INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
PRESSUPOSTOS
Sumário

I – O incidente de intervenção principal provocada pressupõe que o chamado e a parte à qual se deve associar têm interesse igual na causa, ou seja, que existe subjacente uma situação de litisconsórcio, necessário ou voluntário.
II – O deferimento do chamamento deduzido pelo réu de outros sujeitos passivos da relação material controvertida depende da análise dessa relação, tal como é configurada pelo autor na petição inicial.
III - Se a relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor na sua p. inicial, respeita apenas ao autor e à ré, essa situação determina o indeferimento da requerida intervenção principal provocada.

Texto Integral

Apelação
Processo n.º 7971/23.7T8VNG-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 3
Recorrente – A..., S.G.P.S, S.A.,
Recorrido – Banco 1..., SA
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Maria da Luz Seabra
Desemb. Lina Castro Baptista

I – O Banco 1..., SA, com sede na Rua ..., ..., intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia, a presente ação declarativa comum de condenação contra A..., SGPS, SA, com sede em Vila Nova de Gaia, pedindo a condenação da ré no pagamento ao autor da quantia total de €3.149.734,90, acrescido de juros de mora calculados à taxa legal até integral e efetivo pagamento.
Alegou para tanto, e em síntese, que a ré é titular de várias participações maioritárias em empresas portuguesas e estrangeiras, sendo titular de uma participação maioritária (100%) na B..., SA e que ela própria se dedica à concessão de crédito aos seus clientes e assim, no exercício da sua atividade, o autor concedeu crédito à B..., anteriormente denominada A..., SA, pelo que o autor detém um crédito sobre a B... no montante de KZ 2.795.005.771,44 equivalente a €3.149.734,90.
Pois que, no dia 23 de junho de 2004 foi celebrado um contrato de mútuo sob a forma de conta corrente caucionada entre o autor e a B..., e objeto de dois aditamentos (doravante, o “Contrato de Mútuo”), o autor emprestou à B... o montante total de KZ 257.100.000,00 o que era então equivalente, ao câmbio da data, ao contravalor de USD 3.000.000,00.
O capital mutuado ao abrigo do Contrato de Mútuo era destinado a suprir necessidades pontuais de tesouraria da B.... Uma parte do valor mutuado, correspondente a USD 1.395.988,00 foi afeta a um financiamento concedido à B... para aquisição de viaturas, conforme contrato celebrado na mesma data, a restante quantia mutuada foi sujeita a um prazo de reembolso de 180 dias, renovável, salvo denúncia por ambas as partes com 30 dias de antecedência, sendo que sobre o capital utilizado pela B... vencer-se-iam juros mensais e postecipados à taxa de juro de 8% (oito por cento) ao ano, atualizável de acordo com os avisos do BNA e eventuais variações de mercado, vencendo-se a primeira prestação de juros 1 (um) mês após a data da utilização. Em caso de mora, seria ainda devida uma sobretaxa de 10% ou sobretaxa máxima legal, sobre o valor do capital em mora. A título de garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias assumidas e a assumir pela B... ao abrigo do Contrato, esta entregou ao autor uma livrança com montante e data de vencimento em branco e, ainda, em garantia das obrigações por si assumidas, domiciliou na conta corrente as receitas que tinha a receber das obras indicadas na Cláusula 9.ª, n.º 2 do contrato de mútuo, no valor global de USD 18.000.000,00. Para além da livrança e da domiciliação de receitas, a B... prestou ainda, em garantia das obrigações pecuniárias contraídas ao abrigo do contrato, bem como “das despesas que o Banco faça para a sua segurança e reembolso, incluindo de advogados ou solicitador”, um penhor sobre um equipamento em poder da B.... O penhor foi constituído sem determinação de prazo, subsistindo até integral liquidação das obrigações garantidas.
O bem empenhado ficou em poder da B..., que se obrigou a não o transferir para outro local sem prévia autorização do autor.
O contrato veio a ser sucessivamente aditado nos dias 23 de janeiro e 17 de novembro de 2009 e nos termos do primeiro aditamento, o autor e a B... acordaram na elevação do capital financiado em mais USD 2.000.000,00, passando o capital mutuado ao valor global de USD 5.000.000,00, equivalente ao valor de KZ 390.276.995,00, considerando a taxa de câmbio em vigor à data. A taxa de juros remuneratórios foi também elevada para 8,5% ao ano. Foram ainda revogadas as garantias prestadas pela B... ao autor (a domiciliação de receitas e o penhor), com exceção da livrança, que foi integralmente mantida como única garantia do cumprimento das obrigações assumidas pela B... perante o autor.
Sucessivamente, nos termos do segundo aditamento, o crédito concedido foi novamente elevado, desta feita para KZ 854.000.000, as restantes condições contratadas foram integralmente mantidas.
Sucede que os créditos utlizados pela B... nos termos do referido contrato nunca vieram a ser reembolsados ao autor.
Acresce que, no dia 14 de dezembro de 2012, o autor celebrou ainda com a B... um Contrato de Abertura de Crédito para Adiantamento de Faturas e nos termos do referido contrato, o autor concedeu à B... um empréstimo sob a forma de abertura de crédito até ao limite máximo de KZ 742.000.000,00, equivalente a €3.835.239,75, considerando a taxa de câmbio em vigor à data. Atento o disposto na Cláusula 1.ª, n.º 1, obrigou-se a B... a promover o respetivo reembolso dos montantes mutuados nos termos estipulados no contrato. Sendo que o aludido crédito teve por finalidade permitir à B... o adiantamento de 75% do valor das faturas por si emitidas à C..., para apoio de tesouraria e a importância correspondente a cada utilização seria creditada pelo autor na conta de depósitos à ordem n.º ..., titulada pela B... junto do autor. Sendo certo que o capital mutuado deveria ser reembolsado pela B... no prazo de 6 meses a contar da primeira utilização, sem prejuízo da possibilidade de renovação do contrato por iguais e sucessivos períodos. Mais, determinaram as partes que sobre o capital mutuado vencer-se-iam juros remuneratórios à taxa de 14% (catorze por cento) e juros moratórios à taxa de 10%. Em garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias assumidas pela B... ao abrigo do contrato, incluindo a obrigação de “pagamento dos juros, quer remuneratórios, quer de mora”, a B... constituiu a favor do autor um penhor sobre os direitos de crédito detidos sobre a C... titulados pelas faturas identificados no Anexo I ao contrato, num valor global de USD 9.786.419,28. Ficou acordado que o referido penhor sobre os direitos de crédito seria gradualmente substituído por penhor sobre o saldo da conta de depósito bancário n.º ... titulada pela B... junto do autor, à medida em que as referidas faturas fossem liquidadas pela C..., obrigando-se a B... a não movimentar a referida conta, e além disso, a B... entregou ao autor uma (segunda) livrança, com montante e data de vencimento em branco, ficando o autor autorizado a completar o seu preenchimento em caso de incumprimento.
Também este contrato veio a ser sucessivamente alterado, por aditamentos celebrados nos dias 1 de agosto de 2013 e 22 de janeiro de 2014. Nos termos dos referidos aditamentos, as partes acordaram na prorrogação sucessiva do prazo de reembolso do empréstimo e pagamento dos juros, tendo, contudo, ficado expressamente estabelecido que “todas as garantias prestadas e constituídas para assegurar o bom cumprimento do crédito aberto no âmbito do contrato continuarão a assegurar as obrigações emergentes do contrato, designadamente, Penhor dos Direitos de Crédito a que se refere a cláusula décima terceira”. Do crédito concedido, a B... utilizou KZ 742.000.000,00, contudo, a B... não procedeu ao reembolso de qualquer montante em dívida ao autor.
No dia 30 de maio de 2017, a B... deu início a um Processo Especial de Revitalização (“PER”) que correu termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia (Juiz 2) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, sob o número de processo 4689/17.3T8VNG. No âmbito do referido PER, com fundamento no incumprimento dos contratos acima referidos, foram reconhecidos ao autor dois créditos no valor global de €8.721.573. O Plano de Recuperação previa um conjunto de medidas para o pagamento dos diversos créditos sobre a B..., incluindo os créditos de instituições de crédito, como o autor. Designadamente, previa um prazo de maturidade de 18 anos e um período de carência de reembolso de capital de 5 anos, para uma parte do montante total da dívida.
O referido Plano foi, porém, sucessivamente incumprido pela B....
Mediante sentença proferida no dia 13 de maio de 2023, foi a B... declarada insolvente no âmbito do processo n.º 3482/19.3T8VNG, que corre termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia (Juiz 3) do Tribunal da Comarca do Porto. Onde o prazo para a reclamação de créditos foi fixado em 30 dias. Tendo o autor apresentado a sua reclamação de créditos sobre a B... no âmbito do processo n.º 3482/19.3T8VNG no dia 19 de junho de 2023, peticionando os valores em dívida.
Finalmente, em 05 de junho de 2023, os mandatários do autor enviaram uma carta registada com aviso de receção à ré informando-a do seguinte: (i) que a B... incumpriu definitivamente o seu Plano de Recuperação perante o autor; (ii) que tal implicou a ineficácia das medidas ali previstas relativamente ao autor; (iii) que tal teve como efeito a repristinação dos créditos nas suas condições originais; (iv) que interpelada para o pagamento dos montantes em dívida, a B... não efetuou qualquer pagamento; (v) e que, em consequência, à data da referida carta, subsistia uma dívida da B... perante o autor no valor de KZ 2.706.743.997,31, a que correspondia a €4.566.538,49, ao câmbio da referida data, a titulo de capital e de juros. Mas a ré não procedeu ao pagamento voluntário do montante em dívida, bem como não apresentou qualquer resposta.

Citada a ré, veio esta apresentar contestação e veio, em suma, pedir a improcedência da ação e a intervenção principal provocada de A..., S.A., com domicílio na Rua ..., em ....
Começa a ré por alegar a incompetência internacional do Tribunal português. Seguindo-se a ilegitimidade passiva, dizendo que o autor celebrou um Contrato de Abertura de Crédito com a A..., S.A, uma sociedade anónima de direito angolano, com capital próprio. A presente ação respeita a questões relacionadas nomeadamente, com o contrato de abertura de crédito, não existindo do articulado que se contesta, qualquer menção, alegação ou argumento que possa justificar material ou processualmente a intervenção, enquanto parte passiva da ré. No mais impugna a factualidade invocada pelo autor, invocando ainda a nulidade dos contratos em apreço, incluindo o pacto de jurisdição, em suma com base na lei que entende ser aplicável aos contratos.
Quanto ao pedido de intervenção principal defende que a relação material controvertida, em concreto, o contrato de abertura de crédito foi celebrado entre o ora autor e a A..., S.A., uma sociedade anónima de direito angolano, com sede em Angola, com património próprio e que prestou garantias para o cumprimento do referido contrato. Uma vez que a sociedade ré não é parte nos contratos que sustentam esta ação, vem requerer a intervenção principal provocada da A..., SA, o que o faz ao abrigo do disposto no
artigo 316.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Uma vez que A..., S.A. é parte no contrato de abertura de crédito celebrado com o autor, não só é uma sociedade que pode ser chamada a intervir e assumir a posição de sujeito passivo da ação, como é a sociedade com maior interesse em intervir na ação pendente. Neste sentido, entende a ré que a A..., S.A. tem interesse igual, e até superior na causa.

O autor respondeu à matéria das exceções pugnando pela sua improcedência e manifestou-se contra a admissibilidade do incidente de intervenção de terceiros, para o que alegou que o pressuposto de aplicação do n.º1 do art.º 316.º do CPC – a existência
de litisconsórcio necessário – claramente não se verifica.2

Pois que o Contrato de Abertura de Crédito veio a ser celebrado entre o autor e a B..., por intermédio da sua sucursal em ... (a A..., SA – Escritório de Representação), tal como deliberado e aprovado pelo Conselho de Administração daquela. A circunstância de a A..., SA – Escritório de Representação ter intervindo no Contrato de Abertura de Crédito não significa que os direitos e obrigações decorrentes do mesmo deixem de ser da B..., porquanto aquele escritório de representação é, como vimos, uma sucursal da B... e as sucursais não têm, consabidamente, personalidade jurídica.
No caso vertente, a A..., SA – Escritório de Representação é apenas um estabelecimento da B... em ..., por intermédio do qual a B... celebrou o Contrato de Abertura de Crédito com o autor. Deste modo, o pedido, formulado pela ré, de intervenção principal provocada da sucursal da B... – que caracteriza, erradamente e sem qualquer suporte documental, como sociedade autónoma e independente da B... e da ré – não tem o menor cabimento.

Foi, por fim, proferido o seguinte despacho: “A ré na contestação veio deduzir incidente de intervenção principal provocada, requerendo a intervenção de A..., S.A., do lado passivo da relação jurídica, alegando sumariamente que foi essa sociedade que celebrou com o autor contrato de abertura de crédito alegado na petição inicial.
O autor opôs-se ao requerido nos termos constantes do requerimento apresentado a 25.01.2024.
Cumpre apreciar e decidir:
Face ao princípio legal da estabilidade da instância consagrado no artigo 260.º do Código de Processo Civil a instância, após a citação do réu, deve manter-se a mesma quer quanto às pessoas, ao pedido ou à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação da mesma, expressamente previstas na lei – artigos 261.º e 262.º do Código de Processo Civil.
Nos termos do disposto no citado artigo 262.º/b) do Código de Processo Civil uma das possibilidades de modificação subjetiva da instância é, precisamente, a dos incidentes da intervenção de terceiros.
Deve, no entanto, ter-se em conta que qualquer modificação da instância, atento o princípio estabelecido no citado artigo 260.º do Código de Processo Civil, tem carácter excecional podendo, apenas, ser admitida quando se verifiquem determinados pressupostos legais.
No que se refere à intervenção principal provocada dispõe o artigo 316.º do Código de Processo Civil a intervenção principal provocada pode ter lugar:
- ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, para que qualquer das partes chame a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária (n.º 1);
- em caso de litisconsórcio voluntário, quando o autor pretenda provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandando inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º do Código de Processo Civil – situações de pluralidade subjetiva subsidiária, em caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida – (n.º 2);
- por iniciativa do réu, quando mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida, ou quando pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor (n.º 3).
A legitimidade dos vários interessados na relação jurídica controvertida é aferida, nos termos do artigo 30.º do Código de Processo Civil, pela relação jurídica controvertida tal como ela é configurada pelo autor.
Atenta a configuração dada pelo autor à ação e reiterada na resposta ao incidente deduzido entendo que inexiste litisconsórcio. A relação material controvertida, tal como configurada pelo autor não diz respeito ao terceiro que se pretende chamar.
De facto, o autor alega ter celebrado contrato de abertura de crédito com a ré e fundamenta parte do pedido formulado nesse contrato.
Analisado o requerimento de intervenção deduzido o mesmo apenas poderá ser enquadrado no artigo 316.º/3/a) do Código de Processo Civil.
No entanto, face à configuração dada pelo autor à ação, o mesmo não pretende dirigir o pedido a qualquer outro interveniente que não a ré, uma vez que na versão dos factos alegados na petição inicial apenas com esta foi celebrado o referido contrato. Assim, da forma como o autor configura a ação, não existe litisconsórcio voluntário entre o réu e o chamado e o terceiro não interesse em intervir no processo e não é titular da relação material controvertida tal como configurada pelo autor.
De facto, a provar-se a matéria de facto neste âmbito alegada pelo réu, ou seja, que não celebrou o contrato com o autor, a mesma será absolvida dessa parte do pedido.
Pelo exposto, entendo não ser admissível o incidente de intervenção de terceiros requerido pela ré.
Nestes termos, indefere-se a requerida intervenção provocada de A..., S.A.
Notifique”.


Inconformada com esta decisão, dela veio a ré recorrer de apelação pedindo a sua revogação e substituição por outra que admita o pretendido incidente de intervenção de terceiros.
A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto do douto despacho que determinou a inadmissibilidade e o consequente indeferimento do incidente de intervenção provocada de A..., S.A., sociedade com sede em Angola, ..., Rua ..., 1.º Direito, e com o Número de Identificação Fiscal ....
2. O douto despacho recorrido encontra-se ferido de erro de julgamento de direito, relativamente à interpretação que faz do contrato de abertura de crédito e das partes que o celebraram, entendendo que a parte que celebrou o contrato, sociedade com sede em Angola, não possui interesse em contradizer a ação, indeferindo como tal o requerido incidente de intervenção provocada, e violando deste modo o disposto nos artigos 316.º, n.º1, e 316.º, n.º3, al. a), ambos do CPC.
3. Ao contrário do que o Tribunal a quo decidiu, ambos recorrente e recorrido alegaram que o contrato foi celebrado com a sociedade de com sede em Angola.
4. Salvo o devido respeito, o Tribunal recorrido incorreu num lapso manifesto, ao referir apenas a sociedade de direito português como titular da relação material controvertida tal como configurada pelo autor.
5. A este propósito, refira-se que o autor alegou nos artigos 28.º a 42.º da petição inicial que celebrou o contrato com a A..., S.A., tendo junto o documento n.º 9 junto com a petição inicial, onde se refere que a parte é a sociedade com sede em Angola.
6. Por seu lado, a ré/recorrente alegou nos artigos 23.º a 33.º da contestação que “o autor celebrou com a A..., S.A., conforme Cláusula 2.ª, n.º 1 do Contrato de abertura de crédito junto com a p.i.”.
7. Deste modo, verifica-se que, tanto o autor como a sociedade ré/recorrente alegaram que o contrato de abertura de crédito não foi celebrado entre o autor e a ré, mas sim a sociedade com sede em Angola, que possui a mesma firma/designação que a sociedade de direito português possuía à data da celebração do referido contrato.
8. O autor, ao vir juntar o tal documento n.º 9 e peticionar os alegados valores devidos com base nesse contrato, alega que foi celebrado com a A..., S.A., sociedade com sede em Angola, que não é parte nestes autos.
9. Neste sentido, da forma como o autor configura a ação, bem como do próprio texto do contrato de abertura de crédito, resulta que a ré/recorrente não celebrou o referido contrato, nem sequer a A..., S.A., sociedade de direito português, tendo o autor celebrado o contrato com a sociedade com sede em Angola, pelo que esta última sociedade é titular da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.
10. Ao contrário do que refere o douto despacho recorrido, é inequívoco que a A..., S.A. tem interesse direito em contradizer a referida ação, devendo, para tal, ser admitido o incidente de intervenção provocada.
11. Ora, verificando-se preterição de litisconsórcio necessário, a recorrente tem o direito de “chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária”, nos termos do disposto no artigo 316.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
12. E mesmo que assim não se entenda, o que se equaciona por mera cautela de patrocínio, este sempre seria um caso de litisconsórcio voluntário, pelo que sempre deveria ser admitido o chamamento, por existir um interesse atendível da parte da ré/recorrente em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação caso da sociedade com sede em Angola, nos termos do artigo 316.º, n.º3, alínea a) do CPC.
13. Em face de tudo o supra exposto, conclui-se que o Tribunal recorrido incorre em erro de julgamento de direito, por entender que não é admissível o chamamento do sujeito passivo da relação contratual, neste caso a A..., S.A., sociedade com sede em Angola, titular da relação material controvertida.
14. Deste modo, deverá o despacho recorrido ser revogado, devendo, em consequência, ser substituído por outro em que seja admitida a requerida intervenção provocada, por se verificar um litisconsórcio voluntário e o terceiro possuir interesse em contradizer a ação, nos termos do disposto no artigo 316.º, n.º3, al. a) do Código de Processo Civil.


O autor (apelado juntou aos autos as suas contra-alegações onde pugna pela confirmação da decisão recorrida.

II – Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os que estão enunciados no supra elaborado relatório, pelo que, por razões de economia processual, nos dispensamos de os reproduzir aqui.

III – Como é sabido o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.

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Ora, visto o teor das alegações da apelante é questão a apreciar no presente recurso:
- Do alegado deferimento do incidente de intervenção principal provocada da A..., S.A, uma sociedade anónima de direito angolano.

Vejamos.
Como se sabe, os incidentes de intervenção processual constituem um instrumento legal pelo qual se admite a modificação subjetiva da instância que se estabiliza com a citação do réu, cfr. art.º 260.º do C.P.Civil.
Nesses incidentes conta-se a intervenção provocada, hoje regulada nos art.ºs 311.º e seguintes do C.P.Civil. Dizendo o n.º 1 do art.º 261.º do C.P.Civil que “Até ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilegítima alguma das partes por não estar em juízo determinada pessoa, pode o autor ou reconvinte chamar essa pessoa a intervir nos termos dos artigos 316.º e seguintes”.
Como refere Salvador da Costa, in “Os Incidentes da Instância”, pág. 78, “na intervenção principal, em que ocorre igualdade ou paralelismo do interesse do interveniente com o da parte principal a que se associa, o terceiro, que poderia acionar inicialmente em termos de litisconsórcio ou de coligação, associa-se ou é chamado a associar-se a uma das partes primitivas, assumindo o estatuto de parte principal, cumulando-se no processo a apreciação de uma relação jurídica da sua titularidade substancialmente conexa com a relação material controvertida delineada perante as partes primitivas”.
A intervenção principal provocada, “abrange todos os casos em que a obrigação comporte pluralidade de devedores ou quando existam garantes da obrigação a que a causa principal se reporte, sob condição de o réu ter algum interesse atendível em os chamar a intervir na causa, quer com vista à defesa conjunta, quer para acautelar o eventual direito de regresso ou de sub-rogação que lhe assista.... Qualquer das partes pode, pois chamar a intervir alguém, do lado ativo ou do lado passivo, isto é, as pessoas que, nos termos do art.º 311, pudessem intervir espontaneamente ao lado do autor ou ao lado do réu”, Salvador da Costa, in obra citada pág. 105 e 107. E acrescenta o mesmo autor que “A intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, cuja medida da sua viabilidade é limitada pela latitude do acionamento operado pelo autor, não podendo intervir quem lhe seja alheio”.
Ou, no dizer antigo, mas aplicável ao conhecimento atual, de Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág.1092 “Este caso pressupõe que a relação jurídica substancial (e, diremos nós, tal como é configurada pelo autor, atento o preceituado no art.º 30.º n.º 3, in fine do C.P.Civil) respeita a uma pluralidade de sujeitos, quer no aspeto ativo, quer no aspeto passivo. A ação foi proposta só por um ou por alguns dos sujeitos ativos; podem os restantes vir ao processo fazer valer o seu próprio interesse. A Ação foi proposta unicamente contra um ou alguns dos sujeitos passivos; podem os outros intervir associando-se aos réus”.
In casu”, expressamente, a ré ao efetuar o pedido de intervenção principal provocada em apreço funda-se na alegada preterição de litisconsórcio necessário.
Ora preceitua o n.º 1 do art.º 316.º do C.P.Civil que “Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária”. Sendo que nestes casos o chamamento para intervenção só pode ser efetuado até ao termo da fase dos articulados, ou nas situações previstas no n.º 2 do art.º 316.º, até ao termo da fase dos articulados, cfr. als. a) e b) do n.º 1 do art.º 318.º do C.P.Civil.
A razão de ser deste instituto é não apenas a de evitar futuros litígios em torno da mesma questão fáctica substancial – princípio de economia processual – mas sobretudo a de formar um só caso julgado material, coerente e alargado a todos os sujeitos de relações conexas com questão em litígio.
O litisconsórcio “necessário” verifica-se quando a lei ou o negócio jurídico exige a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, ou quando pela natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, art.º 33.º do C.P.Civil. A decisão produz o seu efeito útil normal, sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
Como refere Lebre Freitas, in “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. I, pág. 563 “Tanto no caso de litisconsórcio necessário, como voluntário, exige a lei que o interveniente tenha um interesse igual ao da parte com a qual pretende litisconsorciar-se. É o que sem dúvida acontece no caso das relações paralelas e das relações concorrentes, que englobam nomeadamente, as obrigações conjuntas, solidárias e indivisíveis...”.
Regressando ao caso dos autos, a relação material controvertida é aquela que vem delineada, subjetiva e objetivamente, pelo autor, na petição inicial e de acima deixámos súmula. Considerando o pedido e a causa de pedir apresentados na petição inicial define-se o objeto do processo, e definem-se os sujeitos do litígio processual que o tribunal é chamado a dirimir. A relação material controvertida nos autos é aquela que o autor desenhou na petição inicial, e não outra. Mormente sempre o autor definiu o seu devedor direto como sendo a B..., sociedade comercial de direito português, que passou por um PER e está hoje em processo de insolvência nos tribunais portugueses, mais responsabilizando a ré por tais dívidas, como sociedade com domínio total por força do disposto no art.º 501.ºn.º1, “ex vi” do art.º 491.º, ambos do C.S.Comerciais.
As circunstâncias concretas alegadas pela ré na sua contestação para defender a improcedência dos pedidos contra ela formulados pelo autor (isto é, que será outra entidade a estar vinculada na relação contratual ajuizada pelo autor e às obrigações dela decorrentes) não têm a virtualidade de integrar a terceira entidade aludida entre os sujeitos da “relação material controvertida”. Esta é, repete-se, a configurada pelo autor na petição inicial.
O litisconsórcio é necessário, segundo dispõe os n.ºs 1 e 2 do art.º 33.º do C.P.Civil, quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, o que se verifica no caso em apreço. Ou seja, “in casu”, se o autor lograr demonstrar os pressupostos de facto e de Direito de que depende o seu pedido, poderá alcançar sucesso na lide, ou seja a procedência da ação, caso contrário, logrando a ré comprovar os fundamentos da sua defesa poderá conseguir a pretendida absolvição, mas estas possibilidades situam-se no âmbito do conflito que o Tribunal está chamado para resolver, isto é, atenta a “relação material controvertida”.
Não tem, assim, aplicação o art.º 316.º do C.P.Civil, e também não tem aplicação o disposto no art.º 317.º do C.P.Civil, que se refere a condevedores solidários, o que também não é o caso, já que a solidariedade tem que resultar da lei ou da vontade das partes, cfr. art.º 513.º do C.Civil, o que também não ocorre no caso.
Logo, e sem necessidade de outros considerandos, há que confirmar a decisão recorrida.

Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar as presentes apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela ré/apelante.

Porto, 2024.11.19
Anabela Dias da Silva
Maria da Luz Seabra
Lina Baptista