IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REJEIÇÃO DO RECURSO
Sumário

De acordo com o n.º 2 do artigo 640º do CPC, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Texto Integral

Processo n.º 2664/23.8T8VFR.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira - Juiz 1

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízes Desembargadores Adjuntos

Rui Moreira

Maria da Luz Seabra

SUMÁRIO:

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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:

AA intentou ação declarativa comum contra BB e CC.

Para tanto, alegou, em síntese, que é proprietário do prédio dado de arrendamento aos Réus, mediante acordo verbal celebrado em Janeiro de 1979, por DD, em representação do seu marido, EE, pai do Autor, com o Réu.

Com a morte de EE, o Autor tornou-se proprietário do referido prédio, aceitando manter o contrato de arrendamento.

Pelo menos desde Fevereiro de 2022, soube que os Réus já não habitam na casa arrendada, nem cuidam dela ou zelam pelo seu logradouro, guardando veículos em fim de vida na mesma, donde retiram peças de sucata, violando as regras de higiene, usando o prédio de forma contrária à lei e para fim diverso daquele a que se destina, pelo que o Autor procedeu à resolução extrajudicial do contrato de arrendamento, mediante notificação judicial avulsa aos Réus, sem que estes, todavia, tenham procedido à entrega do imóvel arrendado.

Formula o seguinte pedido:

“a) ser declarada válida a resolução do contrato de arrendamento verbal existente entre o AUTOR e os RÉUS, que tem como objeto o prédio supra identificado, operada pela NJA aqui junta, ou, se assim não se entender, deve ser declarada judicialmente a mesma resolução, com base nos motivos invocados e por culpa única e exclusiva dos RÉUS;

b) ser o AUTOR investido na posse do imóvel locado, devendo os RÉUS ser condenados a proceder à entrega do mesmo, livre e devoluto de pessoas e bens, entregando as respetivas chaves e ficando obrigados a reconhecer e a respeitar o direito de propriedade do AUTOR;

c) serem os RÉUS condenados a pagar ao AUTOR, a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no artigo 829.º-A, n.º 1 do Código Civil, a quantia de 50,00 Euros (cinquenta euros) por cada dia de atraso na entrega do imóvel, desde a data do trânsito em julgado da sentença até à data da efetiva entrega do imóvel;

d) serem os RÉUS condenados a pagar ao AUTOR, nos termos do art. 1045.º do CC, uma compensação pelo dano de privação do uso do imóvel, correspondente ao dobro da renda mensal, desde a data da resolução do contrato de arrendamento – 10 de Julho de 2023 – até à data da efetiva desocupação do imóvel, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a data de citação até à data da efetiva entrega do imóvel ao AUTOR; ou, se assim não se entender, serem os RÉUS condenados a pagar ao AUTOR uma indemnização pelo dano de privação do uso do imóvel, correspondente à quantia mensal de 500,00 Euros (quinhentos euros), desde a data da resolução do contrato de arrendamento – 10 de julho de 2023 – até à data da efetiva desocupação do imóvel, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a data de citação até à data da efetiva entrega do imóvel ao AUTOR;

e) tudo com as demais consequências legais.”.

Os Réus apresentaram contestação, defendendo-se por impugnação.

Por requerimento datado de 05/03/2024, o Autor requereu a ampliação do pedido, tendo os Réus exercido oportunamente o contraditório.

Foi admitida a referida ampliação do pedido e da causa de pedir, tendo-se julgando parcialmente extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, atento o pagamento das rendas realizado pelos Réus.

Realizou-se a audiência de julgamento e no final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto e com estes fundamentos, julga-se a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:

1) Declara-se resolvido o contrato de arrendamento vigente entre o Autor e o Réu, referente ao prédio do facto provado 1;

2) Condena-se os Réus a proceder à entrega do prédio do facto 1., ao Autor, livre e devoluto de pessoas e bens, entregando as respetivas chaves, decorrido um mês do trânsito em julgado da presente sentença;

3) Condena-se os Réus a pagar a quantia de 50,00€, por mês, ao Autor, enquanto não procederem à entrega do imóvel do facto 1, transitada em julgado a presente sentença;

4) Condena-se os Réus a pagar a quantia de 100,00€, por mês, ao Autor, caso não procedam à entrega do imóvel decorrido um mês após o trânsito em julgado da presente sentença;

5) Absolve-se os Réus do demais peticionado; e

6) Condena-se Autor e Réus no pagamento das custas, na proporção de 10% e 90%, respetivamente, atento o seu decaimento.”

Inconformados, os Réus BB e mulher CC, vieram interpor o presente recurso de APELAÇÃO, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“PRIMEIRA: O nº 7 dos factos provados deve ser dado como não provado, por a fundamentação de provado se ter ficado a dever a erro de interpretação dum depoimento por parte do Tribunal.

Com efeito, ao executar uma notificação judicial avulsa foi perguntado ao recorrente se recebia a notificação por si e por sua esposa e não tendo o R. consigo o documento de identificação da esposa foi o notificante e notificado à casa em que a esposa se encontrava para recolher o documento de identificação da esposa, tendo o Tribunal tomado como certo que o documento de identificação em falta era o do próprio marido, o que determinou que o Tribunal concluísse que era na casa em que a esposa estava que se centrava a vida do casal e não na casa arrendada.

O Tribunal acolheu ainda depoimentos de testemunhas do A. que não tiveram um discurso merecedor de credibilidade e desatendeu indevidamente os testemunhos de pessoas indicadas pelos RR. moradores no local e próximos das pessoas dos RR. e conhecedoras da sua vivência, o que não aconteceu com as testemunhas indicadas pelos Autor.

SEGUNDA: Serviram ainda de fundamento àquela resposta o baixo consumo de energia elétrica, o que os RR. justificam por não terem eletrodomésticos, cozinharem a lenha e passarem a noite como cuidadores na casa da mãe do R. por a mesma ter 98 anos de idade e achar-se acamada, fazendo com que o gasto de energia fosse muito reduzido, a par também do estado de degradação do imóvel arrendado por nunca ter sofrido obras de conservação pelo A. e o A. impedir os RR. de nela fazerem quaisquer obras.

TERCEIRA: O estado do terreno anexo à casa esteve sem cultivo e nele estiveram 2 veículos, entretanto abatidos, o que foi do conhecimento do Autor durante vários anos (4, 5 ou 6 no depoimento da procuradora do senhorio), sem que da sua parte houvesse reação, o que evidencia que tal facto foi aceite pelo A. que como consta do facto provado enumerado na sentença recorrida em 12 se opunha a qualquer limpeza do terreno.

QUARTA: O mau estado de conservação da casa arrendada é devido à falta de obras do A. que jamais ali praticou qualquer ato ou obra de conservação do imóvel, como impediu os RR. de fazer quaisquer obras, pelo que a invocação desse mau estado de conservação por parte do Autor como argumento destinado a obter o despejo do imóvel é ilegítimo e abusivo, não devendo ser tal argumento tomado em conta pelo Tribunal para fundamentar resposta de factos provados em benefício do A.

QUINTA: O que despoletou no Tribunal a convicção de que os RR. não habitavam na casa arrendada foi o entendimento de que o R. marido tinha o documento da sua identificação na casa da mãe e que o R. marido se referia a essa casa como se fosse a sua casa, factos que resultaram de erro de interpretação por parte do Tribunal como se deixou dito.

SEXTA: A decisão viola o disposto no artigo 1072º nº 2 do Código Civil. Viola o disposto no art. 334º do Código Civil ao permitir que o A. invoque o estado de má conservação do locado, sendo o próprio o responsável por esse estado. E viola o disposto no artigo 1 085º nº 1 e 3 do Código Civil ao valorizar o estado de abandono do terreno anexo à casa como contributo para a resolução do contrato de arrendamento, estando assente que o A. há, 4 5 e 6 anos tem conhecimento desse estado e nenhuma reação ter tido nos últimos dois anos (que foi quando cá esteve pela última vez).

SÉTIMA: Os RR. por terem sido impedidos de fazer quaisquer obras apresentaram reclamação na Câmara Municipal ... quanto ao estado de habitabilidade da casa, e, a Câmara Municipal tem demorado a tomar iniciativas com vista a contribuir para melhorar tal estado.

OITAVA: Invocam os RR. o justo impedimento previsto no artigo 16º do NRAU para não praticarem um uso intensivo da casa arrendada, fundado na assistência que prestam à acamada mãe de 98 anos de idade do R. marido e à falta de condições da cozinha da casa arrendada por ter havido uma deslocação da chaminé que abriu um buraco no teto da cozinha e não ter sido feita a reparação por oposição do recorrido.

Termos em que se pronunciam pela procedência do recurso, devendo a sentença recorrida ser revogada com as legais consequências.

Assim pedem e esperam por ser de JUSTIÇA.”

Contra-alegou o Autor AA, pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido, como Apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito suspensivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.

As questões decidendas, delimitada pelas conclusões dos recursos, são as seguintes:

-Modificabilidade da matéria de facto, tendo em vista a alteração da solução jurídica,

-Licitude da falta de uso do locado e,

-Abuso de direito.

III-FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença foram julgados provados os seguintes factos:

1. O prédio urbano correspondente a casa de 2 pisos com logradouro, sito à Rua ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., desde o ano de 1937, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira, sob o artigo ..., da freguesia ..., encontra-se registado a favor do Autor.

2. Na certidão permanente correspondente de 1., consta como “causa de aquisição: sucessão hereditária e partilha”, como “sujeito(s) ativo(s): AA” e como “sujeito(s) passivo(s): EE”.

3. DD acordou verbalmente com o Réu, em nome de EE, ceder-lhe o gozo do prédio de 1., mediante o pagamento da quantia mensal de 1.000,00 escudos pelo Réu, ao que este também se obrigou, para que o mesmo aí habitar com a Ré.

4. A quantia de 1.000,00 escudos atualmente corresponde a 50,00 euros.

5. FF, em nome do Autor, sugeriu ao Réu que o vertido em 4. passasse a constar de documento escrito, mas que o gozo do prédio fosse apenas pelo período de 1 ano, mediante o pagamento de quantia mensal não concretamente apurada.

6. O Réu recusou o sugerido em 5.

7. Desde, pelo menos, Abril de 2022 que os Réus deixaram de pernoitar, de cozinhar, de tomar as suas refeições e de lavar e secar a roupa no prédio de 1.

8. Desde, pelo menos, Março de 2020 e até 13 de Novembro de 2023, existiam 2 carros cuja circulação na via rodoviária já não é possível, no prédio de 1.

9. O Autor, através do seu Mandatário, remeteu carta ao Réu, datada de 21 de Abril de 2023, onde constava, além do mais, o seguinte:

“Todavia, volto agora ao seu contacto… no sentido de o notificar para o incumprimento do contrato de arrendamento (não reduzido a escrito por culpa exclusivamente sua) do prédio sito na Rua ..., em ...….

Em primeiro lugar, tratando-se de um contrato de arrendamento para habitação, dá-se o caso de V/ Ex.a (nem a sua família) já não estar a residir no prédio há largos anos, conforme podem atestar diversos vizinhos. O que constitui desde logo motivo para resolução do contrato de arrendamento, pelo senhorio, com justa causa.

Por outro lado, também é sabido que V/ Ex.a tem usado o prédio para fim diverso daquele a que se destina (habitação). Mas, ainda pior do que isso, constatou-se muito recentemente que V/ Ex.a tem usado o prédio para fins ilícitos e perigosos. Ora, perante a prova recolhida, podemos já avançar que V/ Ex.a mantem no prédio vários veículos em fim de vida, como se de uma sucata se tratasse. Tal atuação constitui contraordenação ambientar muito grave, para além dos perigos para o ambiente e para a saúde pública que a situação irremediavelmente acarreta. Claro está que, perante o exposto, os prejuízos para o proprietário do prédio são imensos, uma vez que a poluição por si infringida irá limitar a sua correta exploração durante as próximas dezenas de anos. Por último, é também notório que V/ Ex.a não tem feito a limpeza e manutenção do logradouro do prédio, que atualmente se encontra em perfeito "silvado", quiçá para esconder a sucata nele acumulada. A verdade é que tal situação é também ilegal, pois não respeita as regras de limpeza de terrenos em vigor na presente data, podendo originar processos de contraordenação ambiental, além do perigo para a vizinhança e para a saúde pública. Portanto, é certo que V/ Ex.a está a incumprir o contrato de arrendamento, desde logo por não habitar no prédio, mas também por estar a usá-lo para fim diverso daquele a que se destina, com a agravante de tal finalidade ser ilícita, e ainda por não proceder à sua limpeza e manutenção. Obviamente que estas situações, individualmente consideradas, mas também no seu somatório, tornam impossível a manutenção de contrato e dão o direito (e quase o dever) ao senhorio, de resolver com justa causa o contrato de arrendamento. Ainda assim, antes de proceder à resolução do contrato, cumpre-me notificá-lo de que deve imediatamente proceder à limpeza do arrendado, nomeadamente no que concerne à sucata que nele se encontra, no prazo máximo de 20 dias. Caso não proceda nos termos supra expostos, e se mantenha a situação de incumprimento contratual e os crimes ambientais, fica desde já notificado de que o assunto será reportado às autoridades competentes, nomeadamente ao serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (Sepna) e ao Delegado de Saúde de Santa Maria da Feira, para os fins tidos por convenientes, nomeadamente para instauração dos correspondentes processos de contraordenação e aplicação das respetivas sanções. Por último, caso tenha alguma dúvida sobre a presente notificação, deixo a minha disponibilidade, através dos contactos constantes do cabeçalho desta carta, para esclarecer tudo o que entender conveniente.”.

10. O Réu remeteu, por email datado de 10 de Maio de 2023, o seguinte email ao Autor, dirigido ao Mandatário deste: “Exmo. Senhor, Dr. GG Venho por este meio acusar a receção da sua carta, cujo conteúdo mereceu a melhor atenção. Senhor Doutor, penso haver aqui algum equivoco, uma vez que no primeiro parágrafo faz referência a uma eventual falta de resposta minha, quando eu tenho na ideia que o Senhor Doutor ficou de reduzir a escrito o contrato verbal e mo enviar para eu consultar e depois se necessário, seria agendado um dia no seu escritório. Já andei à procura da carta que me tinha enviado para confirmar, mas não a encontrei, por isso continuo á espera e se estou errado peço desde já desculpa. Quanto à insinuação de que não residimos na habitação, tenho a dizer que é falsa porque, infelizmente, não tenho outra residência nem condições para ter. Quanto à limpeza do terreno, ela é feita regularmente todos os anos e a ultima vez foi há cerca de um mês, mas nesta época do ano a natureza recupera e altera-se rapidamente, mesmo assim irei retificar algum caso mais acentuado. Já tomei também providencias para a remoção dos veículos do terreno, entretanto serão removidos. No que toca a outras insinuações, são isso mesmo insinuações sem qualquer fundamento e como tal não vou nem pretendo alimentar Por fim, vou fazer de conta que não percebo as reais intenções da representante do seu cliente para não ter de a processar pela pressão exercida ao longo do tempo com o objetivo de provocar a desocupação do imóvel, perturbando o nosso equilíbrio emocional, sempre que entra aos berros, criando um ambiente intimidativo, hostil, desestabilizador, mesmo ofensivo, pondo em causa o relacionamento senhorio inquilino que devia ser saudável, a exemplo do que foi com o anterior proprietário.

11. O Autor, na pessoa do seu Mandatário, remeteu o seguinte email ao Réu, datado de 12 de Maio de 2023: “Ex.mo Sr. BB, Acuso e agradeço o seu mail que antecede e que notei devidamente. Começo por esclarecer que, na sequência da sua carta de 29-11-2022, enviei-lhe uma carta a 02-12-2022, na qual o convidei a vir ao meu escritório no sentido de, entre outras coisas, reduzirmos a escrito o contrato de arrendamento - envio-lha em anexo, para lhe poupar a procura da mesma. E foi essa carta que nunca obteve resposta, tal como lhe disse na minha carta de 21-04-2023. Portanto, não fui eu que fiquei em falta. Por outro lado, sobre o facto de já não residirem na habitação, é um assunto que poderá merecer vários tipos de prova, se vier a ser necessário. Acresce que, no que compete à limpeza do terreno, existem fotos dos últimos anos, onde se nota a falta de limpeza do mesmo. Porém, noto a sua disponibilidade atual para o limpar, bem como para remover os veículos em fim de vida que o ocupam. Trataremos então de verificar, durante este mês de Maio, se isso irá acontecer. Posso ainda esclarecer que a minha carta não contem quaisquer insinuações, mas apenas o elencar de factos e o aviso para as consequências dos mesmos. Aliás, factos a que V/ Ex.a veio agora responder, confessando alguns e contestando outros, como é seu direito. Finalmente, fica desde já informado que pode deixar de fazer de conta de que não percebe as intenções do senhorio que eu represento. Bem sei que está na moda alegar que se é perturbado ou coagido ilicitamente (seja nas relações de trabalho, arrendamento, conjugais, etc), porque a opinião pública está cada vez sensível à vitimização gratuita, nomeadamente de quem não tem mais onde se agarrar. No entanto, fica já esclarecido que essa suposta perturbação é falsa e que não existe qualquer pressão ilícita para que desocupe o imóvel. Aliás, se bem reparou, as minhas cartas foram sempre no sentido de o manter no arrendado, formalizando o contrato de arrendamento por, escrito, com pagamento das rendas por transferência bancária, etc. Mais: mesmo sabendo que tem motivo para resolver o contrato de arrendamento, o meu cliente optou por não o fazer, como resulta evidente da minha última carta. Portanto, aqui não há vítimas, nem predadores. Há quem queira resolver os assuntos e quem queira adiar injustificadamente essa resolução. Atento todo o exposto, e de molde a evitar que desta vez se faça mesmo a resolução do contrato de arrendamento, solicito o agendamento de uma reunião, no meu escritório, de molde a esclarecermos todas as questões pendentes e a trabalharmos, em conjunto, para que o assunto se resolva definitivamente. Fico então a aguardar a sua resposta, no prazo máximo de 15 dias.”.

12. O Réu remeteu, como resposta a 12., o email de 24 de Maio de 2023, ao Autor, na pessoa do seu Mandatário, com o seguinte conteúdo:

“Exmo. Senhor, Dr. GG

Recebi o seu e-mail que mereceu a melhor atenção. Agradeço desde já o esclarecimento sobre a carta com a data de 02-12-2022. Senhor Doutor, sobre os outros parágrafos de certa forma já foram abordados no ultimo e-mail. Quanto à redução do contrato verbal a escrito, junto alguns dados para complementar a sua informação.

O senhorio

DD, casada com EE, residente na rua ..., na freguesia ...

O inquilino

BB, (na data solteiro) residente na Rua ..., na freguesia ...

Data do inicio do arrendamento, 1 de janeiro de 1979

Valor da renda mensal, 1.000$00 escudos (Mil escudos)

Valor atual da renda mensal, 50€ (Cinquenta euros)

O contrato verbal do arrendamento da casa e terreno a Sul, teve inicio em janeiro de 1979 e só começou a ser habitada em meados de agosto de 1979 porque a casa além de ser velha com muitos anos encontrava-se em mau estado de conservação. Foi sujeita a obras de reparação no interior, exterior, pinturas, substituição de algumas portas e mais tarde as janelas, obras que suportei e continuei a suportar ao longo dos anos. Já o novo proprietário e ao contrario da Dona DD não tem permitido qualquer intervenção, nem mesmo a limpeza ao terreno que curiosamente agora reclama.

Senhor Doutor, atendendo à facilidade que nos é proporcionada por este meio de comunicação penso que seria mais vantajoso do que uma reunião fazer a redução a escrito do contrato verbal e enviar-mo para que possa ser analisado, corrigido se necessário, até ao documento final.”.

13. O Autor, através do seu Mandatário, enviou o email datado de 25 de Maio de 2023, ao Réu, com o seguinte teor:

“Ex.mo Sr. BB,

Acuso e agradeço o seu mail que antecede e que notei devidamente.

Envio-lhe então a minuta de contrato de arrendamento que o meu cliente propõe. Queira por favor analisá-lo, dar as suas sugestões, de forma que obviarmos na sua formalização.

Fico então a aguardar novidades sobre esta matéria.”.

14. O Réu respondeu ao Autor, através de email enviado ao seu Mandatário, com data de 29 de Maio de 2023, onde constava o seguinte:

“Exmo. Senhor, Dr. GG

Em resposta ao seu e-mail devo dizer com o devido respeito, que o documento anexado à sua mensagem é um contrato de arrendamento aplicável quanto muito aos dias de hoje, logo não reduz a escrito o contrato verbal que teve inicio em janeiro de 1979, o que vem contrariar a posição inicial do seu cliente. Passo a citar,

"De facto, a intenção do meu cliente é precisamente reduzir a escrito o contrato já em curso, sem querer afetar os direitos e deveres de ambas as partes, para que, de futuro e para as gerações futuras, tudo esteja devidamente esclarecido e convencionado.".”.

15. Por email de 02 de Junho de 2023, o Autor, através do seu mandatário, remeteu resposta mediante email enviado ao Réu, com o seguinte teor:

“Notei, sem surpresa nenhuma, o seu mail.

É mais do mesmo. Há meses que andamos nisto. Não "gosta" do contrato, mas, apesar de eu expressamente mostrar total abertura para tal, não faz uma única sugestão de alteração ao mesmo. Ou seja, na verdade o que pretende é manter a situação vigente.

Sendo assim, e para nenhum de nós perder mais tempo, irei imediatamente tentar resolver o assunto pela via judicial.”.

16. O Réu respondeu ao Autor, enviando o email de 05 de Junho de 2023, na pessoa do seu Mandatário, com o seguinte teor:

“Exmo. Senhor Dr. GG,

No seu e-mail acusa-me de não gostar do contrato e de não fazer qualquer sugestão para melhorar o mesmo.

Permita-me discordar, não se trata de eu gostar ou não do contrato, nem é isso que está em causa. O Senhor Doutor ainda não me enviou um documento que reduza a escrito o contrato verbal em vigor desde janeiro de 1979, documento esse que reclamo desde o inicio. O que o Senhor Doutor enviou foram dois contratos de arrendamento, um com prazo certo e com a duração de um ano e outro de cinco anos, ambos com cláusulas quanto muito aplicáveis num novo contrato. Por último, como posso eu gostar ou dar alguma sugestão sobre um documento que

V.ª Ex.* ainda não me enviou?

Continuo por isso à espera do documento que reduz a escrito o contrato verbal em vigor há 44 anos. Obrigado.”.

17. Através de ato designado de “notificação judicial avulsa”, realizado a 10 de Julho de 2023, o Autor deu a conhecer aos Réus que “resolveu o contrato de arrendamento…, produzindo a resolução os seus efeitos a partir da data em que o Requerido seja notificado; [e que devia] o locado ser-lhe imediatamente entregue, livre e devoluto de pessoas e bens…”.

18. Em data não concretamente apurado, mas anterior a 03 de Agosto de 2023, o prédio de 1. apresentava erva e fetos junto ao local onde se encontram os carros de 9.

19. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 03 de Agosto de 2023, a altura dos fetos ultrapassava a do muro existente no prédio de 1.

20. Os vizinhos do prédio de 1. queixaram-se de 18. e 19.

21. O prédio de 1. apresenta um buraco no teto da cozinha.

22. No andar de baixo do prédio, os Réus guardam objetos não concretamente apurados, que já não utilizam.

23. O Autor encontra-se a viver e a trabalhar na República da África do Sul.

24. Quando o Autor vem a Portugal tem de pedir a pessoas que conhece ou aos seus familiares que o deixem, a si, à sua mulher e filhos, pernoitar nas suas casas, ou, em alternativa, paga os respetivos quartos de hotel.

E foram julgados não provados os seguintes factos:

a) Os Réus procedem ao corte dos fetos existentes no terreno do prédio de 1. duas vezes por ano.

b) Os Réus extraem peças dos automóveis de 9.

c) Dos automóveis de 9. escorrem líquidos que contaminam o solo do prédio de 1.

d) Os Réus somente deixam de pernoitar e de tomar as suas refeições no prédio de 1. para passar a noite com a mãe do Réu, por esta estar acamada.

e) O Réu exerce a sua atividade de mecânico de automóveis no prédio de 1..

IV-DA MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO:

Decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa."

O Tribunal da Relação deve, pois, exercer um verdadeiro e efetivo segundo grau de jurisdição da matéria de facto, sindicando os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da recorrida, e referenciar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Porém, para que a parte que pretenda beneficiar dum “segundo julgamento” da matéria de facto, poder ver ser reapreciada a prova produzida, a lei impõe-lhe o cumprimento de alguns ónus, que se encontram devidamente especificados no art. 640º do C.P.C.

Dispõe esta norma o seguinte:

“Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. (…)”

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.

O legislador, quando introduziu um efetivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto, através do DL 39/95 de 15.2, deixou consignado no respetivo preâmbulo, os seguintes objetivos: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.

Mostra-se, na verdade, incontestável que quando seja impugnada a matéria de facto o Recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas - Cf. art.º 640.º, n.º 1, do CP Civil.

Sendo a prova gravada, terá ainda que indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.

Com efeito, de acordo com o referido no nº 2 do artigo 640º do CPC, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

A lei comina com a rejeição do recurso, quanto aqueles requisitos formais acabados de enunciar não se mostram observados.

Como refere Abrantes Geraldes,[1] “os aspetos fundamentais a assegurar neste campo são os relacionados com a definição clara do objeto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de factos em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado produzido.

Afirma ainda Abrantes Geraldes,[2]que “as referidas exigências devem ser apreciadas á luz de um critério de rigor. Trata-se afinal de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto, s transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.

Deveriam os recorrentes especificar devidamente nas conclusões, por força do disposto no art. 640º, n.º 1, b) do CPC, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que no seu entender determinam uma decisão diversa quanto a àquele facto que pretendem alterar, e fundando-se a impugnação no todo ou em parte em prova gravada, indicar em termos precisos, as passagens da gravação relevante ou proceder à sua transcrição, art.º 640 n.º1, b) e n.º 2.

Resulta das conclusões de recurso apresentadas que as mesmas não individualizam, nem identificam devidamente os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, já que aí se não identificam as testemunhas, nem os concretos documentos a que se reportam.

Porém, constata-se que, nas respetivas alegações os apelantes procederam à transcrições parcial dos depoimentos de testemunhas que identificam, indicando (sem grande exatidão, é certo), as passagens das gravações em que fundam o recurso, como manda o nº 2 al. a) do art. 640º do CPC.

Daí que, mostrando-se apreensíveis as questões suscitadas pelos recorrentes, nomeadamente “os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa” e o sentido da decisão defendida, iremos conhecer do objeto do recurso.

Com efeito, como refere Abrantes Geraldes,[3] “Assim, se pelo modo como foi feita a gravação e elaborada a ata, for possível (exigível) ao recorrente identificar precisa e separadamente os depoimentos o ónus de alegação no que concerne à impugnação da decisão da matéria de facto apoiada em tais depoimentos, cumpre-se mediante a indicação exata das passagens da gravação em que se funda, sem embargo da apresentação facultativa da respetiva transcrição. O incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução do despacho de aperfeiçoamento”.

O recorrente invocou erro de julgamento quento à matéria de facto contida no facto 7 do elenco dos factos provados, que pretende ver julgado não provado.

Nesse facto, o tribunal julgou provado que, “desde, pelo menos, Abril de 2022 que os Réus deixaram de pernoitar, de cozinhar, de tomar as suas refeições e de lavar e secar a roupa no prédio de 1.”

Trata-se de um facto essencial, do qual depende a pretensão do autor, já que este veio pedir a resolução do contrato de arrendamento, precisamente com fundamento no não uso do locado por mais de um ano, fundamento resolutivo do contrato de arrendamento previsto no art. 1083.º, n.º2, al. d), do CC, que o tribunal a quo julgou verificado, declarando consequentemente a resolução do contrato de arrendamento e determinando a desocupação do locado pelos RR.

Importando não esquecer, que na reapreciação da prova pelo Tribunal da Relação mantêm-se vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efetivado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Haverá ainda que ter presente que não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma certeza absoluta raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança.

Como refere Manuel de Andrade,[4] a prova não é certeza lógica, mas tão só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida”.

Ora, analisados os meios de prova indicados pelos apelantes, entendemos que não ocorre erro de julgamento relativamente ao facto impugnado que o tribunal julgou provado.

Com efeito, sob o signo da probabilidade lógica entendemos que o tribunal a quo valorou devidamente a prova produzida.

Assim, quanto ao depoimento do Senhor Solicitador HH, não se verifica qualquer erro de valoração da prova testemunhal, como defendem os RR.

Este declarou que, encontrando-se no locado, por indicação do Réu, teve de ir a casa dos pais do Réu, em ..., por indicação daquele, para ir buscar o cartão de cidadão do réu, com o qual acabou de preencher as certidões de notificação, que depois juntou aos autos da notificação judicial avulsa.

Com efeito, como se pode ler na sentença, “de acordo com as regras da experiência, uma pessoa traz consigo os seus documentos de identificação ou, então, deixa-os em casa, i.e., na sua casa, daqui se extraindo que o Réu apenas se deslocou ao prédio de 1. para receber a referida notificação, já agendada, como se fosse uma visita esporádica ao mesmo.”

Quanto ao depoimento das testemunhas Dª FF, procuradora do autor, emigrado na África do Sul, que trata das questões relacionadas com o arrendamento, a mesma, apesar de não morar perto do locado afirmou que “aquilo que as pessoas hoje me dizem lá, a minha sobrinha, que mora frente a frente com ela, diz-me que eles que já não moram lá há mais de dois anos, que estão sempre em casa dos pais do senhor BB”.

II por sua vez, referiu que “Visivelmente do lado de fora consegue-se ver que a casa está num estado de... degradado. Vê-se que a chaminé está…está… ligeiramente inclinada. Vê-se que não há... Não houve grande conservação do…do imóvel.” Referiu também que deixou de ver carros lá.

JJ, por sua vez, que era quem recebia as rendas pagas pelos réus referiu que: “… mas eu acho que eles ainda vinham lá pagar a renda, e já não via lá assim, jeitos de eles lá viver. Mas vinham lá pagar, e eu a minha obrigação era…” e “.. é assim, eu também não estava muito a reparar, mas muito tempo não os via lá.”

De qualquer forma, não foram estes depoimentos que, de forma isolada serviram para formar a convicção do tribunal a quo, como resulta da fundamentação, mas sim a sua conjugação com outros meios de prova.

Com efeito, foram conjugados com prova documental e com as regras da experiência, desta forma: “ Mais a mais, atendeu-se ainda à fotografia junta com a contestação, donde resulta a existência de um buraco no teto, num local identificado, por ambos os Réus, como sendo a cozinha onde fazem as suas refeições. Com efeito, é manifesto que, de acordo com o normal do acontecer, ninguém cozinha ou toma as suas refeições num local que, pelo menos, desde 25.09.2023 (data da apresentação da contestação) se apresenta e configura dessa forma degradada e necessitada de obras, o que leva a concluir, desde logo, que os Réus não cozinham, nem tomam as suas refeições no prédio de 1..

Outrossim, a circunstância de existir um buraco no teto, sem que tenha sido interpelado formalmente o senhorio ou até instaurada uma ação judicial, é sintomático de que efetivamente os Réus não vivem no local, já que, tendo pagado sempre a renda mensal devida, é contrário às regras da experiência que não agissem ou tomassem as devidas providenciais para a reparação da casa, sujeitando-se a viver um quotidiano dessa forma.

De igual modo, ressalta ainda das fotos juntas com a petição inicial, um descuido com a habitação e com o tratamento da vegetação existente no prédio (atentas as ervas e os fetos altos, os carros tipo ferro velho aí localizados, com objetos não concretamente apurados mas que se assemelham a resíduos), incompatível com o facto de os Réus aí viverem, porquanto a habitação, por eles, deste imóvel, exigiria um cuidado mínimo com este, o qual não se descortina, sendo estas fotografias sintomáticas da utilização do prédio como um depósito de objetos pelos Réus.

Nesse sentido apontam também as faturas de eletricidade juntas no requerimento de 18.12.2023, dos Réus: das mesmas emerge que o valor de eletricidade a pagar por estes, ao longo de um ano e dez meses, é tão pequeno que não é compaginável com uma vida quotidiana (e residência) no local arrendado, ainda que sopesadas as ausências alegadas pelos Réus (consideradas não provadas), para tomarem conta e acompanharem a mãe do Réu marido, que está acamada.

De facto, pese embora se suscitem enormes reservas quanto aos eletrodomésticos e aparelhos elétricos de que os Réus teriam no imóvel (fogão de gás, televisão, micro-ondas e frigorífico), pelo que infra se aludirá, é manifesto, de acordo com as regras da experiência, que uma vida, numa casa onde ainda se come, cozinha, dorme e passa algum tempo livre, não pode justificar tamanho reduzido consumo de eletricidade, na medida em que o mero ligar/desligar de luzes, o frigorífico ligado ou até o funcionamento e utilização do motor do poço que o próprio Réu admite usar, implicariam uma despesa de eletricidade superior à verificada ao longo deste período, ainda que meramente por estimativa. Neste conspecto, afigura-se que os valores cobrados se reconduzem meramente ao custo do contador de luz.

Veja-se, pois, que: nos meses de 13.12.2021 a 12.02.2022, a despesa de eletricidade foi de 58,93€, ou seja, em média, de 29,47€ por mês; nos meses de 13.02.2022 a 12.04.2022, de 28,61€, i.e., de 14,31€ por mês; nos meses de 13.04.2022 a 12.06.2022, de 26,06€, ou seja, de 13,03€ por mês; e, nos meses de 13.06.2022 a 12.08.2022, de 57,97€, i.e., de 28,99€ por mês. Mais foi dos seguintes valores: 1) 6,29€, entre 13 de Agosto e 12 de Outubro de 2022; 2) 6,25€, entre 13 de Outubro e 12 de Dezembro de 2022; 3) 3,27€, entre 13 de Dezembro e 12 de Fevereiro de 2023; 4) 6,14€, entre 13 de Fevereiro de 2023 e 12 de Abril de 2023; 5) 6,13€, entre 13 de Abril e 12 de Junho de 2023; 6) 6,15€, entre 13 de Junho e 12 de Agosto de 2023; e 7) 3,15€, entre 13 de Agosto e 12 de Outubro de 2023.

É certo que chegam os Réus a mencionar que não têm qualquer aquecimento e que cozinham no fogão de lenha. Mais isto afigura-se manifestamente implausível, atenta a nenhuma praticidade que isso convoca, sobretudo nos dias de hoje. Assim como o é o facto de, salientaram, se deitarem mal chegam a casa.

De facto, poder-se-ia cogitar a possibilidade de isso acontecer um mês, dois/três meses ou até um ano. Mas durante anos? A que horas chegam a casa? Não jantam? Onde jantam, então? No Inverno não acedem as luzes se chegarem a casa às 18/19 horas? Deitam-se a essa hora? E fazem-no mesmo no Verão, quando não anoitece antes das 21 horas?

Não parece, pois, que a versão dos Réus seja minimamente razoável, pelo que a justificação avançada para os baixos consumos de eletricidade, pelos Réus, tem de soçobrar, por falta de credibilidade.”

Por sua vez, quer o depoimento de parte prestado pelo Réu, onde este Réu, “para além de se referir a casa de sua mãe como “a minha casa”, denominação que nunca utiliza para se reportar ao imóvel dos autos”, quer o depoimento das testemunhas indicadas pelos RR não servem para infirmar a credibilidade que mereceram aqueles meios probatórios indicados, pois desde logo, como foi assinalado na sentença “Em suma, os depoimentos de parte (e a versão) dos Réus encontram-se pautados de incoerências em face daquilo que constitui o normal do acontecer e as regras da experiência, não merecendo, neste conspecto, credibilidade.”

Tudo visto e ponderado, o juízo probatório que ora se formula em nada diverge do que se apresenta como essencial à convicção alcançada pela 1.ª instância, que consideramos suficientemente motivada, improcedendo por isso a impugnação da matéria de facto feita neste recurso.

V- APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:

Considerando que a eventual alteração da solução jurídica dependia da modificação da decisão de facto, o que não sucedeu, apenas resta confirmar a sentença, em relação à qual se adere, por se encontrar bem fundamentada, não se justificando, em consequência, a apreciação de qualquer outra solução jurídica.

Com efeito, as situações a que os apelantes aludem nas conclusões sexta, sétima e oitava, onde se inclui a invocação da licitude da falta de uso efetivo do locado por “doença ou devida à prestação de apoios continuados a pessoas com grau de incapacidade superior a 60%, incluindo familiares (Lei 79/2014 de 19/12), não tem respaldo na factualidade que foi julgada provada.

Acresce que o recurso de apelação, tal como está consagrado no nosso sistema processual civil, está formatado por um modelo de reponderação, destinado à reapreciação da decisão recorrida quanto às questões que lhe foram endereçadas, e não à reformulação da decisão perante novo contexto e novas questões.

Sem prejuízo, ainda que novas, sempre poderão ser apreciadas pelo tribunal de recurso questões que sejam objeto de conhecimento oficioso, natureza que se reconhece à exceção do abuso de direito, invocado na conclusão sexta do recurso.

Dizem os Apelantes que a sentença viola o disposto no art. 334º do Código Civil ao permitir que o A. invoque o estado de má conservação do locado, sendo o próprio o responsável por esse estado.

Em face da celebração do contrato a que se reportam os autos, um contrato de arrendamento, o locatário ficou com a obrigação de pagar as rendas nas datas e locais acordados (cf. art.º 1038.º, alínea a), do Código Civil[5]) e o locador com as obrigações de entregar ao locatário a coisa locada e de assegurar o gozo desta para os fins a que a coisa se destina (cf. art.º 1031.º do C Civil).

Como se explica no Código Civil Anotado, com coordenação de Ana Prata[6]: “Proporcionar o gozo da coisa é uma expressão que procura vincar a estrutura obrigacionista da figura, tornando o locatário credor desta obrigação de “proporcionar o gozo”. No entanto, tal obrigação tem um conteúdo muito difuso, uma vez que a atuação do locatário se exerce diretamente sobre a coisa locada, sem necessidade de mediação. Assim, além do dever inicial de entregar a coisa, como conteúdo de tal prestação apenas se encontra o dever de o locador se abster de privar ou de dificultar a atuação do locatário sobre a mesma.”

Aliás, esta tese encontra-se diretamente consagrada no n.º 1 do art.º 1037.º do C Civil ao prescrever que “(…) o locador não pode praticar atos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário (…).”

Ou seja, a obrigação do locador equivale e circunscreve-se à cedência do gozo do locado, sendo usualmente decomposta em duas vertentes: obrigação negativa de não privar ou dificultar o gozo pelo locatário e obrigação positiva de manutenção do gozo, designadamente realizando reparações ou despesas necessárias.

Por sua vez, o art.º 334.º do C Civil prescreve que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

Quanto à noção de abuso de direito, usando a definição de Jorge Coutinho de Abreu[7]: "Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem." Ou, usando uma expressão concisa de Cunha de Sá[8], o abuso de direito traduz-se no dever de não abusar do direito próprio.

No caso em apreço, os RR construíram a sua defesa, negando ter deixado de habitar o imóvel.

Da matéria de facto provada, que ficou estabilizada com a decisão que indeferiu a impugnação da matéria de facto não resulta terem ficado demonstradas as razões para essa saída do locado, nomeadamente que tal tenha ocorrido por falta de condições do mesmo, ou com o facto aventado de tal ter decorrido por necessidade de prestar auxílio na doença a terceiro.

Desta forma, entendemos não ter ficado demonstrada qualquer situação suscetível de ser integrada no instituto do abuso de direito.

Terá assim que ser julgado improcedente o presente recurso.

VI-DECISÃO:

Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso e em confirmar a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.


Porto, 19 de novembro de 2024.
Alexandra Pelayo
Rui Moreira
Maria da Luz Seabra
_________________
[1] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, pg. 175.
[2] Obra citada, pg. 169.
[3] obra citada pág. 154
[4] Noções Elementares de Processo Civil, pág. 191.
[5] Doravante apenas designado por C Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[6] Volume I, 2017, Almedina, pág. 1249.
[7] In Do abuso de Direito, Almedina, 1999, pág. 43.
[8] In Abuso do Direito, 1997, p. 640.