DECISÃO SURPRESA
Sumário

Tendo o juiz, em decisão intercalar, considerado que o ónus da prova do pagamento competia ao Réu e, por esse motivo, indeferido o requerimento de junção de prova tendente a provar o não pagamento, constitui uma decisão surpresa a sentença que julga a acção improcedente porquanto, havendo declaração confessória do recebimento do preço constante de escritura pública, o pagamento tem-se por provado, incumbindo à A. a prova do contrário.

(Da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 3
Processo: 6804/23.9T8VNG






ACÓRDÃO


RELATÓRIO (transcrição parcial do relatório da sentença)


AA intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra BB pedindo que o Réu seja condenado a pagar à Autora a quantia de € 52.159,96, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a propositura da ação até efetivo e integral pagamento.
Alegou para o efeito que, por escritura de cessão de quotas, outorgada em 11 de Maio de 2012, cedeu ao Réu uma quota em sociedade que identifica, mas que, apesar de ter feito constar da escritura que tinha recebido o valor de € 43.630,00, não recebeu tal valor nessa data, nem posteriormente.

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O Réu contestou, impugnando os factos alegados pela Autora, alegando a concretização do pagamento, em dinheiro, por exigência da Autora, no acto da escritura.
A Autora respondeu por articulado de 13.11.2023, que se dá por reproduzido.
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Foi dispensada a realização de audiência prévia nos termos do despacho proferido a 16.01.2024.
Foi proferido despacho saneador onde identificado o objecto do litígio e fixados os temas de prova - pagamento do preço declarado na escritura de cessão de quotas outorgada em 11 de Maio de 2012, pela cessão da quota da Autora na sociedade “A..., Lda.” ao Réu.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância das legais formalidades legais, como resulta da respetiva acta.

Foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente.

RECURSO

Não se tendo conformado com tal decisão, veio a A. AA interpor recurso.
Após as alegações apresenta as seguintes CONCLUSÕES
O presente recurso tem por objecto as seguintes questões:

A) A violação do caso julgado formal.
B) A violação do princípio do contraditório.
C) Contradição entre os factos.

A) A violação do caso julgado formal

2- Por requerimento de 29-01-2024, a Autora requereu o seguinte: «2- Mantém a prova documental requerida na PI, acrescentando a seguinte que julgamos ser útil para apuramento da situação financeira do Réu à data dos factos: - Para prova do alegado nos artigos 3 e 4 da PI, requer-se a notificação do Réu para, em 10 (dez) dias, juntar aos autos os extractos bancários de Abril e Maio de 2012 de todas as suas contas de depósitos bancários- artigos 417.º, n.º 1 e 429.º, n.º 1, ambos do CPC».
3- Por despacho de 7-03-2024, o Tribunal a quo pronunciou-se nos seguintes termos: «Indefere-se o requerido pela Autora na petição inicial e a 29.01.2024 quanto à notificação do Réu para juntar documentos comprovativos do pagamento do preço e extrato bancário do mesmo, uma vez que a matéria a que estes respeitam contende com factos do ónus da prova do Réu (o pagamento do preço), a este cabendo, dentro da sua estratégia processual, decidir da forma como deve provar os factos em questão, sobre ele impendendo o risco de conseguir ou não provar tais factos - cf. artigo 342º do Código Civil».
4- Desse modo, o despacho que rejeitou a prova documental requerida pela Autora teve por fundamento o facto de pertencer ao Réu o ónus da prova no processo (pagamento do preço).
5- E, por tal razão, a Autora não apresentou recurso de apelação previsto no art. 644.º, n.º 2, alínea d) do CPC (pelo que o referido despacho transitou em julgado) e a partir daí, especialmente na audiência final, pautou toda a actuação processual norteada pelo sobredito despacho, tendo, de resto, prescindido da inquirição das duas testemunhas que tinha arrolado.
6- Foi, por isso, com enorme surpresa que notificada da sentença a Autora constatou que da mesma resultava o oposto do exarado no citado despacho em termos de imputação de ónus da prova.
7- De facto, a sentença recorrida chega a dizer que: «De facto, impor ao Réu o ónus da prova de que pagou o preço seria esvaziar de a força da declaração confessória da Autora (de que já o recebeu), tornando inútil tal declaração prestada em documento autêntico».
8- Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª Ed., Lex, 1997, pág. 567, refere que: «o caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão deste órgão».
9- E segundo o mesmo autor (ob. cit., pág. 578): «Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto os pressupostos daquela decisão» (destaque nosso).
10- Temos, pois, por inequívoco que o caso julgado formal do despacho de 7-03-2024 abrange a sua fundamentação, ou seja, de que é o Réu que tem de fazer prova do pagamento do preço devido pela cessão de quota.
11- O caso julgado formal, por oposição ao caso julgado material, que se constitui sobre uma sentença ou despacho saneador que aprecie o mérito da causa, restringe-se às decisões que apreciem unicamente matéria de direito adjetivo ou processual, ou seja não dispondo sobre os bens ou direitos litigados.
12- Do caso julgado decorrem dois efeitos essenciais: a impossibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que proferiu a decisão, voltar a emitir pronúncia sobre a questão decidida - efeito negativo - e a vinculação do mesmo tribunal e eventualmente de outros, estando em causa o caso julgado material, à decisão proferida - efeito positivo do caso julgado- cfr., entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-10-2015 (relatora: Maria Domingas Simões) e do Tribunal da Relação do Porto de 24-09-2018 (relator: Jorge Seabra). disponíveis em www.dgsi.pt.
13- Termos em que a sentença deve ser revogada por violação do caso julgado (art. 620.º do CPC) e, por arrastamento, devem transitar para os Factos Provados os n.º 1 e 2 dos Factos Não Provados, condenando-se o Réu na integralidade do pedido, ou, caso se entenda não ser possível essa alteração à resposta à matéria de facto, deve o processo baixar à 1.ª instância para prolação de nova sentença que respeite o caso julgado formal do despacho supra aludido de 7-03-2024.
Para a hipótese de assim não se entender:
B) A violação do princípio do contraditório.
14- Com o princípio do contraditório quer-se impedir que as partes possam ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções inesperadas, por não discutidas no processo.
15- Pretende-se, pois, proibir as decisões surpresa.
16- Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-11-2012, relator: José Avelino Gonçalves, publicado em www.dgsi.pt).
17- No caso que nos ocupa, afigura-se-nos que, no mínimo, existia o dever de audição prévia da Autora relativamente à (re)apreciação pelo Tribunal da temática do ónus da prova e os efeitos que daí poderiam resultar para a prova documental requerida pela Autora através do seu requerimento de 29-01-2024.
18- Efectivamente, a Autora em face do despacho de 7-03-2024 não podia contar que o Tribunal pudesse vir a apreciar e decidir a causa nos termos constantes da sentença proferida.
19- Por conseguinte, parece-nos claro que o Tribunal gerou na Autora a legítima e fundada confiança e expectativa de que o destino da acção passaria pelo sucesso ou insucesso da prova apresentada pelo Réu.
20- Não tendo o julgador que presidiu ao julgamento advertido a Autora de que considerava alterar a sua posição, não se pode deixar de concluir pela efectiva violação do princípio do contraditório, com influência na decisão da causa.
21- Assim, a não observância do contraditório, no sentido de não se ter concedido à Autora ao menos a possibilidade de se pronunciar sobre a inversão de posição do Tribunal quanto à questão do ónus da prova, na medida em que influi no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195.º do CPC.
22- Estando a decisão surpresa coberta por decisão judicial, como acontece na situação em apreço (a mesma só se revelou com a prolação da sentença recorrida), é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso.
23- Atento todo o exposto, dúvidas não restam que assiste razão à apelante neste particular, devendo julgar-se verificada a nulidade da sentença recorrida, por violação do princípio do contraditório.
24- A verificação da nulidade acima assinalada implica necessariamente a devolução dos autos à 1.ª instância para cumprimento do contraditório omitido, produção de prova adicional que venha a ser requerida pelas partes e proceder-se a nova audiência final.
25- De facto, a ser concedido provimento ao recurso nesta parte, deve também resultar a possibilidade de a Autora puder complementar os seus meios probatórios em face das regras do ónus da prova prevalecentes, pois como resulta do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6-02-2020 (relatora: Judite Pires): «IV- A prova plena obtida por meio de confissão extrajudicial produzida através de documento autêntico não nega ao declarante a possibilidade de, por outro meio probatório, demonstrar que o ali declarado não é verdadeiro e que não corresponde à sua vontade ou que esta foi afectada por qualquer vício do consentimento – erro, dolo, coacção, simulação, etc.».
26- E, naturalmente, à Autora não pode ser coarctado esse direito.
Para a hipótese de assim não se entender:
C) Contradição entre os factos
27- Consta do Ponto 9 dos Factos Provados que «O Réu e seu pai, estavam habituados a lidar, no dia-a-dia, com grandes quantias de dinheiro», ao passo que do Ponto 5 dos Factos Não Provados resulta que «Autora e Réu cresceram no ambiente ligado aos negócios, estando habituados a lidar, no dia-a-dia, com grandes quantias de dinheiro» e em 6 que «As partes tinham em seu poder avultadas quantias em dinheiro, quer fosse para a gestão dos diversos negócios, quer fosse para a sua vida particular».
28- Ou seja, quer se deu por provado que o Réu estava habituado a lidar no dia a dia com grandes quantias de dinheiro como o seu contrário.
29- Na fundamentação, apenas se colhe da sentença que o pai da Autora lidava com numerário: «As demais testemunhas relataram os negócios do pai de Autora e Réu, o ser habitual lidar com muitos capitais em numerário».
30- Desse modo, não é possível ao Venerando Tribunal da Relação do Porto sanar a invocada oposição entre Facto Provado e Factos Não Provados, devendo os autos baixar à 1.ª instância para suprimento desse erro ou vício da decisão de facto.


CONTRA-ALEGAÇÕES

O Réu BB veio contra-alegar, presentando as seguintes

CONCLUSÕES:
1. Analisado recurso da Autora/Recorrente verifica-se que esta restringe o seu recurso a três questões:
A) A violação do caso julgado formal.
B) A violação do princípio do contraditório.
C) Contradição entre os factos.
Isto posto,
A) Da violação do caso julgado formal:
2. A Autora/Recorrente através de requerimento de 29.01.2024 requereu o seguinte: “Mantém a prova documental requerida na PI, acrescentando a seguinte que julgamos ser útil para apuramento da situação financeira do Réu à data dos factos: -Para prova do alegado nos artigos 3 e 4 da PI, requer-se a notificação do Réu para, em 10 (dez) dias, juntar aos autos os extractos bancários de Abril e Maio de 2012 de todas as suas contas de depósitos bancários-artigos 417.º, n.º 1 e 429.º, n.º 1, ambos do CPC”.
3. O objectivo da Autora/Recorrente com tal requerimento de prova era, como a própria explica, apurar a situação financeira do Réu nos meses de Abril e Maio de 2012.
4. O Réu/Recorrido, em sede de contraditório, por requerimento de 31.01.2024, pugnou pelo indeferimento;
5. Por despacho de 7-03-2024, o Tribunal a quo pronunciou-se nos seguintes termos:
“Indefere-se o requerido pela Autora na petição inicial e a 29.01.2024 quanto à notificação do Réu para juntar documentos comprovativos do pagamento do preço e extrato bancário do mesmo, uma vez que a matéria a que estes respeitam contende com factos do ónus da prova do Réu (o pagamento do preço), a este cabendo, dentro da sua estratégia processual, decidir da forma como deve provar os factos em questão, sobre ele impendendo o risco de conseguir ou não provar tais factos -cf. artigo 342º do Código Civil”.
6. Tal despacho transitou em julgado, dado que a conformou-se com o mesmo, pois não apresentou recurso, no prazo de 15 dias, em separado - al. d), do n.º 2 e n.º 3 do artigo 644.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 638.º e n.º 2 do artigo 645.º, todos do C.P.C.
7. O Tribunal a quo usou como fundamento para indeferir o requerimento da Autora, o facto de considerar que o ónus da prova quanto ao pagamento do preço é do Réu, cabendo a este, dentro da sua estratégia processual, decidir da forma como deve provar os factos em questão, sobre ele impendendo o risco de conseguir ou não provar tais factos - cf. artigo 342º do Código Civil.
8. De facto o ónus probatório do pagamento do preço da cessão da quota cabia ao Réu/Recorrente e este fez a prova precisamente através do documento autêntico – escritura pública – junta aos autos. (arts. 358.º, n.os 1 e 2 do CC).
9. Sinceramente, não vemos sequer como possível que o despacho de 07.03.2024 tenha condicionado a actuação da Autora/Recorrente;
10.Relativamente às testemunhas, as mesmas conforme Acta de julgamento de 09.05.2024 não compareceram à audiência compareceram em Tribunal no dia de julgamento e como eram a apresentar, nem sequer iam ser ouvidas, tendo sido essa a razão pela qual a Autora/Recorrente prescindiu das suas testemunhas – vide acta e P.I.
11.Mais, em rigor a prova testemunhal apresentada pela Autora/Recorrente seria sempre inócua e não teria qualquer relevância, isto porque é jurisprudência dos tribunais superiores, com base no defendido pelo Prof. Vaz Serra, que só quanto existir um princípio de prova por escrito, que tornem verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória, é que ficará aberta a possibilidade de complementar esse circunstancialismo, mediante testemunhas, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração, ou seja, no caso, a prova de onde resulte não corresponder à realidade o afirmado recebimento do preço.
12.Ora no caso concreto não existia, nem existe, nos autos qualquer documento que possa configurar um começo de prova que pusesse em causa a declaração confessória – escritura pública – pelo que não se poderia admitir a prova testemunhal, razão pela qual as testemunhas da Autora não teriam a virtualidade de por em causa o conteúdo escritura pública, não podendo servir de prova.
13.A acção judicial intentada pela Autora/Recorrente estava desde início condenada ao insucesso, pois a Autora na sua P.I. não se dignou sequer a alegar um único facto susceptivel de justificar a falsidade da escritura pública, nem sequer alegou qualquer facto integrativos de falta ou de vício da vontade que determinasse a nulidade ou anulação da confissão.
14.Pelo que, não tendo a Autora alegado (muito menos provado) a falsidade da escritura pública, nem os elementos integradores da falta ou vício da vontade, a acção não podia, nem pode, proceder.
15.Por outro lado, como resulta claramente da douta Sentença o Tribunal a quo não só considerou que era o Réu/Recorrente quem tinha o ónus da prova do pagamento do preço, como indicou (e muito bem) qual o meio de prova existente nos autos – escritura pública.
B) Da violação do princípio do contraditório.
16.Alega a Autora/Recorrente que o Tribunal a quo violou o princípio do contraditório, pois proferiu uma decisão (sentença) surpresa dado que relativamente à temática do ónus da prova existe contradição entre o seu despacho de 07-03-2024 e o teor da sentença.
17.É mentira que o despacho proferido pelo Tribunal a 07.03.2024 esteja em contradição com a sentença, no que respeita à temática o ónus da prova. 18.Pelo contrário, como supra deixamos claro o fundamento usado pelo Tribunal a quo para indeferir o requerimento de prova da Autora, não só resulta da Lei e da Jurisprudência, como é replicado em sede de Sentença.
19.Assim, não existiu qualquer surpresa na sentença proferida.
20.O que a Autora/Recorrente parece esquecer, ou não querer aceitar, é o que resulta claramente da Lei a respeito da confissão de factos que lhe são desfavoráveis, Lei essa que foi devidamente aplicada, na decisão final, pelo Tribunal a quo, conforme resulta da sentença: artigo 352º do Código Civil nos artigos 355º/1 e 4 e 358º/1 e 2, do Código Civil.
21.Assim, atendendo a que no caso dos autos a Autora/Recorrente declarou, numa escritura pública em que foi interveniente o Réu/Recorrido, que recebeu o preço devido pela cessão da quota que declarou ceder ao Réu/Recorrido, esta declaração tem carácter de confissão extrajudicial e, em consequência, tem força probatória plena nos termos do disposto no artigo 358º/2, do Código Civil.”
22.Assim, evidentemente que não existiu por parte do Tribunal a quo qualquer violação do princípio do contraditório.
C) Da Contradição entre os factos.
23.A Autora/Recorrente entende que existe contradição na decisão recorrida entre o facto 9 dos factos provados e o facto 5 e 6 dos factos dados como não provados, e que por isso o processo terá que baixar à 1.ª instância para suprimento desse erro ou vicio da decisão de facto.
24.Os factos em causa não são factos essenciais, nem sequer são factos que possam ter qualquer influência da decisão final ao ponto de qualquer alteração ser capaz de alterar a decisão final.
25. A Autora/Recorrente no seu recurso não impugnou os factos dados como assentes pelo Tribunal a quo, factos esse que por si só levam à total improcedência da acção e à consequente improcedência do recurso.
Seja como for,
26. Os pontos 8 e 9 dos factos provados referem-se exclusivamente ao Réu/Recorrido e ao pai da Autora e do Réu, nunca se referem à própria Autora/Recorrida.
27.A prova de tais factos baseou-se nas declarações das partes e na prova testemunhal - vide sentença.
28. Por outro lado, os factos 5 e 6 dados como não provados referem-se à Autora/Recorrente, pelo que não existe qualquer contradição entre os factos dados como provados e os factos dados como não provados, visto que não consta dos factos provados que que a Autora/Recorrente estivesse ligada aos negócios nem que estivesse habituada a ter grandes quantidades de dinheiro.
29. Nem sequer se verifica qualquer incompatibilidade absoluta entre os factos dados como provados e os factos dados como não provados.
30.Todavia, resulta da Jurisprudência que só existe contradição entre factos quando eles se mostrem absolutamente incompatíveis entre si, de tal modo que não possam coexistir entre si, sendo certo que se vem entendendo que essa incompatibilidade deve existir entre os próprios factos provados e já não em relação aos factos dados como não provados, pois que em que relação a estes tudo se deve passar como se na verdade não tivessem sido alegados (vide, por todos, Ac. da RC de 22/02/2000, in “CJ, Ano XXV, T1 – 29”; Ac. do STJ de 22/02/2000, in “Sumários, nº. 38º - 22”; Ac. do STJ de 08/02/2000, in “Sumários, nº. 38º - 14”; e Ac. da RC de 26/05/1992, in “BMJ, nº. 417 – 835”. – proferidos no domínio do anterior CPC mas cuja doutrina continua plenamente válida à luz do atual CPC).
31. Mas mesmo que se considere que nessa contradição podem envolver-se também os factos dados como não provados, ou seja, as respostas de que resultaram factos provados e não provados, compulsando factualidade provada inserta os pontos 8 e 9 e aquela outra dada como não provada plasmada nos pontos 5 e 6, é, a nosso ver, patente não existir, só por si, qualquer contradição entre ela, muito menos que ela seja absoluta.
32. Sendo que, as alegações e conclusões da recorrente não podem proceder, devendo, em consequência, ser mantida a sentença proferida pelo Tribunal a quo, pois a mesma não padece de quaisquer vícios, nem viola qualquer normativo legal.
Termos em que deve ser julgado improcedente o recurso.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.


DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil.
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, as questões a decidir prendem-se com:
A violação do caso julgado formal.
A violação do princípio do contraditório.
Contradição entre os factos.


FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto
1. Factos provados
Por escritura pública de cessão de quota, outorgada no dia 11 de maio de 2012, a Autora declarou ceder ao Réu, por preço igual ao nominal, uma quota no valor nominal de € 43.630,00 do capital social da sociedade comercial por quotas denominada “A..., Lda.”, NIPC ...98, com sede no Lugar ..., ..., da freguesia ..., concelho .... (Documento nº 1 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido).
Na mesma escritura declarou já ter recebido o preço, no valor de € 43.630,00.
Autora e Réu são irmãos. (cf. assentos de nascimento juntos aos autos com requerimento de 14.02.2024, que se dão por reproduzidos)
O relacionamento entre os irmãos em finais do ano de 2011 e durante o ano de 2012 eram conturbado.
Nessa altura, as partes pouco falavam, existindo um clima de desconfiança entre ambos.
Dada a pouca comunicação existente entre as partes, o negócio em causa foi celebrado com a intermediação do pai de ambos, BB.
A Autora é pessoa com habilitações académicas superiores e com formação e conhecimentos na área de economia e contabilidade.
O pai de Autora e Réu era, à data, comerciante ligado à área de compra e venda de madeiras e à área agrícola.
O Réu e seu pai, estavam habituados a lidar, no dia-a-dia, com grandes quantias de dinheiro.
A Autora, até à propositura da ação não interpelou o Réu ao pagamento da quantia peticionada nos autos.
No decurso do ano 2017, em virtude do falecimento do pai de ambos no ano anterior, as partes realizaram a partilha de bens das heranças abertas por óbito dos seus pais. (cf. escritura de partilha e de retificação juntas aos autos com requerimento de 31.01.2024, que se dão por reproduzidas)
Autor e Réu são os únicos herdeiros legítimos de seu pai BB. (cf. escritura de habilitação junta aos autos com requerimento de 31.01.2024, que se dá por reproduzida).
O Réu pretendia que a Autora deixasse de ter qualquer ligação à sociedade A..., Lda..
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2. Factos não provados:
O preço de € 43.630,00 devido pela cessão da quota não foi pago à Autora.
É falsa a declaração contida na escritura pública de cessão de quota, outorgada no dia 11 de maio de que a Autora já recebeu o preço.
Os atritos entre as partes agudizaram-se em virtude do falecimento da mãe de ambos e da partilha dos bens por esta deixados.
Uma das exigências da Autora para que o negócio fosse concretizado foi a de que o preço da quota fosse totalmente liquidado pelo Réu em dinheiro.
Autora e Réu cresceram no ambiente ligado aos negócios, estando habituados a lidar, no dia-a-dia, com grandes quantias de dinheiro.
As partes tinham em seu poder avultadas quantias em dinheiro, quer fosse para a gestão dos diversos negócios, quer fosse para a sua vida particular.
Só pelo facto descrito em 14. dos factos provados o Réu aceitou as condições da Autora.
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O DIREITO

A violação do caso julgado formal
Na sequencia do requerimento apresentado pela Autora “Mantém a prova documental requerida na PI, acrescentando a seguinte que julgamos ser útil para apuramento da situação financeira do Réu à data dos factos: - Para prova do alegado nos artigos 3 e 4 da PI, requer-se a notificação do Réu para, em 10 (dez) dias, juntar aos autos os extractos bancários de Abril e Maio de 2012 de todas as suas contas de depósitos bancários- artigos 417.º, n.º 1 e 429.º, n.º 1, ambos do CPC»., a Sr.ª Juiz proferiu a seguinte despacho” «Indefere-se o requerido pela Autora na petição inicial e a 29.01.2024 quanto à notificação do Réu para juntar documentos comprovativos do pagamento do preço e extrato bancário do mesmo, uma vez que a matéria a que estes respeitam contende com factos do ónus da prova do Réu (o pagamento do preço), a este cabendo, dentro da sua estratégia processual, decidir da forma como deve provar os factos em questão, sobre ele impendendo o risco de conseguir ou não provar tais factos - cf. artigo 342º do Código Civil».

Alega a Autora que o despacho que rejeitou a prova documental por si requerida teve por fundamento o facto de pertencer ao Réu o ónus da prova no processo (pagamento do preço). Por tal razão a Autora não apresentou o recurso de apelação previsto no art. 644.º, n.º 2, alínea d) do CPC, pelo que o referido despacho transitou em julgado.
Ao ser notificada da sentença a Autora constatou que da mesma resultava o oposto do exarado no citado despacho quanto à questão do ónus da prova.
Na sentença chega a dizer-se “impor ao Réu o ónus da prova de que pagou o preço seria esvaziar de a força da declaração confessória da Autora (de que já o recebeu), tornando inútil tal declaração prestada em documento autêntico».
Diz a A. que o caso julgado formal do despacho de 7-03- 2024 abrange a sua fundamentação, ou seja, de que o Réu é que tem de fazer prova do pagamento do preço devido pela cessão de quota.
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O R., por seu turno, diz que tal despacho transitou em julgado, dado que a Autora conformou-se com o mesmo, pois não apresentou recurso, no prazo de 15 dias, em separado - al. d), do n.º 2 e n.º 3 do artigo 644.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 638.º e n.º 2 do artigo 645.º, todos do C.P.C.
O Tribunal a quo usou como fundamento para indeferir o requerimento da Autora, o facto de considerar que do ónus da prova quanto ao pagamento do preço é do Réu, cabendo a este, dentro da sua estratégia processual, decidir da forma como deve provar os factos em questão, sobre ele impendendo o risco de conseguir ou não provar tais factos - cf. artigo 342º do Código Civil.
De facto o ónus probatório do pagamento do preço da cessão da quota cabia ao Réu/Recorrente e este fez a prova precisamente através do documento autêntico – escritura pública – junta aos autos. (arts. 358.º, n.os 1 e 2 do CC). Não vê o R. como possível que o despacho de 07.03.2024 tenha condicionado a actuação da Autora/Recorrente; Relativamente às testemunhas, as mesmas conforme Acta de julgamento de 09.05.2024 não compareceram à audiência no dia de julgamento e como eram a apresentar, nem sequer iam ser ouvidas, tendo sido essa a razão pela qual a Autora/Recorrente prescindiu das suas testemunhas – vide acta e P.I. A prova testemunhal apresentada pela Autora/Recorrente seria sempre inócua e não teria qualquer relevância, isto porque é jurisprudência dos tribunais superiores, com base no defendido pelo Prof. Vaz Serra, que só quanto existir um princípio de prova por escrito, que tornem verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória, é que ficará aberta a possibilidade de complementar esse circunstancialismo, mediante testemunhas, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração, ou seja, no caso, a prova de onde resulte não corresponder à realidade o afirmado recebimento do preço. Ora no caso concreto não existia, nem existe, nos autos qualquer documento que possa configurar um começo de prova que pusesse em causa a declaração confessória – escritura pública – pelo que não se poderia admitir a prova testemunhal, razão pela qual as testemunhas da Autora não teriam a virtualidade de por em causa o conteúdo escritura pública, não podendo servir de prova.

APRECIANDO
O caso julgado tanto designa a qualidade de imutabilidade da decisão judicial que transitou em julgado, como o conjunto dos efeitos jurídicos que têm o transito em julgado da decisão judicial por condição.
Diz-se que a decisão transitou em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação (cf. artigo 628.º 1 ). Trata-se, por conseguinte, de uma qualidade formal ou externa ao próprio teor da decisão. Nas decisões proferidas na sequência de um pedido ou requerimento podemos distinguir, em razão do seu sentido, entre caso julgado positivo e caso julgado negativo.
A imutabilidade da decisão permite que esta alcance uma estabilidade, ou seja, uma continuidade, na emissão dos respetivos efeitos jurídicos.
Alcançada a qualidade de imutabilidade, o enunciado constante da decisão passa a ter “força obrigatória” dentro do processo (cf. artigo 620.º, n.º 1, sem prejuízo dos despachos do artigo 630.º ressalvadas pelo respetivo n.º 2) e (também) fora dele, quando julgue do mérito da causa. Note-se que este diferente âmbito do caso julgado tem, pois, que ver com o objeto da decisão e corresponde, respetivamente, ao caso julgado formal e ao caso julgado material .
A força obrigatória desdobra-se numa dupla eficácia, designada por efeito negativo do caso julgado e efeito positivo do caso julgado. O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem. O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior.
Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veritate habetur. Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão. Neste sentido, veja-se o Ac. do TRG de 07-08-2014/Proc. 600/14TBFLG.G1 (JORGE TEIXEIRA) enunciou que os “efeitos do caso julgado material projectam-se no processo subsequente necessariamente como excepção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento a decisão de idêntico objecto posterior, ou como autoridade de caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação a decisão do distinto objecto posterior”; identicamente, veja-se o Ac. do TRG de 17-12-2013/Proc. 3490/08.0TBBCL.G1 (MANUEL BARGADO). Explicado de outro modo, enquanto com o efeito negativo um ato processual decisório anterior obsta a um ato processual decisório posterior, com o efeito positivo um ato processual decisório anterior determina (ou pode determinar) o sentido de um ato processual decisório posterior. A exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º, dá expressão legal ao efeito negativo do caso julgado. No plano constitucional, o seu fundamento é o princípio da segurança jurídica, ínsito ao Estado de Direito, do artigo 2.º da Constituição Portuguesa, à semelhança do que vimos suceder com o trânsito em julgado. A ocorrência da exceção de caso julgado supõe uma particular relação entre ações judiciais: uma relação de identidade entre os sujeitos e os objetos de duas causas. Em termos lógicos, pressupõe-se, então, a “repetição de uma causa”, conforme enuncia o artigo 580.º, n.º 1..
cfr. Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Rui Pinto (Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.), revista Julgar online, Novembro de 2018.

Ora, a tríplice identidade exigida para a afirmação da ocorrência do caso julgado, não existe nos presentes autos.
Não obstante nas duas decisões ser invocado o ónus da prova, o certo é que, de forma manifesta, podemos afirmar que a pretensão processual no primeiro e no segundo momento não é idêntica.
Deste modo e sem necessidade de mais considerações, improcede, nesta parte, o recurso.
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Da violação do princípio do contraditório.
Tal como preceitua o artigo 3º nº 3 do CPC “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Como se pode ler no sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 06-07-2023, tirado no processo 248/19.4T8FNC.L1-6 “ 1. Cabe ao juiz, por imposição do artº 3º, do CPC, respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa. 2.–Por decisão - surpresa deve entender-se aquela que envereda por solução dada a questão relevante para a decisão da causa e que, embora naturalmente previsível, não foi em todo o caso configurada pela parte, e sem que a mesma tivesse obrigação de a prever, maxime porque não deduziu a parte contrária qualquer oposição. 3.–Tendo o julgador considerado admitidos por acordo todos os factos alegados na petição inicial, em razão de ausência de contestação, é compreensível que tenha o demandante criado fundada expectativa de que a pretensão que deduziu viesse a ser atendida. 4.–Em razão do referido em 5.3., mais sentido faz [maxime porque em causa está uma questão que não foi discutida pelas partes e que ademais esteve na base da decisão de improcedência da acção] sem previamente ouvir o demandante sobre questão susceptível de, ainda assim, e segundo solução plausível da questão de direito, conduzir à improcedência da Açcão..

No despacho de 07-03-2024 a Sr.ª Juiz diz o seguinte. “«Indefere-se o requerido pela Autora na petição inicial e a 29.01.2024 quanto à notificação do Réu para juntar documentos comprovativos do pagamento do preço e extrato bancário do mesmo, uma vez que a matéria a que estes respeitam contende com factos do ónus da prova do Réu (o pagamento do preço), a este cabendo, dentro da sua estratégia processual, decidir da forma como deve provar os factos em questão, sobre ele impendendo o risco de conseguir ou não provar tais factos - cf. artigo 342º do Código Civil».
Na sentença recorrida a mesma Srª juiz escreveu:” Os factos provados sob os pontos 1., 2., 4., 12. e 13. dos factos provados resultam da escritura cessão de quotas, junta com a petição inicial, das escrituras de partilha e de habilitação, juntas com o requerimento de 31.01.2024 e dos assentos de nascimento juntos com o requerimento de 14.02.2024.
Os factos constantes do ponto 2. dos factos provados e 1. e 2. dos factos não provados resultam da força probatória que tem de ser atribuída à escritura de cessão de quotas e às declarações da mesma constantes.
No que se refere ao ónus da prova existem dois normativos que o regulam em termos gerais:
- o artigo 342º do Código Civil que estabelece que “1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita. 3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”;
- o artigo 344º/1, do Código Civil, há lugar à inversão do ónus da prova “quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.”.
Do primeiro destes normativos parece resultar que o ónus da prova do pagamento do preço devido pela cessão de quota incumbe ao Réu enquanto facto extintivo do direito invocado pela Autora.
No entanto, como resulta dos factos provados, as partes outorgaram escritura pública de cessão de quota no âmbito da qual a Autora declarou ceder ao Réu, por preço igual ao nominal, uma quota no valor nominal de € 43.630,00 do capital social da sociedade comercial por quotas denominada “A..., Lda.” e que já tinha recebido tal preço. Impõe-se, assim, analisar da força probatória da escritura pública de cessão quotas e abrangência da mesma.
Tal escritura, nos termos do disposto nos artigos 363º/1, 369º e 371º/1, do Código Civil, constitui um documento autêntico e, como tal, faz prova plena dos factos que sejam atestados pela entidade documentadora.
É entendimento uniforme que a força probatória material dos documentos autênticos se restringe aos factos praticados ou percecionados pela autoridade que emana os mesmos e não abrange a veracidade nem a validade das declarações emitidas pelas partes perante essa mesma autoridade. (cf. neste sentido o acórdão da RC, de 09.01.2018, proc. 8470/15.6T8CBR.C1, in www.dgsi.pt e Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, 4ª Ed., pg. 326/327, “o valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou contém no documento, mas somente aos factos que se referem como praticados pela autoridade (…) não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado”.
Como se refere no acórdão da RG, de 01.10.2013, proc. 894/11.4TBVCT.G1, in www.dgsi.pt, “A prova plena emergente das escrituras públicas resulta da fé pública que a lei atribui aos documentos autênticos, com base nas garantias de verdade emergentes da sua proveniência, o oficial público nomeado e fiscalizado no exercício das suas funções, também ele sujeito a requisitos e exigências fixados na lei. Mas a prova plena cinge-se aos factos praticados pelo documentador e os por ele atestados, dela estando arredada a veracidade desses factos, a sua validade e a sua eficácia jurídica, já que tais qualidades não estão ao alcance da perceção do notário ou oficial público. O documento prova, então, plenamente, que as partes fizeram ao documentador as declarações nele inscritas e que perante ele praticaram determinados atos de que ele se certificou ou podia certificar-se.”.
No mesmo sentido o acórdão da RP, de 22.10.2019, proc. 2619/18.4T8OAZ-A.P1, in www.dgsi.pt, que refere “No tocante à força probatória material do documento, ou seja, quanto às declarações ou narrações que contém, em primeiro lugar, o documento autêntico faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto, cfr. art.º 371.º n.º1, 1.ª parte, do C.Civil. (…) Depois, o documento autêntico prova plenamente os factos que se passaram na presença do documentador, ou seja, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções, cfr. art.º 371.º n.º 1, 1.ª parte, do C.Civil. Este ponto carece, porém de algumas precisões: o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondam ou reflictam a verdade. Ou seja, o documentador não dá fé da veracidade das declarações que os outorgantes lhe fizeram, limitando-se a garantir que eles as fizeram.”
No mesmo sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 12.10.2023, proc. 7227/18.7T8FNC.L1.S1 e de 10.11.2022, proc. 286/21.7T8LLE.E1.S1, também em in www.dgsi.pt. Do exposto resulta que, in casu, tal escritura faz prova plena de as partes terem comparecido no cartório e terem, perante notário, prestado as declarações que constam da escritura e, no que aqui releva, que a Autora declarou ceder ao Réu a quota pelo valor de €43.630,00 e que declarou já ter recebido esse preço.
No entanto, já não faz prova plena da veracidade do conteúdo das declarações prestadas, nomeadamente, do efetivo recebimento do preço pela Autora, sendo este, em princípio, passível de ser impugnado por qualquer meio de prova. Assim, a escritura pública celebrada entre as partes, só por si, não faz prova plena de que o preço foi recebido pela Autora, mas faz prova plena de que a Autora declarou ter recebido esse preço. O exposto não determina, no entanto, que a declaração da Autora não tenha efeito vinculativo e probatório. Esta declaração tem de ser analisada face ao regime estabelecido para a confissão.
Nos termos do disposto no artigo 352º do Código Civil a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. A atribuição de força probatória plena à confissão judicial e a algumas confissões extrajudiciais fundamenta-se na regra de experiência de que quem conhece um facto a si desfavorável e favorável à parte contrária fá-lo porque sabe que é verdadeiro. Neste sentido, Lebre de Freitas, in “A Confissão no Direito Probatório”, pgs. 160 e 187.
Como resulta do disposto nos artigos 355º/1 e 4 e 358º/1 e 2, do Código Civil, a confissão extrajudicial é admissível, tem de ser feita por modo diferente da confissão judicial e sendo feita em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena. Como resulta de forma clara da 2ª parte do artigo 358º/2, ao estabelecer que se a declaração confessória for feita à parte contrária ela tem força probatória plena relativamente aos factos admitidos. Neste caso, o valor probatório da confissão é pleno. Assim, atendendo a que no caso dos autos a Autora declarou, numa escritura pública em que foi interveniente o Réu, que recebeu o preço devido pela cessão da quota que declarou ceder ao Réu, esta declaração tem carácter de confissão extrajudicial e, em consequência, tem força probatória plena nos termos do disposto no artigo 358º/2, do Código Civil.
De facto, trata-se de declaração desfavorável à Autora e feita à parte contrária. Assim, in casu, a escritura pública, não fazendo prova do efetivo pagamento do preço, faz prova plena da confissão desse pagamento pela Autora, tendo de considerar-se confessado tal pagamento pela Autora.
Neste sentido o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.10.2023, onde se refere que “As declarações que os contraentes hajam produzido perante a entidade pública, designadamente o preço do imóvel e que o mesmo se encontra recebido são objecto de percepção e a realidade dessas afirmações, cabendo nas percepções do notário e implicando o reconhecimento de um facto que é desfavorável a quem o declara, é qualificado pelo artigo 352º do Código Civil como confissão. Trata-se de uma confissão extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355°, nºs 1 e 4, e 358°, n° 2 do Código Civil”. No mesmo sentido o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.11.2022.
No seguimento da mesma jurisprudência, entende-se que a força probatória desta confissão só pode ser ilidida pela alegação de falsidade da escritura onde ficou exarada a confissão extrajudicial ou por existência de vicio na declaração (artigos 372º/1 e 359º/1, do Código Civil), o que não se verificou no caso dos autos.
Por fim, acompanha-se os mesmos acórdãos do STJ citados no sentido de que, face ao disposto nos artigos 393º/2 e 358º/2, do Código Civil, não é admissível a prova testemunhal para demonstrar facto contrário ao confessado, a não ser que se verificasse principio de prova escrito ou confissão judicial do Réu, o que não se verificou no caso dos autos. (cf. os citados acórdãos do STJ).
Nos autos inexiste qualquer indício de prova de a Autora não ter recebido o preço devido pela cessão da quota ao Réu, nomeadamente, inexiste qualquer interpelação do Réu, por mais de 10 anos, para pagamento de tal quantia.
De facto, impor ao Réu o ónus da prova de que pagou o preço seria esvaziar de a força da declaração confessória da Autora (de que já o recebeu), tornando inútil tal declaração prestada em documento autêntico. Por todo o exposto, subsiste a validade e a eficácia confessória plena.”
Nb: bold da nossa autoria.
Como se pode ler no Acórdão desta Relação de 07.02.2023, tirado no processo 1330/19.3T8PRT.P1, “(…) De acordo com este regime legal, o valor probatório dos documentos particulares cuja letra e/ou assinatura sejam reconhecidas pela contraparte, nos termos previstos no artigo 374.º, n.º 1, do CC, releva em duas vertentes ou dimensões distintas, ainda que complementares, e com alcances diferenciados. O seu valor probatório formal, regulado no artigo 376.º, n.º 1, do CC, diz respeito ao conteúdo extrínseco do documento, isto é, à proveniência ou autoria do mesmo e, por conseguinte, à materialidade das declarações nele vertidas. O seu valor probatório material, regulado no n.º 2, do mesmo artigo 376.º, embora seja consequente ao referido valor probatório formal, diz respeito ao conteúdo intrínseco do documento, isto é, ao valor ou veracidade das referidas declarações. Como é fácil de ver, é este valor probatório material que se relaciona directamente com o thema probandum.
Ainda de acordo com o regime legal em análise, a força probatória plena (no sentido de que cede apenas mediante a prova do contrário, nos termos previstos no artigo 347.º do CC, por contraposição à prova bastante, que cede mediante contraprova, nos termos previstos no artigo 346.º do mesmo código, e à prova pleníssima, que não cede sequer perante a prova do contrário) dos documentos particulares, consagrada no artigo 376.º, n.º 1, do CC, opera apenas quanto o seu conteúdo extrínseco, só podendo ser contrariada pela arguição e prova da falsidade do documento, por via do incidente previsto no artigo 446.º do CPC. (..).
De acordo com esta norma, o valor probatório material dos factos documentados restringe-se aos que sejam desfavoráveis ao declarante, o que se compreende «porquanto, tratando-se de declarações de ciência, ninguém pode ser testemunha em causa própria e, tratando-se de declarações de vontade, ninguém pode constituir um título a seu favor» (Luís Filipe Pires de Sousa, cit., p. 171).
Na esteira do ac. do TRC de 10.05.2022, antes citado, cremos que esta norma consagra, antes de mais, uma presunção ilidível da veracidade dos factos desfavoráveis ao declarante. Como escreve Vaz Serra (RLJ, 110, p. 85), «[a] regra do n.º 2 do artigo 376.º constitui uma presunção fundada na regra de experiência de que quem afirma factos contrários aos seus interesses o faz por saber que são verdadeiros; essa regra não tem, contudo, valor absoluto, pois pode acontecer que alguém afirme factos contrários aos seus interesses apesar de eles não serem verdadeiros e que essa afirmação seja divergente da sua vontade ou se ache inquinada de algum vício do consentimento». (..) Como se afirma no ac. do TRG acima citado e está subjacente ao pensamento de Vaz Serra, a força probatória consagrada naquela norma «decorre do facto de se estar perante uma verdadeira confissão, daí que a mesma apenas se verifica em relação ao declaratário e não relativamente a terceiros, nos termos do artigo 358.º, 2 do CC». Citando Lebre de Freitas (A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, p. 56), afirma-se no mesmo acórdão que «o documento particular “não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objeto da sua perceção direta”, o âmbito da sua força probatória é mais restrito que a dos documentos autênticos. O âmbito dessa força probatória (resultante do n.º 2 do artigo 376.º do CC), não abrange o “problema da eficácia da declaração de ciência constante do documento enquanto meio de confissão dos factos”».
Nestes termos, sem prejuízo da já mencionada presunção de veracidade dos factos contrários aos interesses do declarante, cremos que a (eventual) consideração da prova plena destes factos deverá basear-se nas regras próprias da confissão enquanto meio de prova.
Note-se que esta questão não releva apenas no plano conceptual. É certo que tanto a presunção iuris tantum como a prova legal plena apenas são abaladas mediante prova do facto contrário, nos termos previstos nos artigos 350.º, n.º 2, e 347.º do CC, respectivamente. Mas são distintos os meios probatórios admissíveis para fazer essa prova do facto contrário, revelando-se a lei mais restritiva a respeito da prova plena, como veremos.
O artigo 352.º do CC define confissão como «o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária», acrescentando o artigo 355.º que esta pode ser judicial, quando é feita em juízo, ou extrajudicial, quando é feita de outro modo (n.ºs 1, 2 e 4).
Nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 2, do CC, «[a] confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena»(…)
Neste sentido, vide o já citado ac. do STJ de 29.09.2020, bem como o ac. do TRP, de 23.09.2021 (proc. n.º 100156/19.2YIPRT.P1, rel. Filipe Caroço), no qual, citando-se a jurisprudência do STJ, se escreve o seguinte: «“A solução legal compreende-se bem: desde que esteja estabelecida a autoria do documento, e nele se contenha uma declaração, feita ao declaratário, contrária ao interesse do declarante, tal declaração representa uma confissão do seu autor, pelo que a esse documento particular deve ser atribuído nas relações entre ambos, valor probatório pleno (art.º 352º e seguintes do Código Civil). Essa força probatória significa que os factos não carecem de outra prova para se terem como demonstrados, mas não implica que o declarante não possa impugnar a sua validade, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, precisamente como acontece com a declaração confessória (art.º 359º do Código Civil), e designadamente provando, por exemplo, que a declaração resultou de erro (cf. Prof. Vaz Serra, Provas, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 112, pág. 69, nota 800-a)”. Ou, como refere Vaz Serra, “nessa medida o documento pode ser invocado, como prova plena, pelo declaratário, contra o declarante”».
Já vimos que, nos termos do disposto no artigo 347.º do CC, a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto objecto da mesma, à semelhança do que sucede com as presunções judiciais. Mas, ao contrário destas, a prova legal plena nunca pode ser contrariada por meio de testemunhas ou presunções judiciais, atento o disposto nos artigos 351.º e 393.º, n.º 2, do CC, a não ser que apenas esteja em causa a simples interpretação do contexto do documento (cfr. artigo 393.º, n.º 3, do CC).
Porém, diversa doutrina e jurisprudência vem defendendo que, tratando-se de confissão com força probatória plena, o confitente apenas poderá impugnar tal prova plena demonstrando, cumulativamente, que o facto confessado não corresponde à verdade e que ocorrem os pressupostos que conduzem à nulidade ou anulabilidade da confissão, como decorre conjugação do disposto nos artigos 347.º (maxime a sua parte final) e 359.º, do CC. Neste sentido, Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pp. 101 e 104. No mesmo sentido parecem pronunciar-se Pires de Lima e Antunes Varela, Vaz Serra e Lebre de Freitas, citados no ac. do TRG antes referido.
Neste mesmo sentido se pronunciou o ac. do STJ, de 08.01.2019 (proc. n.º 3696/16.8T8VIS.C1.S1, rel. Ana Paula Boularot), onde se afirma que «o confitente não pode infirmar a força probatória da confissão com a simples prova que o facto confessado extrajudicialmente não corresponde à verdade, apesar do art.º 347.º do C. Civil dispor que a prova legal plena pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto. Isto porque a parte final deste preceito salvaguarda a possibilidade de existirem outras restrições especialmente previstas na lei. E uma dessas restrições especialmente previstas é precisamente a prova que resulta de uma declaração confessória. Esta só pode ser derrubada pelo reconhecimento da nulidade ou pela anulação judicial da confissão, por falta ou vícios da vontade, conforme prevê o art.º 359.º do C. Civil, o que inclui, necessariamente, a prova do contrário do que foi declarado».
Em contrapartida, tem-se entendido que a prova do vício da confissão – que naturalmente acarreta a prova da inveracidade do facto confessado – pode fazer-se por qualquer meio, incluindo prova testemunhal e por presunções judiciais, sem prejuízo do disposto nos artigos 244.º, n.º 2, 351.º e 394.º, n.º 2, a respeito do acordo simulatório e da reserva mental (sobre esta questão vide Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pp. 104 e seguintes, e a doutrina e jurisprudência aí citadas).
No âmbito deste debate, tem assumido alguma autonomia e destaque a questão de saber se a declaração confessória do recebimento do preço é impugnável e em que termos o é. Podemos encontrar uma resenha dos diferentes entendimentos preconizados a este respeito no ac. do TRG, de 10.07.2014 (proc. n.º 741/13.2TBVVD.G1, rel. Filipe Caroço) e na obra de Luís Filipe Pires de Sousa que vimos citando (pp. 106 e seguintes). (…) «entende-se que recai sobre o confitente o ónus da prova da inveracidade da declaração confessória, defrontando-se com as limitações ao nível do direito probatório material no que concerne à apresentação de prova testemunhal ou ao uso de presunções judiais (arts. 393.º, n.º 2, e 351.º), sendo que tais limitações apenas cedem quando exista outro meio de prova, maxime prova documental, que torne verosímil a inveracidade da declaração, servindo, então, a prova testemunhal ou o recurso a presunções judiciais como complemento dessa prova indiciária». Próximo deste, embora mais flexível ou abrangente, é o entendimento preconizado no acórdão acima citado – aparentemente com um alcance mais amplo do que sugere o enunciado desta “subquestão” –, em cujo sumário se pode ler o seguinte: «A doutrina e a jurisprudência têm divergido entre a possibilidade ou a impossibilidade da parte usar de prova testemunhal para a destruição dos efeitos da confissão, entendendo grande parte, porventura a maior parte, que essa prova deve ser admitida quando seja acompanhada de circunstâncias objetivas que tornem verosímil a convenção contrária ao documento que com ela se pretende demonstrar ou no caso de existir um começo de prova por escrito que a prova testemunhal vise completar».
Não vemos qualquer razão válida para cingirmos este debate à declaração confessória do recebimento do preço ou das tornas. Independentemente de a declaração incidir sobre estes ou outros factos desfavoráveis ao declarante, a sua força probatória rege-se pelas mesmas normas de direito probatório material, pelo que as soluções jurídicas hão-de ser as mesmas. Nestes termos, em síntese conclusiva, cremos que a prova por testemunhas e por presunções judiciais será admissível nas duas situações acima referidas: para prova do vício da vontade de que possa enfermar a declaração confessória e para prova da inveracidade da declaração confessória, quando existir outro meio de prova, maxime prova documental, que torne verosímil essa inveracidade.”

No caso em apreciação, por força da declaração confessória (da Autora ) do recebimento do preço, existe uma presunção ilidível da veracidade dos factos desfavoráveis à declarante, ou seja existe uma presunção de que houve pagamento.

Daqui resulta que o “pagamento” (facto desfavorável à declarante confessória) não tem que ser provado pelo R.

A Sr.ª Juiz, com o despacho de 07.03.2024, fez com que a A. entendesse que nenhuma prova mais teria que efectuar, uma vez que a prova do pagamento cabia ao Réu.

Como se pode ler in “O contraditório e a proibição das decisões-surpresa” escrito pelo Sr. Desembargador Luís correia de Mendonça “são duas as teses que, entre nós, se confrontam quanto ao que se deve entender por uma decisão-surpresa. Para uma primeira corrente, que se pode chamar antiformalista, a decisão-surpresa não se confunde com a suposição ou expectativa que as partes possam ter feito ou acalentado quanto à decisão; não se pode falar em decisão-surpresa quando as decisões, de facto ou de direito, devam ser conhecidas pelas partes como viáveis, como possíveis; só há decisão-surpresa «quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela». Para uma outra corrente, garantista, o escopo principal do princípio do contraditório «é a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo»(30); consequentemente se deve garantir a «participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão». Toda a decisão que não passe por este crivo deverá ser considerada decisão-surpresa ou solitária do juiz. (…) sintetizando: «não deverá, na nossa perspectiva, “banalizar-se” a audição atípica e complementar das partes, ao abrigo do preceito ora em análise, de modo a entender-se que toda e qualquer mutação do estrito enquadramento legal que as partes deram às suas pretensões passa necessariamente pela actuação do preceituado no art. 3.º, n.º 3. Na verdade, a negligência da parte interessada que, v.g. omite quaisquer “razões de direito”, alega frouxamente, situando de forma truncada e insuficiente o óbvio enquadramento jurídico da sua pretensão ou deixa escapar questões jurídicas clara e inquestionavelmente decorrentes dos autos, não merece naturalmente tutela, em termos de obrigar o tribunal — movendo-se, no momento da decisão dentro dos próprios institutos jurídicos em que as partes no essencial haviam situado as suas pretensões — a, sob pena de nulidade, realizar uma audição não compreendida no normal fluir da causa». Cfr. José Lebre de Freitas, introdução ao Processo Civil, Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3.ª ed., Coimbra editora, Coimbra, 2013, 125 (…)Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro pronunciam-se também sobre esta matéria, muito claramente na linha da corrente antiformalista ou substancialista: «para que o tribunal deva proceder à audição complementar das partes não basta (…) que pretenda aplicar uma norma por estas não invocadas. É necessário que o enquadramento legal realizado seja manifestamente diferente do sustentado pelos litigantes. Deverá ser uma subsunção notada pela sua originalidade, pelo seu carácter invulgar e singular, objectivamente considerado»- cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. i, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2014, 32.; «se o tribunal, debruçando-se sobre uma determinada realidade processual, está em condições de a perspectivar juridicamente, a parte obreira dessa realidade processual ou que dela foi notificada teve igual possibilidade de sobre ela se pronunciar. O patrocínio forense obrigatório não visa a tutela de interesses corporativos, mas sim garantir, além do mais, esta possibilidade. Não faz sentido exigir para o advogado uma posição que peça meças à do juiz no diálogo jurídico, para, no passo seguinte, defender que seja tratado como um leigo, incapaz de lançar um olhar jurídico elementar sobre a relação processual, se para tanto não for convocado por uma espécie de projecto de decisão» . Demarcando-se desta posição mais restritiva, e assumindo posição claramente garantista, encontramos José Lebre de Freitas «o princípio do contraditório não é, por exemplo, apenas aquele que parece resultar dos arts 3.º e 517.º do CPC, mas mais latamente, a garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de influência em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo se pressintam como potencialmente relevantes para a decisão» - cfr. . José Lebre de Freitas, “em torno da revisão do direito processual civil”, roA-1995, Vol. i, 10. (…) Desenvolvendo o seu pensamento, o autor acrescenta: «a regra do contraditório é uma das traves mestras do direito processual civil e como tal aparece consignada no art. 4.º do Projecto. É seu corolário a de prévia audiência das partes antes da decisão, mesmo quando esta tenha por fundamento uma questão de conhecimento oficioso (art. 4.º, 3) ou se baseie em norma jurídica que as partes manifestamente ignoraram ou consideraram inaplicável ao caso (…), mesmo que a audiência final tenha já tido lugar à data em que se põe ao juiz a questão de a aplicar”.

Lapidar é o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-02-2023, tirado no processo 1314/20.9T8CBR.C1.S1 e relatado pelo Sr. Conselheiro Júlio Gomes com o seguinte sumário “I. Se o Tribunal considera que um documento é ilegível deve dar à parte a possibilidade de se pronunciar, antes da decisão sobre a matéria de facto. II. Há também violação do contraditório quando tendo a parte pedido a inversão do ónus da prova a recusa só tem lugar na decisão e não se dá à parte a possibilidade de suprir os documentos que a outra parte sem apresentar sem qualquer justificação não forneceu. III. Tais violações do contraditório devem conduzir à repetição do julgamento.

Refere o Ac. do STJ, de 02-05-2019, proferido no Proc. nº 10066/15.3T8CBR.C1.S2“I. Em termos rigorosos, e tal como entendeu o acórdão recorrido, a apresentação de alegações/conclusões de recurso de apelação por remissão para anteriores alegações recursórias não satisfaz as exigências legais do art. 637º e do art. 641º, nº 2, alínea b), ambos do CPC. II. Porém, tendo sido o tribunal de 1ª instância e, ainda que em menor medida, também a Relação, a gerar na autora recorrente a confiança no aproveitamento das anteriores alegações, considera-se que a decisão de não conhecimento do recurso de apelação constitui uma violação, não apenas do princípio da proibição das decisões-surpresa (art. 3º, nº 3 do CPC), como também, e sobretudo, dos deveres de cooperação e de boa-fé processual (arts. 7º e 8º do CPC). III. Não pode mesmo deixar de se reconhecer que a ‘destruição’ da situação de confiança, criada pelo despacho da 1ª instância e pelo conjunto da tramitação processual, redundaria numa patente violação do princípio constitucional da garantia de tutela jurisdicional efectiva (cfr. art. 20º, nº 5, da CRP).”

Tal como preceitua o artigo 3º nº 3 do CPC “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Como se pode ler no sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 06-07-2023, tirado no processo 248/19.4T8FNC.L1-6 “ 1. Cabe ao juiz, por imposição do artº 3º, do CPC, respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa. 2.–Por decisão - surpresa deve entender-se aquela que envereda por solução dada a questão relevante para a decisão da causa e que, embora naturalmente previsível, não foi em todo o caso configurada pela parte, e sem que a mesma tivesse obrigação de a prever, maxime porque não deduziu a parte contrária qualquer oposição. 3.–Tendo o julgador considerado admitidos por acordo todos os factos alegados na petição inicial, em razão de ausência de contestação, é compreensível que tenha o demandante criado fundada expectativa de que a pretensão que deduziu viesse a ser atendida. 4.–Em razão do referido em 5.3., mais sentido faz [maxime porque em causa está uma questão que não foi discutida pelas partes e que ademais esteve na base da decisão de improcedência da acção] em perviamente ouvir o demandante sobre questão susceptível de, ainda assim, e segundo solução plausível da questão de direito, conduzir à improcedência da Açcão..

Deveria, pois, o Tribunal ter dado a oportunidade à Autora de se pronunciar relativamente ao ónus da prova, uma vez que a Sr. Juiz se afastou do entendimento que tinha vertido no processo quanto a tal matéria (entendendo não ser necessário que a A. juntasse prova do não pagamento) e criou expectativas à A. de que, na ausência de prova documental do pagamento, a acção iria proceder.
Não o tendo feito, qual a consequência que daí advém?
A este propósito vamos citar o Acórdão da Relação de Coimbra de 02.05.2023, tirado no processo 5576/17.0T8CBR-B.C1 que é exaustivo no tratamento deste tema.
Assim: “ Há muito se discute na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se a prolação de uma decisão com violação do princípio do contraditório configura uma nulidade processual ou uma nulidade da decisão ou da sentença, para efeitos de determinar se o cometimento de tal irregularidade pode ser suscitado em sede de recurso ou perante o juiz da causa, nos termos previstos para as nulidades em geral (artigos 196ºa 202º, CPC).
São três as correntes que se consegue identificar na jurisprudência sobre a natureza e o regime de arguição da nulidade consistente na prolação de uma decisão com violação do princípio do contraditório: uma primeira que defende que estamos perante uma nulidade procedimental, sujeita ao regime geral dos arts. 195º e 199º[9]; uma outra qualifica-a como nulidade processual, mas cujo remédio reside, não na reclamação para o juiz, mas na interposição de recurso; e uma terceira que entende que estamos perante uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº1, al. d), igualmente impugnável pela via do recurso.
O incumprimento do princípio do contraditório por parte do tribunal recorrido, seria suscetível de integrar a prática da nulidade processual prevista no artigo 195º, nº1, do CPC, por omissão de um ato que a lei prescreve e que consistia em facultar às partes o exercício do contraditório, omissão esta que inquina a decisão de modo a poder influenciar no exame ou na decisão da causa. Contudo, “a intensidade da violação é tal, uma vez que se trata de um princípio estruturante do direito processo civil, que a decisão final ao dar cobertura, implícita a esse desvio processual, acaba por assumi-lo, ficando ela própria contaminada[10]”. A partir desta assunção, a doutrina (seguida pela jurisprudência dominante), vinha adotando a segunda corrente, sustentando que esta nulidade processual ao estar coberta por decisão judicial, e ainda que não se configurasse como uma das nulidades previstas no artigo 615º, nº1 do CPC, acabava por inquinar a decisão, ferindo-a de nulidade. Em consequência, e invocando a máxima tradicional de que “das nulidades reclama-se, das decisões recorre-se”, entendia-se que o meio de reação próprio contra esta decisão judicial seria o recurso a interpor da mesma, com fundamento na sua nulidade por falta de audição das partes antes de ter sido proferida a decisão que é objeto do recurso. Era essa a posição assumida por José Alberto dos Reis, que afirmava que “se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infração de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos e não por meio de arguição de nulidade do processo[11]”. Esta posição – de que a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está, ainda que indireta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial, e que se há despacho que pressuponha o ato viciado, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação da nulidade, mas a impugnação do respetivo despacho pela interposição do competente recurso, era igualmente partilhada por Manuel de Andrade[12], Anselmo de Castro[13], e Antunes Varela[14]. O debate sobre tal questão levou ao surgimento da terceira corrente, liderada por Miguel Teixeira de Sousa, no sentido de que a violação do princípio do contraditório do artigo 3º, nº3, do CPC, dá origem, não a uma nulidade processual nos termos do artigo 195º do CPC, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº1, al. d), CPC[15]. Tal autor faz assentar tal distinção na dupla perspetiva pela qual a sentença pode ser considerada – sentença como trâmite ou vista como ato[16].
A decisão pode apresentar vícios de mera oportunidade, que ficam, em princípio, sujeitos ao regime geral das nulidades do processo (artigos 195º a 202º), por ex., se o juiz proferir decisão final omitem-se atos que a lei prescreve, podendo isso influir no exame da causa (art. 195º). A inoportunidade da decisão (aspeto de forma) conduz à sua nulidade enquanto ato processual[17].
A lei contém ainda um conceito próprio e específico de nulidade de decisão, previsto no artigo 615º CPC, respeitante a um vício de limites, ou seja, quando a sentença não contém tudo o que devia ou contém mais do que devia. E, segundo Miguel Teixeira de Sousa[18], a nulidade prevista na al. d), do nº1, do art. 615º – quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento –, tanto abarca a não possibilidade absoluta de conhecimento de uma questão, se o tribunal não pode conhecer, em circunstância alguma, dessa questão (por ex., quando a questão não foi levantada entre as partes e não é de conhecimento oficioso), como quando o tribunal não pode conhecer, em certas condições, dessa questão, mas poderia conhecê-la em outras circunstâncias [por ex., não pode conhecer da falta de um pressuposto processual sanável sem convidar a parte a suprir o vício (art. 6º, nº2) ou o tribunal não pode proferir uma decisão surpresa (art.3 nº3), mas pode decidir com base num fundamento não alegado depois de ouvir as partes[19]].
A decisão-surpresa é um vício único e próprio, respeitando à decisão como ato, sendo uma decisão nula por excesso de pronúncia [art. 615º, nº1, al. d)], dado que se pronuncia sobre uma questão sobre a qual, sem audição prévia das partes, não se pode pronunciar[20]. Reconhecendo que a questão nem sempre encontra resposta tão evidente – as nulidades processuais devem ser arguidas no processo perante o juiz (arts. 197º e 198º), ainda que tais nulidades se projetem na sentença, mas que não se reportem a qualquer das alíneas do nº1 do artigo 615º –, António Santos Abrantes Geraldes[21], sustenta que assim não será quando é cometida uma nulidade de conhecimento oficioso ou em que o próprio juiz, ao proferir a sentença, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa: “Sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reação da parte vencida passa pela interposição de recurso fundado na nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº1, al. d).[22]
Rui Pinto[23] chega à mesma conclusão com base em diferente abordagem: afirmando que, tal como qualquer ato processual, a própria decisão judicial pode padecer das nulidades inominadas do artigo 195º CPC, nomeadamente nos casos em que se trate de um ato processual fora do momento devido ou no caso de decisão-surpresa, sustenta que tais nulidades só podem ser conhecidas pelo juiz da causa quando respeitem ao procedimento e já não à matéria da causa. O juiz não pode conhecer da arguição da nulidade por decisão surpresa pois esta é atinente ao objeto da causa, apenas podendo ser invocada como fundamento de recurso, nos termos gerais, caso ele seja admissível.
Também na Jurisprudência encontramos inúmeros Acórdãos no sentido de que a violação do formal princípio do contraditório do art. 3º, nº3 do CPC dá origem, não uma nulidade processual nos termos do artigo 195º, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº1, al. d) – cfr, entre outros, Acórdãos do STJ de 22-02-2017, relatado por Chambel Mourisco, de 13-10-2020, relatado por António Magalhães, de 16-12-2021, relatado por Luís Espírito Santo, e de 07-06-2022, relatado por Ricardo Costa; Ac. do TRE de 25-09-2014, relatado por Francisco Xavier, Ac. do TRL de 11-07-2019, relatado por Micaela Sousa, Ac. do TRP de 20-05-2020[24].
Por fim, é ainda apontada a possibilidade de uma quarta via, que considerando que a o contraditório é um direito processual fundamental, a falta da sua atuação concretiza um mau exercício dos poderes do juiz, pelo que uma sentença proferida nessas condições pode considera-se ferida de nulidade extra-, um vício da sentença que deve ser feito valer pela via do recurso[25].”
[9] Neste sentido, entre outros, Ac. do TRC de 03-05-2021, relatado por Moreira do Carmo, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Acórdão do STJ de 22-02-2017, disponível in www.dgsi.pt.
[11] “Código Civil Anotado”, Vol. V, reimpressão, Coimbra-1984, p. 424.
[12] “Noções Elementares de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, p. 424.
[13] “Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, p. 133.
[14] “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, p. 372 e ss.
[15] Na jurisprudência, cfr.
[16] Cfr., “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, disponível in https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html .
[17] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, “Manual do Processo Civil”, AAFDL Editora - 2022, Vol. I, p.628.
[18] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pp. 632-633.
[19] Neste sentido de que a violação do principio do contraditório do art. 3º, nº3 do CPC, dá origem, não a uma nulidade processual nos termos do artigo 195º, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronuncia, nos termos do artigo 615º, nº1, al. d), se pronunciou também o Acórdão do STJ de 13-10-2020, relatado por António Magalhães, disponível in www.dgsi.pt.
[20] “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, disponível in https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html.
[21] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 3ª ed., 2016, Almedina, pp. 24-25.
[22] Em igual sentido, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p.. 20-21.
[23] “Manual do Recurso Civil”, Vol. I, AAFDL Editora, pp. 90-91.
[24] Todos disponíveis in www.dgsi.pt. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, comentando o citado acórdão do TRE de 25-09-2014, considerou que sendo este entendimento menos rigoroso, é louvável, na medida em que enforma de uma compreensão inteligente da razão de ser dos ónus processuais – “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., Almedina, pp. 739-740.
[25] Luís Correia de Mendonça, “O Contraditório e a Proibição das Decisões Surpresa”, disponível in https://portal.oa.pt/media/135588/luis-correia-de-mendonca.pdf.


Estamos com a maioria da jurisprudência e consideramos que existe nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº1, al. d) do CPC.

Tendo sido proferida decisão que considerou que a prova do não pagamento competia à A. (depois do mesmo julgador ter decidido, em despacho intercalar de 7-03-2024, e na sequência de um requerimento de prova, em sentido contrário, ou seja, que o ónus da prova do pagamento pertencia ao R, facto até corroborado pela forma como foi indicado o tema de prova que, a nosso ver, não deveria ser” pagamento do preço declarado na escritura de cessão de quotas outorgada em 11 de maio de 2012, pela cessão da quota da Autora na sociedade “A..., Lda.” ao Réu, mas antes, não pagamento do preço) impunha-se que esta fosse ouvida.
Não nos parece que se possa dizer que este acto era inócuo.
Não vamos tomar expressa posição sobre o caso, sob pena de excesso de pronúncia. Porém, não podemos deixar de dizer que a jurisprudência não é unânime quanto a esta matéria, tendo havido da parte dos Tribunais uma procura no sentido de atenuar a força probatória da confissão extrajudicial, mesmo que feita em documento escrito dirigido à parte contrária, em prol da verdade material. Por último, parece-nos que da circunstância do R. ter alegado que o pagamento foi em dinheiro, não invalida que se indague se esse montante saiu das contas bancárias.
Porém, a violação daquele princípio, não fica sanada com o mero conhecimento, por parte da Recorrente, pós decisão e pós julgamento, de que a prova do não pagamento lhe competia.

A violação do contraditório e a decisão surpresa justificam que se anule o julgamento da matéria de facto relativa aos pontos 1 e 2 dos factos dados como não provados, determinando-se que o processo seja remetido à 1ª instância, para que a Recorrente possa, designadamente, juntar prova, ou a mesma ser oficiosamente ordenada, tendo em consideração que, por força da confissão constante da escritura de cessão de quotas, o R. não tem que fazer a prova do pagamento.





DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, anulando-se o julgamento da matéria de facto relativa aos pontos 1 e 2 dos factos dados como não provados.


Custas pelo R.

Registe e notifique.

DN






Porto, 19 de Novembro de 2024.

(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
Por expressa opção da relatora, não se segue o Acordo Ortográfico de 1990.



Raquel Correia Lima (Relatora)
Anabela andrade Miranda (1º Adjunto)
João Diogo Rodrigues (2º Adjunto)