condena a entidade empregadora a pagar à autora as «demais prestações, vincendas, à razão de 577 € mensais, desde 30-07-2011, até trânsito em julgado desta sentença caso este seja posterior àquela data».
Tendo em conta que, em bom rigor, os proporcionais do subsídio de férias e de natal são retribuição (cfr. artigos 160.º, n.º 4, e 258.º, do CT), a condenação em prestações vincendas da retribuição mensal pode ser entendida como abrangendo tais proporcionais.
Mas, no caso concreto, a questão não é linear. Já vimos que a al. a) do dispositivo da sentença em análise se refere apenas à indemnização prevista no artigo 391.º do Código do Trabalho. Por sua vez, a al. b) refere-se, expressamente, às «retribuições vencidas desde 30-04-2011 (data do despedimento) até ao trânsito em julgado desta sentença, cujo valor perfaz, até 30-07-2011, o valor de 1 713 €». Ora, este valor é exactamente igual ao mencionado na al. a), o qual corresponde, como vimos, a três meses de retribuição base e diuturnidades (embora padeça de um erro de cálculo, visto que 3 x 577 € perfaz 1731 € e não 1713 €), o que nos leva a concluir que não inclui os proporcionais dos subsídios de férias e de natal. Mas o mesmo sucede com a al. c), que se refere às demais prestações vincendas, desde 30.07.2011 até ao trânsito em julgado da sentença, à razão de 577 € mensais, ou seja, abarcando apenas retribuição base e diuturnidades e não os proporcionais dos subsídios de férias de Natal.
Diferentemente do que sucede com estes, tem-se entendido que os proporcionais de férias não são retribuição, não obstante a presunção do n.º 3, do citado artigo 258.º, pois visam compensar o trabalhador pelo período de férias que não gozará no ano seguinte à cessão do contrato, a que teria direito em função do tempo em que o contrato vigorou no ano da sua cessação (cfr. artigos 237.º, n.ºs 1 a 3, 240.º e 245.º do CT). Muito embora este último artigo use a expressão “direito a receber a retribuição de férias”, o que a lei prevê é uma substituição do direito a gozar férias que ficou impossibilitado pela cessação do contrato de trabalho pelo direito a receber uma compensação monetária, a calcular proporcionalmente, nos termos do artigo 245.º, n.º 1, do CT.
Em suma, admitindo que esta conclusão possa ser discutível, dada a natureza técnica e controversa do conceito de retribuição – sendo mesmo uma das matérias mais discutidas no âmbito do direito do trabalho –, entendemos que também os valores pedidos nesta acção a título proporcionais de férias e de subsídio de férias e de Natal, não foram reconhecidos na sentença a que alude o ponto 5 dos factos provados.
Assim, ao contrário do que concluiu o tribunal a quo, entendemos que a autora não pediu nesta acção a condenação dos réus no pagamento de qualquer quantia já reconhecida no processo referido no ponto 5 dos factos provados.
Em todo o caso, como decorre do exposto, esta é uma questão essencialmente técnico-jurídica que, por essa razão, não é susceptível de análise à luz conceito de má-fé processual. Como se escreve na própria sentença recorrida e é generalizadamente aceite, a má-fé processual não opera no domínio da interpretação e aplicação das regras do direito, mas tão só no domínio dos factos.
Argumenta-se ainda na decisão recorrida que a autora procurou cobrar ao réu o valor dos seus créditos, bem sabendo que nunca o iria receber da entidade patronal ou do Fundo de Garantia Salarial (considerando a data da cessação do contrato de trabalho e a data em que instaurou o processo de insolvência).
Mas a verdade é que a autora não pediu a condenação do réu no pagamento da totalidade dos créditos que não logrou cobrar à entidade patronal ou receber do Fundo de Garantia Salarial, mas apenas aqueles que considerou não terem sido reconhecidos na sentença referida no ponto 5 dos factos provados por circunstâncias imputáveis ao réu.
Totalmente distinta destas é a questão de saber se o facto omissivo do réu, violador das suas obrigações enquanto patrono nomeado, importou algum dano para a autora (tendo o Tribunal a quo considerado que não, sendo certo que, nesta parte, a decisão já transitou em julgado), tendo em conta a impossibilidade, invocada na decisão recorrida, de cobrar os créditos que não foram reconhecidos na sentença laboral antes analisada.
Mas também está é uma questão essencialmente técnico-jurídica, que não pode ser analisada à luz do conceito de má-fé processual.
Em todo o caso, perante a factualidade apurada, em especial perante o teor da decisão disciplinar referida no ponto 8 dos factos provados, não vemos como se possa defender que a autora deduziu, com dolo ou negligência grave, uma pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar.
Como se escreve na sentença recorrida, «[o] que importa é que exista uma intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas imprudência (má fé em sentido ético), não bastando a imprudência, o erro, a falta de justa causa, é necessário o querer e\o saber que se está a actuar contra a verdade ou com propósitos ilegais».
Ora, tendo a autora sido notificada da decisão da Ordem dos Advogados que aplicou ao réu uma pena disciplinar, afirmando que, «[p]or força da inércia do Sr. Advogado arguido [aqui réu], a Participante [aqui autora] viu-se impedida de peticionar tais créditos, tendo sido prejudicada no montante correspondente a 3 meses de salário, ou seja, Eur. 1.731,00 (Eur. 577,00 x 3)», não cremos que se possa afirmar que, ao demandar o autor com fundamento na perda de chance processual, estivesse ou devesse estar consciente da falta de fundamento da sua pretensão, ou seja, que tivesse agido com dolo ou negligência grave.
Esta falta de dolo ou negligência grave acaba por ser corroborada pela circunstância de a autora, tanto na execução referida no ponto 9 dos factos provados, como na insolvência referida no ponto 11 dos factos provados, ter invocado apenas os créditos reconhecidos na sentença referida no ponto 5 dos factos provados, não tendo invocado igualmente os créditos que, por inércia do réu, não foram peticionados na sequência da notificação referida no ponto 6 dos factos provados.
Como se afirma nos acórdãos do STJ de 14.03.2002 e 15.10.2002, citados no ac. do TRP de 20.10.2009 (https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2009:30010.A.1995.P1, rel. João Ramos Lopes), a afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para se concluir pela sua verificação, exigindo-se neste juízo uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva serena da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má fé».
No mesmo sentido, afirma-se o seguinte na própria decisão recorrida: «Exige-se para a condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a atuação dolosa ou gravemente negligente da parte, demonstrando-se nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, litigando de modo desconforme ao respeito devido ao tribunal e às partes».
No caso concreto, pelas razões expostas, entendemos que o processo não fornece elementos de onde se possa extrair com segurança a litigância de má-fé da autora, pelo que não pode subsistir a condenação aqui impugnada.
Revogando tal condenação, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas pela recorrente, nomeadamente a determinação da respectiva multa e a quantificação da idemnização que seria devida ao réu.
Na total procedência da apelação, as respectivas custas serão suportadas pelo recorrido, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida na parte em que condenou a autora AA como litigante de má-fé, na multa de 3 UC e numa indemnização a pagar ao Réu BB, no valor de 250,00 €.
Custas pelo recorrido.
Registe e notifique.
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Porto, 19 de Novembro de 2024
Relator: Artur Dionísio Oliveira
Adjuntos: Maria Eiró
João Proença