AÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
VENDA
LEILÃO
NOTIFICAÇÃO À PARTE
Sumário

I - A venda de bens por leilão eletrónico deve ser sempre precedida da notificação, às partes processualmente relevantes, do número de identificação do leilão, da data e hora do seu termo, bem como dos bens em leilão.
II - A ausência de tal notificação, quando possa ter influência no resultado do leilão, implica a anulação do mesmo, se pedida.

Texto Integral

Processo n.º 1878/18.7T8AMT-B.P1


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Sumário:

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Relator: João Diogo Rodrigues
Adjuntos: Pinto dos Santos;
Maria da Luz Teles Meneses de Seabra.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I - Relatório

1- Na ação de divisão de coisa comum que AA e outros, instauraram contra BB e outros, foi, por despacho proferido no dia 24/11/2020, determinada a venda judicial, por meio de leilão eletrónico, dos prédios identificados no requerimento inicial, tendo sido também estabelecidos os preços mínimos a anunciar, o que foi notificado às partes.

2- Depois de diversas vicissitudes que os autos documentam, foi promovida a dita venda pela Agente de Execução/Encarregada da Venda e, terminados os leilões eletrónicos, foi por aquela, no dia 13/03/2023, proferida decisão na qual conclui, em resumo, que as propostas apresentadas, cujos valores indica, são iguais a 85% do valor base, estando assim reunidas as condições para que se concretize a adjudicação dos bens à proponente, que identifica, logo que esta deposite a totalidade do preço dos imóveis e demonstre o cumprimento das obrigações fiscais.

3- Para notificação desta decisão, foi, no dia 04/05/2023, expedida notificação para, entre outros, a interessada, CC.

4- Esta interessada e outros, no entanto, vieram, no dia 18/05/2023, alegar que não foram notificados pela Agente de Execução Encarregada da Venda, da realização do leilão eletrónico, nos termos previstos no artigo 4.º, n.º 12, do Despacho n.º 12624/2015, de 09 de novembro, pelo que nele não puderam participar “apresentado proposta justa pelos bens indivisos e levados à venda”.

Requereram, por isso, “que seja dado sem efeito o leilão ocorrido, seja designado novo leilão e sejam os Requeridos notificados do mesmo.

5- No dia 27/06/2023, a Encarregada da Venda veio informar e requerer o seguinte:

“1- Os bens imóveis foram vendidos na modalidade de leilão eletrónico, conforme já comunicado aos autos,

2- O preço já se encontra totalmente pago pelo adquirente;

3- Já foram pagos os impostos devidos pela transmissão.

Face ao acima exposto, requer a V.Exª:

Se digne informar a signatária, se deve ser lavrado título de Transmissão dos bens vendidos e se deve fazer o deposito autónomo do valor que se encontra depositado á ordem dos presentes autos”.

6- Sobre tal informação e pedido, recaiu, no dia 29/06/2023, o seguinte despacho:

“Informe positivamente a Sr.ª AE”.

7- Posteriormente, no dia 04/07/2023, a interessada, CC, e os outros requerentes, renovaram o requerimento apresentado no dia 18/05/2023.

8- Foi, então, no dia 05/07/2023, ordenada a notificação da “Sr.ª AE e os restantes interessados para se pronunciarem sobre a imputação de preterição das formalidades de notificação dos requeridos, bem como, sobre a repetição da venda”.

9- O Interessado, DD, no dia 06/07/2023, veio manifestar a sua concordância com a repetição do leilão.

10- A Encarregada da Venda, por sua vez, no dia 06/07/2023, apresentou um resumo das diligências realizadas, entre as quais refere que foram notificados todos os interessados da sua decisão proferida no dia 13/03/2023 e que não vislumbra, que haja qualquer preterição de formalidades na notificação dos requeridos.

E conclui:

“Dado que, a modalidade da venda e o valor atribuído aos imóveis já tinha sido decidido pelo Tribunal, não havia lugar a quaisquer outras notificações para além das que foram efetuadas.

Quanto á repetição da venda, cumpre informar que de acordo com o douto despacho acima referido, foi emitido o competente título de transmissão e entregue ao adquirente.

Face ao exposto, salvo melhor opinião, não deve a venda ser anulada”.

11- Seguidamente, considerando que a decisão da Agente de Execução sobre a venda (proferida no dia 13/03/2023), foi notificada a todos os interessados por oficio expedido nesse dia, foi, no dia 18/09/2023, proferido despacho que indeferiu, “por manifestamente infundada, a arguição de nulidade da venda levada a cabo por leilão electrónico e a sua repetição, impetrada pelos requeridos EE, FF, GG, HH, CC, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO e PP, em 18/05/2023 e percutida em 04/07/2023”, bem como condenados estes nas custas do incidente, fixadas em 4 UCs, por cada impetrante.

12- Inconformada com este despacho, dele interpôs recurso a interessada, CC, a qual remata a sua motivação com as seguintes conclusões:

“A. Em 04/05/2023, por ofício junto aos autos com referência 8756589, foi a Recorrente notificada pela Agente de execução do seguinte: “Fica V.ª Exa notificado na qualidade de Herdeiro da decisão da Agente de Execução, lavrada em 13.03.2023 com o número de documento ....

B. Mais se notifica, que os impostos devidos pela transmissão já se encontram liquidados e pagos e o preço já se encontra pago”.

C. Todos os restantes requeridos foram notificados pela Agente Execução na mesma data.

D. Depois da decisão da notificação da decisão da modalidade da venda e os valores base dos bens, proferida em 24-11-2020, não mais a Recorrente teve conhecimento acerca do leilão ou das datas em que o mesmo se ia realizar.

E. Como refere o artº 4º, nº 12 do Despacho n.º 12624/2015, de 09 de Novembro, que “Uma vez atribuído o número único de identificação do leilão, cabe ao agente de execução, titular do processo, notificar as partes processualmente relevantes do seguinte:

a) Número de identificação do leilão;

b) Data e hora de termo,

c) Bens em leilão”

F. A Recorrente e restantes requeridos não foram notificados do número de leilão, das datas em que o mesmo se ia realizar e como tal viram-se impedidos de participar no leilão e de licitar no mesmo.

G. Apenas foram notificados, em 4 de maio de 2023, do encerramento do leilão, tendo, os requeridos em virtude desta notificação, apresentado, o requerimento de 18-05-2023, com referência 8792484.

H. Salvo e muito respeito o Douto despacho de 18-09-2023, padece de erros e incorreções, na medida que refere: “Como resulta bem de ver, tendo presente que, do compulso dos autos, resulta que, em 13 de Março de 2023, os requeridos foram notificados do número de identificação do Leilão Eletrónica e da adjudicação dos prédios à proponente “A..., Lda.” a invocação da nulidade, dando de barato, que depois da notificação feita pelo Tribunal sobre a modalidade e valor da venda, a AE teria de ecoar essa informação, é manifestamente extemporânea e infundada”

I. Não corresponde à verdade que os requeridos tenham sido notificados a 13 de março de 2023 do número do leilão e da adjudicação dos prédios.

J. A agente de execução, por documentos juntos com referências 8635756, 8635755, 8635754, 8635753, apenas enviou, alegadamente, cartas à Requerida OO, por carta registada com registo nº RA...17PT, a LL, por carta registada com registo nº RA...01PT, a NN, por carta registada com registo nº RA...33PT e a MM, por carta registada com registo nº RA...8PT.

K. Contudo, consultando o estado de envio nos CTT, tais números de registo devolvem a seguinte informação “O objeto não foi encontrado. Verifique o código inserido ou se o objeto está a ser distribuído pelos CTT.”.

L. A alegada notificação não foi recebida por qualquer dos Requeridos que subscreveram o requerimento de 18 de maio de 2023.

M. Acresce que, tal notificação não informava os requeridos notificados nos termos do artº 4º, nº 12 do Despacho n.º 12624/2015, de 09 de Novembro.

N. A ter existido tal notificação, apenas efetuada, conforme consta dos autos, aos Requeridos Requerida OO, LL, NN, a MM, não notificou aqueles do número do leilão ou das datas em que o mesmo iria ocorrer.

O. Acresce que, a aqui Recorrente não foi notificada, sequer desta decisão em 13 de março de 2023, mas apenas foi recebida pela maioria dos Requeridos em 8 de maio de 2023.

P. Tendo sido apresentado nos autos o requerimento objeto de indeferimento em 18 de maio de 2023, salvo o muito e devido respeito, foi o mesmo apresentado dentro dos dez dias previstos por lei.

Q. Acresce que, refere o douto despacho que os Requerentes tinham conhecimento do leilão “já que dispunham de informação prévia emanada dos despachos judiciais”.

R. Efetivamente os Requeridos foram notificados em 24-11-2020 do despacho que determinou a venda por leilão público.

S. Contudo, o leilão apenas ocorreu em 2023, mais de dois anos após o referido despacho.

T. Pelo que salvo o muito e devido respeito, não é possível pedir, que os requeridos fossem com base nesta informação pesquisar, todos os dias, durante mais de dois anos, oitocentos dias, a venda dos imóveis, sem informação concreta do número de leilão e o intervalo de datas em que o mesmo ocorreria.

U. Refere ainda o Douto Despacho que “Resulta pois que a nulidade da venda com fundamento na falta de notificação da modalidade da venda e determinação do valor base dos bens deve considerar-se sanada”.

V. Contudo, a aqui Recorrente e restantes requeridos não arguiram qualquer nulidade da venda com fundamento na falta de notificação da modalidade da venda e determinação do valor base dos bens.

W.A aqui Recorrente e restantes requeridos apenas alegaram a falta de notificação do número do leilão e da data da sua realização.

X. Pelo que salvo o devido respeito o requerimento apresentado em 18-05-2023 foi apresentado dentro do prazo e como tal deveria ter sido objeto de análise.

Y. Requerimento, como consta dos autos, que coloca em causa a não notificação do número de leilão e da data de realização e não, como refere o Douto despacho, “por não terem sido notificados da determinação da modalidade da venda e dos bens em leilão”.

Z. Termos em que não se deverá considerar sanada qualquer hipoteca nulidade, uma vez que foi o requerimento apresentado em prazo.

AA. Deve o presente recurso ter provimento, revogando-se o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro em que se aprecie o requerimento apresentado a 18 de maio de 2023, com referência 8792484

BB. Acresce que, foi a Recorrente e restantes Requeridos que apresentaram o referido requerimento, foram condenados, a título de custas pelo incidente, ao pagamento de “4 UCs, por cada impetrante”.

CC. O Douto despacho não justifica a forma de calculo para aplicar que se 4 UCs a cada Requerido, por ter apresentado, um único requerimento, nem tão pouco a base legal para a sua aplicação.

DD. Conforme se refere no acórdão proferido pelo tribunal da relação de Coimbra, no processo 125/07.1GAVZL-G.C1...“ Decorre, por sua vez, da tabela II do RCP que o legislador das custas em matéria de «incidentes normais», entendeu autonomizar como tal, o «incidente de intervenção provocada principal ou acessória de terceiros e a oposição provocada», o incidente de verificação do valor da causa/e produção antecipada de prova», referindo-se, após e genericamente, a «outros incidentes». No mais, prevê o tratamento correspondente aos «incidentes de especial complexidade», que serão todos aqueles «normais», que nos termos do nº 7 do art 7º «revistam especial complexidade», e relativamente aos quais «o Juiz pode determinar, afinal, o pagamento de um valor superior, dentro dos limites esta estabelecidos na tabela II», e os «incidentes/procedimentos anómalos», estabelecendo no que a estes respeita, a fixação de uma taxa de justiça (normal) entre 1 a 3 UC.”

EE. Ora, ao condenar a Recorrente e restantes recorridos em custas a Exma. Senhora Juiz de Direito não fundamentou tal condenação.

FF. Termos, em que salvo o muito e devido respeito, deve o despacho recorrido ser declarado nulo por falta de fundamentação.

GG. Os requeridos subscreveram e submeteram apenas um requerimento.

HH. Tendo apenas existido um impulso processual.

II. Refere-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo 6311/13.8TBSTB-B.E1 “Conforme salientado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24 de Março de 2011, «este novo regime das custas processuais assenta, por um lado, na transferência das regras de cariz substantivo (regras gerais sobre a responsabilidade pelas custas, i.e., conceito de custas, princípios gerais sobre a matéria, titularidade da responsabilidade por custas) para o Código de Processo Civil e para o Código de Processo Penal, os quais serão aplicáveis subsidiariamente a outros tipos de processos; e, por outro lado, na concentração de todas as regras sobre custas num só diploma - Regulamento das Custas Processuais – o qual contém as regras fundamentais sobre a matéria, designadamente, a quantificação da taxa de justiça, o modo de pagamento das custas ou o processamento da correspetiva conta.

Acresce que, «atendendo ao princípio da proporcionalidade a que toda a atividade pública está sujeita, a taxa de justiça deverá ter tendencial equivalência ao serviço público prestado, concretamente, ao serviço de justiça a cargo dos tribunais, no exercício da função jurisdicional, devendo a mesma corresponder à contrapartida pecuniária de tal exercício»”

JJ. Acrescenta o mencionado acórdão “Assim, uma interpretação conforme à Constituição da legislação ordinária que rege sobre as custas processuais, nelas se incluindo as taxas de justiça, há-de sempre reger-se pelos princípios da igualdade, da causalidade e da proporcionalidade, encontrando-se este na ponderação, por um lado, de qual o valor da ação, e, por outro, de que o custo a suportar pela prestação do serviço público de justiça deve ser proporcional ao serviço prestado”

KK. Refere o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, no processo 189/18.2T8ORQ.E1 “A ação de divisão de coisa comum deve ser proposta, sob pena de ilegitimidade dos réus, contra todos os comproprietários, sendo um caso típico de litisconsórcio necessário passivo, imposto pela própria natureza da relação jurídica.”.

LL. Pelo que, conforme se refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo 41777/12.4YIPRT-A.G1 “Assim, no nosso caso, de litisconsórcio passivo, estando em causa uma única relação material controvertida, não faz sentido a imposição do pagamento de uma taxa de justiça por cada um dos sujeitos processuais que compõem a parte passiva da relação processual.”

MM. No mesmo sentido veja-se o Acórdão de 14 de Março de 2019, no processo n.º 378/18.0T8FAR-A.E1, que refere “1 - Estando em causa uma situação litisconsorcial que pressupõe uma única relação material controvertida e quando todos os litisconsortes impulsionam os autos na mesma peça processual não faz sentido a imposição do pagamento de uma taxa de justiça por cada um dos sujeitos processuais que compõem a parte ativa/passiva da relação processual”

NN. Conforme resulta do disposto no artigo 529.º, nº 1 do C.P.C., as custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte.

OO. Acrescenta o nº 2 do artº 529º do C.P.C. que a taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente e é fixado em função do valor e complexidade da causa, nos termos do Regulamento das Custas Processuais.

PP. Já o artigo 6.º, nº 1, do R.C.P. prescreve que “A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado…”.

QQ. Assim sendo, salvo o muito e devido, a medida das custas judiciais justiça devida afere-se pelo respetivo impulso.

RR. Ou seja, deveriam os requeridos, onde se inclui a aqui Recorrente ter sido condenada, se tal fosse exigido, numa taxa única e nunca em 4 UCs por cada requerido que subscreverem o mesmo requerimento.

SS. Termos em que deverá o presente recurso ser procedente e caso existam custas a pagar pelos Requeridos, serem os mesmos condenados numa taxa única, por violação dos artºs 529º, a e 2 do CPC e artº 6º, nº 1 do RCP

TT. Deverá ser, por isso, alterada a decisão de condenação, a título de custas pelo incidente, ao pagamento de “4 UCs, por cada impetrante”.

Termina pedindo que se conceda provimento ao presente recurso,

“1. alterando o douta Despacho recorrida no sentido de ser admitido o requerimento de 18/05/202, com referência 38792484.

2. Ser declarada nula a condenação em custas por falta de fundamentação

3. Alterada a condenação em custas, numa única taxa”.

13- Remetidos os autos a este Tribunal, foi pelo ora relator proferido, no dia 01/07/2024, o seguinte despacho:

“1- Compulsados os autos, verifica-se que, não obstante ter sido requerido pela Apelante, CC e outros, que fosse dado sem efeito o leilão ocorrido, anulada a venda e designado um novo leilão (cfr. req. de 18/05/2023 e 04/07/2023), a verdade é que a adquirente dos bens, a sociedade, A..., Ldª, não foi notificada para os termos deste incidente e do próprio recurso, quando, em tese, tem natural interesse em contradizer qualquer uma das pretensões aí formuladas.

Por isso mesmo e porque o juiz, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, “deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”, determino que os autos regressem ao Tribunal recorrido para que aí seja assegurado esse contraditório, designadamente, para a fase de recurso.

2- Antes dos autos regressarem a esta instância, devem ainda os mesmos vir instruídos com a documentação de onde resulta, como se refere no despacho recorrido, que “em 13 de Março de 2023, os requeridos foram notificados do número de identificação do Leilão Electrónica e da adjudicação dos prédios à proponente “A..., Lda”, pois que apenas se localizou a notificação à Apelante do despacho proferido nessa data, mas por carta expedida no dia 04/05/2023 (refª 8756589), o que pode ter implicações na contagem do prazo para a arguição da nulidade arguida por aquela”.

14- Regressados os autos ao Tribunal recorrido, foi aí determinada a notificação da adquirente “A..., Ldª” para os termos do incidente e do recurso, nos autos principais e no apenso, a qual, depois de concretizada essa notificação, não deduziu qualquer oposição.

15- Entretanto, depois de habilitados os herdeiros do interessado, DD, e de instruído o recurso, foi o mesmo devolvido a este Tribunal.

16- Uma vez aqui, preparada que está a deliberação, importa tomá-la:


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II- Mérito do recurso

1- Definição do respetivo objeto

Esse objeto, como é sabido, é delimitado em regra e ressalvadas, designadamente, as questões de conhecimento oficioso, pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC)].

Assim, observando este critério, resume-se este recurso a saber se:

a) A arguição da nulidade pela Apelante (e outros), foi intempestiva;

b) A Apelante não foi notificada, antes da realização do leilão, do número de identificação deste, da data e hora do seu termo e dos bens em leilão e, na afirmativa, quais as consequências jurídicas;

c) A decisão quanto a custas é nula por falta de fundamentação e, em qualquer caso, carece de fundamento ou pelo menos deve ser reduzida a taxa de justiça aplicada.


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2- Tendo em conta os factos descritos no relatório supra exarado – que são os únicos relevantes para a decisão destas questões – vejamos, então, como soluciona-las:

O primeiro dado que importa ter presente é que, de facto, não se mostra comprovada nos autos a notificação à Apelante da decisão da Agente de Execução proferida no dia 13/03/2023, por ofício expedido nesse dia, conforme se refere no despacho recorrido.

A notificação de tal decisão ocorreu (em relação à Apelante), mas apenas por ofício expedido no dia 04/05/2023 (Documento: aB23arXfGlD Referência interna do processo: PE/2997/2021).

Nessa medida, tendo em conta o disposto nos artigos 149.º, n.º 1, 199.º, n.º 1, e 249.º, do CPC, quando a Apelante veio arguir a nulidade decorrente da falta de notificação do número de identificação do leilão, da data e hora do seu termo e dos bens que o integravam, ainda estava em tempo para o fazer; ou seja, para essa arguição.

Questão diferente é a de saber se, efetivamente, ocorre essa nulidade e quais as suas consequências.

Analisemos, então, estes aspetos.

A venda em leilão eletrónico que aqui está em causa foi determinada por despacho proferido no dia 24/11/2020, devidamente notificado às partes.

A Apelante não o questiona. O que alega, diversamente, é que tinha direito a saber os dados já referidos, tendentes à identificação de tal leilão, a data e hora do seu termo, assim como os bens que o integravam, em ordem a participar na licitação e, por essa via, influenciar o preço, e que, não tendo tido esse conhecimento, a venda deve ser anulada.

Ora, sem prejuízo do respeito por opinião contrária, a nossa resposta a esta pretensão não pode deixar de ser afirmativa.

Estabelece, com efeito, o artigo 839.º, n.º 1, do CPC, que a venda fica sem efeito “[s]e for anulado o ato da venda, nos termos do artigo 195.º”.

Este preceito corresponde, no essencial e aparte a diferença no número do artigo, ao que se previa no artigo 909.º, n.º 1, al. c), do CPC anterior (de 1961).

Explicando a origem desse preceito, referia Eurico Lopes Cardoso[1], que na revisão ministerial que lhe deu origem e diversamente do Projeto de Revisão, foram condensados em tal normativo as duas hipóteses previstas nesse projeto: a de ser revogado ou anulado algum despacho ou outro ato judicial anterior à venda e de que esta dependa absolutamente; e a de ser “anulado o próprio ato da venda nos termos do artigo 201.º”.

E ainda hoje deve entender-se que continua a ser assim.

A venda executiva, refere José Lebre de Freitas[2], é anulável quando, entre outras hipóteses, ocorram nulidades processuais: “falta ou nulidade da citação do executado revel (art. 839.º-1-b); nulidade de ato anterior de que a venda dependa absolutamente (art. 839.º-1-c e 195.º-2); nulidade da própria venda (arts. 839-1-c) e 195-1)”.

E, no mesmo sentido se pronuncia, Rui Pinto[3]: “O ato processual da venda -i.e., o ato de emissão de título de transmissão da titularidade do bem penhorado (cf. Artigo 827º,nº 1) – pode ser anulado nos termos do artigo 195.º; conforme a al. c) do nº 1 do artigo 839º. Basta para tanto que seja processualmente inválido algum dos atos sequência que compõem a fase da venda”, acrescentando em nota de rodapé (2732), que “é ocioso distinguir entre nulidade do próprio ato de venda e nulidade indireta como consequência da anulação de atos anteriores”.

E entre os vícios processuais que podem ocorrer, destaca:

“a. falta ou irregularidade da notificação do despacho que ordenou a venda em ação executiva, ex vi artigo 812 nº 6, máxime, por falta de identificação dos bens e valor base (cf. Artigo 812º nº 3) ou falta de notificação dos reclamantes e exequentes (cf. Artigo 812 nº 6);

b. nulidade da publicidade da venda, máxime, por (1) omissão de publicitação de anúncios, (2) com a antecedência legalmente exigida; (3) omissão de afixação nos locais devidos ou (4) o jornal não se publicar na localidade da situação dos bens a vender, já que a omissão da publicidade é suscetível de influenciar o preço obtido em hasta pública, e consequentemente, prejudica as partes e credores reclamantes;

c. omissão de notificação de preferentes (cf. Artigo 819 nº 1);

d. ausência do juiz na abertura de propostas”.

Por sua vez, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[4], referem que [a] venda fica sem efeito se for anulado o ato da venda (art. 195º), designadamente por verificação dos seguintes vícios: omissão da notificação da decisão do agente de execução (art.812º, nº 6); omissão da publicitação da venda ou publicitação sem a antecedência devida; ausência do juiz na abertura de propostas (art. 820, nº 1); omissão da notificação do credor reclamante do despacho que fixa o dia e hora para a venda por propostas em carta fechada (STJ 27-9-05, 1735/05)”.

Ou seja, em resumo, a venda executiva (ou a que siga o mesmo procedimento), nos termos do artigo 839.º, n.º 1, al. c), do CPC, pode ser anulada, quer por vícios ocorridos no próprio ato da venda, quer por vícios que a precedam e que sejam suscetíveis de se refletir no objetivo por ela visado que se traduz, no fundo, na maximização do preço, em benefício das partes e de eventuais credores reclamantes.

Ora, no caso, a omissão da notificação à Apelante dos dados já referidos, antes da realização do leilão eletrónico, não pode deixar de ser integrada em tais vícios.

Na verdade, a publicitação desse leilão deve seguir as regras contidas no artigo 817.º, n.ºs 2 a 4, “ex vi” artigo 837.º, n.ºs 2 e 3, do CPC. Mas, não só. Aplicam-se igualmente as normas contidas nos artigos 20.º a 26.º, da Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto, sobre os termos em que se deve processar a venda, bem como o Despacho n.º 12624/2015, de 9 de novembro [publicado no DR, II série, nº 219, de 09/11/2015], que homologou as regras relativas ao sistema em que a mesma se processa. Ou seja, o sistema www.e-leiloes.pt. O artigo 20.º da citada Portaria 282/2013, não deixa qualquer margem para dúvidas a este propósito, quando prescreve que tal sistema está sujeito, para além do mais, ao regime aí previsto e ao que se estabelece no referenciado Despacho.

Donde, são todas essas regras as aplicáveis.

Ora, é justamente no mesmo Despacho (artigo 4.º, n.º 12) que se determina que “[u]ma vez atribuído o número único de identificação do leilão, cabe ao agente de execução, titular do processo, notificar as partes processualmente relevantes do seguinte:

a) Número de identificação do leilão;

b) Data e hora de termo;

c) Bens em leilão”.

Logo, este procedimento era obrigatório. Aliás, sempre se deveria entender que o era, uma vez que sendo as referidas partes aquelas que são titulares dos principais direitos e obrigações que podem vir a ser afetados com o curso do próprio processo, dificilmente se compreenderia que este último, em alguma das suas fases, pudesse correr à sua revelia.

O caso presente, de resto, ilustra-o bem.

O que nele se pretende, essencialmente, é a divisão de bens que são da titularidade conjunta da maioria dos Requerentes e Requeridos.

Ora, não obstante todos eles saberem que esses bens iam ser vendidos mediante leilão eletrónico, a verdade é que, pelo menos à Apelante, nunca foi dado a conhecer, antes da realização de tal leilão, nem o número de identificação do mesmo, nem a data e hora do seu termo. Isto quando é certo que, em tese, tinha natural interesse em participar nesse leilão, de modo a controlar a legalidade dos atos nele praticados e a influenciar o seu resultado. Aliás, em rigor, até a exercer o direito de preferência que a lei lhe confere (artigo 1409.º do Código Civil), embora não tenha invocado essa vontade.

Em todo o caso, é inequívoco, tinha o direito a participar em tal leilão. Aliás, é por isso mesmo que, na venda em estabelecimento de leilão, cujas regras são aqui também subsidiariamente aplicáveis (artigo 837.º, n.º 3, do CPC), se prevê que os credores, o executado e qualquer dos licitantes podem reclamar contra as irregularidades nele cometidas E, quando essas irregularidades possa influenciar o resultado da licitação, o leilão é anulado (artigo 835.º, n.ºs 2 e 3, do CPC). O que pressupõe, naturalmente, a necessidade de todos os intervenientes processuais conhecerem a data e hora em que se realiza o leilão.

Donde, só se pode concluir que, tendo a Apelante direito à já referida participação e não lhe tendo sido dado conhecimento dos dados legalmente previstos para a assegurar, a venda realizada à sua revelia, porque não foi precedida de um ato que podia influenciar o seu resultado, não pode deixar de ser anulada (artigo 195.º, n.º 2, do CPC).

Este recurso, pois, é de julgar procedente, revogado o despacho recorrido e decretada essa anulação. Por este motivo, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.


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III- Dispositivo

Pelas razões expostas, acorda-se em julgar procedente o presente recurso e, por consequência, revoga-se o despacho recorrido e anula-se a venda por leilão eletrónico realizada nestes autos.


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- Em função deste resultado e não tendo havido oposição, as custas deste recurso serão suportadas pela Apelante, em razão do critério do proveito- artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Porto, 19/11/2024.
João Diogo Rodrigues
Pinto dos Santos;
Maria da Luz Seabra.

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[1] Manual da Acção Executiva, 3ª edição (Reimpressão), Almedina, pág. 589.
[2] A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª Edição, Gestelegal, pág. 398.
[3] A Ação Executiva, 2018, AAFDL, págs. 921 e 922.
[4] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina pág. 260.